Language of document : ECLI:EU:C:2016:574

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 19 de julho de 2016 (1)

Processo C‑294/16 PPU

JZ

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sąd Rejonowy dla Łodzi‑Śródmieścia w Łodzi (Tribunal de Primeira Instância de Łódź, Polónia)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Mandado de detenção europeu e processos de entrega entre os Estados‑Membros — Efeitos da entrega — Dedução do período de detenção cumprido no Estado‑Membro de execução — Artigo 26.° — Detenção resultante da execução de um mandado de detenção europeu — Conceito — Obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica — Inclusão — Direitos fundamentais — Artigo 6.° e artigo 49.°, n.° 3, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia»





1.        O presente pedido de decisão prejudicial foi suscitado no âmbito de um processo que tem por objeto o pedido de uma pessoa penalmente condenada, com vista a deduzir do período total da pena privativa de liberdade cumprida no Estado de emissão de um mandado de detenção europeu (a República da Polónia) o período durante o qual o Estado de execução do mandado (Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte) aplicou uma obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica e outras medidas restritivas.

2.        Com a sua questão prejudicial, o Sąd Rejonowy dla Łodzi‑Śródmieścia w Łodzi (Tribunal de Primeira Instância de Łódź, Polónia) pretende saber, em substância, se medidas como as que estão em causa no processo principal podem ser qualificadas de «detenção» na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI (2), levando esta questão o Tribunal de Justiça a pronunciar‑se, pela primeira vez, sobre a interpretação desta disposição.

3.        Ainda que, à primeira vista, se possa ser levado a concluir que o conceito de «detenção», na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro, é apenas o que integra a privação de liberdade stricto sensu, decorre da interpretação desta disposição no respeito dos direitos fundamentais consagrados pelo artigo 6.° TUE e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») que este conceito de detenção pode abranger medidas que integram uma restrição da liberdade que, pela sua intensidade, pode ser equiparada a uma privação desta.

4.        É à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que se deverá apreciar se, no caso em apreço, as medidas impostas pelo Estado‑Membro de execução, atendendo ao seu cúmulo, à sua gravidade e à sua duração, integram uma restrição da liberdade comparável a uma prisão e devem, por conseguinte, ser deduzidas do período total de privação de liberdade a cumprir no Estado‑Membro de emissão do mandado de detenção europeu.

I –    Quadro jurídico

A –    Direito da União

1.      Tratado UE

5.        O artigo 6.° TUE dispõe:

«1.      A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta [...] que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados.

De forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados.

Os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem ser interpretados de acordo com as disposições gerais constantes do Título VII da Carta que regem a sua interpretação e aplicação e tendo na devida conta as anotações a que a Carta faz referência, que indicam as fontes dessas disposições.

2.      A União adere à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais [, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir ‘CEDH’)]. Essa adesão não altera as competências da União, tal como definidas nos Tratados.

3.      Do direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a [CEDH] e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros.»

6.        Nos termos do artigo 1.°, n.° 1, do Protocolo (n.° 30) relativo à aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia à Polónia e ao Reino Unido, «[a] Carta não alarga a faculdade do Tribunal de Justiça da União Europeia, ou de qualquer tribunal da Polónia ou do Reino Unido, de considerar que as leis, os regulamentos ou as disposições, práticas ou ação administrativas destes países são incompatíveis com os direitos, as liberdades e os princípios fundamentais que nela são reafirmados».

2.      Carta

7.        O artigo 6.° da Carta garante que «[t]oda a pessoa tem direito à liberdade e segurança».

8.        Nos termos do artigo 49.°, n.° 3, da Carta, «[a]s penas não devem ser desproporcionadas em relação à infração».

9.        Conforme previsto no artigo 50.° da Carta, «[n]inguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei».

3.      Decisão‑quadro

10.      O considerando 12 da decisão‑quadro esclarece que esta respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.° TUE e consignados na Carta, nomeadamente no seu capítulo VI.

11.      O artigo 1.°, n.° 3, da decisão‑quadro recorda que esta «não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.° do Tratado da União Europeia».

12.      O artigo 26.° da decisão‑quadro, intitulado «Dedução do período de detenção cumprido no Estado‑Membro de execução», dispõe, no seu n.° 1:

«O Estado‑Membro de emissão deduz a totalidade dos períodos de detenção resultantes da execução de um mandado de detenção europeu do período total de privação da liberdade a cumprir no Estado‑Membro de emissão, na sequência de uma condenação a uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.»

B –    Direito polaco

13.      O artigo 63.°, n.° 1, do kodeks karny (Código Penal), de 6 de junho de 1997 (3), prevê uma obrigação de deduzir, do período total da pena privativa de liberdade, o período de privação efetiva de liberdade da pessoa condenada ocorrida durante o processo.

14.      O artigo 607f do kodeks postępowania karnego (Código de Processo Penal), de 6 de junho de 1997 (4), contém uma disposição que aplica o artigo 26.° da decisão‑quadro. A sua redação é semelhante à do artigo 63.°, n.° 1, do Código Penal. No entanto, o seu âmbito de aplicação é limitado à privação de liberdade associada à execução de um mandado de detenção europeu.

