Language of document : ECLI:EU:C:2013:474

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 11 de julho de 2013 (1)

Processos apensos C‑199/12 a C‑201/12

X, Y e Z

contra

Minister voor Immigratie, Integratie en Asiel

«Diretiva 2004/83/CE — Condições a preencher por nacionais de um país terceiro ou apátridas que peçam o estatuto de refugiado — Conceito de ‘perseguição’ — Orientação sexual»





1.        Os presentes pedidos de decisão prejudicial do Raad van State (Países Baixos) dizem respeito a três recorrentes que são nacionais de um país terceiro e que pretendem obter o estatuto de refugiado. Cada um deles alega um receio fundado de perseguição em virtude da sua orientação sexual.

2.        O órgão jurisdicional nacional coloca três questões relacionadas com a análise dos pedidos de concessão do estatuto de refugiado ao abrigo do capítulo III da Diretiva 2004/83/CE do Conselho (a seguir «diretiva») (2). Em primeiro lugar, os nacionais de países terceiros com uma orientação homossexual constituem um grupo social específico na aceção do artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva? Em segundo lugar, como deverão as autoridades nacionais determinar o que constitui um ato de perseguição devido a práticas homossexuais para efeitos do artigo 9.° da diretiva? Em terceiro lugar, a criminalização de tais práticas no país de origem do requerente e a ameaça de pena de prisão em caso de condenação constituem um ato de perseguição na aceção da diretiva?

 Quadro jurídico

 Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados

3.        Nos termos do primeiro parágrafo do n.° 2 do ponto A do artigo 1.°, da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (a seguir «Convenção de Genebra») (3), o termo «refugiado» é aplicável a qualquer pessoa que, «[...] receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar».

 Direito da União Europeia

 Carta dos Direitos Fundamentais

4.        O artigo 7.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») (4) determina que: «[t]odas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações». O artigo 21.° da Carta proíbe a discriminação em razão, designadamente, da orientação sexual. O artigo 52.°, n.° 3, da Carta determina que estes direitos devem ser interpretados em conformidade com os direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH») (5).

 Diretiva

5.        A diretiva é uma das várias medidas destinadas a estabelecer um Sistema Comum Europeu de Asilo (6). Este sistema é baseado na aplicação da Convenção de Genebra que constitui a pedra angular do regime jurídico internacional relativo à proteção dos refugiados (7). A diretiva pretende estabelecer as normas mínimas e os critérios comuns a todos os Estados‑Membros para o reconhecimento dos refugiados e o conteúdo do estatuto de refugiado (8), a identificação das pessoas que tenham efetivamente necessidade de proteção internacional (9) e um processo de asilo justo e eficiente. Deste modo, a diretiva respeita os direitos, as liberdades e os princípios reconhecidos pela Carta (10). O considerando 21 do preâmbulo da diretiva declara o seguinte: «É igualmente necessário introduzir um conceito comum do motivo de perseguição que constitui a ‘filiação em certo grupo social’.»

6.        Nos termos do artigo 2.°, alínea c), da diretiva: entende‑se por «[r]efugiado», o nacional de um país terceiro que, receando com razão ser perseguido em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social, se encontre fora do país de que é nacional e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção desse país, ou o apátrida que, estando fora do país em que tinha a sua residência habitual, pelas mesmas razões que as acima mencionadas, não possa ou, em virtude do referido receio, a ele não queira voltar, e aos quais não se aplique o artigo 12.°».

7.        Os Estados‑Membros podem aprovar normas mais favoráveis relativas à determinação das pessoas que preenchem as condições para beneficiar do estatuto de refugiado, desde que essas normas sejam compatíveis com a diretiva (11). O artigo 4.° define as regras que regem a apreciação do pedido de concessão de proteção internacional (12). O artigo 4.°, n.° 3, da diretiva determina que a apreciação do pedido de proteção internacional deve ser efetuada a título individual. O artigo 6.° contém uma enumeração exemplificativa de ‘agentes da perseguição’, incluindo o Estado e agentes não estatais.

8.        O artigo 9.°, n.° 1, da diretiva determina o seguinte:

«Os atos de perseguição, na aceção do ponto A do artigo 1.° da Convenção de Genebra, devem:

a)       Ser suficientemente graves, devido à sua natureza ou persistência, para constituírem grave violação dos direitos humanos fundamentais, em especial os direitos que não podem ser derrogados, nos termos do n.° 2 do artigo 15.° [CEDH]; ou

b)       Constituir um cúmulo de várias medidas, incluindo violações dos direitos humanos, suficientemente graves para afetar o indivíduo de forma semelhante à referida na alínea a)» (13).

9.        O artigo 9.°, n.° 2, estabelece o seguinte:

«Os atos de perseguição, qualificados no n.° 1, podem designadamente assumir as seguintes formas:

[…]

c)       Ações judiciais ou sanções desproporcionadas ou discriminatórias;

[...]»

10.      O artigo 9.°, n.° 3, determina o seguinte: «Nos termos da alínea c) do artigo 2.°, tem de haver um nexo entre os motivos a que se refere o artigo 10.° e os atos de perseguição qualificados no n.° 1.»

11.      O artigo 10.° tem a epígrafe «Motivos da perseguição». O artigo 10.°, n.° 1, alínea d), determina o seguinte:

«Um grupo é considerado um grupo social específico nos casos concretos em que:

—       os membros desse grupo partilham de uma característica inata ou de uma história comum que não pode ser alterada, ou partilham de uma característica ou crença considerada tão fundamental para a identidade ou consciência dos membros do grupo que não se pode exigir que a ela renunciem, e

—       esse grupo tem uma identidade distinta no país em questão, porque é encarado como diferente pela sociedade que o rodeia.

Dependendo das circunstâncias no país de origem, um grupo social específico poderá incluir um grupo baseado numa característica comum de orientação sexual. A orientação sexual não pode ser entendida como incluindo atos considerados criminosos segundo o direito nacional dos Estados‑Membros. Poderão ser tidos em consideração os aspetos relacionados com o género, embora este por si só não deva criar uma presunção para a aplicabilidade do presente artigo.»

 Direito nacional

12.      A Vreemdelingenwet 2000 (lei dos estrangeiros, a seguir «Vw 2000») confere poderes ao Ministro competente (a seguir «Ministro») (14) para aceitar, recusar ou não ter em consideração um pedido de concessão de autorização de residência por um período fixo (estatuto de refugiado). Pode ser concedida uma autorização de residência por um período fixo a um estrangeiro que seja um refugiado na aceção da Convenção de Genebra.

