Language of document : ECLI:EU:C:2007:364

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

VERICA TRSTENJAK

apresentadas em 21 de Junho de 2007 1(1)

Processo C‑319/05

Comissão das Comunidades Europeias

contra

República Federal da Alemanha

«Incumprimento de Estado – Artigo 226.° CE – Livre circulação de mercadorias – Medidas de efeito equivalente – Directiva 2001/83/CE – Conceito de medicamento – Prática administrativa nacional que classifica como medicamento um preparado de alho em cápsulas»





I –    Introdução

1.        O presente processo tem origem numa acção por incumprimento proposta pela Comissão, nos termos do artigo 226.° CE, contra a República Federal da Alemanha, na qual é pedido que o Tribunal de Justiça declare que este Estado‑Membro, ao classificar como medicamento um preparado de alho em cápsulas, violou o disposto nos artigos 28.° CE e 30.° CE, uma vez que aquele preparado não se ajusta à definição de medicamento do artigo 1.°, ponto 2), da Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (2).

2.        No centro do litígio está, pois, a questão de saber se o preparado de alho em causa se ajusta a esta definição ou se deve ser considerado suplemento alimentar na acepção do artigo 2.°, alínea a), da Directiva 2002/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de Junho de 2002, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos suplementos alimentares (3).

II – Quadro jurídico

1.      Direito comunitário primário

3.        O artigo 28.° CE proíbe as restrições quantitativas à importação entre os Estados‑Membros, bem como todas as medidas de efeito equivalente.

4.        Nos termos do artigo 30.° CE, apenas são permitidas as proibições ou restrições à importação justificadas por razões de segurança pública e de protecção da saúde e vida das pessoas desde que não constituam um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada do comércio intracomunitário.

2.      A Directiva 2001/83

5.        Os considerandos 2 a 5 da Directiva 2001/83 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano referem:

«2)      Toda a regulamentação em matéria de produção, de distribuição ou de utilização de medicamentos deve ter por objectivo essencial garantir a protecção da saúde pública.

3)      Todavia, este objectivo deve ser atingido por meios que não possam travar o desenvolvimento da indústria farmacêutica e o comércio de medicamentos na Comunidade.

4)      As disparidades entre certas disposições nacionais, e nomeadamente as disposições relativas aos medicamentos, com excepção das substâncias ou composições que são géneros alimentícios, alimentos destinados aos animais ou produtos de higiene, têm por efeito entravar o comércio de medicamentos na Comunidade e têm, devido a este facto, uma incidência directa sobre o funcionamento do mercado interno.

5)      Importa, por conseguinte, eliminar estes entraves. Para atingir este objectivo, é necessária uma aproximação das disposições em causa.»

6.        Nos termos do artigo 1.°, ponto 2), da Directiva 2001/83, deve entender‑se por medicamento:

«Toda a substância ou composição apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças humanas.

A substância ou composição que possa ser administrada ao homem, com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar as funções fisiológicas no homem, é igualmente considerada como medicamento.»

7.        O artigo 6.°, n.° 1, desta Directiva determina:

«Nenhum medicamento pode ser introduzido no mercado num Estado‑Membro sem que para tal tenha sido emitida pela autoridade competente desse Estado‑Membro uma autorização de introdução no mercado, nos termos da presente directiva, ou sem que tenha sido concedida uma autorização nos termos do Regulamento (CEE) n.° 2309/93.»

3.      A Directiva 2002/46/CE

8.        Nos termos do artigo 2.°, alínea a), da Directiva 2002/46 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de Junho de 2002, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos suplementos alimentares, entende‑se por suplementos alimentares:

«[G]éneros alimentícios que se destinam a complementar o regime alimentar normal e que constituem fontes concentradas de determinados nutrientes ou outras substâncias com efeito nutricional ou fisiológico, estremes ou combinados, comercializados em forma doseada, ou seja, as formas de apresentação como cápsulas, pastilhas, comprimidos, pílulas e outras formas semelhantes, saquetas de pó, ampolas de líquido, frascos com conta‑gotas e outras formas semelhantes de líquidos ou pós que se destinam a ser tomados em unidades medidas de quantidade reduzida.»

III – Fase pré‑contenciosa

9.        A Comissão interveio com base numa queixa de uma empresa, cujo pedido, apresentado ao abrigo do § 47a da lei sobre os produtos alimentares e os bens de consumo corrente (Lebensmittel‑ und Bedarfsgegenständegesetz, a seguir «LMBG»), de emissão de uma decisão geral de importação e distribuição de um preparado de alho em cápsulas havia sido indeferido pelo Ministério Federal da Saúde, com o fundamento de que o produto não é um alimento mas sim um medicamento.

10.      O produto em questão é distribuído sob a designação de «Cápsulas de Extracto de Alho em Pó» ou «Alho e Cebola em Pó». De acordo com os elementos de que o Tribunal dispõe, trata‑se de um extracto obtido com etanol e que, para dar resposta ao objectivo tecnológico da desidratação por pulverização, é cultivado num excipiente (lactose = açúcar de leite). O resultado é um composto de hidratos de carbono, proteínas e gorduras, bem como oligoelementos e vitaminas.

11.      Após um longo período de contactos informais, a Comissão dirigiu à República Federal da Alemanha, em 24 de Julho de 2001, uma notificação de incumprimento na qual concluía que a classificação das cápsulas de alho e cebola em pó como medicamento, com fundamentos do tipo dos utilizados no caso da queixa, não era compatível com os princípios da livre circulação de mercadorias, tal como estes resultam dos artigos 28.° CE e 30.° CE e da jurisprudência na matéria. O Governo alemão respondeu à notificação em 5 de Outubro de 2001.

12.      No seu parecer fundamentado de 19 de Dezembro de 2002, a Comissão convidou a República Federal da Alemanha a pôr termo à prática administrativa que equipara a medicamentos produtos compostos por alho desidratado pulverizado e que manifestamente não têm as características nem a designação de medicamentos.

13.      O Governo federal respondeu por carta de 14 de Março de 2003, informando que a classificação do produto em causa como medicamento tinha sido reexaminada e que deveria ser mantida.

IV – Processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

14.      Na sua petição, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 19 Agosto de 2005, a Comissão vem pedir que o Tribunal declare que a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 28.° CE e 30.° CE, ao classificar como medicamento um preparado de alho em cápsulas que não se ajusta à definição de medicamento por apresentação, definido no artigo 1.°, ponto 2), da Directiva 2001/83. Pede ainda que as despesas do processo sejam suportadas pela República Federal da Alemanha.

15.      Na contestação, que deu entrada em 11 de Novembro de 2005, o Governo alemão pede que a acção seja julgada improcedente por falta de fundamento e a condenação da Comissão nas despesas.

16.      Com a réplica, apresentada em 3 de Fevereiro de 2006, e a tréplica, apresentada em 7 de Abril de 2006, deu‑se por encerrada a fase escrita do processo.

17.      Na audiência de 19 de Abril de 2007, os representantes da Comissão e da República Federal da Alemanha expuseram os seus argumentos.

V –    Alegações das partes

18.      A Comissão começa por sublinhar que as disposições comunitárias relativas aos medicamentos, para além da protecção da saúde pública, devem assegurar a livre circulação de mercadorias, pelo que não podem resultar da interpretação das disposições da directiva em geral e do conceito de medicamento, em especial, obstáculos à livre circulação de mercadorias que não sejam proporcionados às finalidades de protecção da saúde.

19.      Para a questão da classificação como medicamento por função, segundo a Comissão, há que ter em conta, para além dos efeitos farmacológicos do produto em causa, as modalidades de aplicação, o grau de difusão, o grau de conhecimento pelos consumidores e os riscos potencialmente associados ao seu consumo.

20.      Relativamente aos efeitos farmacológicos, a Comissão não contesta que o produto pode contribuir para a prevenção da arteriosclerose, mas refere que o mesmo efeito pode ser obtido através do consumo diário de quatro gramas de alho em cru. O facto de os efeitos de um produto, que se afirma ser um medicamento, não serem diferentes dos efeitos do alimento na sua forma natural, demonstra claramente que as suas propriedades farmacológicas não são suficientes para que possa ser afirmada a sua qualidade de medicamento. Um produto que não tem outros efeitos não pode, segundo a Comissão, ser um medicamento por função.

21.      Pode, quando muito, tratar‑se de um suplemento alimentar, na acepção do artigo 2.°, alínea a), da Directiva 2002/46, ou seja de um género alimentício que constitui uma fonte concentrada de determinados nutrientes ou outras substâncias com efeito nutricional ou fisiológico, estremes ou combinados, comercializados em forma doseada. A tentativa de negar a natureza de alimento não justifica, de modo nenhum, a classificação dos produtos em questão como medicamentos.

