Language of document : ECLI:EU:C:2011:151

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

15 de Março de 2011 (*)

«Convenção de Roma sobre a lei aplicável às obrigações contratuais – Contrato de trabalho – Escolha das partes – Disposições imperativas da lei aplicável na falta de escolha – Determinação dessa lei – Conceito de país em que o trabalhador ‘presta habitualmente o seu trabalho’ – Trabalhador que presta trabalho em mais de um Estado Contratante»

No processo C‑29/10,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do Primeiro Protocolo, de 19 de Dezembro de 1988, relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, apresentado pela cour d’appel de Luxembourg (Luxemburgo), por decisão de 13 de Janeiro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 18 de Janeiro de 2010, no processo

Heiko Koelzsch

contra

Estado do Grão‑Ducado do Luxemburgo,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts e J.‑C. Bonichot, presidentes de secção, A. Borg Barthet, M. Ilešič, J. Malenovský, U. Lõhmus, P. Lindh e C. Toader (relator), juízes,

advogado‑geral: V. Trstenjak,

secretário: R. Şereş, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 26 de Outubro de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de H. Koelzsch, por P. Goergen, avocat,

–        em representação do Estado do Grão‑Ducado do Luxemburgo, por G. Neu e A. Corre, avocats,

–        em representação do Governo helénico, por T. Papadopoulou e K. Georgiadis, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por A.‑M. Rouchaud‑Joët e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 16 de Dezembro de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980 (JO 1980, L 266, p. 1; EE 01 F3 p. 36; a seguir «Convenção de Roma»), que respeita aos contratos individuais de trabalho.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de uma acção de indemnização intentada por H. Koelzsch contra o Estado do Grão‑Ducado do Luxemburgo e baseada numa alegada violação da referida disposição da Convenção de Roma pelas autoridades judiciárias deste Estado. Estas autoridades tinham sido chamadas a julgar uma acção de indemnização intentada pelo recorrente no processo principal contra a empresa de transporte internacional Ove Ostergaard Luxembourg SA, anteriormente Gasa Spedition Luxembourg (a seguir «Gasa»), com sede no Luxemburgo, com a qual tinha celebrado um contrato de trabalho.

 Quadro jurídico

 Regras relativas à lei aplicável às obrigações contratuais e à competência judiciária em matéria civil e comercial

 Convenção de Roma

3        O artigo 3.°, n.° 1, da Convenção de Roma estabelece:

«O contrato rege‑se pela lei escolhida pelas partes. Esta escolha deve ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa. Mediante esta escolha, as partes podem designar a lei aplicável à totalidade ou apenas a uma parte do contrato.»

4        O artigo 6.° da Convenção de Roma, sob a epígrafe «Contrato individual de trabalho», prevê:

«1.      Sem prejuízo do disposto no artigo 3.°, a escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato de trabalho não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que seria aplicável, na falta de escolha, por força do n.° 2 do presente artigo.

2.      Não obstante o disposto no artigo 4.° e na falta de escolha feita nos termos do artigo 3.°, o contrato de trabalho é regulado:

a)      Pela lei do país em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que tenha sido destacado temporariamente para outro país; ou

b)      Se o trabalhador não prestar habitualmente o seu trabalho no mesmo país, pela lei do país em que esteja situado o estabelecimento que contratou o trabalhador,

a não ser que resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com um outro país, sendo em tal caso aplicável a lei desse outro país.»

5        O Primeiro Protocolo relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980 (JO 1998, C 27, p. 47, a seguir «Primeiro Protocolo relativo à interpretação da Convenção de Roma»), estabelece, no seu artigo 2.°:

«Qualquer órgão jurisdicional abaixo referido pode solicitar ao Tribunal de Justiça que decida a título prejudicial sobre uma questão suscitada em processo pendente e que incida sobre a interpretação das disposições contidas nos instrumentos referidos no artigo 1.°, sempre que esse órgão jurisdicional considere que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa:

[…]

b)      Os órgãos jurisdicionais dos Estados Contratantes sempre que decidam em recurso.»

 Regulamento (CE) n.° 593/2008

6        O Regulamento (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO L 177, p. 6), substituiu a Convenção de Roma. Este regulamento aplica‑se aos contratos celebrados a partir de 17 de Dezembro de 2009.