II – Litígio no processo principal

15.      Em 2007, JZ foi condenado por um tribunal polaco a uma pena privativa de liberdade de três anos e dois meses. Tendo JZ deixado a Polónia, o órgão jurisdicional competente emitiu um mandado de detenção europeu. Em 18 de junho de 2014, JZ foi detido pelas autoridades do Reino Unido em execução do referido mandado de detenção europeu.

16.      Durante o período de 19 de junho de 2014 a 14 de maio de 2015, JZ foi sujeito à obrigação de permanência na habitação (curfew condition) com vigilância eletrónica (electronic monitoring condition).

17.      Em 14 de maio de 2015, JZ foi entregue às autoridades polacas. Subsequentemente, o condenado requereu ao órgão jurisdicional de reenvio que o período em que esteve sujeito à obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica no Reino Unido fosse deduzido do período total de privação de liberdade a cumprir na Polónia.

III – Questão prejudicial

18.      Neste contexto, o Sąd Rejonowy dla Łodzi‑Śródmieścia w Łodzi (Tribunal de Primeira Instância de Łódź) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 26.°, n.° 1, da [decisão‑quadro] conjugado com o artigo 6.°, n.os 1 e 3, [TUE], e com o artigo 49.°, n.° 3, da [Carta] ser interpretado no sentido de que o termo ‘detenção’ também abrange medidas aplicadas pelo Estado[‑Membro] de execução, associadas a uma [obrigação de permanência na habitação], que consistem na vigilância eletrónica do local de residência da pessoa objeto do mandado de detenção?»

19.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que, embora a execução de determinadas penas privativas de liberdade sob a forma de uma obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica não seja desconhecida do sistema jurídico polaco, não está, todavia, prevista para todas as penas. Além disso, a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica não está prevista no direito polaco como medida de segurança. Decorrem daqui dúvidas quanto à possibilidade de deduzir os períodos de aplicação dessa medida do período total de privação de liberdade.

20.      Os órgãos jurisdicionais nacionais parecem interpretar o conceito de «detenção» na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro à luz das disposições correspondentes do direito nacional, a saber, as do artigo 63.°, n.° 1, do Código Penal. Assim, uma vez que o conceito aí utilizado, a saber, o de «privação efetiva de liberdade», tem um alcance mais restrito, é possível observar alguma relutância dos órgãos jurisdicionais nacionais em relação à possibilidade de deduzir o período de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica da pena privativa de liberdade. Todavia, o Tribunal Constitucional polaco não a excluiu em diversas decisões. No entanto, sublinhou que a resposta no caso em apreço depende da questão de saber se as condições de execução de tal medida permitem equipará‑la à privação efetiva de liberdade.

21.      O órgão jurisdicional de reenvio invoca também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa à interpretação do conceito de «privação de liberdade» na aceção do artigo 5.° da CEDH para assinalar as diferentes abordagens deste conceito conforme interpretado pelos tribunais internacionais. Invoca também as disposições da Carta, designadamente o seu artigo 49.°, n.° 3, e questiona‑se sobre se a eventual improcedência do pedido do processo principal teria por efeito a violação do princípio da proporcionalidade na aceção do referido artigo.

IV – Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e alegações das partes

22.      O presente pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 25 de maio de 2016. O Governo polaco e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

23.      Em 4 de julho de 2016, realizou‑se uma audiência na qual os interessados referidos no artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, e em especial os Governos polaco e do Reino Unido, foram solicitados a responder às seguintes questões:

–        Que incidência tem o artigo 49.°, n.° 3, da Carta na interpretação do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro?

–        Admitindo que as medidas como as que estão em causa no processo principal possam ser qualificadas de detenção na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro, este artigo confere ou não à autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão uma margem de apreciação quanto à imputação (parcial ou total) dos períodos durante os quais tais medidas foram aplicadas no Estado‑Membro de execução? Na afirmativa, a medida em que tais períodos são tomados em conta é regida pelo direito da União ou pelo direito do Estado‑Membro de emissão? Neste contexto, a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão deve também ter em conta o direito do Estado‑Membro de execução?

24.      Além disso, o Governo do Reino Unido foi solicitado a prestar esclarecimentos ao Tribunal de Justiça sobre as disposições de direito nacional que foram aplicadas no caso em apreço e sobre as medidas exatas aplicadas a JZ.

25.      Os Governos polaco, alemão e do Reino Unido e a Comissão apresentaram as suas observações orais na referida audiência.

26.      O Governo polaco considera que a interpretação literal do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro não exclui que se considere que, em determinadas condições, o conceito de detenção também pode englobar no seu âmbito de aplicação medidas diferentes das formas clássicas de privação de liberdade, como as medidas que consistem na colocação do local de residência do arguido sob vigilância eletrónica, acompanhada de uma obrigação de permanência na habitação.