13.      A Vreemdelingencirculaire 2000 (Circular sobre a implementação da lei dos estrangeiros, a seguir «Circular»), contém as orientações estabelecidas pelo Ministro para implementar a Vw 2000. A Circular declara que, de acordo com a política e a jurisprudência vigentes, a perseguição em virtude da pertença a um grupo social na aceção do ponto A do artigo 1.° da Convenção de Genebra também inclui a perseguição em virtude da orientação social. Um pedido de concessão do estatuto de refugiado baseado nesse motivo deve ser apreciado dando particular atenção à situação do requerente no seu país de origem. Se a homossexualidade ou a expressão da orientação sexual estiverem sujeitas a sanções criminais no país de origem do requerente, a pena aplicável deve ser de uma certa gravidade. Uma simples multa será, na maioria dos casos, insuficiente para se concluir que o estatuto de refugiado deve ser automaticamente concedido. A criminalização da homossexualidade ou das práticas homossexuais no país de origem do requerente não leva a concluir que o estatuto de refugiado deva ser automaticamente concedido. O requerente deve demonstrar de uma forma plausível que tem um motivo justificado, pessoal, para recear a sua perseguição. Não é exigido aos requerentes com uma orientação homossexual que escondam a sua orientação sexual quando regressarem ao seu país de origem.

 Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

14.      A identidade dos recorrentes no processo principal não foi divulgada e os mesmos são designados por X, Y e Z. X é nacional da Serra Leoa, Y é do Uganda e Z é do Senegal.

15.      As práticas homossexuais são crimes na Serra Leoa, nos termos do artigo 61.º da Lei sobre ofensas contra as pessoas, de 1861, e estão sujeitas a uma pena de prisão de 10 anos, no mínimo, e perpétua, no máximo. No Uganda, ao abrigo do artigo 145.°, do Código Penal de 1950, quem seja condenado por um crime descrito como «conhecimento carnal contrário à ordem da natureza» está sujeito a pena de prisão. A pena máxima é a prisão perpétua. As autoridades senegalesas criminalizam práticas homossexuais. Nos termos do n.º 3 do artigo 319.°, do Code Pénale (Código Penal), uma pessoa condenada por ter praticado certos atos homossexuais deve ser condenada a pena de prisão de um a cinco anos e a uma multa entre XOF (15) 100 000 e XOF 1 500 000 (cerca de 150 euros a 2 000 euros).

16.      Em todos os três casos, o Ministro indeferiu os pedidos iniciais de concessão de autorização de residência (estatuto de refugiado) nos termos da Vw 2000. Cada requerente interpôs então recurso destas decisões. X e Z interpuseram recurso para o Rechtbank. Y requereu medidas cautelares. Os requerimentos de X e Y, respetivamente, obtiveram provimento. Foi negado provimento ao recurso de Z para o Rechtbank.

17.      O Ministro interpôs subsequentemente recurso nos processos de X e Y para o Raad van State. Z também interpôs recurso para o mesmo órgão jurisdicional.

18.      Em todos os três casos, a orientação sexual dos recorrentes não é contestada (16).

19.      Por conseguinte, o Raad van State submete as seguintes questões ao Tribunal de Justiça para decisão prejudicial:

«1)       Os estrangeiros com uma orientação homossexual constituem um grupo social específico na aceção do artigo 10.°, n.° 1 e alínea d), da [diretiva]?

2)       Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: quais são as práticas homossexuais abrangidas pelo âmbito de aplicação da diretiva? A existência de atos de perseguição relativos a estas práticas pode, se forem satisfeitos os demais requisitos, levar à concessão do estatuto de refugiado? Esta questão também contém as seguintes subquestões:

a)       Pode esperar‑se dos estrangeiros com uma orientação homossexual que, no país de origem, ocultem a sua orientação das outras pessoas, a fim de evitarem a perseguição?

b)       Em caso de resposta negativa à questão 2.a), pode esperar‑se dos estrangeiros com uma orientação homossexual que demonstrem contenção no exercício dessa orientação no país de origem, a fim de evitarem a perseguição, e, em caso afirmativo, em que medida? Pode esperar‑se dos homossexuais uma maior contenção a esse respeito do que dos heterossexuais?

c)       Se, neste contexto, puder distinguir‑se entre as formas de expressão que se referem e as que não se referem ao núcleo essencial da orientação, o que se deverá entender por núcleo essencial da orientação, e de que modo poderá este ser definido?

3)       A simples criminalização das práticas homossexuais e a ameaça com pena de prisão por estas práticas, conforme previsto na [Lei dos Crimes contra a Pessoa de 1861 da Serra Leoa, no Código Penal do Uganda e no Code Pénale do Senegal], constituem um ato de perseguição, na aceção do artigo 9.°, n.° 1, alínea a), lido em conjugação com o artigo 9.°, n.° 2, alínea c), da diretiva? Em caso de resposta negativa, em que circunstâncias é preenchido este conceito?»

20.      X, Y e Z, o ACNUR, os Governos alemão, grego, francês, neerlandês e do Reino Unido bem como a Comissão apresentaram observações escritas e todos (com exceção do Reino Unido) se fizeram representar na audiência de 11 de abril de 2013.

 Apreciação

 Observações prévias

21.      Existe uma certa sobreposição das questões do órgão jurisdicional nacional. Na interpretação dos artigos 9.° e 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva, dever‑se‑ão ter em conta os seguintes princípios.

22.      Em primeiro lugar, é jurisprudência assente que a interpretação das disposições da diretiva deve ser feita à luz da sua economia geral e da sua finalidade, no respeito da Convenção de Genebra e dos outros tratados pertinentes referidos na sua base jurídica (artigo 78.°, n.° 1, TFUE) (17). Essa interpretação deve igualmente ser feita, como decorre do considerando 10 do preâmbulo da diretiva, no respeito dos direitos reconhecidos pela Carta (18).

23.      Em segundo lugar, a Convenção de Genebra fornece o contexto e, por conseguinte, indica a finalidade e a economia geral da diretiva, a qual a refere frequentemente. Consequentemente, o Tribunal de Justiça, na medida em que lhe é pedido que forneça uma interpretação dos artigos 9.° e 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva, deve, ao fazê‑lo, reportar‑se à Convenção de Genebra (19).