7        O artigo 8.° do Regulamento n.° 593/2008, sob a epígrafe «Contratos individuais de trabalho», estabelece:

«1.      O contrato individual de trabalho é regulado pela lei escolhida pelas partes nos termos do artigo 3.° Esta escolha da lei não pode, porém, ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável nos termos dos n.os 2, 3 e 4 do presente artigo.

2.      Se a lei aplicável ao contrato individual de trabalho não tiver sido escolhida pelas partes, o contrato é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato. Não se considera que o país onde o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho mude quando o trabalhador estiver temporariamente empregado noutro país.

3.      Se não for possível determinar a lei aplicável nos termos do n.° 2, o contrato é regulado pela lei do país onde se situa o estabelecimento que contratou o trabalhador.

4.      Se resultar do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um país diferente do indicado nos n.os 2 ou 3, é aplicável a lei desse outro país.»

 Convenção de Bruxelas

8        A Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), conforme alterada pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia (JO 1997, C 15, p. 1, a seguir «Convenção de Bruxelas»), dispõe, no seu artigo 5.°:

«O requerido com domicílio no território de um Estado Contratante pode ser demandado num outro Estado Contratante:

1)      em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deva ser cumprida; em matéria de contrato individual de trabalho, esse lugar é o lugar onde o trabalhador efectua habitualmente o seu trabalho e, se o trabalhador não efectuar habitualmente o seu trabalho no mesmo país, a entidade patronal pode igualmente ser demandada perante o tribunal do lugar onde se situa ou se situava o estabelecimento que contratou o trabalhador;

[...]»

 Regulamento (CE) n.° 44/2001

9        O Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), substituiu a Convenção de Bruxelas.

10      O artigo 19.° do Regulamento n.° 44/2001 dispõe:

«Uma entidade patronal que tenha domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada:

1)      Perante os tribunais do Estado‑Membro em cujo território tiver domicílio; ou 

2)      Noutro Estado‑Membro

a)      Perante o tribunal do lugar onde o trabalhador efectua habitualmente o seu trabalho ou perante o tribunal do lugar onde efectuou mais recentemente o seu trabalho; ou

b)       Se o trabalhador não efectua ou não efectuou habitualmente o seu trabalho no mesmo país, perante o tribunal do lugar onde se situa ou se situava o estabelecimento que contratou o trabalhador.»

 Direitos nacionais

11      A Lei luxemburguesa de 18 de Maio de 1979 relativa à reforma das delegações do pessoal (Mémorial A 1979, n.° 45, p. 948) prevê, no seu artigo 34.°, n.° 1:

«Durante o seu mandato, os membros titulares e suplentes das diferentes delegações do pessoal não podem ser despedidos; o despedimento notificado pelo empregador a um delegado do pessoal deve ser considerado nulo e de nenhum efeito.»

12      A Lei alemã relativa à protecção contra o despedimento (Kündigungsschutzgesetz) estabelece, no seu artigo 15.°, n.° 1:

«O despedimento de um membro da comissão de trabalhadores […] é ilícito, excepto se determinadas circunstâncias permitirem à entidade patronal proceder ao despedimento por razões graves, sem observar um prazo de aviso prévio, e se a autorização exigida nos termos do § 103 da Lei relativa à organização das empresas (Betriebsverfassungsgesetz) tiver sido concedida ou substituída por uma decisão judicial. Uma vez expirado o mandato, o despedimento de um membro da comissão de trabalhadores, de um delegado é ilícito […], excepto se determinadas circunstâncias permitirem à entidade patronal proceder ao despedimento por razões graves, sem observar um prazo de aviso prévio; estas disposições não se aplicam quando a cessação da qualidade de membro se baseie numa decisão judicial.

Após o final do mandato, o despedimento é proibido durante um ano.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

13      Por contrato de trabalho assinado no Luxemburgo em 16 de Outubro de 1998, H. Koelzsch, motorista de pesados, com domicílio em Osnabrück (Alemanha), foi contratado como motorista internacional pela Gasa. Este contrato contém uma cláusula que remete para a Lei luxemburguesa de 24 de Maio de 1989 relativa ao contrato de trabalho (Mémorial A, 1989, n.° 35, p. 612), bem como uma cláusula atributiva de competência exclusiva aos órgãos jurisdicionais deste Estado.