22.      No que diz respeito à classificação de um produto como medicamento por apresentação, a Comissão entende que esta questão deve ser resolvida caso a caso tendo em conta as características concretas do produto. Um produto pode ser considerado medicamento por apresentação quando, devido à sua forma e aparência, se assemelhe suficientemente a um medicamento, particularmente quando a sua embalagem e o seu folheto contenham referências a investigações de laboratórios farmacêuticos, a métodos ou substâncias desenvolvidos por médicos ou mesmo testemunhos de médicos em abono das propriedades do produto. A indicação de que o produto não constitui um medicamento é um indício útil mas, só por si, não é determinante.

23.      No caso presente, nem no rótulo nem na informação constante da embalagem, nem por qualquer outra forma o produto é descrito ou recomendado como meio de tratamento ou prevenção de doenças. A apresentação exterior também não tem a aparência típica de um medicamento. A apresentação sob a forma de cápsulas é a única característica concreta que indica que se trata de um medicamento. Esta forma exterior, só por si, não pode, porém, constituir um indício determinante. De resto, no caso presente, nada indica que se trata de um medicamento por apresentação. O consumidor sabe exactamente o que as cápsulas contêm, ou seja, alho, produto por ele identificado como género alimentício. O consumidor vê igualmente que não está indicado no produto um efeito terapêutico.

24.      Por último, embora, segundo a Comissão, não se exclua a hipótese de os Estados‑Membros, no âmbito do direito interno, submeterem às disposições sobre medicamentos um produto que não é um medicamento na acepção da Directiva 2001/83, as medidas de protecção da saúde pública devem ser proporcionadas. Porém, no caso presente, as autoridades alemãs não apresentaram qualquer prova de que a proibição de colocação do produto em causa no mercado como suplemento alimentar e a obtenção obrigatória de uma autorização de colocação no mercado como medicamento eram, de facto, indispensáveis para a protecção da saúde pública.

25.      O Governo alemão alega que o direito comunitário estabelece o primado do regime relativo aos medicamentos sobre as disposições relativas aos géneros alimentícios e suplementos alimentares. Esse primado resulta, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, do artigo 2.°, terceiro parágrafo, alínea d), do Regulamento n.° 178/2002 e do artigo 1.°, n.° 2, da Directiva 2002/46, que, de modo análogo, excluem os medicamentos do âmbito de aplicação das disposições sobre géneros alimentícios e sobre suplementos alimentares (4). A Directiva 2004/27/CE veio corroborar esta interpretação ao inserir na Directiva 2001/83 uma nova redacção do artigo 2.°; o ponto 2 deste artigo determina que, em caso de dúvida, quando um produto pode ser igualmente abrangido por outras disposições comunitárias – como, por exemplo, as que respeitam a géneros alimentícios – serão sempre aplicáveis as disposições relativas aos medicamentos.

26.      Seguidamente, o Governo alemão sustenta que o preparado de alho em questão é um medicamento por função, sobretudo porque possui propriedades farmacológicas cuja importância é determinante. No caso em apreço, o produto tem efeitos terapêuticos na prevenção de alterações patológicas no organismo humano e, em especial, na prevenção da arteriosclerose. Em apoio da sua tese, o Governo alemão faz referência a vários pareceres e estudos científicos.

27.      No que diz respeito às alegações da Comissão de que os efeitos do preparado se limitam à arteriosclerose, o Governo alemão afirma que não se pode inferir da directiva sobre medicamentos nem da jurisprudência do Tribunal de Justiça, «um limiar de importância» a partir do qual devam ser demonstrados diferentes graus de acção farmacológica. Assim, admitida da acção farmacológica do produto não importa se a redução do risco de arteriosclerose é pequena ou significativa.

28.      Segundo o Governo alemão, a definição como medicamento não pode depender da origem das substâncias pois o próprio Tribunal já entendeu que, em doses elevadas, as vitaminas podem ser consideradas medicamentos (5). O facto de as vitaminas poderem ser encontradas em inúmeros géneros alimentícios não impede que sejam classificadas de medicamentos. O mesmo deve valer para o alho e para a substância activa nele contida, a alicina. Consequentemente, pouco importa se uma substância activa com propriedades farmacológicas se encontra ou não em géneros alimentícios.

29.      O preparado objecto do presente litígio possui igualmente propriedades farmacológicas, uma vez que da sua ingestão podem resultar riscos para a saúde. O facto de o consumo de determinados géneros alimentícios poder ter consequências prejudiciais para saúde, não implica que a qualidade de medicamento seja posta em causa pois são sobretudo os efeitos farmacológicos ou terapêuticos do produto que constituem o factor determinante.

30.      No que se refere ao modo de emprego, o Governo alemão vem invocar que o facto de o produto em causa ser comercializado em cápsulas indica, em princípio, que se trata de um medicamento por função. Quanto ao conceito de medicamento por apresentação, o Governo alemão argumenta que um produto pode ser como tal considerado quando, pela sua forma e apresentação, se assemelhe suficientemente a um medicamento. No caso presente, a apresentação em cápsulas é indicativa da intenção de distribuição como medicamento, mesmo que a forma exterior não possa, só por si, constituir um indício determinante para a classificação de um produto como tal.

31.      Além disso, existem no mercado alemão numerosos medicamentos que contêm substâncias como o alho em pó e a cebola em pó, com apresentação semelhante à do preparado em causa no presente processo. A circunstância de todos eles estarem classificados como medicamentos indica que, segundo a concepção comercial e as expectativas do consumidor, também o produto em causa, que lhes é equiparável, constitui um medicamento por apresentação.

32.      O Governo alemão infere igualmente da jurisprudência do Tribunal que as autoridades nacionais dispõem de margem de apreciação quando decidem da classificação (6). A Comissão, que tem o ónus da prova, não logrou demonstrar que as autoridades alemãs tinham exercido de forma errada o seu poder de apreciação ao classificarem o preparado como medicamento.

33.      A título subsidiário, o Governo alemão alega, para o caso de o Tribunal considerar que é aplicável a livre circulação de mercadorias e considerar a decisão de classificação uma forma de restrição, esta restrição é, de qualquer modo, justificada por uma razão imperiosa de interesse geral, ou seja, a protecção da saúde pública.

VI – Apreciação jurídica

1.      Observações preliminares

a)      A harmonização como resultado da ponderação do legislador

34.      O conceito de medicamento não consta do Tratado CE. Não obstante, o regime jurídico em matéria de medicamentos é, em larga medida, regulado e determinado pelo direito comunitário. À semelhança do que sucede com o direito comunitário sobre os géneros alimentícios, o direito comunitário dos medicamentos desenvolveu‑se com fundamento nas disposições relativas à livre circulação de mercadorias. Também os medicamentos são mercadorias que participam do comércio intra‑comunitário. Mas são igualmente produtos que, por princípio, podem acarretar riscos para a saúde e, por esse motivo, exigem medidas especiais destinadas a garantir a segurança da população (7).

35.      De acordo com a doutrina moderna, estas medidas são tomadas pelos Estados‑Membros no âmbito da sua missão de protecção da saúde, que faz parte do dever fundamental de protecção que incumbe ao Estado. Todavia, enquanto divergirem as concepções dos Estados‑Membros quanto ao nível de segurança necessário e quanto aos métodos para o atingir, tais regimes constituem obstáculos ao comércio e são, por esse motivo, casos clássicos de medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação, na acepção do artigo 28.° CE (8). Só estão justificadas ao abrigo do artigo 30.° CE se prosseguirem efectivamente a protecção da saúde e desde que sejam proporcionadas.

36.      Ora, a harmonização do direito dos medicamentos ao nível comunitário, tinha precisamente por objectivo desmantelar estes entraves justificados ao comércio a fim de criar um mercado interno, sem fronteiras internas. Este objectivo é prosseguido pelas normas de direito derivado relativas a aproximação dos regimes nacionais sobre medicamentos, baseadas, num primeiro momento, no artigo 94.° CE e, depois, no artigo 95.° CE; inicialmente, tratou‑se de definir conceitos de direito comunitário como, por exemplo, o conceito de medicamento, de aproximar os padrões materiais de segurança necessários, a rotulagem de medicamentos, bem como de simplificar ou consolidar o reconhecimento recíproco de medidas dos Estados‑Membros no âmbito do direito relativo aos medicamentos. A adopção de procedimentos comunitários uniformes de autorização constituiu uma nova etapa em termos qualitativos (9).

37.      A harmonização resultou sobretudo de directivas que, de acordo com a finalidade do direito comunitário dos medicamentos, se destinam, antes de mais, a proteger a saúde pública (10). No entanto, este objectivo deve ser alcançado através de meios que não entravem o desenvolvimento da indústria farmacêutica e do comércio de produtos farmacêuticos dentro da Comunidade (11). Uma vez que é necessário assegurar simultaneamente a protecção da saúde e a livre circulação de mercadorias há que encontrar um equilíbrio entre estes dois objectivos (12). Consequentemente, a Directiva de harmonização 2001/83 deve ser considerada o resultado da ponderação pelo legislador de dois objectivos comunitários.

b)      O conceito de medicamento em direito comunitário

38.      O legislador comunitário tem liberdade para definir o alcance da harmonização, dentro dos limites estabelecidos pelo Tratado. Uma harmonização completa em domínios determinados do direito dos medicamentos não deixa qualquer espaço a medidas autónomas dos Estados. Através da harmonização completa, deve considerar‑se definitiva a definição de «medicamento», contida no artigo 1.°, ponto 2), da Directiva 2001/83, o que significa que, na classificação de «medicamentos», os Estados‑Membros estão vinculados pela mesma (13). As autoridades competentes dos Estados‑Membros não podem, assim, incluir na definição de medicamento produtos que, de acordo com critérios objectivos, não podem ser considerados como tais (14).