27.      O Governo polaco sublinha que a interpretação da decisão‑quadro deve ter em conta direitos e princípios a que a própria decisão‑quadro faz referência, nomeadamente os consagrados no artigo 6.° TUE e consignados na Carta. Neste âmbito, este Governo remete para a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa à interpretação do conceito de «privação da liberdade» na aceção do artigo 5.° da CEDH. À luz dessa jurisprudência, para o Governo polaco, há que constatar que o artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro não se refere exclusivamente à custódia policial, à prisão preventiva ou a outras formas clássicas de privação de liberdade. O conceito de detenção previsto nesta disposição deve ser interpretado mais amplamente, a saber, no sentido de abranger todas as medidas que impliquem, em substância, uma privação efetiva de liberdade.

28.      A adoção de uma posição contrária poderia traduzir‑se na não imputação de determinados períodos de privação efetiva de liberdade, o que seria contrário ao princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 49.°, n.° 3, da Carta. Neste contexto, a República da Polónia também considera que o artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro é a expressão do princípio da proporcionalidade. Com efeito, este artigo prevê que os períodos de detenção resultantes da execução de um mandado de detenção europeu são deduzidos do período total de privação de liberdade a cumprir no Estado‑Membro de emissão, de tal forma que a pessoa condenada não tenha de cumprir uma pena dupla, com o mesmo efeito, para um mesmo ato censurável.

29.      Por conseguinte, é ao tribunal chamado a pronunciar‑se do Estado‑Membro de emissão do mandado de detenção europeu que cabe apreciar se há privação efetiva de liberdade devido à aplicação de medidas de tipo diferente das formas clássicas de privação de liberdade. É também esse tribunal que tem competência para determinar se a medida aplicada no Estado‑Membro de execução do mandado atinge um nível de intensidade e de perturbação suficiente para poder ser equiparada a uma privação de liberdade na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro e, portanto, imputada no período da pena aplicada.

30.      À luz das considerações precedentes, a República da Polónia considera que o conceito de detenção integra também as medidas aplicadas pelo Estado‑Membro de execução e que consistem na vigilância eletrónica do local de residência da pessoa alvo do mandado, associada a uma obrigação de permanência na habitação, na condição de que essas medidas revistam um grau de intensidade e de perturbação tal que constituam uma medida análoga a uma privação de liberdade.

31.      O Governo alemão sublinha que as medidas de vigilância eletrónica constituem, enquanto tais, não medidas de privação de liberdade, mas meios de fiscalização do cumprimento dessa privação.

32.      No que se refere à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Governo alemão junta‑se à posição defendida pela Comissão nas suas observações escritas e resumida no n.° 42 das presentes conclusões.

33.      Quanto às questões colocadas pelo Tribunal de Justiça, o Governo alemão, por um lado, exprime dúvidas em relação à incidência do artigo 49.°, n.° 3, da Carta na interpretação do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro e, por outro, sustenta que o artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro não confere uma margem de apreciação quanto à imputação no Estado‑Membro de emissão dos períodos durante os quais foram aplicadas no Estado‑Membro de execução medidas como as que estão em causa no processo principal.

34.      O Governo do Reino Unido considera que o conceito de «detenção» na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro só abrange, em princípio, as medidas de privação de liberdade stricto sensu. Essa é a conclusão que se impõe a partir da própria redação do referido artigo, do contexto legislativo da decisão‑quadro (no qual há que fazer referência ao artigo 12.°), do direito da União (nomeadamente, a Decisão‑Quadro 2009/829/JAI (5)) e do artigo 6.° da Carta.

35.      Para o Governo do Reino Unido, o artigo 49.°, n.° 3, da Carta não é pertinente para a interpretação do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro, sem que haja margem de apreciação quanto à imputação dos períodos durante os quais foram aplicadas no Estado‑Membro de execução medidas como as que estão em causa no processo principal se se chegar à conclusão de que estas integram uma «detenção» na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro.

36.      Por seu turno, a Comissão observa que o artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro deve ser lido e interpretado no contexto do regime do processo de entrega conforme estabelecido por esta decisão‑quadro. Na sua opinião, deste regime resulta que o processo de entrega e os efeitos do mandado de detenção europeu assentam na cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados‑Membros, a qual exige um entendimento comum dos conceitos chave como o de «detenção», que é determinante para a resolução do presente processo.

37.      Uma vez que o conceito de detenção não está expressamente definido na decisão‑quadro nem noutra norma pertinente do direito da União, há que interpretá‑lo à luz da redação, da economia e da finalidade da disposição em causa no sistema da decisão‑quadro.

38.      Para a Comissão, embora, em conformidade com a interpretação literal, a «detenção» se limite à privação da liberdade da pessoa de circular livremente na sequência da sua detenção e da sua prisão num estabelecimento penitenciário, do ponto de vista da interpretação sistemática, resulta do artigo 12.° da decisão‑quadro que se deve distinguir entre, por um lado, a «detenção» e, por outro, a «libertação provisória» acompanhada de medidas necessárias «a fim de evitar a fuga». Por conseguinte, esta disposição distingue, no essencial, entre as medidas privativas da liberdade de se deslocar (detenção) e as medidas não privativas de liberdade que limitam, no entanto, essa liberdade, sendo caso disso, a fim de evitar a fuga.

