Processo C‑583/13 P
Deutsche Bahn AG e o.
contra
Comissão Europeia
«Recurso de decisão do Tribunal Geral ― Concorrência ― Setor do transporte ferroviário e da prestação de serviços acessórios ― Abuso de posição dominante ― Regulamento (CE) n.° 1/2003 ― Artigos 20.° e 28.°, n.° 1 ― Procedimento administrativo ― Decisão que ordena uma inspeção ― Poderes de inspeção da Comissão ― Direito fundamental à inviolabilidade do domicílio ― Falta de mandado judicial prévio ― Fiscalização jurisdicional efetiva ― Descoberta fortuita»
Sumário ― Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 18 de junho de 2015
1. Concorrência ― Procedimento administrativo ― Poder de inspeção da Comissão ― Falta de mandado judicial prévio ― Violação do direito à inviolabilidade do domicílio ― Inexistência ― Fiscalização jurisdicional a posteriori da legalidade da decisão de inspeção ― Garantia fundamental
(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 7.°; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 20.°, n.os 2, 6, 7 e 8)
2. Concorrência ― Procedimento administrativo ― Poder de inspeção da Comissão ― Falta de mandado judicial prévio ― Violação do direito a uma proteção jurisdicional efetiva ― Inexistência ― Fiscalização jurisdicional a posteriori da legalidade da decisão de inspeção ― Alcance
(Artigo 263.° TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.°; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 20.°, n.° 4)
3. Concorrência ― Procedimento administrativo ― Poder de inspeção da Comissão ― Decisão em que se ordena uma inspeção ― Dever de fundamentação ― Alcance ― Informação por parte da Comissão aos seus agentes da existência de outra denúncia contra a empresa em causa ― Inexistência de menção à referida denúncia na decisão de inspeção ― Violação do dever de fundamentação e dos direitos de defesa
(Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 20.°, n.° 4)
1. Os poderes de inspeção de que a Comissão dispõe nos termos do artigo 20.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003 limitam‑se a autorizar os agentes desta última a, designadamente, entrarem nos locais que esses poderes designam, exigirem a apresentação e fazerem cópia dos documentos que solicitem, bem como exigirem que lhes seja mostrado o conteúdo dos móveis que indiquem.
Por outro lado, nos termos do artigo 20.°, n.os 6 e 7, do Regulamento n.° 1/2003, deve ser solicitada uma autorização de uma autoridade judicial se, em caso de oposição da empresa em causa, o Estado‑Membro interessado prestar a assistência necessária, requerendo, se for caso disso, a intervenção da força pública ou de uma autoridade equivalente, para permitir executar a missão de inspeção, e se a referida autorização for necessária de acordo com as regras nacionais. A autorização pode igualmente ser solicitada como medida cautelar. Além disso, o artigo 20.°, n.° 8, deste regulamento precisa ainda que, se a autoridade jurisdicional nacional verificar, designadamente, que as medidas coercivas não têm caráter arbitrário nem excessivo relativamente ao objeto da inspeção, não pode pôr em causa a necessidade da mesma. A mesma disposição prevê uma fiscalização jurisdicional a posteriori reservada ao Tribunal de Justiça.
Por conseguinte, a falta de um mandado judicial prévio não é suscetível, por si só, de implicar a ilegalidade da medida de inspeção.
A este respeito, a existência de uma fiscalização jurisdicional a posteriori permite compensar a falta de um mandado judicial prévio e constitui, portanto, uma garantia fundamental para assegurar a compatibilidade da medida de inspeção em causa com o artigo 8.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. É precisamente o que se verifica no âmbito do sistema aplicado na União Europeia, uma vez que o artigo 20.°, n.° 8, do Regulamento n.° 1/2003 indica expressamente que o controlo da legalidade da decisão da Comissão se encontra reservado exclusivamente ao Tribunal de Justiça. A referida fiscalização implica que o juiz da União exerce, com base nos elementos de prova invocados pelo recorrente em apoio dos fundamentos invocados, uma fiscalização completa, ou seja, que incide quer sobre questões de direito quer sobre questões de facto.
(cf. n.os 23‑25, 32‑34)
2. No âmbito de uma decisão de inspeção adotada pela Comissão nos termos do artigo 20.°, n.° 4, do Regulamento n.° 1/2003, o direito fundamental à proteção jurisdicional efetiva, conforme garantido pelo artigo 6.°, n.° 1, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, não é violado devido à inexistência de fiscalização jurisdicional prévia.
Com efeito, o que se visa é a intensidade da fiscalização, incluindo da totalidade dos elementos de facto e de direito, de forma a permitir que a situação seja adequadamente sanada se se verificar uma irregularidade, e não o momento em que essa fiscalização é exercida.
Ora, o juiz da União, pronunciando‑se sobre um recurso de anulação de uma decisão de inspeção, exerce uma fiscalização tanto de direito como de facto e tem o poder de apreciar as provas e de anular a decisão impugnada.
Além disso, às empresas destinatárias de uma decisão de inspeção é reconhecido o direito de impugnar a legalidade desta última, e isto, imediatamente após a notificação da referida decisão, o que significa que a empresa não está obrigada a esperar pela decisão final da Comissão relativa à suspeita de infração das regras de concorrência para interpor um recurso de anulação nos tribunais da União.
Por último, a consequência da anulação da decisão de inspeção ou da constatação da existência de uma irregularidade no desenrolar da inspeção consiste na impossibilidade de a Comissão utilizar as informações assim recolhidas num processo de infração.
(cf. n.os 41, 42, 44‑46)
3. A este respeito, embora a eficácia de uma inspeção implique que a Comissão forneça aos seus agentes, antes da inspeção, todas as informações úteis para a compreensão da natureza e do alcance da eventual violação das regras de concorrência e as informações relacionadas com o aspeto logístico da própria inspeção, estas informações devem, todavia, dizer unicamente respeito ao objeto da inspeção ordenada através da decisão.
Ora, quando a Comissão informa os seus agentes, previamente a uma inspeção, da existência de uma denúncia suplementar relativamente à empresa em causa, alheia ao objeto da decisão de inspeção, não fornece uma informação do contexto geral do processo. Assim, a inexistência de menção à referida denúncia no âmbito do objeto dessa decisão de inspeção viola o dever de fundamentação e os direitos de defesa da empresa em causa.
Portanto, essa inspeção padece de uma irregularidade na medida em que os agentes da Comissão, por estarem previamente na posse de elementos de informação alheios ao objeto da referida inspeção, recolheram documentos que não se inseriam no âmbito da inspeção conforme delimitado pela decisão de inspeção, especialmente nos casos em que, na inspeção, os agentes recolheram informações que levaram ao lançamento de uma segunda inspeção e basearam, parcialmente, uma terceira inspeção.
(cf. n.os 60, 62‑66)