14      A Gasa é uma filial da sociedade de direito dinamarquês Gasa Odense Blomster amba. O seu objecto consiste no transporte de flores e outras plantas, a partir de Odense (Dinamarca), para destinos, na sua maioria, na Alemanha, mas também noutros países europeus, em camiões estacionados na Alemanha, designadamente, em Kassel, Neukirchen/Vluyn e Osnabrück. Neste último Estado‑Membro, a Gasa não dispõe de sede social nem escritórios. Os camiões estão registados no Luxemburgo e os motoristas estão inscritos na segurança social luxemburguesa.

15      Na sequência do anúncio da reestruturação da Gasa e da redução da actividade dos meios de transporte com partida da Alemanha, os trabalhadores desta empresa criaram, em 13 de Janeiro de 2001, neste Estado, uma delegação do pessoal («Betriebsrat»), da qual H. Koelzsch foi eleito membro suplente, em 5 de Março de 2001.

16      Por carta de 13 de Março de 2001, o director da Gasa resolveu o contrato de trabalho de H. Koelzsch, com efeitos a 15 de Maio de 2001.

 Acção de declaração da ilicitude do despedimento e acção de indemnização contra a Gasa

17      O recorrente começou por impugnar a decisão de despedimento na Alemanha, no Arbeitsgericht Osnabrück, que, por decisão de 4 de Julho de 2001, se declarou incompetente ratione loci. H. Koelzsch interpôs então recurso desta decisão para o Landesarbeitsgericht Osnabrück, mas foi negado provimento ao recurso.

18      Em seguida, por petição de 24 de Julho de 2002, H. Koelzsch demandou a Ove Ostergaard Luxembourg SA, que sucedeu à Gasa, no tribunal du travail de Luxembourg, com vista a obter a condenação daquela no pagamento tanto de uma indemnização por despedimento ilícito como de uma indemnização compensatória correspondente ao período de aviso prévio e a retribuições em dívida. Defendeu que, não obstante a escolha do direito luxemburguês como lex contractus, as disposições imperativas do direito alemão que protegem os membros da delegação do pessoal («Betriebsrat») são aplicáveis ao litígio, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Convenção de Roma, uma vez que o direito alemão seria a lei do contrato, na falta de escolha pelas partes. Assim, o seu despedimento é irregular, uma vez que o artigo 15.° da lei alemã relativa à protecção contra o despedimento proíbe o despedimento dos membros do referido «Betriebsrat» e, segundo a jurisprudência do Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal Federal do Trabalho), essa proibição alarga‑se aos membros suplentes.

19      No seu acórdão de 4 de Março de 2004, o tribunal du travail de Luxembourg considerou que o litígio estava sujeito unicamente ao direito luxemburguês e, por conseguinte, aplicou, designadamente, a Lei de 18 de Maio de 1979 relativa à reforma das delegações do pessoal.

20      Esta decisão foi confirmada quanto ao mérito pelo acórdão da cour d’appel de Luxembourg de 26 de Maio de 2005, a qual considerou ainda que o pedido de H. Koelzsch de aplicação da referida lei alemã à totalidade das suas pretensões era novo e, como tal, inadmissível. A Cour de cassation de Luxembourg negou igualmente provimento ao recurso interposto desta decisão, por acórdão de 15 de Junho de 2006.

 Acção de indemnização contra o Estado por violação da Convenção de Roma pelas autoridades judiciárias

21      Uma vez que este primeiro processo perante os órgãos jurisdicionais luxemburgueses ficou definitivamente encerrado, H. Koelzsch intentou, em 1 de Março de 2007, uma acção de indemnização contra o Estado do Grão‑Ducado do Luxemburgo, com base no artigo 1.°, n.° 1, da Lei de 1 de Setembro de 1988 relativa à responsabilidade civil do Estado e das colectividades públicas (Mémorial A 1988, n.° 51, p. 1000), invocando o funcionamento defeituoso dos serviços judiciários deste último.

22      H. Koelzsch defendeu, designadamente, que as referidas decisões judiciais tinham violado o artigo 6.°, n.os 1 e 2, da Convenção de Roma, quando declararam não aplicáveis ao seu contrato de trabalho as disposições imperativas da lei alemã relativa à protecção contra o despedimento e indeferiram o seu pedido de submissão ao Tribunal de Justiça de uma questão prejudicial para clarificação, à luz dos factos do caso concreto, do critério do local da prestação habitual do trabalho.