39.      A Comissão observa que se encontra a mesma lógica nas Decisões‑Quadro 2008/947/JAI (6) e 2008/909/JAI (7), que respeitam às pessoas condenadas, e na Decisão‑Quadro 2009/829, a propósito das pessoas arguidas em processos penais pendentes, nas quais se pode constatar que as medidas de controlo ou de vigilância como a vigilância eletrónica se situam no contexto das medidas privativas de liberdade.

40.      A Comissão observa ainda que são o cúmulo, a gravidade e a duração das medidas de controlo ou de vigilância que podem ter por efeito que «a quantidade se transforme em qualidade», pelo que as restrições à liberdade de se deslocar que resultam de todas estas medidas devem ser equiparadas, pela sua severidade, a uma medida privativa de liberdade.

41.      No que respeita à interpretação teleológica, a Comissão sustenta que o artigo 26.° da decisão‑quadro visa sanar uma lacuna no anterior sistema de extradição multilateral no qual, como foi afirmado na Proposta de decisão‑quadro COM(2001) 522 final (8), «a possibilidade de deduzir do total da pena o período de privação de liberdade por força da extradição nem sempre estava garantida». Assim, este artigo 26.° obriga a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão a deduzir da pena a totalidade do período de detenção cumprido no Estado‑Membro de execução. Neste contexto e tendo em conta o princípio do reconhecimento mútuo, há que interpretar o artigo 26.° da decisão‑quadro à luz da evolução das medidas que substituem a detenção no sentido clássico do termo.

42.      A Comissão conclui daqui que o conceito de «detenção» na aceção do artigo 26.° da decisão‑quadro abrange as medidas privativas de liberdade ordenadas pela autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução com vista à execução de um mandado de detenção europeu. Além da prisão num estabelecimento penitenciário, devem ser equiparadas às medidas privativas de liberdade as medidas de controlo e de vigilância da residência da pessoa visada pelo mandado de detenção europeu quando essas medidas, em razão do seu cúmulo, da sua gravidade e da sua duração, privam essa pessoa da sua liberdade física de maneira comparável a uma prisão. Cabe à autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão apreciar se é esse o caso tendo em conta todas as circunstâncias em causa com base nas informações comunicadas pela autoridade judiciária de execução.

V –    Análise

43.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, JZ foi detido no Reino Unido em 18 de junho de 2014 e aí mantido em prisão até 19 de junho de 2014, data em que foi libertado sob caução no valor de 2 000 libras esterlinas (GBP), com a obrigação concomitante de permanecer na morada por si indicada, entre as 22 horas e as 7 horas da manhã, obrigação esta acompanhada de uma vigilância eletrónica. Além disso, foi imposto ao condenado: i) a obrigação de comparecer no posto da polícia, inicialmente sete vezes por semana, depois, após três meses, três vezes por semana, entre as 10 horas e as 12 horas; ii) a proibição de requerer documentos para viajar para o estrangeiro; e iii) a obrigação de manter um telemóvel continuamente ligado e carregado. Estas medidas foram aplicadas até 14 de maio de 2015, data em que foi entregue às autoridades polacas.

44.      É neste contexto que, com o reenvio prejudicial do Sąd Rejonowy dla Łodzi‑Śródmieścia w Łodzi (Tribunal de Primeira Instância de Łódź), se coloca a questão de saber se as condições impostas a JZ durante o período compreendido entre 19 de junho de 2014 e 14 de maio de 2015 constituem ou não uma «detenção» na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro.

A –    Conceito de detenção na decisão‑quadro

45.      Como é frequente no direito da União, a utilização de categorias destinadas a serem aplicadas em todas as ordens jurídicas nacionais só é possível na medida em que sejam reduzidas a um conceito unitário e uniforme para todos os Estados‑Membros.

46.      Com efeito, conforme sublinhado pelo órgão jurisdicional de reenvio, é jurisprudência constante que «decorre tanto das exigências da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser objeto, em toda a União, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa» (9).

47.      O conceito de «detenção» a retirar da decisão‑quadro deve fundar‑se ele próprio no respeito dos direitos fundamentais e na observância dos princípios reconhecidos pelo artigo 6.° TUE e consignados na Carta, sem esquecer que os direitos fundamentais, conforme garantidos pela CEDH e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, fazem parte do direito da União enquanto princípios gerais, nos termos do artigo 6.°, n.° 3, TUE (10).

48.      Esta posição de princípio está no cerne da própria decisão‑quadro, cujo artigo 1.°, n.° 3, recorda que esta, cuja finalidade é a instauração de um sistema simplificado e eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de terem praticado uma infração da lei penal, «não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais».

49.      Por maioria de razão, o mesmo se aplica quando se trata do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro, dado que esta disposição tem por objetivo a preservação do direito à liberdade da pessoa abrangida pelo mandado de detenção europeu uma vez que integra a obrigação de deduzir do período total de privação de liberdade a cumprir no Estado‑Membro de emissão os períodos de detenção já cumpridos no Estado‑Membro de execução para efeitos de execução do referido mandado.