24.      Em terceiro lugar, nem a Convenção de Genebra nem a CEDH contêm alguma referência expressa a um direito de expressão da orientação sexual. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa à orientação sexual desenvolveu‑se no contexto da análise de violações ao artigo 8.° CEDH (direito à vida privada e familiar) e da proibição da discriminação do artigo 14.° CEDH (20). Assim, é necessário analisar as questões submetidas pelo órgão jurisdicional nacional à luz dos princípios desenvolvidos pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. (21)

25.      Em quarto lugar, a este respeito, a Convenção de Genebra, tal como a CEDH, não é imutável. É um instrumento vivo que deve ser interpretado à luz das condições da presente data e dos desenvolvimentos no direito internacional (22). A jurisprudência da Comissão Europeia dos Direitos do Homem relativa ao tratamento discriminatório de relações homossexuais e heterossexuais no que respeita à idade mínima para o consentimento revela esta evolução da abordagem ao interpretar a CEDH. Com efeito, anteriormente a 1997, a Comissão considerava que a fixação de uma idade mínima mais elevada para o consentimento para as relações homossexuais era compatível com a CEDH (23). No processo Sutherland c. Reino Unido, a Comissão reviu a sua jurisprudência assente e afastou‑se da mesma ao declarar que a manutenção de uma idade mínima mais elevada para o consentimento de práticas homossexuais era discriminatória e violava o direito do recorrente ao respeito pela sua vida privada à luz da evolução atual (24).

26.      Por último, parece‑me que no âmago das questões do órgão jurisdicional nacional está a determinação de critérios comuns que devem ser aplicados para identificar as pessoas que necessitam genuinamente de proteção internacional e que pedem a concessão do estatuto de refugiado ao abrigo da diretiva com fundamento na sua homossexualidade. A segunda questão suscita problemas que poderão ser antes descritos como matéria de política legislativa e não tanto questões relacionadas com a interpretação dada pela lei. Por conseguinte, começarei por analisar a primeira e terceira questões que suscitam problemas mais simples relativos à interpretação da redação da diretiva, antes de me debruçar sobre a segunda questão.

 Primeira questão

27.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional pretende saber se os requerentes do estatuto de refugiado com uma orientação sexual podem constituir um grupo social específico para efeitos do artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva.

28.      Todos os que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça (com exceção do Reino Unido que não abordou esta questão) concordam que a resposta a esta questão deve ser afirmativa.

29.      Também concordo com este ponto de vista.

30.      No processo principal relativo a Z, a prova feita no órgão jurisdicional nacional de primeira instância (o Rechtbank) não convenceu este último de que no Senegal as pessoas com uma orientação homossexual eram, regra geral, prosseguidas ou discriminadas; e, por conseguinte, o Rechtbank considerou que o requerente não fazia parte de um grupo social específico na aceção do artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva (25).

31.      O artigo 10.° contém dois números. O n.° 1 ordena aos Estados‑Membros que tenham em conta determinados elementos ao apreciarem os motivos da perseguição. O artigo 10.°, n.° 1, alínea d) define, neste contexto, o que deve ser considerado um grupo social específico. O n.° 2 trata então de como apreciar se um determinado requerente tem um receio de perseguição fundado. Por conseguinte, o requerente não precisa de provar que é objeto de perseguição ou discriminação no seu país de origem (26) (elementos que fazem parte do artigo 10.°, n.° 2) para provar que faz parte de um grupo social específico [ou seja, que é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 10.°, n.° 1, alínea d)].

32.      Os homossexuais masculinos podem ser «membros de um grupo social específico» na aceção do artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva?

33.      Contrariamente à Convenção de Genebra, que faz apenas referência à «filiação num grupo social específico», o termo «orientação sexual» é utilizado na diretiva, mas não é definido. Pode ser que o legislador da UE tenha feito referência expressa à filiação num grupo social em virtude da orientação sexual, no artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva, porque, na data em que a Comissão apresentou a sua proposta, estava a ser reconhecido que as pessoas podem ser obrigadas a fugir à perseguição e a procurar proteção internacional por este motivo (27), apesar de tal motivo não estar expressamente incluído na Convenção de Genebra (28).

34.      O artigo 10.°, n.° 1, alínea d), começa por referir que «um grupo é considerado um grupo social específico nos casos concretos em que […]»; e estas palavras são imediatamente seguidas de dois travessões (o primeiro, contendo três opções separadas pela palavra «ou»). Os travessões estão ligados pela palavra «e», indicando que contêm requisitos que devem ser preenchidos cumulativamente. Contudo, o texto continua então (expressamente) declarando que «dependendo das circunstâncias no país de origem, um grupo social específico poderá incluir um grupo baseado numa característica comum de orientação sexual […]».

35.      Tendo este texto em conta e conciliando‑o com os dois travessões imediatamente precedentes, parece‑me que o legislador da UE deu a indicação mais clara possível de que as pessoas que partilham das mesmas características de orientação sexual podem, efetivamente, ser filiadas num grupo social específico para efeitos do artigo 10.°, n.° 1, alínea d). Preenchem o primeiro travessão (diria que, em qualquer caso, porque estão incluídos no âmbito da terceira opção: de que «partilham de uma característica [...] considerada tão fundamental para a identidade [...] que não se pode exigir que a ela renuncie»). Consoante as circunstâncias no país de origem, também poderão preencher o segundo travessão (que «esse grupo tem uma identidade distinta no país em questão, porque é encarado como diferente pela sociedade que o rodeia»). A questão de saber se preenchem ou não o segundo travessão requer uma apreciação das normas jurídicas e dos costumes sociais e culturais no país de origem do requerente. Esta é uma questão que as autoridades nacionais competentes devem apreciar com base nos factos, sob controlo do órgão jurisdicional nacional.

36.      Por conseguinte, considero que se deve responder à primeira questão que os requerentes do estatuto de refugiado com uma orientação homossexual podem, consoante as circunstâncias no seu país de origem, constituir um grupo social específico na aceção do artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2004/83/CE. Compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se este grupo tem uma «identidade distinta» no país de origem de cada requerente, «porque é encarado como diferente pela sociedade que o rodeia», para efeitos do segundo travessão da referida disposição.

 Terceira questão

37.      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se a criminalização das práticas homossexuais e a ameaça com pena de prisão, em caso de condenação, constituem um ato de perseguição na aceção do artigo 9.° da diretiva.