39.      No caso de ser recusada uma decisão geral de autorização de importação e distribuição de um produto com o fundamento de que este é um medicamento, mesmo quando não possui as características definidas pelo direito comunitário, deve considerar‑se que esta actuação da Administração, que não teve em conta a definição estabelecida e, na medida em que assenta numa prática administrativa (15), constitui uma infracção ao direito comunitário. Tal violação tem necessariamente por consequência a responsabilização geral do Estado‑Membro em causa.

40.      No caso presente, a Comissão contesta uma prática administrativa das autoridades alemãs que consiste em considerar medicamentos os produtos compostos por alho desidratado em pó.

41.      A definição de medicamento da Directiva 2001/83/CE decompõe‑se, tal como na versão original da Directiva 65/65/CEE, em duas partes. Uma substância é um medicamento quando for apresentada como meio de tratamento ou prevenção de doenças humanas (definição de medicamento «por apresentação»). Do mesmo modo, deve considerar‑se medicamento qualquer substância destinada a ser aplicada no ou sobre o corpo humano a fim de estabelecer um diagnóstico médico ou de restabelecer, corrigir ou modificar funções fisiológicas humanas (definição de medicamento «por função»). Segundo o direito comunitário, um produto é um medicamento quando corresponder a uma destas definições.

42.      Neste contexto, é de observar que compartilho expressamente da interpretação estrita do conceito de medicamento (16) definido na Directiva 2001/83, tal como defendida pelo advogado‑geral A. Geelhoed nas suas conclusões no processo HLH Warenvertrieb e Orthica.

43.      Tal como expôs, com razão, o advogado‑geral A. Geelhoed no n.° 36 das suas conclusões no processo HLH Warenvertrieb e Orthica, uma interpretação e aplicação demasiado latas do conceito de medicamento apresenta, designadamente, três inconvenientes. Em primeiro lugar, o conceito de «medicamento» perde a sua capacidade de diferenciação se abranger produtos que, devido à sua composição e efeitos, não podem ser incluídos nessa classificação. Com isso, os interesses ligados à defesa da saúde humana são mais prejudicados do que beneficiados. Em segundo lugar, as normas comunitárias específicas para determinadas categorias de géneros alimentícios, que contêm disposições adaptadas aos riscos especiais que apresentam estes produtos, perderiam a sua razão de ser; no caso presente, pense‑se na Directiva 2002/46 relativa a suplementos alimentares. Em terceiro lugar, um alargamento «progressivo» do âmbito de aplicação da Directiva 2001/83 a produtos com os quais ela não tem qualquer relação prejudicaria a livre circulação de mercadorias.

44.      Podem ser encontrados na jurisprudência os princípios correspondentes que militam a favor de uma interpretação mais estrita do conceito de medicamento. Por um lado, existe unanimidade quanto ao facto de o regime jurídico dos medicamentos dever ser mais estrito do que o aplicável aos géneros alimentícios, uma vez que o seu consumo está associado a perigos específicos (17). Por outro lado, o Tribunal exige, para a classificação de um produto como medicamento, a garantia suficiente de que todos os produtos aos quais se atribui um efeito farmacológico têm efectivamente esse efeito (18). Consequentemente, tanto a existência dos perigos específicos como os efeitos farmacológicos têm de ser demonstrados através de informações provenientes de estudos científicos sólidos.

45.      Estas considerações devem, em minha opinião, ser tidas em conta no exame jurídico da questão – pertinente para a presente acção por incumprimento – de saber se o preparado de alho no centro do litígio preenche os critérios de classificação de um produto como medicamento, ou seja, se a classificação levada a cabo pelo Ministério Federal da Saúde está de acordo com o direito comunitário.

46.      Em relação aos possíveis limites ao controlo das decisões de autoridades nacionais pelo Tribunal, referia‑se que, segundo o direito comunitário, as autoridades em causa dispõem de uma margem ampla de apreciação no desempenho de tarefas que pressupõem investigações técnicas e científicas. O Tribunal inferiu desta circunstância que a liberdade de decisão das autoridades nacionais só pode estar sujeita a um controlo jurisdicional limitado. Em termos concretos, não é permitido ao juiz comunitário substituir a apreciação dos factos feita pelas autoridades competentes pela sua apreciação. Ao mesmo tempo, porém, o Tribunal sublinhou que lhe cabia verificar os pressupostos factuais e a valoração jurídica feita pelas autoridades nacionais (19). Consequentemente, em processos por incumprimento como o presente, o juiz comunitário pode verificar se no caso concreto as características de facto do conceito de medicamento estão reunidas. Assim, há que analisar a seguir se o preparado de alho é um medicamento na acepção do artigo 1.°, ponto 2), primeiro parágrafo, da Directiva 2001/83.

47.      Quero recordar que, tratando‑se de processos nos termos do artigo 226.° CE, é jurisprudência assente do Tribunal que o ónus de provar que houve violação do direito comunitário recai sobre a Comissão (20). Assim, no processo presente, a Comissão está especialmente incumbida de demonstrar e provar que o Governo alemão aplicou incorrectamente a Directiva 2001/83 na medida em que, independentemente da sua margem de apreciação, classificou, sem razão, o preparado de alho em questão como medicamento. Naturalmente, isso não impede que o Estado‑Membro em causa deva cooperar na produção de prova, como resulta da jurisprudência do Tribunal, baseando‑se nos resultados da investigação científica a nível internacional, para demonstrar que a classificação de um certo produto como medicamento na acepção da Directiva 2001/83 é credível (21). Se a Comissão quiser contestar os factos apresentados pelo Estado‑Membro, deverá fazê‑lo por referência a outros factos igualmente credíveis.

2.      Medicamento por apresentação

48.      Segundo jurisprudência do Tribunal, o critério da «apresentação» deve abranger não só os medicamentos que, de facto, possuam efeitos terapêuticos ou médicos, como também os produtos que não são suficientemente eficientes ou que não têm o efeito que o consumidor pode esperar deles de acordo com a sua apresentação (22). Esta definição parcial do conceito de medicamento no direito comunitário engloba não só os «verdadeiros» medicamentos, como também os preparados que não contêm nenhuma substância activa farmacológica e que, por esse motivo, não têm, objectivamente, qualquer efeito medicinal. Segundo a jurisprudência, o objectivo é proteger os consumidores «não só dos medicamentos nocivos ou tóxicos, enquanto tais, mas também de produtos usados em vez dos remédios adequados» (23). O conceito de «apresentação» de um produto foi, por este motivo, objecto de interpretação extensiva.

49.      Assim, há que partir do pressuposto de que um produto apresentado como possuindo propriedades curativas ou preventivas de doenças na acepção da Directiva 2001/83 não apenas quando é como tal expressamente «descrito» ou «recomendado», eventualmente através de rótulos, folhetos ou por apresentação oral, mas também sempre que se criar, de modo implícito mas certo, no consumidor medianamente informado, a impressão de que o produto deve, tendo em conta a sua apresentação, ter as propriedades que evoca (24). Por conseguinte, o critério determinante é o objectivo definido pelo fabricante, tal como é reconhecido pelo consumidor (25).

50.      Deduz‑se dos autos que o produto controvertido, fabricado pela empresa Piddimax, constitui um extracto de alho em pó, distribuído sob a forma de cápsulas contendo, cada uma, o equivalente a 7,4 g de alho fresco e cru. O rótulo, que foi junto ao pedido de concessão de uma decisão geral, indica que cada cápsula contém 370 mg de extracto de alho em pó com elevada concentração de alicina.

51.      A Comissão tem razão quando afirma que, exceptuando o facto de o preparado de alho ser distribuído em cápsulas, nenhuma outra característica aponta para uma classificação como medicamento por apresentação. Há que ter em conta que, mesmo que a forma exterior dada ao produto, pílula, comprimido ou cápsula constitua, de acordo com a jurisprudência, um indício sério da intenção do vendedor ou do fabricante de comercializar o produto como medicamento, este indício, só por si, não pode ser determinante, uma vez que, se assim fosse, seriam abrangidos determinados géneros alimentícios, tradicionalmente, apresentados sob formas semelhantes aos produtos farmacêuticos (26). De facto, hoje em dia, a apresentação em cápsulas perdeu importância enquanto critério de classificação de produtos como medicamentos, especialmente quando um grande número de suplementos alimentares e produtos dietéticos, à semelhança dos medicamentos, é vendido sob a forma de cápsulas, cápsulas de gelatina, ou comprimidos (27). Tomar simplesmente por base a forma de distribuição impediria que se tivesse suficientemente em conta que, precisamente no mercado dos suplementos alimentares, foram sendo introduzidos, com o intuito de orientar o consumidor e por razões de conveniência, elementos típicos dos medicamentos (28). Acresce a isto que, por razões de ordem prática e por razões ligadas à qualidade, é inevitável que os suplementos alimentares sejam oferecidos sob a forma de cápsulas. É, pois, de presumir que o consumidor medianamente informado abandonou a ideia de que esta forma de apresentação está reservada aos medicamentos. A distribuição, sob a forma de cápsulas, do preparado de alho em questão não permite, só por si, classificá‑lo como medicamento.