50.      Conforme decorre do seu título, o objeto do artigo 26.° da decisão‑quadro é absolutamente preciso: trata‑se da «dedução do período de detenção cumprido no Estado‑Membro de execução», nomeadamente «dos períodos de detenção resultantes da execução de um mandado de detenção europeu» (n.° 1 do referido artigo 26.°). A «detenção [resultante] da execução de um mandado de detenção europeu» é a estabelecida no artigo 11.° da decisão‑quadro, respeitante aos direitos da pessoa procurada, e, a esse propósito, «detida para efeitos da execução de um mandado de detenção europeu» (n.° 2 do referido artigo 11.°).

51.      Tendo em vista a conexão de sentidos que está na base da relação entre, por um lado, o artigo 26.°, n.° 1, e, por outro, os artigos 11.° e 12.° da decisão‑quadro, as diferenças que existem entre as versões linguísticas da primeira destas disposições não têm, na minha opinião, incidência para a sua boa compreensão (11).

52.      Para o legislador da decisão‑quadro, há uma equivalência entre o conceito de detenção «para efeitos de cumprimento de um mandado de detenção europeu» e o conceito de «detenção». Com efeito, segundo o artigo 12.° da decisão‑quadro, «[q]uando uma pessoa for detida com base num mandado de detenção europeu, a autoridade judiciária de execução decide se deve mantê‑la em detenção em conformidade com o direito do Estado‑Membro de execução» (12), sendo a alternativa a essa «manutenção em detenção» a «libertação provisória» (13), que «é possível a qualquer momento», de acordo com este artigo 12.°

53.      Por conseguinte, a «detenção» é apenas o prolongamento da «privação da liberdade» que é inerente ao facto da detenção. Além disso, é a privação de liberdade cumprida em consequência da execução de um mandado de detenção europeu que o artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro visa deduzir da privação de liberdade a cumprir no Estado‑Membro de emissão na sequência da condenação numa pena ou numa medida de segurança privativas de liberdade.

54.      Assim sendo, sou de opinião de que a «detenção» na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro só abrange casos concretos que implicam a privação de liberdade, excluindo assim, em princípio, situações que só comportam uma restrição desta.

55.      Esta interpretação é confirmada por outras disposições do direito da União, como a Decisão‑Quadro 2009/829, que «tem por objetivo a promoção [...] do uso de medidas não privativas de liberdade em alternativa à prisão preventiva» (14), e cujo artigo 8.° estabelece como medidas dessa natureza («medidas de controlo»), as seguintes medidas: «a) Obrigação de comunicar à autoridade competente […] qualquer mudança de residência […]; b) Interdição de entrar em determinados locais, sítios ou zonas […]; c) Obrigação de permanecer num lugar determinado durante períodos especificados; d) Obrigação de respeitar certas restrições no que se refere à saída do território do Estado de execução; e) Obrigação de comparecer em determinadas datas perante uma autoridade especificada; f) Obrigação de evitar o contacto com determinadas pessoas […]» (15).

56.      Devido à equivalência entre «detenção» e «privação da liberdade» que acabo de sublinhar nos números precedentes, pode admitir‑se que, em princípio, a privação a que o artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro faz menção é a que integra a colocação à disposição judiciária e/ou administrativa, permanente e prolongada, da pessoa detida, a saber, o internamento desta num estabelecimento público em condições que comportam limitações substanciais da sua autonomia pessoal.

57.      É certo que, em face deste conceito de privação de liberdade, o da sua restrição apresenta uma diferença de grau mais do que uma diferença de natureza ou de essência. Trata‑se também, em todo o caso, de limitações da autonomia pessoal, mas que não são tão substanciais quanto as cumpridas por pessoas internadas em estabelecimentos de detenção ou que se encontram na prisão.

B –    Incidência da Carta e da CEDH

58.      O órgão jurisdicional de reenvio faz referência à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, salientando que se podem retirar indicações interpretativas úteis para o nosso objetivo a partir da sua doutrina relacionada com o artigo 5.° da CEDH.

59.      Com efeito, mais do que indicações úteis, podem retirar‑se verdadeiros critérios de interpretação do artigo 5.° da CEDH e, por conseguinte, do artigo 6.° da Carta, à luz do qual se deve interpretar o artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro.

60.      Com este artigo 26.°, o legislador da União procurou dar cumprimento à sua obrigação geral de respeito dos direitos fundamentais no domínio da decisão‑quadro, designadamente, o respeito do direito fundamental à liberdade garantido pelo artigo 6.° da Carta, cujo não respeito pode implicar, em certa medida, o não respeito do direito à proporcionalidade das penas (artigo 49.°, n.° 3, da Carta) (16), e mesmo do direito de não ser punido mais do que uma vez pelo mesmo delito (artigo 50.° da Carta) (17).