38.      Chegou‑se a determinadas conclusões nos processos nacionais relativos aos três requerentes. Em relação a X, a homossexualidade per se não é criminalizada na Serra Leoa; mas certas práticas homossexuais estão sujeitas a sanções criminais. Quanto a Y, a homossexualidade, em si mesma, é criminalizada no Uganda (29). Quanto a Z, a homossexualidade enquanto tal não parece ser criminalizada no Senegal, mas certas práticas homossexuais estão sujeitas a sanções criminais (30).

39.      Tendo em conta que é pacífico que os três requerentes são homossexuais, não fiz distinção nestas conclusões entre a situação no Uganda (onde se concluiu que a homossexualidade é criminalizada per se) e na Serra Leoa ou no Senegal (onde certas práticas homossexuais estão sujeitas a sanções criminais) (31).

40.      X, Y e Z alegam que o artigo 9.° da diretiva deve ser interpretado no sentido de que a criminalização de práticas homossexuais em si mesma é um ato de perseguição. Há um grau de unanimidade a favor da opinião contrária entre a Comissão, os governos dos Estados‑Membros que apresentaram observações e o ACNUR.

41.      Na União Europeia, tem havido uma mudança de abordagem no sentido de que a legislação que criminaliza e sanciona as práticas homossexuais, em privado, consentidas, entre adultos passou a ser considerada contrária à CEDH (32). Por conseguinte, é claro que estas medidas constituiriam, hoje em dia, em todos os Estados‑Membros, uma violação dos direitos fundamentais das pessoas, quer fossem aplicadas ativamente ou não. No entanto, o objetivo da diretiva não é conceder proteção sempre que uma pessoa não consegue exercer total e efetivamente as suas liberdades garantidas pela Carta ou pela CEDH no seu país de origem. Por outras palavras: o objetivo não é exportar estes padrões (33), mas antes restringir o reconhecimento do estatuto de refugiado às pessoas que possam estar expostas à rejeição grave ou à violação sistémica dos seus mais elementares direitos e cuja vida se tornou intolerável no seu país de origem.

42.      Aquilo que seria uma violação de um direito fundamental na UE constitui necessariamente um ato de perseguição na aceção do artigo 9.°, n.° 1, da diretiva?

43.      O artigo 9.°, n.° 1, determina que «[o]s atos de perseguição, na aceção do ponto A do artigo 1.° da Convenção de Genebra, devem: a) [s]er suficientemente graves, devido à sua natureza ou persistência, para constituírem grave violação dos direitos humanos fundamentais […] ou b) [c]onstituir um cúmulo de várias medidas, incluindo violações dos direitos humanos, suficientemente graves para afetar o indivíduo de forma semelhante à referida na alínea a)». Resulta das referências nele feitas a «suficientemente graves», «violação grave» e «cúmulo [...] suficientemente [grave]» que nem todas as violações dos direitos humanos (por muito repugnante que tal possa efetivamente ser) serão consideradas como um «ato de perseguição» para efeitos do artigo 9.° Com efeito, a lista exemplificativa de atos de perseguição constante do artigo 9.°, n.° 2, faz expressamente uma referência cruzada ao padrão estabelecido no artigo 9.°, n.° 1, na medida em que determina que «os atos de perseguição qualificados no n.° 1» (34) podem designadamente assumir as formas subsequentemente referidas nas alíneas a) a f). O artigo 9.°, n.° 3, prossegue esclarecendo que deve haver uma ligação entre os motivos da perseguição (artigo 10.°) e os atos de perseguição conforme definidos no artigo 9.°, n.° 1.

44.      Surge uma dificuldade em termos conceptuais na medida em que se a Carta protege uma liberdade fundamental, qualquer ação judicial ou sanção aplicada a uma pessoa por a exercer seria, na UE, por definição, «desproporcionada». Por conseguinte, considero que a referência feita no artigo 9.°, n.° 2, alínea c) — a menção na lista não exaustiva de atos de perseguição que parece mais relevante no presente caso — a «ações judiciais ou sanções desproporcionadas ou discriminatórias» deve corresponder a «ações judiciais ou sanções graves ou discriminatórias».

45.      Parece‑me que, ao determinar se — com este fundamento — os atos que proíbem a expressão da orientação sexual são de tal ordem que constituem «atos de perseguição» na aceção do artigo 9.°, n.° 1, as autoridades nacionais devem ter em conta, em particular: i) a prova da aplicação de disposições criminais no país de origem do requerente, tais como se as autoridades acusam realmente as pessoas e as processam; ii) se as sanções criminais são implementadas e, em caso afirmativo, qual a gravidade destas sanções, na prática; e iii) informações relativas às práticas e aos costumes da sociedade em geral no país de origem (35).

46.      O critério que deve ser aplicado na apreciação de um requerimento do estatuto de refugiado é o de saber se alguma circunstância ou algum cúmulo de circunstâncias indicia que aquele requerente tem um receio fundado de que os seus direitos humanos básicos podem vir a ser‑lhe recusados se regressar ao seu país de origem (36).

47.      As sanções criminais que conduzem a um longo período de prisão pela expressão de uma orientação homossexual podem constituir uma violação do artigo 3.° CEDH (proibição de tratamentos e penas desumanos ou degradantes) e seriam, portanto, suficientemente graves para constituir uma violação grave dos direitos humanos fundamentais para efeitos do artigo 9.°, n.° 1, da diretiva.

48.      Em meu entender, nesta perspetiva, é claro (mesmo na ausência de informações detalhadas sobre as características dos crimes imputados aos requerentes nos processos principais e as sanções específicas habitualmente aplicadas a tais crimes) que, em termos gerais, as sanções aplicadas na Serra Leoa, no Uganda e no Senegal são suscetíveis de constituir sanções «desproporcionadas» na aceção do artigo 9.°, n.° 2, alínea c), da diretiva. É verdade que as sanções legais pelo exercício de certas práticas homossexuais no Senegal não são tão draconianas com as da Serra Leoa ou do Uganda. Antes de concluir que, por esse motivo, o limiar de um ato de perseguição ao abrigo do artigo 9.°, n.° 1, da diretiva não foi ultrapassado, o órgão jurisdicional nacional deve ter em conta o risco de uma ação judicial única ou repetida e a pena aplicada caso a ação judicial seja procedente.