52.      O facto de na embalagem se fazer referência a uma «dosagem» e não a uma «dose diária recomendada», como especifica o artigo 6.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 2002/46, tão pouco confere a qualidade de medicamento ao preparado de alho em questão. Como a Comissão afirma, com razão, esta directiva utiliza, noutras disposições, expressões como «forma doseada» ou «dose diária recomendada», donde se conclui que os conceitos de dosagem e de dose diária recomendada designam, no essencial, a mesma coisa. Independentemente das diferenças terminológicas, a existência de uma dosagem recomendada não pode ser determinante na distinção entre medicamentos e géneros alimentícios, uma vez que, para determinados alimentos, que não devem ser classificados como medicamentos, pode revelar‑se necessária, para protecção da saúde, a definição de uma dosagem máxima.

53.      Em consequência, o preparado de alho não preenche o tipo legal de medicamento por apresentação, de acordo com o artigo 1.°, ponto 2), primeiro parágrafo, da Directiva 2001/83. Não só não tem a apresentação típica de um medicamento, como não possui características ou indicações do fabricante, das quais se possa inferir que este teve intenção de comercializar o preparado de alho como medicamento.

54.      As definições parciais do conceito de medicamento em direito comunitário não podem, no entanto, ser tidas como estritas. Como foi afirmado no acórdão Van Bennekom (29), uma substância que possua, na acepção da primeira definição «propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças humanas» mas que não se «apresente» como tal, cai no âmbito da segunda definição comunitária de medicamento.

3.      Medicamentos por função

55.      A definição de medicamento por função, que consta do artigo 1.°, ponto 2), segundo parágrafo, da Directiva 2001/83 deve ser entendida de modo a abranger só aquelas substâncias ou compostos destinados a produzir efeitos fisiológicos no corpo humano. Esta definição de medicamento compreende produtos cujos efeitos reais ou anunciados possam afectar significativamente as condições de funcionamento do corpo humano (30).

56.      O Tribunal, na sua jurisprudência, enunciou os seguintes critérios que podem ser utilizados para determinar se um produto é abrangido por esta definição parcial: a sua composição, as propriedades farmacológicas que, na fase actual dos conhecimentos científicos, o produto possua, o modo da sua utilização, o grau da sua difusão, o conhecimento que dele tenha o consumidor e os riscos a que a sua utilização esteja associada (31). O Tribunal deixou, contudo, por resolver a questão da ponderação a atribuir a cada uma destas características e, até agora, não forneceu qualquer definição do conceito de propriedades farmacológicas, para além da indicação de que nela se incluem as «consequências na saúde em geral» (32).

57.      Assim, o critério das propriedades farmacológicas (33) adquire, em meu entender, um significado determinante, uma vez que se trata de uma característica objectiva, cuja averiguação só pode ser feita caso a caso, através de um exame técnico‑científico exaustivo. A necessidade de uma definição inequívoca das propriedades farmacológicas é manifesta sobretudo em casos como o presente, nos quais se trata de classificar produtos que, a par das suas propriedades alimentícias, possuem efeitos reconhecidamente benéficos para a saúde.

58.      Tal como afirmou, e bem, o advogado‑geral A. Tesauro no processo Delattre (34), a formulação do artigo 1.°, ponto 2), segundo parágrafo, da Directiva 2001/83, «restaurar, corrigir ou modificar as funções fisiológicas no homem», parece ser suficientemente ampla para abranger aqueles produtos que, embora, pela sua natureza, produzam certamente efeitos nas funções corporais, no essencial, têm um objectivo alimentar. Já tive ocasião de expor noutro local que este tipo de interpretação, em última análise, não favorece a protecção da saúde nem a livre circulação de mercadorias (35). E também não pode ter sido esta a intenção do legislador comunitário. Em concordância com as propostas dos advogados‑gerais A. Geelhoed (36) e A. Tesauro (37), entendo que é necessária uma interpretação estrita dos elementos de facto do medicamento por função (38). Consequentemente, apenas devem ser incluídos nesta definição os produtos com propriedades farmacológicas cientificamente verificadas. Para isso não basta que os efeitos de um produto sejam unicamente os efeitos fisiológicos resultantes da alimentação. Parece‑me necessário, pelo contrário, que deve servir na prevenção ou no tratamento de doenças ou estar associado a riscos para a saúde ou efeitos secundários nocivos ou, ainda, afectar de modo fora do comum nas funções corporais (39).

59.      O Governo alemão baseia a qualidade de medicamento deste produto fundamentalmente no seu elevado teor de alicina, que, de acordo com as suas informações, possui uma concentração de substâncias activas duas a quatro vezes mais elevada do que a dose diária cientificamente recomendada. Alega que, precisamente por isso, não pode tratar‑se de um produto equiparável ao alho enquanto género alimentício, mas sim de um extracto de elevada concentração obtido a partir do alho através de etanol e cultivado num meio que contém um excipiente (lactose). Os indícios de que tem propriedades farmacológicas são, por um lado, os efeitos do alho na redução da tensão arterial e na redução de lípidos o que faz do preparado de alho um meio adequado para a prevenção da calcificação arterial comum (arteriosclerose comum).

60.      Parece‑me ser este o momento oportuno para referir que a apreciação jurídica do Tribunal não poderá, com base nos actuais conhecimentos científicos, limitar‑se aos efeitos benéficos para a saúde que são atribuídos ao alho enquanto alimento. Muitos produtos que, de acordo com a concepção comercial, são inequivocamente géneros alimentícios, podem, objectivamente, ser utilizados para fins terapêuticos (40). Partindo da interpretação estrita do elemento de facto de medicamento por mim preconizada, a questão que se coloca é antes a de saber se o produto em causa possui, só por si, uma mais‑valia em relação ao alho na sua forma natural.

61.      No que diz respeito a esta questão, inclino‑me para a tese da Comissão que nega, no caso presente, a qualidade de medicamento. A doutrina invocada pelo Governo alemão na sua contestação sublinha os efeitos potenciais do consumo de alho, enquanto género alimentício, mas também os efeitos obtidos através da ingestão de preparados de alho em forma de cápsulas, pó ou soluções (41). Uma observação cuidada revela, designadamente, que o preparado em causa não é mais que um concentrado da substância activa natural alicina, e que os seus efeitos fisiológicos podem ser alcançados pura e simplesmente consumindo mais alho na sua forma natural.

62.      Embora seja do conhecimento geral que o consumo de alho tem efeitos benéficos sobre o funcionamento do organismo humano, os seus efeitos não se podem considerar substancialmente maiores ou diferentes dos de outros produtos de origem vegetal ou animal, cujo consumo faz parte da alimentação quotidiana. Como expõe a Comissão na sua petição, o mesmo efeito pode ser obtido através de outros géneros alimentícios ou de determinadas dietas. Na verdade, peixes marinhos como o salmão, o atum, o arenque e a sardinha contêm ácidos gordos ómega‑3, que reduzem do mesmo modo o risco da arteriosclerose. Acresce que as vitaminas C e E e o mineral selénio também desempenham o seu papel e podem ser consumidos quer através dos alimentos tradicionais quer através de suplementos alimentares.

63.      A argumentação do Governo alemão não me parece suficientemente conclusiva para admitir a classificação como medicamento «por função», uma vez que os efeitos desse preparado não se destacam especialmente por prevenirem por completo o risco de arteriosclerose. Como se conclui da comunicação do Governo alemão de 14 de Março de 2003, junta como anexo 4 da petição inicial, o preparado em questão não possui, com excepção da substância activa alicina, qualquer substância que possa incluir‑se no grupo dos preparados de vitaminas ou minerais ou de outras substâncias com um efeito alimentar e fisiológico específico (42).

64.      De qualquer modo, nem todos os efeitos de redução de risco ou de melhoramento da saúde atribuídos a um género alimentício conduzem necesariamente à qualificação como medicamento, pois, caso contrário, os Estados‑Membros poderiam impedir o comércio desses géneros alimentícios valiosos e, deste modo, privar os consumidores de beneficiarem desses produtos. É óbvio que tal consequência é contrária aos objectivos da livre circulação de mercadorias.