61.      Assim sendo, a interpretação do conceito de «detenção» na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro deve conformar‑se com o conteúdo do artigo 6.° da Carta, cujos direitos aí reconhecidos, segundo as explicações relativas à Carta — que devem ser devidamente tomadas em consideração pelos órgãos jurisdicionais da União e dos Estados‑Membros com vista a orientar a interpretação da Carta (artigo 52.°, n.° 7, da Carta) —, «correspondem aos direitos garantidos pelo artigo 5.° da CEDH, cujo sentido e âmbito são iguais, de acordo com o disposto no n.° 3 do artigo 52.° da Carta».

62.      Neste sentido, deve ser feita menção ao acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 6 de novembro de 1980, Guzzardi c. Itália (18), no qual esse Tribunal observou que, sendo a diferença entre «privação» e «restrição da liberdade» uma diferença de intensidade e não de natureza, «[a] classificação numa ou noutra dessas categorias revela‑se por vezes difícil, uma vez que em determinados casos marginais trata‑se de um puro processo de apreciação» (19). Nesse processo, o referido Tribunal Europeu afirmou que, para determinar se um indivíduo está privado de liberdade, «é preciso partir da sua situação concreta e tomar em conta um conjunto de critérios como o género, a duração, os efeitos e as modalidades de execução da medida considerada» (20). Deste modo, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou que, embora não se pudesse falar de privação de liberdade em relação a cada um dos elementos considerados isoladamente, o seu cúmulo suscitava no mínimo a questão da eventual aplicação do artigo 5.° da CEDH. Ao comparar a permanência do demandante na ilha de Asinara com um internamento numa «prisão aberta» ou numa unidade disciplinar, o Tribunal de Estrasburgo concluiu que o tratamento de que o demandante tinha sido alvo constituía uma privação de liberdade (21).

63.      No acórdão de 2 de novembro de 2006, Dacosta Silva c. Espanha (22), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem também concluiu que uma obrigação de permanência na habitação de seis dias aplicada a um oficial da Guardia Civil pelo seu superior na sequência de uma infração disciplinar constituía uma privação de liberdade, dado que consistia na obrigação de permanecer no local de residência, com a autorização de sair para comprar medicamentos e outros produtos indispensáveis, e para assistir aos serviços religiosos.

64.      É em conformidade com esta jurisprudência do referido Tribunal Europeu que se deve interpretar o conceito de «detenção» na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro, o que se traduz na necessidade de partir da situação concreta da pessoa em causa e de tomar em conta todas as circunstâncias que caracterizam a execução das medidas restritivas de liberdade cumpridas no Estado‑Membro de execução para efeitos da execução do mandado de detenção europeu.

C –    Apreciação do juiz nacional

65.      Em princípio, é ao órgão jurisdicional de reenvio que compete examinar se as medidas que foram aplicadas ao demandante no processo principal no Estado‑Membro de execução constituem medidas efetivas de privação de liberdade e, na afirmativa, deduzi‑las do período total de privação de liberdade a cumprir no Estado‑Membro de emissão.

66.      Para o efeito, o artigo 26.°, n.° 2 da decisão‑quadro prevê a transmissão «pela autoridade judiciária de execução [...] [de] todas as informações relativas ao período de detenção da pessoa procurada ao abrigo da execução do mandado de detenção europeu», o que permite à autoridade judiciária de emissão examinar também a natureza efetiva das circunstâncias que caracterizam a situação concreta da pessoa procurada durante o período da «detenção» pelas autoridades do Estado‑Membro de execução.

67.      Perante essas informações, o juiz nacional deve verificar a equivalência entre as medidas de privação de liberdade stricto sensu, por um lado, e as aplicadas ao demandante no processo principal, por outro, para deduzir se estas integraram uma situação comparável do ponto de vista material à que é inerente às primeiras.

68.      Todavia, para dar ao juiz a quo (e, indiretamente, aos demais órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros) uma resposta útil para a resolução do litígio no processo principal, considero que o Tribunal de Justiça se deve pronunciar sobre a qualificação, a partir da perspetiva do artigo 26.° da decisão‑quadro, das medidas adotadas contra JZ depois da sua libertação no Reino Unido. E a resposta que proponho é que, segundo as informações prestadas pelo Sąd Rejonowy dla Łodzi‑Śródmieścia w Łodzi (Tribunal de Primeira Instância de Łódź) e pelo Governo do Reino Unido durante a audiência, as mesmas não podem ser qualificadas de medidas de privação de liberdade.

69.      A mais restritiva das referidas medidas era a obrigação de permanecer na morada por si indicada das 22 horas às 7 horas, e sob vigilância eletrónica. Outras medidas de menor intensidade (23) consistiam: i) na obrigação de comparecer no posto da polícia, inicialmente sete vezes por semana, em seguida, após três meses, três vezes por semana, entre as 10 horas e as 12 horas; e ii) na proibição de requerer documentos para viajar para o estrangeiro. Estas medidas foram aplicadas entre 19 de junho de 2014 e 14 de maio de 2015, data em que JZ foi entregue às autoridades polacas.

70.      Por conseguinte, trata‑se de medidas cujo conteúdo e alcance correspondem às previstas na Decisão‑Quadro 2009/829, às quais fiz referência no n.° 55 das presentes conclusões, e que o legislador da União concebeu como medidas que não comportam uma privação de liberdade. Mesmo em relação à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, não penso que a situação a que o demandante no processo principal foi sujeito possa ser qualificada de equivalente a uma privação de liberdade.