49.      Em termos gerais, compete, assim, às autoridades nacionais, tendo analisado se um determinado requerente, em virtude da sua orientação homossexual, deve ser considerado um membro de um grupo social específico na aceção do artigo 10.°, n.° 1, alínea d), prosseguir com a análise sobre se as circunstâncias no seu país de origem são de tal ordem que deem azo a atos de perseguição na aceção do artigo 9.°, n.° 1. Para esse efeito, devem apreciar se as medidas repressivas são aplicáveis aos que são, ou se pensa que são, membros do referido grupo social (37); se tais medidas são implementadas e a gravidade das sanções aplicadas; e se — consequentemente — o requerente tem um receio fundado de perseguição. A determinação destas questões por parte das autoridades nacionais deve, obviamente, ser revista pelos órgãos jurisdicionais nacionais a fim de garantir a aplicação correta dos critérios estabelecidos na diretiva.

50.      Por conseguinte, em meu entender, deve responder‑se à terceira questão prejudicial que a criminalização de uma prática não constitui, em si mesma, um ato de perseguição para efeitos do artigo 9.°, n.° 1, da diretiva. Pelo contrário, compete às autoridades nacionais competentes apreciar, à luz das circunstâncias do país de origem do requerente relativas, em particular: i) ao risco e à frequência da perseguição; ii) em caso de ação judicial procedente, à gravidade da sanção normalmente aplicada; e iii) a quaisquer outras medidas e práticas sociais às quais o requerente pode recear, razoavelmente, ser sujeito, se um determinado requerente é suscetível de ser sujeito a atos que são suficientemente graves por natureza ou pela sua repetição para constituir uma violação grave dos direitos humanos, ou a um cúmulo de várias medidas, incluindo violações dos direitos humanos que sejam suficientemente graves para, do mesmo modo, afetarem o requerente.

 Segunda questão

51.      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se caso se deva considerar que um requerente homossexual pertence a um grupo social específico para efeitos do artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva, há algumas práticas homossexuais abrangidas pelo âmbito de aplicação da diretiva e que podem levar à concessão do estatuto de refugiado.

52.      O órgão jurisdicional nacional coloca então uma série de subquestões (38) relativas aos critérios comuns aplicáveis à determinação de quem pode ser considerado refugiado. Em primeiro lugar, pretende saber em que medida a expressão em público ou em privado da orientação homossexual é protegida pelo artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva? Em segundo lugar, deve esperar‑se que um requerente esconda a sua orientação sexual a fim de evitar a perseguição no seu país de origem? Em terceiro lugar, pode esperar‑se que demonstre contenção ao expressar a sua orientação homossexual e, em caso afirmativo, em que medida? Em quarto lugar, o que deve então considerar‑se que constitui o núcleo essencial de uma orientação sexual? Por último, o direito da UE em termos gerais ou a diretiva em particular proíbem que se distinga entre a proteção a que os estrangeiros têm direito, consoante a sua orientação sexual seja homossexual ou heterossexual?

53.      Antes de analisar estas subquestões, são necessárias algumas observações preliminares.

54.      Em primeiro lugar, aqui, o órgão jurisdicional nacional pretende saber como deve conduzir a análise detalhada exigida pelos artigos 9.° e 10.° da diretiva. O artigo 10.°, n.° 1, alínea d, estabelece um limite expresso ao que pode constituir um grupo social baseado numa característica comum de orientação sexual, na medida em que determina claramente que «a orientação sexual não pode ser entendida como incluindo atos considerados criminosos segundo o direito nacional dos Estados‑Membros». Assim, por exemplo, uma orientação sexual que implica que o requerente realize obrigatoriamente uma mutilação genital à sua parceira sexual feminina para a tornar «digna» de ter relações sexuais com ele não seria abrangida pela proteção nos termos do artigo 10.°, n.° 1, alínea d). O artigo 9.° contém uma definição [artigo 9.°, n.° 1, alíneas a) e b)] seguida de uma lista não exaustiva (artigo 9.°, n.° 2) e um requisito de que tem de haver um nexo entre os motivos e os atos de perseguição (artigo 9.°, n.° 3), mas não define o que pode constituir um ato de perseguição.

55.      Em segundo lugar, não é claro precisamente como é que as subquestões colocadas estão relacionadas com as questões suscitadas nos processos principais. Pelo contrário, o órgão jurisdicional nacional parece estar a solicitar conselhos sobre como a diretiva poderá ser aplicada em termos gerais. Tal está fora do alcance do Tribunal de Justiça no processo de decisão prejudicial (39).

56.      Em terceiro lugar, num nível mais pragmático, o órgão jurisdicional nacional explica que as autoridades dos Países Baixos consideram que as práticas homossexuais merecem a mesma proteção das atividades heterossexuais. No entanto, não considero que as práticas do requerente devam ser o ponto fulcral da análise. Os artigos 9.° e 10.° não dizem essencialmente respeito à conduta da pessoa que pede o estatuto de refugiado. Pelo contrário, visam eventuais atos de perseguição e os motivos para os mesmos, ou seja, a conduta ativa de eventuais atores de perseguição e não tanto a conduta comportamental do dia a dia da possível vítima.

57.      Em quarto lugar, para esta apreciação é, naturalmente, necessário ter em conta quaisquer restrições aplicáveis ao requerente antes de o mesmo ter abandonado o seu país de origem. No entanto, também é relevante analisar as provas disponíveis a fim de avaliar se o requerente pode sofrer atos de perseguição se regressar. Assim, a questão que se coloca é a de saber se o requerente tem um receio fundado de vir a sofrer uma violação grave dos seus direitos humanos fundamentais. Não se pode responder a esta questão olhando exclusivamente para atos que ocorreram antes de o requerente ter abandonado o seu país de origem.

58.      Em quinto lugar, a premissa por detrás das questões do órgão jurisdicional nacional parece ser a de que os requerentes homossexuais do estatuto de refugiado que invoquem o artigo 10.°, n.° 1, alínea d), podem ter a opção (e talvez até a responsabilidade) de se comportarem nos seus respetivos países de origem de forma a reduzirem o risco de atos de perseguição em virtude da sua orientação sexual. Rejeito esta premissa, porque contraria o seu direito ao respeito pela sua identidade sexual.

59.      É face a estas considerações que analisarei as várias subquestões colocadas pelo órgão jurisdicional nacional.

60.      Em relação à primeira subquestão, existe uma distinção, para efeitos da diretiva, entre a expressão da orientação homossexual do requerente em privado ou em público?