65.      Igualmente difícil de entender é o argumento do Governo alemão relativo aos riscos associados ao consumo do alho. Na medida em que faz referência a relatórios de hemorragias espontâneas e pós‑operatórias, à possível interacção com a medicação Saquinavir contra o HIV e com determinados medicamentos anticoagulantes, é de objectar que se trata de riscos que estão também, em geral, associados ao consumo de alho e não especialmente ao preparado de alho em questão. Tal como a Comissão observa, com razão, não é raro que o estado de saúde de um indivíduo exija que este, em determinadas circunstâncias, se submeta a uma dieta, por exemplo, uma alimentação sem sal ou sem álcool. Tendo em conta o facto de que estes efeitos secundários só muito raramente se manifestam e estão associados a uma predisposição hereditária ou são devidos a uma situação específica, não podem ser considerados riscos importantes ou efeitos secundários nocivos para a saúde na acepção da jurisprudência. Além do mais, um eventual risco para a saúde é apenas um de entre muitos factores que as autoridades nacionais competentes têm de ter em conta na classificação de produtos como medicamentos «por função» (43).

66.      É igualmente de rejeitar o argumento do Governo alemão de que se formou na Alemanha uma certa concepção comercial acerca dos preparados de alho de elevada concentração. Este ponto de vista não tem em conta que o direito comunitário obriga as autoridades nacionais a examinar, caso a caso, se um produto deve ser classificado como medicamento (44). A referência global a uma vaga concepção de mercado relativa a produtos de alho em geral não as libera desta obrigação. Além do mais, o Tribunal já sublinhou que as expectativas do consumidor podem evoluir à medida da realização do mercado interno (45). A legislação de um Estado‑Membro não pode levar à cristalização de hábitos de consumo a ponto de constituírem um obstáculo à realização do mercado interno.

67.      Resumindo, estamos perante um produto que não se ajusta à definição de medicamento em direito comunitário, na acepção do artigo 1.°, ponto 2), da Directiva 2001/83.

68.      Uma vez que o preparado de alho em causa não corresponde a nenhuma das definições jurídicas de medicamento constantes do artigo 1.°, ponto 2), da Directiva 2001/83 e por conseguinte, não abrangido pelo seu âmbito de aplicação material, não é necessário resolver a questão de saber se e em que medida o regime dos medicamentos deve prevalecer sobre as disposições relativas a géneros alimentícios e suplementos alimentares (46). Por esta razão, são de rejeitar, por irrelevantes para o caso presente, os argumentos do Governo alemão a este respeito.

4.      Aplicabilidade das disposições do Tratado sobre livre circulação de mercadorias

69.      O produto controvertido poderia, quando muito, constituir um suplemento alimentar no sentido do artigo 2.°, alínea a), da Directiva 2002/46, ou seja, um género alimentício que se destina a complementar o regime alimentar normal e que constitui uma fonte concentrada de determinados nutrientes ou outras substâncias com efeito nutricional ou fisiológico, estremes ou combinados, comercializado em forma doseada. A esta posição opõe‑se, no entanto, a circunstância de o preparado de alho em questão não ser composto pelas substâncias alimentares mencionadas no artigo 2.°, alínea b), da Directiva 2002/46 (vitaminas e sais minerais) e, por esse motivo, não se pode considerar abrangido pelo âmbito de aplicação material desta norma.

70.      De acordo com o considerando 8 da Directiva 2002/46, os Estados‑Membros podem, até à adopção de disposições especiais e sem prejuízo do disposto no Tratado, aplicar as normas nacionais sobre substâncias alimentares ou outras substâncias com propriedades alimentares específicas ou efeitos fisiológicos, que são utilizadas como ingredientes de suplementos alimentares e para as quais ainda não existem disposições comunitárias específicas.

71.      Na falta de harmonização neste campo, as disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias constituem o critério para determinar a compatibilidade da classificação como medicamento efectuada pelas autoridades alemãs.

5.      Restrição injustificada da livre circulação de mercadorias

72.      Segundo o artigo 28.° CE, são proibidas entre os Estados‑Membros as restrições quantitativas à importação, bem como todas as medidas de efeito equivalente. Ora, constitui medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa da importação qualquer regulamentação ou medida dos Estados‑Membros susceptível de criar entraves, directa ou indirectamente, efectiva ou potencialmente, ao comércio intra‑comunitário (47).

73.      A decisão de 8 de Junho de 2000, através da qual foi recusada a autorização do produto à base de alho em questão como suplemento alimentar, no âmbito de um pedido efectuado ao abrigo do § 47a da LMBG, é uma medida estatal na acepção do artigo 28.° CE. De acordo com a fundamentação da decisão, o preparado de alho distribuído legalmente num outro Estado‑Membro é considerado medicamento na República Federal da Alemanha. Não é, portanto, comercializável como género alimentício ou suplemento alimentar pelo que deve ser autorizado como medicamento. Esta exigência é susceptível de obstar ao comércio intracomunitário do produto em causa pelo que constitui uma medida proibida de efeito equivalente.

74.      O Tribunal já observou que, na falta de harmonização e, na medida em que subsistam incertezas, no estado actual da investigação científica, os Estados‑Membros podem, em determinadas condições, restringir a colocação no mercado de géneros alimentícios que são distribuídos legalmente noutro Estado‑Membro, por razões de protecção da saúde e da vida humanas, com base no artigo 30.° CE (48). No entanto, as medidas adoptadas pelos Estados‑Membros em relação a estes géneros alimentícios, destinadas a proteger a saúde pública, devem ser proporcionadas (49).

75.      Incumbe às autoridades nacionais que invocam a protecção da saúde pública demonstrar, em cada caso, à luz dos hábitos alimentares nacionais e tendo em conta os resultados da investigação científica internacional, que a sua regulamentação é necessária para a protecção efectiva dos interesses abrangidos por esta disposição, em especial, que a comercialização dos produtos em causa apresenta um risco real para a saúde pública (50). Neste caso, o dever de fundamentação que recai sobre cada Estado‑Membro é tanto maior quanto maiores forem as exigências jurídicas e materiais para a uma determinada comercialização. Neste contexto, é de sublinhar que a emissão de uma autorização de colocação no mercado nos termos do artigo 8.° da Directiva 2001/83 está sujeita a condições estritas (51).

76.      Nestas circunstâncias, a proibição de comercializar o produto em causa como género alimentício, bem como a obrigação de obter uma autorização para colocação no mercado como medicamento, só podem ser consideradas proporcionadas se forem efectivamente necessárias para proteger a saúde pública.

77.      O Governo alemão defende que a restrição da livre circulação de mercadorias está, de qualquer modo, justificada por uma razão imperiosa de interesse geral, designadamente pela protecção da saúde pública. Remete, a este respeito, para os seus argumentos relativos aos riscos para a saúde associados ao preparado (52).

78.      Como já se expôs, estes argumentos referem‑se claramente aos efeitos do alho enquanto alimento, mas omitem qualquer explicação específica sobre o preparado em causa. O Governo alemão não distingue claramente entre os efeitos fisiológicos resultantes do consumo de grandes quantidades de alho e os resultantes do consumo de preparados à base de alho. Assim, na comunicação, de 5 de Outubro de 2001, do Governo alemão à Comissão, a propósito de possíveis efeitos secundários como dores gastro‑intestinais, reacções alérgicas e redução ligeira da tensão arterial, estabelece em certa medida uma amálgama entre alimento e o produto.

79.      Só pode, porém, invocar‑se o artigo 30.° CE na condição de que exista realmente um perigo para a protecção do bem invocada pelo Estado‑Membro (53). Da jurisprudência decorre que, mesmo que não seja necessário provar de forma cientificamente irrefutável uma situação de perigo, a existência desse perigo deve basear‑se em argumentos compreensíveis e fundamentados (54). Tendo em conta que o legislador comunitário e o Tribunal impuseram ao Estados‑Membros requisitos de fundamentação estritos, a mera referência global pelo Governo alemão aos riscos que pode constituir para a saúde o consumo de alho em circunstâncias específicas não basta para justificar uma medida tão drástica como a recusa de acesso ao mercado.

80.      O Governo alemão não logrou assim provar que a concessão de uma autorização de colocação no mercado como medicamento para o preparado de alho em questão era necessária à protecção da saúde pública, tendo em conta sobretudo, que eram perfeitamente concebíveis medidas menos lesivas do que uma proibição geral de comercialização, como avisos destinados às pessoas com alergia ou a pessoas que, por razões genéticas ou conjunturais, têm especial pré‑disposição para determinadas doenças (55).

81.      A aplicação ao preparado de alho em causa dos requisitos relativos à comercialização de medicamentos constitui assim uma restrição injustificada da livre circulação de mercadorias.

VII – Quanto às despesas

82.      Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Federal da Alemanha e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

VIII – Conclusão

83.      Com base nas considerações precedentes, proponho ao Tribunal que declare:

«1. A República Federal da Alemanha, ao classificar como medicamento um preparado de alho em cápsulas que não se ajusta à definição de medicamento por apresentação, constante do artigo 1.°, ponto 2), da Directiva 2001/83 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 28.° CE e 30.° CE.