23      Por sentença de 9 de Novembro de 2007, o tribunal d’arrondissement de Luxembourg (Luxemburgo) julgou a acção admissível, mas improcedente. No que respeita, em especial, à questão da determinação da lei aplicável, este tribunal observou que os órgãos jurisdicionais que se pronunciaram sobre o litígio entre H. Koelzsch e o seu empregador consideraram, acertadamente, que as partes no contrato de trabalho tinham designado a lei luxemburguesa como lei aplicável, pelo que o artigo 6.°, n.° 2, da Convenção de Roma não devia ser tido em conta. Além disso, observou que as instituições representativas do pessoal se regem pelas disposições imperativas do país da sede do empregador.

24      Em 17 de Junho de 2008, H. Koelzsch recorreu desta decisão para o órgão jurisdicional de reenvio.

25      A cour d’appel de Luxembourg considerou que a crítica do recorrente sobre a interpretação do artigo 6.°, n.° 1, da Convenção de Roma pelos órgãos jurisdicionais luxemburgueses não é desprovida de pertinência, pois estes não determinaram a lei aplicável na falta de escolha pelas partes, com base nesta disposição.

26      Observa que, se o direito luxemburguês for considerado a lei aplicável ao contrato na falta de escolha pelas partes, não é necessário comparar esta lei com as disposições da lei alemã invocada pelo recorrente para determinar qual a mais favorável ao trabalhador, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, da Convenção de Roma. Pelo contrário, se esta última lei for considerada a lei aplicável na falta de escolha pelas partes, a natureza imperativa das regras estabelecidas pelo direito luxemburguês em matéria de despedimento não deve impedir a aplicação do direito alemão relativo à protecção especial dos membros da delegação do pessoal contra o despedimento.

27      A este respeito, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os elementos de conexão previstos no artigo 6.°, n.° 2, da Convenção de Roma, designadamente o do país da prestação habitual do trabalho, não permitem, ao contrário da solução seguida pelo tribunal d’arrondissement de Luxembourg na sua sentença, afastar na totalidade a lei alemã enquanto lex contractus.

28      O órgão jurisdicional de reenvio considera que uma preocupação de coerência leva a interpretar o conceito de «lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho», que figura no artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Convenção de Roma, à luz do disposto no artigo 5.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas e tendo em conta a formulação utilizada no artigo 19.° do Regulamento n.° 44/2001 e no artigo 8.° do Regulamento n.° 593/2008, que fazem referência não apenas ao país da prestação do trabalho mas igualmente àquele a partir do qual o trabalhador exerce as suas actividades.

29      Tendo em consideração o exposto, a cour d’appel de Luxembourg decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A norma de conflitos definida [no artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da] Convenção de Roma […] [, que] dispõe que o contrato de trabalho é regulado pela lei do país em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, deve ser interpretada no sentido de que, no caso de o trabalhador realizar a sua prestação de trabalho em vários países, mas regressar sistematicamente a um deles, este país deve ser considerado aquele em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho?»

 Quanto à questão prejudicial

30      Uma vez que a questão foi submetida por um tribunal de recurso, o Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre o pedido de decisão prejudicial, ao abrigo do Primeiro Protocolo relativo à interpretação da Convenção de Roma, que entrou em vigor em 1 de Agosto de 2004.

31      Para responder à questão submetida, há que interpretar a regra prevista no artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Convenção de Roma, designadamente o critério do país em que o trabalhador «presta habitualmente o seu trabalho».

32      A este respeito, há que observar, como sublinhou acertadamente a Comissão Europeia, que este critério deve ser interpretado de forma autónoma, no sentido de que o conteúdo e o alcance desta regra de reenvio não podem ser determinados com base na lei do foro, antes devendo ser estabelecidos segundo critérios uniformes e autónomos para garantir à Convenção de Roma a sua plena eficácia, na perspectiva dos objectivos que prossegue (v., por analogia, acórdão de 13 de Julho de 1993, Mulox IBC, C‑125/92, Colect., p. I‑4075, n.os 10 e 16).

33      Além disso, essa interpretação não deve abstrair da dos critérios previstos no artigo 5.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas, quando estes fixam as regras de determinação da competência judiciária para as mesmas matérias e estabelecem conceitos semelhantes. Com efeito, decorre do preâmbulo da Convenção de Roma que esta foi celebrada com o objectivo de prosseguir, no domínio do direito internacional privado, a obra de unificação jurídica iniciada pela adopção da Convenção de Bruxelas (v. acórdão de 6 de Outubro de 2009, ICF, C‑133/08, Colect., p. I‑9687, n.° 22).