61.      O texto da diretiva não faz essa distinção. Por conseguinte, parece‑me que uma distinção desse tipo não é relevante para determinar se existe um ato de perseguição na aceção do artigo 9.°, n.° 1, da diretiva. Pelo contrário, as questões pertinentes são as de saber se o requerente, em virtude da sua orientação sexual, é membro de um grupo social para efeitos do artigo 10.°, n.° 1, alínea d) e se existe um nexo conforme é exigido pelo artigo 9.°, n.° 3, entre aquele «motivo de perseguição» e um ato ou atos de perseguição ao abrigo do artigo 9.°, n.° 1.

62.      Em seguida, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se se deve esperar dos requerentes do estatuto de refugiado que ocultem a sua orientação homossexual ou demonstrem contenção no exercício dessa orientação no seu país de origem. Não resulta claro do pedido de decisão prejudicial se esta questão pode influenciar a forma como as autoridades nacionais competentes trataram estes requerimentos de asilo em particular. É possível que o órgão jurisdicional nacional pretenda saber se a Circular, na medida em que determina que a ocultação não é um critério a ter em conta, reflete apenas as normas da diretiva ou se representa a aplicação por parte de um Estado‑Membro de critérios mais favoráveis, conforme é permitido pelo artigo 3.° (40). Uma vez que estas questões são suscitadas em termos abstratos, não constituem matéria à qual o Tribunal de Justiça deva responder. Não obstante, por uma questão de rigor, irei analisá‑las sumariamente.

63.      Não considero que se deva esperar do requerente do estatuto de refugiado que oculte a sua orientação sexual para evitar a perseguição no seu país de origem.

64.      Tal ponto de vista não é sustentado nem pela redação nem pela economia da diretiva. Com efeito, seria paradoxal interpretar a diretiva neste sentido. Tal significaria que se o requerente (a vítima) não conseguisse ocultar a sua orientação sexual, considerar‑se‑ia que estaria de certa forma num dilema, como ator de perseguição, o que é incompatível com a forma como o artigo 6.° da diretiva está enquadrado. Com efeito, a exigência de que os requerentes devem ocultar a sua orientação sexual pode ser considerada como constituindo um ato de perseguição em si mesmo.

65.      Deve esperar‑se que os requerentes homossexuais do estatuto de refugiado regressem a casa e demonstrem contenção no seu país de origem?

66.      Penso que não.

67.      Em primeiro lugar, não compreendo como é que, de um ponto de vista conceptual, tal requisito seria compatível com a economia da diretiva (ou, mesmo, da Convenção de Genebra). A diretiva estabelece requisitos mínimos a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado (artigo 1.°). A fim de analisar se um determinado requerente preenche essas condições mínimas, o Estado‑Membro analisa os factos e as circunstâncias (artigo 4.°) para determinar se o requerente foi ou pode ser sujeito a atos de perseguição ou sofrer ofensa grave (conforme definido no artigo 9.°) por determinados motivos específicos de perseguição (conforme definido no artigo 10.°). Se um requerente tiver tal receio de perseguição fundado, tem direito a que lhe seja concedido o estatuto de refugiado. Em lado algum se encontra, nesta sistemática, algum indício que sustente a tese de que a necessidade de conceder o estatuto de refugiado poderia ser evitada se o requerente «deixasse de provocar» os atores da perseguição, sendo ele mesmo.

68.      Em segundo lugar, é verdade que alguém que requeira o asilo em virtude da sua orientação homossexual não pode esperar ter direito a viver no seu país da mesma forma do que poderia viver nos Países Baixos (41). Posto isto, parece‑me que a determinação da medida de «contenção» que a) seria exigida para manter o requerente em segurança quando regressasse a casa ao mesmo tempo que b) ainda fosse compatível com a preservação do direito fundamental cuja recusa justifica a concessão do estatuto de refugiado, é um processo que seria inerentemente subjetivo e que seria suscetível de produzir resultados arbitrários em vez de certeza jurídica. O próprio órgão jurisdicional nacional declara no seu pedido de decisão prejudicial que o Ministro é incapaz de determinar antecipadamente o grau de contenção que pode ser esperado. Em si mesma, tal afirmação dá‑me a entender que esta abordagem seria impraticável.

69.      Em terceiro lugar, dizer que tudo ficará bem se o requerente tiver um comportamento discreto no seu regresso a casa é ignorar a realidade. A discrição não é uma proteção segura contra a descoberta e a consequente chantagem ou exposição a perseguição.

70.      Neste sentido, não é necessário responder à subquestão (o que é que constitui o «núcleo essencial» de uma orientação sexual). No entanto, por uma questão de rigor, acrescentarei as seguintes observações.

71.      Em meu entender, a expressão «núcleo essencial» provém do acórdão Y e Z, no qual o Tribunal de Justiça analisou se os direitos fundamentais dos requerentes eram violados pelas restrições impostas ao exercício do direito à liberdade religiosa. Não estou convencida de que esta expressão possa ser transposta para o contexto da expressão da orientação sexual. Parece‑me que ou se tem uma orientação sexual, ou não (42). Não há nenhum «núcleo» nem nenhum «centro» a ser tido em conta enquanto tal. Assim, tenho dificuldade em aceitar que seja possível identificar uma área nuclear da expressão da orientação sexual. Nem acredito que tal seja uma via que o Tribunal de Justiça deva seguir.

72.      No entanto, em termos mais gerais, considero que o raciocínio do Tribunal de Justiça no acórdão Y e Z seja aqui aplicável por analogia (43). Não há, na redação dos artigos 9.° e 10.° da diretiva, nenhuma base para uma abordagem da «área nuclear». O artigo 9.° diz respeito aos direitos inalienáveis da CEDH; e este deve ser o ponto de referência para apreciar os atos de perseguição. Não há nada que sugira que deva ser feita uma distinção entre os diversos tipos de expressão ou até de modos de expressão que não sejam práticas sexuais ou atos de afeto. Por definição, uma abordagem baseada nessa premissa é suscetível de conduzir à arbitrariedade.

73.      A última subquestão é a de saber se o direito da UE em geral ou a diretiva em particular exclui que se estabeleça uma distinção no que diz respeito à proteção a que os estrangeiros têm direito, consoante a sua orientação sexual seja homossexual ou heterossexual.

74.      Como é que os pedidos do estatuto de refugiado devem ser apreciados nos casos em que os alegados atos de perseguição são aplicados tanto a homossexuais como a heterossexuais?