2. A República Federal da Alemanha seja condenada nas despesas.»


1 – Língua original: alemão.


2 – JO L 311, p. 67.


3 – JO L 183, p. 51.


4 – Acórdão de 9 de Junho de 2005, HLH Warenvertrieb e Orthica (C‑211/03, C‑299/03 e C‑316/03 a C‑318/03, Colect., p. I‑5141, n.° 43).


5 – Acórdãos de 29 de Abril de 2004, Comissão/Alemanha (C‑387/99, Colect., p. I‑3751, n.° 56), e de 30 de Novembro de 1983, Van Bennekom (227/82, Recueil, p. 3883, n.° 27).


6 – Acórdão HLH Warenvertrieb e Orthica (já referido na nota 4, n.° 43).


7 – Clement, C. – «La notion de médicament en droit communautaire de la santé», Les petites affiches, 1995, n.° 12, p. 20, afirma que os medicamentos não são mercadorias comuns, uma vez que se destinam a combater doenças, dores e outros sofrimentos. Ao mesmo tempo, porém, faz referência aos riscos associados ao consumo de medicamentos, invocando a ideia generalizada, segundo a qual «quanto maior for a eficácia de um medicamento maior é a sua nocividade».


8 – Streinz; Ritter, J. – Dauses, M. (edição), Handbuch des EU‑Wirtschaftsrechts, C. V., n.° 2; Winter, B. – Die Verwirklichung des Binnenmarktes für Arzneimittel, Berlin 2004, p. 77; Cadeau, E.; Richeux, J.‑Y. – «Le juge communautaire et le médicament: libre circulation des marchandises et protection de la santé publique», Les petites affiches, 1996, n.° 7, p. 9, consideram as regulamentações nacionais e as práticas administrativas susceptíveis de constituir entraves ao comércio intra‑comunitário de produtos farmacêuticos como medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação na acepção do artigo 28.° CE.


9 – Um medicamento só pode aceder ao mercado quando foi objecto do procedimento de autorização previsto para o efeito e as autoridades competentes tenham autorizado a sua introdução no mercado. A autorização de um medicamento é necessária para garantir a segurança do consumidor no âmbito da circulação dos medicamentos e para o proteger de medicamentos nocivos ou ineficazes. Todavia, a garantia de um nível elevado de protecção na utilização de medicamentos tem de ser obtida através de meios que entravem o menos possível o comércio de produtos farmacêuticos dentro da Comunidade. As diferenças entre os regimes de autorização dos vários Estados‑Membros têm consequências directas no estabelecimento e no funcionamento do mercado interno. Por esta razão, a instauração de procedimentos comunitários de autorização uniformes constituiu um objectivo importante para a Comunidade. Actualmente existem três modalidades de autorização de medicamentos na União Europeia: um procedimento de autorização centralizado, válido para todo o espaço da União, um procedimento de autorização descentralizado para vários Estados‑Membros, e um procedimento puramente interno entendendo‑se que os critérios materiais de autorização são os mesmos para todos os procedimentos: a autorização de um medicamento é recusada quando, da análise da documentação do processo, resultar que a composição daquele não tem a natureza nem a composição indicadas, que não possui eficácia terapêutica ou esta se encontra insuficientemente comprovada, ou quando o consumo do medicamento tal como prescrito se revelar nocivo (sobre este ponto v. Winter, B., op. cit. na nota 8, pp. 77‑94).


10 – Segundo considerando da Directiva 2001/83.


11 – Terceiro considerando da Directiva 2001/83.


12 – No acórdão de 7 de Dezembro de 1993, Pierrel (C‑83/92, Colect., p. I‑6419, n.° 7), o Tribunal declarou que as especialidades farmacêuticas são objecto, no direito comunitário, de uma série de directivas de harmonização que se destinam a realizar gradualmente a livre circulação destes produtos na Comunidade, garantindo ao mesmo tempo a protecção da saúde pública. Também, neste sentido: Cadeau, E.; Richeux, J.‑Y. (op. cit. na nota 8), p. 4. De acordo com Fraguas Gadea, L. – «La libre circulación de medicamentos», Noticias de la Unión Europea, 2000, n.° 184, p. 57, e Petit, Y. – «La notion de médicament en droit communautaire», Revue de droit sanitaire et social, 1992, ano 28, n.° 4, p. 572, o legislador comunitário reforçou a harmonização legislativa para estabelecer um equilíbrio justo entre os imperativos de saúde pública e os da livre circulação de mercadorias. Na opinião destes autores, também pode descrever‑se em sentido amplo como um projecto de estabelecimento de um mercado comum europeu dos medicamentos.


13 – Conclusões do advogado‑geral A. Geelhoed, de 3 de Fevereiro de 2005, no processo HLH Warenvertrieb e Orthica (acórdão já referido na nota 4, n.° 34).


14 – Ibidem, n.° 54.


15 – Acórdão HLH Warenvertrieb e Orthica (já referido na nota 4, n.° 42). De acordo com a jurisprudência, uma prática administrativa só pode ser considerada uma medida proibida pelo artigo 30.° CE quando estiver suficientemente consolidada e possuir um determinado grau de generalização. V. acórdãos de 9 de Maio de 1985, Comissão/França (21/84, Recueil, p. 1355, n.os 13 e 15); de 12 de Março de 1998, Comissão/Grécia (C‑187/96, Colect., p. I‑1095, n.° 23); e de 29 de Outubro de 1998, Comissão/Grécia (C‑185/96, Colect., p. I‑6601, n.° 35).


16 – Conclusões do advogado‑geral A. Geelhoed no processo HLH Warenvertrieb e Orthica (acórdão referido na nota 4, n.° 35).


17 – Acórdão de 28 de Outubro de 1992, Ter Voort (C‑219/91, Colect., p. I‑5485, n.° 19), e acórdãos de 21 de Março de 1991, Monteil e Samanni (C‑60/89, Colect., p. I‑1547, n.° 16) e Delattre (C‑369/88, Colect., p. I‑1487, n.° 21).


18 – Acórdão de 16 de Abril de 1991, Upjohn I (C‑112/89, Colect., p. I‑1703, n.° 23). Segundo Doepner, U.; Hüttebräuker, A. – «Abgrenzung Arzneimittel/Lebensmittel – die aktuelle gemeinschaftsrechtliche Statusbestimmung durch den EuGH», Wettbewerb in Recht und Praxis, 2005, livro 10, p. 1199, existem numerosas decisões que demonstram que o Tribunal, até agora, quase sempre se opôs inequivocamente às tentativas dos Estados‑Membros de alargarem os seus regimes nacionais relativos a medicamentos a produtos de natureza ambivalente. A título de exemplo, os autores fazem referência ao acórdão de 29 de Abril de 2004, Comissão/Alemanha (C‑387/99, Colect., p. I‑3751, n.os 56 e 57), na qual o Tribunal deixou claro que, de acordo com jurisprudência assente, as autoridades nacionais estão incumbidas de decidir, caso a caso, e tendo em conta todas as suas características, se um produto deve ser considerado medicamento. Em particular, as autoridades devem assegurar‑se que se destina a restabelecer, corrigir ou modificar as funções corporais e que, por essa via, pode, em geral, ter efeitos na saúde.


19 – No acórdão de 21 de Janeiro de 1999, Upjohn II (C‑120/97, Colect., p. I‑223, n.° 34), o Tribunal declarou, fazendo referência à jurisprudência aí referida, que uma autoridade comunitária que, no âmbito das suas competências, tiver de levar a cabo exames complexos, dispõe de um amplo poder de apreciação, cujo exercício está sujeito a um controlo jurisdicional limitado que não permite ao juiz substituir pela sua própria apreciação a apreciação dos factos feita por essa autoridade. Nestas situações, o juiz comunitário limita‑se a examinar os pressupostos de facto e a sua valoração jurídica por essa autoridade e se a actuação desta última está viciada por erro manifesto, desvio de poder, ou se esta autoridade não ultrapassou manifestamente o seu poder de apreciação.


20 – V. conclusões do advogado‑geral W. Van Gerven, de 13 de Março de 1992, no processo Comissão/Alemanha (C‑290/90, Colect. 1992, p. I‑3317, I‑3332, n.° 5) e acórdãos de 25 de Maio de 1982, Comissão/Holanda (97/81, Recueil, p. 1819, n.° 6); de 11 de Julho de 1989, Comissão/Itália (323/87, Colect., p. 2275, n.° 19); e de 5 de Outubro de 1989, Comissão/Holanda (290/87, Colect., p. 3083, n.° 11). Neste sentido, v. também acórdãos de 20 de Maio de 1992, Comissão/Alemanha (C‑290/90, Colect., p. I‑3317, n.° 20) e de 5 de Fevereiro de 2004, Comissão/França (C‑24/00, Colect., p. I‑1277, n.° 72).


21 – Acórdão Delattre (já referido na nota 17, n.° 32).