71.      Com efeito, em relação às situações concretas sobre as quais o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem se pronunciou, as condições suportadas pelo demandante no processo principal só implicaram limitações, qualificadas de restrições da sua liberdade, dado que podia permanecer na morada que ele próprio indicou e que não foi privado da sua liberdade de viajar no Reino Unido. É certo que tinha de permanecer em casa entre as 22 horas e as 7 horas, apresentar‑se no posto da polícia, inicialmente todos os dias e, durante a maior parte do período em causa, três vezes por semana, e ter constantemente consigo um telefone móvel. Na minha opinião, trata‑se de «limitações» que, mesmo consideradas cumulativamente, não são comparáveis com as cumpridas pelos demandantes nos processos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem acima referidas. Em todo o caso, não penso que tenham implicado uma limitação da autonomia pessoal de JZ tão substancial a ponto de reduzir sensivelmente a capacidade de autodeterminação pessoal da sua conduta.

72.      Todavia, importa acrescentar que esta conclusão se refere apenas à obrigação, que decorre da aplicação ao processo principal, do dever de dedução estabelecido no artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro. Nada impede que, com base apenas no direito nacional, o órgão jurisdicional de reenvio decida imputar à privação de liberdade ainda em fase de execução os períodos de tempo decorridos no Estado‑Membro de execução e que constituem contudo medidas não de privação de liberdade, mas de restrição desta.

73.      Em termos mais simples, o direito da União só impõe neste âmbito uma obrigação que se pode qualificar de mínima: a de deduzir os períodos de «detenção» na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro, cabendo ao juiz nacional verificar se as medidas aplicadas ao demandante no Estado‑Membro de execução constituem verdadeiras medidas de privação de liberdade. Se o juiz de execução das penas qualificar essas medidas de constitutivas de uma privação de liberdade (e isso no respeito dos critérios estabelecidos pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem), deve tomá‑las em conta a fim de as deduzir da privação a cumprir no Estado‑Membro de emissão, em conformidade com o artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro.

74.      Pelo contrário, as medidas diferentes das que integram uma privação de liberdade na aceção do artigo 26, n.° 1, da decisão‑quadro também podem ser tomadas em conta pelo juiz nacional com vista a uma redução ou a uma flexibilização das condições de execução da privação de liberdade a cumprir no Estado‑Membro de emissão, se essa consequência for prevista pelo direito nacional.

VI – Conclusão

75.      À luz das considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma às questões prejudiciais colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio:

1.      O artigo 26.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI, deve ser interpretado no sentido de que cabe ao juiz nacional verificar, baseando‑se no critério da equivalência entre as medidas de privação de liberdade stricto sensu, por um lado, e as aplicadas ao demandante no processo principal, por outro, se estas últimas integraram uma situação comparável do ponto de vista material à que é inerente às primeiras e, em caso afirmativo, deduzi‑las da privação de liberdade a cumprir no Estado‑Membro de emissão.

2.      Em condições como as que estão em causa no processo principal, deve excluir‑se que as medidas controvertidas possam ser qualificadas de medidas de privação de liberdade, na aceção do artigo 26.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299.


1 —      Língua original: francês.


2 —      Decisão‑Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24, a seguir «decisão‑quadro»).


3 —      Dz. U. n.° 88, posição 553.


4 —      Dz. U. n.° 89, posição 555.


5 —      Decisão do Conselho, de 23 de outubro de 2009, relativa à aplicação, entre os Estados‑Membros da União Europeia, do princípio do reconhecimento mútuo às decisões sobre medidas de controlo, em alternativa à prisão preventiva (JO 2009, L 294, p. 20).


6 —      Decisão‑Quadro do Conselho, de 27 de novembro de 2008, respeitante à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças e decisões relativas à liberdade condicional para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas (JO 2008, L 337, p. 102).


7 —      Decisão‑Quadro do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia (JO 2008, L 327, p. 27).


8 —      Exposição de motivos, p. 16.


9 —      V. neste sentido, nomeadamente, acórdãos de 14 de fevereiro de 2012, Flachglas Torgau (C‑204/09, EU:C:2012:71, n.° 37), e de 19 de dezembro de 2013, Fish Legal e Shirley (C‑279/12, EU:C:2013:853, n.° 42).


10 —      O Protocolo n.° 30 anexo ao Tratado de Lisboa não permite nenhuma exceção para este efeito, uma vez que o seu «artigo 1.°, n.° 1, [...] explicita o artigo 51.° da Carta, relativo ao âmbito de aplicação desta última, não tendo por objeto exonerar a República da Polónia nem o Reino Unido da obrigação de respeitar as disposições da Carta, nem impedir que um órgão jurisdicional de um destes Estados‑Membros assegure o respeito destas disposições» (acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.° 120).