75.      Suponhamos que, num determinado país terceiro, qualquer exibição pública de afeto entre duas pessoas (tal como dar as mãos ou beijar‑se) é proibida e que, nos termos da lei, a sanção para quem seja condenado por esse crime pode variar (consoante as circunstâncias) entre pagar uma multa e ser flagelado. A disposição legislativa que criminaliza e pune tal conduta está concebida para se aplicar a heterossexuais e homossexuais, na mesma medida. Suponhamos que uma pessoa com uma orientação homossexual foge desse país e entra num Estado‑Membro da UE, onde pede asilo. Não seria imediatamente evidente que esse requerente é objeto de perseguição apenas em virtude da sua orientação sexual. No entanto, se ele pudesse demonstrar que, na prática, a medida só era regularmente aplicada ou só era acompanhada das sanções mais graves se estivessem implicados homossexuais (e que, na prática, os heterossexuais podiam geralmente andar na rua de mãos dadas ou beijar‑se em público impunemente, ou que só recebiam sistematicamente multas muito diminutas), poderia mais facilmente provar que fazia parte de um grupo social específico para efeitos do artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva. Seria então necessário analisar se as ações judiciais e as sanções tipicamente aplicadas a um homossexual em caso de condenação consubstanciam um ato de perseguição na aceção do artigo 9.°, n.° 1, da diretiva (no meu exemplo e em meu entender, a resposta seria afirmativa).

76.      Retirando as ilações das minhas respostas às várias subquestões colocadas pelo órgão jurisdicional nacional, considero que se deve responder à segunda questão prejudicial que ao analisar se a criminalização da expressão da homossexualidade como uma expressão da orientação sexual é um ato de perseguição na aceção do artigo 9.°, n.° 1, da diretiva, as autoridades competentes do Estado‑Membro devem ter em consideração se o requerente é suscetível de ser sujeito a atos ou a um cúmulo de várias medidas que sejam suficientemente graves, pela sua natureza ou pela sua repetição para constituírem uma violação grave dos direitos humanos fundamentais.

 Conclusão

77.      Em face do exposto, considero que o Tribunal de Justiça deve responder às questões submetidas pelo Raad van State do seguinte modo:

«1)       Os requerentes do estatuto de refugiado com uma orientação homossexual podem, consoante as circunstâncias no seu país de origem, constituir um grupo social específico na aceção do artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida. Compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se este grupo tem uma «identidade distinta» no país de origem de cada requerente, «porque é encarado como diferente pela sociedade que o rodeia», para efeitos do segundo travessão da referida disposição.

2)       A criminalização de práticas homossexuais não constitui, em si mesma, um ato de perseguição para efeitos do artigo 9.°, n.° 1, da diretiva. Pelo contrário, compete às autoridades nacionais competentes apreciar, à luz das circunstâncias do país de origem do requerente relativas, em particular:

—       ao risco e à frequência da perseguição,

—       em caso de ação judicial procedente, à gravidade da sanção normalmente aplicada, e

—       a quaisquer outras medidas e práticas sociais às quais o requerente pode recear, razoavelmente, ser sujeito,

se um determinado requerente é suscetível de ser sujeito a atos que são suficientemente graves por natureza ou pela sua repetição para constituir uma violação grave dos direitos humanos, ou a um cúmulo de várias medidas, incluindo violações dos direitos humanos que sejam suficientemente graves para, do mesmo modo, afetarem o requerente.

3)       Ao analisar se a criminalização da expressão da homossexualidade como uma expressão da orientação sexual é um ato de perseguição na aceção do artigo 9.°, n.° 1, da diretiva, as autoridades competentes do Estado‑Membro devem ter em consideração se o requerente é suscetível de ser sujeito a atos ou a um cúmulo de várias medidas que sejam suficientemente graves, pela sua natureza ou pela sua repetição para constituírem uma violação grave dos direitos humanos fundamentais.»


1 —      Língua original: inglês.


2 —      Diretiva de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (JO L 304, p. 12).


3 —      Assinada em Genebra em 28 de julho de 1951 [United Nations Treaty Series, Vol. 189, p. 150, n.° 2545 (1954)] e entrou em vigor em 22 de abril de 1954. Foi complementada e alterada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque em 31 de janeiro de 1967 que entrou em vigor em 4 de outubro de 1967. Referir‑me‑ei aos dois instrumentos em conjunto como «Convenção de Genebra».


4 —      JO 2010, C 83, p. 389.


5 —      Os artigos 8.° e 14.° CEDH, respetivamente, estabelecem direitos correspondentes. O artigo 8.° protege o direito ao respeito pela vida privada e familiar das pessoas. O artigo 14.° garante que os direitos e liberdades estabelecidos na CEDH devem ser garantidos sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação.


6 —      V. considerandos 1 e 2 do seu preâmbulo e artigo 1.° da diretiva.


7 —      V. considerando 3 do preâmbulo da diretiva. V., também, considerando 15 segundo o qual a realização de consultas junto do ACNUR pode fornecer orientações úteis destinadas aos Estados‑Membros para determinar o estatuto de refugiado em conformidade com o artigo 1.° da Convenção de Genebra.


8 —      V. considerando 4 do preâmbulo da diretiva.


9 —      V. considerandos 6, 16 e 17 do preâmbulo da diretiva.


10 —      V. considerando 10 do preâmbulo da diretiva.


11 —      V. artigo 3.° da diretiva.


12 —      Existem atualmente três processos pendentes no Tribunal de Justiça, os processos apensos C‑148/13 a C‑150/13, A, B e C, relativos à interpretação do artigo 4.° da diretiva e aos critérios comuns de apreciação da credibilidade da orientação sexual declarada por um requerente.


13 —      Os direitos irrevogáveis nos termos do artigo 15.°, n.° 2, CEDH são o direito à vida (artigo 2.°), as proibições da tortura, da escravidão e dos trabalhos forçados (respetivamente, artigos 3.° e 4.°) e o direito a não ser condenado sem um necessário processo prévio legal (artigo 7.°).


14 —      Na data em que os pedidos foram apresentados, o Ministro competente era o «Minister voor Immigratie en Asiel». A sua designação mudou entretanto para «Minister voor Immigratie, Integratie en Asiel».


15 —      Franco CFA da África Ocidental (BCEAO).


16 —      O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (a seguir «ACNUR»), nas suas observações, defendeu uma interpretação ampla do termo orientação sexual. Assim, o ACNUR incluiu lésbicas, homossexuais, bissexuais, transsexuais e intersexuais no âmbito das suas observações; e utilizou o acrónimo «LGBTI» para conferir um significado mais amplo à expressão «orientação sexual». Contudo, uma vez que os processos principais dizem respeito a três homossexuais masculinos requerentes do estatuto de refugiado, mantive esta descrição nas presentes conclusões.