22 – Acórdãos Upjohn I (já referido na nota 18, n.° 16) e Van Bennekom (já referido na nota 5, n.° 17). O processo Upjohn I teve por objecto uma substância denominada Minoxidil, desenvolvida nos anos 60 como medicamento de controlo da tensão arterial alta e que, devido aos seus efeitos secundários, teve de ser vendido como meio de controlo da queda natural de cabelo. O Tribunal nacional de reenvio tinha de decidir se o produto referido deveria ser considerado um medicamento, ou um produto de cosmética. No processo Van Bennekom estava em causa a venda de preparados vitamínicos de elevado grau de concentração, apresentados sob a forma de medicamentos (em comprimidos, pílulas e cápsulas).


23 – Acórdãos Upjohn I (já referido na nota 18, n.° 16) e Van Bennekom (já referido na nota 5, n.° 17).


24 – Acórdãos Van Bennekom (já referido na nota 5, n.° 18) e Monteil e Samanni (já referido na nota 17, n.° 23).


25 – Köhler, H. – «Die Abkehr vom Anscheinsarzneimittel – Neue Ansätze zur Abgrenzung von Arzneimittel und Lebensmittel», Zeitschrift für das gesamte Lebensmittelrecht, 1999, livro 5, p. 609.


26 – Acórdão Van Bennekom (já referido na nota 5, n.° 19).


27 – No acórdão de 10 de Janeiro de 1995 (referência I ZR 209/92) o Bundesgerichtshof, contrariando a posição do Tribunal a quo, decidiu que um preparado de alho comercializado sob a forma de cápsulas, mesmo sendo apresentado como produto para cozinhar e temperar, deveria ser considerado um medicamento e não um género alimentício. O Bundesgerichtshof baseou a sua decisão, por um lado, no efeito da substância activa contida no alho na redução da tensão arterial e do colesterol e, por outro, no formato típico de medicamento (cápsulas de gelatina, ampolas). Esta jurisprudência foi objecto de críticas da doutrina. Assim, Köhler, H., op. cit. (nota 25), p. 606, sublinha que um grande número de suplementos alimentares e produtos dietéticos é comercializado, como acontece com os medicamentos, sob a forma de cápsulas, cápsulas de gelatina e comprimidos, de tal forma que o consumidor se habituou a considerar que estas formas não são específicas dos medicamentos. O mesmo autor, «Die neuen europäischen Begriffe und Grundsätze des Lebensmittelrechts», Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, 2002, livro 10, p. 852, defende que a comercialização sob a forma de cápsulas deixou de ter importância a partir do acórdão Van Bennekom, ou, em todo o caso, actualmente. Consequentemente, o preparado de alho em questão não deve ser classificado como medicamento.


28 – V. Klein, A. – «Nahrungsergänzung oder Arzneimittel?», Neue Juristische Wochenschrift, 1998, livro 12, p. 793. O autor critica a aplicação pelo Bundesgerichtshof de critérios de diferenciação obsoletos no acórdão referido supra. Do seu ponto de vista, qualquer decisão jurisdicional tem de levar em conta as mudanças que eventualmente se tiverem operado no mercado, designadamente na comercialização dos produtos e nas expectativas dos consumidores. Para confirmar esta necessidade, o autor faz referência ao exemplo dos tão apreciados preparados vitamínicos, utilizados há muito como suplementos alimentares, e que contribuíram para que não se considerem medicamentos quaisquer produtos comercializados sob uma apresentação que antigamente era exclusiva dos medicamentos. Na sua opinião, a classificação de um preparado de alho como medicamento somente em função da forma da sua comercialização em cápsulas não é compatível com o facto de, sobretudo por razões de qualidade e de ordem prática, ser inevitável comercializar os suplementos alimentares em cápsulas. Hagenmeyer, M. – «Die Nahrungsergänzung – ein Lebensmittel in der Grauzone», Zeitschrift für das gesamte Lebensmittelrecht, 1998, livro 3, p. 367, observa que, tendo por referência as chamadas «formas de comercialização típicas dos medicamentos» de outrora, se sustente ainda hoje a ideia de que os preparados em forma de cápsulas sejam, em geral, medicamentos. De facto, começaria a impor‑se o ponto de vista segundo o qual a forma de um produto em cápsulas – sobretudo cápsulas de gelatina em ampolas ‑, comprimidos, pó, etc., é irrelevante para a qualificação desse produto como suplemento alimentar.


29 – Acórdãos Van Bennekom (já referido na nota 5, n.° 22) e Upjohn I (já referido na nota 18, n.° 18).


30 – Acórdão Upjohn I (já referido na nota 18, n.° 18).


31 – Acórdãos Van Bennekom (já referido na nota 5, n.° 29); Monteil e Samanni (já referido na nota 17, n.° 29); Upjohn I (já referido na nota 18, n.° 23); Comissão/Alemanha (já referido na nota 20, n.° 17); e Comissão/Alemanha (já referido na nota 5, n.° 57).


32 – Acórdãos Upjohn I (já referido na nota 18, n.os 17 e 22), e Comissão/Alemanha (já referido na nota 31, n.° 58). O processo Upjohn I centrava‑se na questão de saber se um restaurador capilar deveria ser classificado como medicamento ou como produto de cosmética. O Tribunal esclareceu que a definição de medicamento não pode incluir substâncias que, como determinados cosméticos, embora tenham efeitos no corpo humano, não têm um efeito significativo no metabolismo e, portanto, não influenciam verdadeiramente as condições do seu funcionamento. No processo Comissão/Alemanha, o Tribunal declarou que uma classificação de um preparado vitamínico como medicamento que se baseie unicamente na dose diária recomendada de vitaminas que este contém, ou seja, numa dosagem que cobre potencialmente as necessidades dessas vitaminas em todos os indivíduos saudáveis num grupo populacional considerado, não preenche o requisito de que cada preparado vitamínico seja classificado em função das suas propriedades farmacológicas.


33 – Desenvolvido originalmente pelo Tribunal em relação com a classificação de produtos como medicamentos por função, o conceito de «efeito farmacológico», juntamente com os conceitos de efeito «imunológico» e «metabólico», foi, através da Directiva de alteração 2004/27/CE, interessado na definição de medicamento por função e, desse modo, foi elevado a critério expressamente previsto na lei.


34 – Conclusões do advogado‑geral A. Tesauro, de 16 de Janeiro de 1991, no processo Delattre (acórdão já referido na nota 17, n.° 9). Petit, Y., op. cit. (nota 12), p. 573, sustenta igualmente que esta definição está feita em termos tão latos que, literalmente, pode ser aplicada tanto a medicamentos como a géneros alimentícios ou a cosméticos.


35 – V. n.° 43.


36 – Conclusões do advogado‑geral A. Geelhoed, de 3 de Fevereiro de 2005, no processo HLH Warenvertrieb e Orthica (acórdão já referido na nota 4, n.° 35).


37 – Conclusões do advogado‑geral A. Tesauro, de 16 de Janeiro de 1991, no processo Delattre (acórdão já referido na nota 17, n.° 9), nas quais o advogado‑geral A. Tesauro defendeu que esta definição não deveria ser interpretada de maneira a abranger aqueles produtos que, de facto, são de natureza a influenciar as funções corporais, mas que, no essencial, têm um objectivo alimentar. Caso contrário, também, por exemplo, o sal utilizado pelos desportistas para prevenir ou tratar cãibras – por falta de um meio alternativo – deveria ser considerado um medicamento.


38 – A interpretação estrita tem como objecto o elemento constitutivo não escrito, desenvolvido pelo Tribunal, das «propriedades farmacológicas». Doepner, U.; Hüttebräuker, A. – op. cit. (nota 18), pp. 1201 a 1203, lamentam que, até ao momento, falte ao elemento desenvolvido pelo próprio Tribunal tanto uma determinação do conteúdo como uma precisão. Tal determinação do conteúdo ou do alcance do conceito teria de ser efectuada ou pelo Tribunal ou pelo legislador comunitário, uma vez que se trata de um critério de definição fundamental. Receiam que uma classificação indiferenciada de produtos ambivalentes (produtos na zona de fronteira entre os géneros alimentícios e os medicamentos) possa levar as autoridades nacionais, em geral, a incluí‑los na categoria de medicamento, o que não seria correcto em relação a numerosos produtos, além de que não é esse o sentido do direito comunitário quer em termos de política da saúde quer de política económica. A exigência, expressa pelos autores, de uma fixação do conceito de medicamento por função milita, deste modo, a favor de uma interpretação estrita da definição legal do artigo 1.°, ponto 2), segundo parágrafo, da Directiva 2001/83. Clement, C., op. cit. (nota 7), pp. 19 e 22, critica a falta de critérios de classificação mais seguros e a definição demasiado ampla de medicamento. Defende também uma interpretação estrita da jurisprudência.


39 – Seguindo a definição de Köhler, H., op. cit. (nota 25), p. 849.


40 – No mesmo sentido v., também, Köhler, H., op.cit. (nota 25), p. 850, que classifica como géneros alimentícios com propriedades terapêuticas produtos como chás de ervas e outras ervas medicinais, cenoura ralada destinada a eliminar parasitas dos intestinos ou alho para a prevenção da arteriosclerose. Considera absurdo proceder à classificação destes produtos como medicamentos recorrendo somente à sua função terapêutica.