11 —      As versões nas línguas espanhola, alemã, francesa e portuguesa utilizam termos diferentes para referir o período de tempo que deve ser deduzido (detención, Haft, détention, detenção) e o período a cumprir no Estado‑Membro de emissão (privación de libertad, Freiheitsentzug, privation de liberté, privação da liberdade). Pelo contrário, as versões nas línguas inglesa e neerlandesa empregam a mesma palavra para os dois períodos (detention, vrijheidsbeneming).


12 —      O sublinhado é meu. A versão em língua neerlandesa emprega os termos «aangehouden» para «detida» e «in hechtenis blijft» para «mantê‑la em detenção». A versão em língua inglesa fala de «detention» nos dois casos.


13 —      O sublinhado é meu. A versão em língua inglesa utiliza a palavra «released», enquanto a versão em língua neerlandesa utiliza a expressão «in voorlopige vrijheid worden gesteld».


14 —      Considerando 4 da Decisão‑Quadro 2009/829 (o sublinhado é meu). A versão em língua inglesa fala de «non‑custodial mesures» e de «provisional detention», a versão em língua espanhola, de «medidas no privativas de libertad» e de «prisión provisional», a versão em língua alemã de «Maßnahmen ohne Freiheitsentzug» e de «Untersuchungshaft», e a versão em língua italiana, de «misure non detentive» e de «detenzione cautelare». As expressões em língua portuguesa são «medidas não privativas de liberdade» e «prisão preventiva».


15 —      No mesmo sentido, a Decisão‑Quadro 2008/947 qualifica, no seu artigo 4.°, de «medidas de vigilância e sanções alternativas», além das mencionadas no artigo 8.° da Decisão‑Quadro 2009/829, por exemplo, a «[i]mposição de regras relacionadas com o comportamento, a residência, a educação e formação, a ocupação dos tempos livres, ou que estabelecem restrições ou modalidades relativas [ao] exercício da atividade profissional» [alínea d)], o «[d]ever de evitar o contacto com objetos específicos» [alínea g)], ou «[s]ubmeter‑se a tratamento ou cura de desintoxicação» [alínea k)].


16 —      Sem a previsão do artigo 26.°, n.° 1, da decisão‑quadro, a privação de liberdade imposta no Estado‑Membro de emissão poderia tornar‑se desproporcionada pelo facto de não ter sido encurtada tomando em conta a privação já cumprida para efeitos da execução do mandado de detenção europeu emitido em consequência da infração da lei penal em causa.


17 —      Do mesmo modo, de um ponto de vista material, não tomar em consideração a privação de liberdade já cumprida para efeitos da execução do mandado de detenção europeu poderia comportar uma espécie de segunda punição. Efetivamente, a privação para efeitos da execução do mandado de detenção europeu não é uma punição, mas uma medida de garantia da efetividade da transferência do arguido. Contudo, uma mesma infração pode dar lugar a duas privações de liberdade: por um lado, a associada à infração penal que está na base da emissão do mandado de detenção europeu; por outro, a adotada para efeitos da execução do referido mandado.


18 —      ECLI:CE:ECHR:1980:1106JUD000736776.


19 —      Guzzardi c. Itália (n.° 93).


20 —      Guzzardi c. Itália (n.° 92).


21 —      As condições do demandante são descritas nos seguintes termos no n.° 95 do processo Guzzardi c. Itália:


      «Embora o espaço de que o demandante dispunha para se deslocar ultrapassasse amplamente as dimensões de uma célula e nenhuma parede física o circunscrevesse, só abrangia uma pequena parte de uma ilha de difícil acesso, em cujo território um preso ocupava cerca de nove décimos. Guzzardi residia num setor da aldeia de Cala Reale, que incluía no essencial os edifícios, vetustos, para não dizer em ruínas, de um antigo estabelecimento sanitário, um quartel de carabineiros, uma escola e uma capela. Vivia aí rodeado, sobretudo, de pessoas sujeitas à mesma medida e de agentes da polícia. A população permanente de Asinara vivia quase toda em Cala d’Oliva, aonde ele não se podia deslocar, e, aparentemente, fazia pouco uso do seu direito de ir a Cala Real. Portanto, tinha poucas oportunidades de contactos sociais além das pessoas que lhe eram próximas, dos seus companheiros e do pessoal encarregado da vigilância. Esta era exercida de forma apertada e quase constante. Por exemplo, o interessado não podia sair de casa entre as 22 horas e as 7 horas sem avisar as autoridades em tempo útil. Devia apresentar‑se‑lhes duas vezes por dia e indicar‑lhes o nome e o número de telefone do seu interlocutor quando queria telefonar. Precisava do seu acordo para cada uma das suas viagens à Sardenha ou ao continente, que eram raras e ocorriam, naturalmente, sob o controlo estreito dos carabineiros. Corria o risco de uma pena de ‘prisão’ se violasse uma das suas obrigações. Por último, entre a sua chegada a Cala Reale e a sua partida para Force decorreram mais de dezasseis meses.»


22 —      ECLI:CE:ECHR:2006:1102JUD006996601.


23 —      A caução no valor de 2 000 libras esterlinas e a obrigação de manter um telemóvel continuamente ligado e carregado não afetam a sua liberdade de movimentos.