17 —      V. processos apensos de 5 de setembro de 2012, Y e Z (C‑71/11 e C‑99/11, n.° 48 e jurisprudência neles referida).


18 —      Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Abed El Karem El Kott e o. (C‑364/11, n.os 42 e 43 e jurisprudência referida).


19 —      V. n.° 32 das minhas conclusões no processo Abed El Karem El Kott e o., já referido na nota 18.


20 —      TEDH, acórdão Dudgeon e Reino Unido de 22 de outubro de 1981, §§ 60 a 62, série A, n.° 45, relativo ao direito à vida privada, e X e o. c. Áustria [GC] de 19 de fevereiro de 2013, Recueil des arrêts et décisions 2013, n.° 19010/07, §° 95, relativo ao direito à vida familiar.


21 —      Alguns instrumentos regionais garantem o direito à não discriminação, tal como a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos. No entanto, tal como a Convenção de Genebra e a CEDH, não preveem a garantia expressa do direito à expressão da orientação sexual. V. relatório publicado pela Amnistia Internacional «Making Love a Crime — Criminalisation of Same‑Sex Conduct in Sub‑Saharan Africa» em 21 de junho de 2013: www.amnesty.org/en/library/into/AFRO1/001/2013/en.


22 —      V. TEDH, acórdão Mamatkulov e Askarov c. Turquia [GC] de 4 de fevereiro de 2005, Recueil des arrêts et décisions, 2005‑1, n.os 46827/99 e 46951/99, §° 121, relativo à CEDH em termos gerais. V. n.os 5 a 7 das orientações sobre a proteção internacional, n.° 9, de 23 de outubro de 2012, disponíveis em www.unhcr.org/509136ca9.html (a seguir «orientações do ACNUR»), relativas à Convenção de Genebra.


23 —      X. e República Federal da Alemanha, n.° 5935/72, decisão da Comissão de 30 de setembro de 1975, §.° 2, e Johnson e Reino Unido, n.° 10389/83, decisão da Comissão de 17 de julho de 1986.


24 —      N.° 25186/94, decisão da Comissão de 1 de julho de 1997, §§ 58 a 66.


25 —      Esta conclusão do Rechtbank é mencionada no pedido de decisão prejudicial do Raad van State. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio não indicou se partilha da opinião do Rechtbank. Em meu entender, o Raad van State fez referência à conclusão do Rechtbank para explicar as suas próprias razões para solicitar uma orientação na interpretação do artigo 10.°, n.° 1, alínea d), da diretiva. Por conseguinte, na minha análise, tive em conta a conclusão do Rechtbank.


26 —      O Rechtbank pode ter sido induzido em erro pelo facto de o segundo parágrafo da alínea d) do n.° 1 do artigo 10.° fazer referência a um grupo com uma identidade distinta porque é «encarado como diferente pela sociedade que o rodeia». No entanto, ser «encarado como diferente» é, em si mesmo, uma realidade neutra. Ser perseguido ou objeto de discriminação, claramente, não o é.


27 —      V. COM(2001) 510 final, em especial, n.° 3.


28 —      As Orientações do ACNUR fazem atualmente referência aos princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e à Identidade de Género, adotados em 2007. No quarto parágrafo do preâmbulo dos princípios de Yogyakarta, define‑se «orientação sexual» como «a capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de género diferente, do mesmo género ou de mais de um género, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas».


29 —      Nos processos de X e de Y, estas conclusões na primeira instância (a que chegaram respetivamente o Rechtbank e o juiz perante o qual foi apresentado o requerimento de medidas provisórias) são mencionadas no pedido de decisão prejudicial do Raad van State. Contudo, o órgão jurisdicional de reenvio não mencionou se partilha da mesma opinião dos órgãos jurisdicionais de primeira instância. Em meu entender, o Raad van State fez referência a estas conclusões para explicar as suas próprias razões para solicitar uma orientação na interpretação do artigo 9.°, n.° 1, da diretiva. Por conseguinte, tive‑as em conta na minha análise.


30 —      V. n.° 15, supra.


31 —      Parece‑me que as autoridades dos Países Baixos adotam uma posição semelhante na Circular: v. n.° 13, supra.


32 —      Para além do acórdão Dudgeon, já referido na nota 19, os casos mais conhecidos são Norris e Irlanda de 26 de outubro de 1988, série A, n.° 142, e Modinos e Chipre de 22 de abril de 1993, série A, n.° 259. A legislação nacional em causa no processo Modinos foi revogada há relativamente pouco tempo (1997). V., também, jurisprudência da Comissão Europeia dos Direitos do Homem relativa à discriminação e à idade para o consentimento de práticas homossexuais e heterossexuais mencionada no n.° 25 e nas notas 23 e 24.


33 —      TEDH, acórdão F. c. Reino Unido de 22 de junho de 2004, n.° 17341/03, §° 3, e I. I. N. c. Países Baixos de 9 de dezembro de 2004, n.° 2035/04. Esta exportação poderia efetivamente ser considerada uma forma de imperialismo humanitário ou cultural.


34 —      O sublinhado é meu.


35 —      Assim, por exemplo, se a expressão da intimidade sexual em público entre adultos heterossexuais é desencorajada e punida pela legislação criminal, a simples aplicação das mesmas regras a adultos homossexuais não constitui nenhum ato de perseguição. A situação seria diferente, contudo, se a legislação nunca fosse implementada contra heterossexuais mas fosse ativamente implementada contra homossexuais. V., também, n.° 75, infra.


36 —      V. processo Y e Z, já referido na nota 16 (n.os 53 e 54).


37 —      V. artigos 9.°, n.° 3 e 10.°, n.° 2.


38 —      Reordenei estas subquestões a fim de separar as várias questões colocadas pelo órgão jurisdicional nacional.


39 —      Acórdão de 16 de dezembro de 1981, Foglia (244/80, Recueil, p. 3045, n.os 18 a 20).


40 —      V. n.° 13, supra.


41 —      V., por exemplo, F. c. Reino Unido, já referido na nota 33.


42 —      O celibato, como ausência deliberada (fisicamente) de expressão da orientação sexual de uma pessoa, pode ser escolhido por uma série de razões; mas não pode ser imposto sem que se negue a própria existência de uma personalidade sexual.


43 —      V. n.os 38 a 52 e 62 a 68 das conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Y e Z, já referidas na nota 17.