34      Quanto ao conteúdo do artigo 6.° da Convenção de Roma, recorde‑se que fixa normas de conflitos especiais em matéria de contrato individual de trabalho. Estas normas derrogam as normas de natureza geral previstas nos artigos 3.° e 4.° desta Convenção, relativos, respectivamente, à liberdade de escolha da lei aplicável e aos critérios de determinação desta na falta de escolha.

35      O artigo 6.°, n.° 1, da referida Convenção limita a liberdade de escolha da lei aplicável. Prevê que as partes no contrato não podem, por acordo, excluir a aplicação das disposições imperativas da lei que seria aplicável na falta dessa escolha.

36      O artigo 6.°, n.° 2, da mesma Convenção estabelece elementos de conexão específicos, que são o país em que o trabalhador «presta habitualmente o seu trabalho» [alínea a)], ou, na falta desse lugar, o da sede do «estabelecimento que contratou o trabalhador» [alínea b)]. Além disso, esse número prevê que estes dois elementos de conexão não são aplicáveis quando resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com outro país, sendo em tal caso aplicável a lei desse outro país.

37      Na decisão de reenvio, a cour d’appel de Luxembourg pretende saber, no essencial, qual dos dois primeiros critérios é aplicável ao contrato de trabalho em causa no processo principal.

38      Segundo o Estado do Grão‑Ducado do Luxemburgo, resulta da letra do artigo 6.° da Convenção de Roma que a hipótese referida na questão prejudicial, que diz respeito ao trabalho no sector dos transportes, é aquela a que se refere o critério enunciado no n.° 2, alínea b), deste artigo 6.° Admitir a aplicação a esse contrato do elemento de conexão previsto no n.° 2, alínea a), do dito artigo 6.° equivaleria a esvaziar de sentido o disposto no referido n.° 2, alínea b), que refere precisamente o caso em que o trabalhador não presta habitualmente o seu trabalho num mesmo país.

39      Pelo contrário, segundo o recorrente no processo principal, o Governo helénico e a Comissão, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 5.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas que a interpretação sistemática do critério do lugar onde o trabalhador «presta habitualmente o seu trabalho» permite a aplicação desta regra também nas hipóteses em que a prestação de trabalho tem lugar em vários Estados‑Membros. Em particular, sustentam que, para efeitos da determinação concreta desse lugar, o Tribunal de Justiça fez referência ao lugar a partir do qual o trabalhador cumpre o essencial das suas obrigações para com a entidade empregadora (acórdão Mulox IBC, já referido, n.os 21 a 23), ou ao lugar em que estabeleceu o centro efectivo das suas actividades profissionais (acórdão de 9 de Janeiro de 1997, Rutten, C‑383/95, Colect., p. I‑57, n.° 23), ou, na falta de um escritório, ao lugar onde o trabalhador presta a maior parte do seu trabalho (acórdão de 27 de Fevereiro de 2002, Weber, C‑37/00, Colect., p. I‑2013, n.° 42).

40      A este propósito, resulta do relatório relativo à Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, dos professores Giuliano e Lagarde (JO 1980, C 282, p. 1), que o artigo 6.° desta foi concebido para «fornecer uma regulamentação mais adequada nas matérias em que os interesses de um dos contraentes não se colocam no mesmo plano que os do outro e assegurar [deste modo] uma protecção adequada à parte a considerar, do ponto vista sócio‑económico, a mais fraca na relação contratual».

41      O Tribunal de Justiça inspirou‑se igualmente nestes princípios para a interpretação das regras de competência relativas a estes contratos, fixadas pela Convenção de Bruxelas. Com efeito, o Tribunal decidiu que, numa hipótese onde, como no processo principal, o trabalhador desenvolve as suas actividades profissionais, em mais de um Estado contratante, importa ter em devida conta a preocupação de assegurar uma protecção adequada ao trabalhador enquanto parte contratual mais fraca (v., neste sentido, acórdãos Rutten, já referido, n.° 22, e de 10 de Abril de 2003, Pugliese, C‑437/00, Colect., p. I‑3573, n.° 18).