41 – Breithaupt‑Grögler, K.; Ling, M.; Boudoulas, H.; Belz, G. – «Protective Effect of Chronic Garlic Intake on Elastic Properties of Aorta in the Elderly», Circulation, 1997, p. 2654; Koscielny, J.; Klüßendorf, D.; Latza, R.; Schmitt, R.; Radtke, H.; Siegel, G.; Kiesewetter, H. – «The antiatherosclerotic effect of Allium sativum», Atherosclerosis, 1999, p. 237.


42 – Deduz‑se dos autos que o produto em causa contém entre 0,95% e 1,05% de alicina em estado natural. É composto por hidratos de carbono, proteínas e gorduras, bem como oligoelementos e vitaminas que, segundo informações do Governo alemão, não são, só por si, subsumíveis no grupo dos preparados vitamínicos, dos preparados de sais minerais ou das outras substâncias com efeitos alimentares ou fisiológicos.


43 – Acórdãos de 29 de Abril de 2004, Comissão/Áustria (C‑150/00, Colect., p. I‑3887, n.° 65), Comissão/Alemanha (já referido na nota 31, n.° 57) e HLH Warenvertrieb e Orthica (já referido na nota 4, n.° 53), segundo os quais as autoridades nacionais competentes podem, além dos riscos para a saúde pública associados a um produto, ter em conta outras características.


44 – Acórdãos Van Bennekom (já referido na nota 5, n.° 40), e HLH Warenvertrieb e Orthica (já referido na nota 4, n.os 30 e 51).


45 – Acórdão de 12 de Março de 1987, Comissão/Alemanha (178/84, Colect., p. 1227, n.° 32).


46 – É igualmente desnecessário tomar posição em relação à «regra aplicável em caso de dúvida» introduzida no artigo 2.°, ponto 2), da Directiva 2001/83, pela Directiva de alteração 2004/27/CE de 31 de Março de 2004 (JO L 136, p. 34) ou seja, para casos em que um produto, considerando todas as suas propriedades, se enquadra simultaneamente na definição de medicamento e na de outro produto a que sejam aplicáveis outras disposições do direito comunitário, é aplicável a Directiva 2001/83. Klaus, B. – «Leitfaden zur Abgrenzung von Lebensmitteln und Arzneimitteln in der Rechtspraxis aller EU‑Mitgliedstaaten auf Grundlage der gemeinschaftsrechtlich harmonisierten Begriffsbestimmungen», Zeitschrift für das gesamte Lebensmittelrecht, 2004, livro 5, p. 574, refere que pode haver casos de dúvida na distinção entre medicamentos e outras categorias de produtos, inclusive géneros alimentícios, que não podem ser resolvidos adequadamente através da chamada «regra aplicável em caso de dúvida» prevista pelo artigo 2.°, ponto 2), da Directiva 2001/83. Existe o risco de, pela aplicação desta cláusula, se submeter prematuramente um produto ou uma substância ao regime dos medicamentos o que conduziria a resultados muito inadequados, sobretudo na distinção com os alimentos, pois, devido à amplitude da definição de medicamento, esta abrange em muitos casos, em termos teóricos, géneros alimentícios. Devido às imprecisões inerentes à «regra aplicável em caso de dúvida» as interpretações nacionais têm liberdade para, em última análise, decidir, sempre que haja dúvidas sobre a classificação. Segundo este autor, deveria ter sido seguida a tese inicial do Parlamento Europeu, que consistia em possibilitar a resolução da problemática da diferenciação através de uma formulação clara das definições legais.


47 – Acórdãos de 11 de Julho de 1974, Dassonville (8/74, Recueil, p. 837, n.° 5, Colect., p. 423), e de 20 de Fevereiro de 1979, Rewe‑Zentral, dito «Cassis de Dijon» (120/78, Colect., p. 327, n.° 14). A implementação e a preservação da livre circulação de mercadorias dentro da Comunidade exigem não só o desmantelamento das barreiras alfandegárias, como também a supressão de todas as outras restrições ao comércio. Por esta razão, os artigos 28.º CE e 29.° CE proíbem, além das restrições quantitativas, também as medidas de efeito equivalente. Constituem medidas de efeito equivalente «qualquer regulamentação comercial dos Estados‑Membros, susceptível de criar entraves, directa ou indirectamente, efectiva ou potencialmente ao comércio intra‑comunitário». De acordo com Oppermann, T. – Europarecht, 3.ª edição, Munique 2005, p. 416, esta fórmula ampla, conhecida por fórmula Dassonville, deixa claro que basta que a medida estatal seja susceptível de criar entraves ao comércio; não é necessário que as importações tenham realmente diminuído. Também não é necessária a intenção de restringir o comércio e, menos ainda, que a restrição seja perceptível.


48 – V., neste sentido, os acórdãos HLH Warenvertrieb e Orthica (já referidos na nota 4, n.° 42) e de 23 de Setembro de 2003, Comissão/Dinamarca, (C‑192/01, Colect., p. I‑9693, n.° 68). Ambas as decisões constituem a evolução de uma corrente jurisprudencial anterior, segundo a qual o recurso ao artigo 30.° CE fica excluído a priori quando a própria Comunidade já adoptou regulamentação de carácter definitivo, destinada à protecção dos bens jurídicos em causa, através, por exemplo, de uma directiva ou de um regulamento. V., a este respeito, por exemplo, acórdão de 5 de Outubro de 1977, Denkavit (5/77, Recueil, n.os 33 a 35, Colect., p. 555). Cadeau, E.; Richeux, J.‑Y., op. cit. (nota 8), p. 8, sustentam, igualmente, que, no âmbito do regime comunitário relativo aos medicamentos, só é possível invocar o artigo 30.° CE em caso de harmonização incompleta.


49 – Acórdão de 10 de Julho de 1984, Campus Oil (72/84, Recueil, p. 2727, n.° 37).


50 – Acórdão Comissão/Alemanha (já referido na nota 31, n.° 72).


51 – No acórdão Comissão/Alemanha (já referido na nota 31, n.os 74 a 76), o Tribunal veio expor, a propósito dos requisitos para a autorização de preparados de vitaminas enquanto medicamentos com base no artigo 4.° da Directiva 65/65, que correspondem, no essencial, aos previstos pelo artigo 8.° da Directiva 2001/83, que a emissão de uma autorização de colocação de medicamentos no mercado está sujeita a condições especialmente estritas. Para obter esta autorização, a pessoa responsável pela colocação no mercado deve juntar ao seu pedido de autorização documentos e informações sobre, designadamente, a composição qualitativa e quantitativa de todos os componentes do medicamento, o processo de produção (embora de modo sumário), as indicações terapêuticas, contra‑indicações e efeitos secundários, a posologia, a forma farmacêutica, o modo de administração e prazo de validade, os métodos de controlo aplicados pelo produtor e os resultados de testes físico-químicos, biológicos ou microbiológicos, farmacêuticos, toxicológicos e clínicos. Além disso, terá que fazer prova de que possui, no Estado de origem, uma autorização para o fabrico de medicamentos.


52 – V. n.° 65.


53 – Epiney, A. – Kommentar des Vertrages über die Europäische Union und des Vertrages zur Gründung der Europäischen Gemeinschaft (dirigido por Christian Calliess; Matthias Ruffert), Neuwied 1999, artigo 30.°, n.° 23; Cadeau, E.; Richeux, J.‑Y., op. cit. (nota 8), pp. 9 e 10, defendem, por isso, que um Estado‑Membro não pode invocar validamente a protecção da saúde pública enquanto justificação, quando o perigo em causa é simplesmente potencial e não real.


54 – V. acórdão de 14 de Julho de 1994, Van der Veldt (C‑17/93, Colect., p. I‑3537, n.° 17), segundo o qual a existência de um simples perigo para o consumidor é suficiente para considerar que as disposições restritivas nacionais sejam consideradas conformes com as exigências do artigo 30.° CE. Este risco, não pode, porém, ser aferido com base em considerações gerais; deve ter como base investigações científicas pertinentes.


55 – Estes requisitos são tidos em conta pela Directiva 2000/13/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Março de 2000, para a aproximação das legislações dos Estados‑Membros sobre a rotulagem e apresentação de géneros alimentícios, bem como sobre a publicidade dos mesmos (JO L 109, p. 29). Esta directiva, prevê, designadamente, a indicação de determinadas informações relativas aos produtos, tais como a lista dos ingredientes, a quantidade de determinados ingredientes ou categorias de ingredientes, assim como, em certas situações, indicações especiais relativas à conservação e consumo. De acordo com o considerando 8 desta directiva, uma rotulagem pormenorizada, que forneça elementos sobre a natureza exacta e as características do produto, que permite ao consumidor fazer uma escolha com pleno conhecimento, é a mais adequada na medida em que cria menos entraves ao comércio.