42      Daqui decorre que, na medida em que o objectivo do artigo 6.° da Convenção de Roma é assegurar uma protecção adequada do trabalhador, esta disposição deve ser lida no sentido de que garante a aplicabilidade da lei do Estado onde aquele exerce as suas actividades profissionais, e não a do Estado da sede do empregador. Com efeito, é no primeiro Estado que o trabalhador exerce a sua função económica e social e, como sublinhou a advogada‑geral no n.° 50 das suas conclusões, que o ambiente profissional e político influencia a actividade de trabalho. Assim, o respeito pelas regras de protecção laboral previstas no direito desse país deve ser garantido na medida do possível.

43      Assim, tendo em conta o objectivo prosseguido pelo artigo 6.° da Convenção de Roma, verifica‑se que o critério do país em que o trabalhador «presta habitualmente o seu trabalho», consagrado no seu n.° 2, alínea a), deve ser interpretado de forma lata, ao passo que o critério da sede do «estabelecimento que contratou o trabalhador», previsto no n.° 2, alínea b), do mesmo artigo, deverá aplicar‑se quando o juiz do foro não estiver em condições de determinar o país da prestação habitual do trabalho.

44      Decorre do exposto que o critério constante do artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Convenção de Roma é aplicável também na hipótese, como a que está em causa no processo principal, em que o trabalhador exerce as suas actividades em mais de um Estado contratante, desde que seja possível ao órgão jurisdicional do foro determinar o Estado com o qual o trabalho apresenta uma conexão significativa.

45      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, referida no n.° 39 do presente acórdão, que continua a ser pertinente para a análise do artigo 6.°, n.° 2, da Convenção de Roma, quando as prestações de trabalho são desenvolvidas em mais de um Estado‑Membro, o critério do país da prestação habitual do trabalho deve ser objecto de interpretação lata e entendido no sentido de que faz referência ao lugar a partir do qual o trabalhador exerce efectivamente as suas actividades e, na falta de centro de negócios, ao lugar onde este exerce a maior parte das suas actividades.

46      De resto, esta interpretação conjuga‑se igualmente com a letra da nova disposição em sede de regras de conflitos relativas ao contrato individual de trabalho, introduzida pelo Regulamento n.° 593/2008, que não é aplicável no caso concreto, ratione temporis. Com efeito, segundo o artigo 8.° deste regulamento, na falta de escolha pelas partes, o contrato individual de trabalho é regulado pela lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato ou, na sua falta, a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em execução do contrato. Essa lei continua a ser aplicável mesmo que o trabalhador realize temporariamente prestações noutro Estado. Além disso, como indicado no vigésimo terceiro considerando deste regulamento, a interpretação desta disposição deve inspirar‑se nos princípios do favor laboratoris, pois as partes mais fracas no contrato devem ser protegidas «através de normas de conflitos de leis que sejam mais favoráveis».

47      Decorre do exposto que o órgão jurisdicional de reenvio deve interpretar de forma lata o elemento de conexão consagrado no artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Convenção de Roma, para determinar se o recorrente no processo principal prestou habitualmente o seu trabalho num dos Estados contratantes e para determinar qual deles.

48      Para este fim, considerando a natureza do trabalho no sector do transporte internacional, como o que está em causa no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio, como sugeriu a advogada‑geral nos n.os 93 a 96 das conclusões, deve ter em conta todos os elementos que caracterizam a actividade do trabalhador.

49      Deve igualmente determinar em que Estado se situa o lugar a partir do qual o trabalhador efectua as suas missões de transporte, recebe instruções sobre as mesmas e organiza o seu trabalho, bem como o lugar em que se encontram as ferramentas de trabalho. Deve também verificar quais os locais onde o transporte é habitualmente efectuado, os locais de descarga da mercadoria bem como o lugar aonde o trabalhador regressa após as suas missões.

50      Nestas condições, há que responder à questão submetida que o artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Convenção de Roma deve ser interpretado no sentido de que, na hipótese em que o trabalhador exerce as suas actividades em mais de um Estado contratante, o país em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, na acepção desta disposição, é aquele onde ou a partir do qual, tendo em conta todos os elementos que caracterizam a referida actividade, o trabalhador cumpre o essencial das suas obrigações para com o seu empregador.

 Quanto às despesas

51      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 6.°, n.° 2, alínea a), da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980, deve ser interpretado no sentido de que, na hipótese em que o trabalhador exerce as suas actividades em mais de um Estado contratante, o país em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, na acepção desta disposição, é aquele onde ou a partir do qual, tendo em conta todos os elementos que caracterizam a referida actividade, o trabalhador cumpre o essencial das suas obrigações para com o seu empregador.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.