Language of document : ECLI:EU:C:2009:193

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

26 de Março de 2009 (*)

«Incumprimento de Estado – Artigos 43.° CE e 56.° CE – Estatutos das empresas privatizadas – Critérios para o exercício de certos direitos especiais detidos pelo Estado»

No processo C‑326/07,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 13 de Julho de 2007,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por L. Pignataro‑Nolin e H. Støvlbæk, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Italiana, representada por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por P. Gentili, avvocato dello Stato, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Rosas, presidente de secção, J. N. Cunha Rodrigues, J. Klučka, P. Lindh (relatora) e A. Arabadjiev, juízes,

advogado‑geral: D. Ruiz‑Jarabo Colomer,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 2 de Outubro de 2008,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de Novembro de 2008,

profere o presente

Acórdão

1        Na sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao adoptar as disposições constantes do artigo 1.°, n.° 2, do Decreto do Presidente do Conselho de Ministros que define os critérios para o exercício dos direitos especiais previstos no artigo 2.° do Decreto‑Lei n.° 332, de 31 de Maio de 1994, convertido, após alterações, em Lei n.° 474, de 30 de Julho de 1994 (decreto del Presidente del Consiglio dei Ministri, definizione dei criteri di esercizio dei poteri speciali, di cui all’art. 2 del decreto‑legge 31 maggio 1994, n. 332, convertito, con modificazioni, dalla legge 30 luglio 1994, n. 474), de 10 de Junho de 2004 (GURI n.° 139, de 16 de Junho de 2004, p. 26, a seguir «Decreto de 2004»), a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.° CE e 56.° CE.

 Quadro jurídico

 Decreto‑Lei n.° 332/1994

2        O Decreto‑Lei n.° 332, que estabelece as disposições com vista à aceleração dos processos de venda das participações do Estado e dos organismos públicos nas sociedades por acções (decreto‑legge n. 332, norme per l’accelerazione delle procedure di dismissione di partecipazioni dello Stato e degli enti pubblici in società per azioni), de 31 de Maio de 1994 (GURI n.° 126, de 1 de Junho de 1994, p. 38), foi convertido em lei, após alterações, pela Lei n.° 474, de 30 de Julho de 1994 (GURI n.° 177, de 30 de Julho de 1994, p. 5). Esse decreto‑lei foi depois alterado pela Lei n.° 350, que regula a elaboração do orçamento anual e plurianual do Estado (Lei das Finanças de 2004) [legge n. 350, disposizioni per la formazione del bilancio annuale e pluriennale dello Stato (legge finanziaria 2004)], de 24 de Dezembro de 2003 (suplemento ordinário ao GURI n.° 196, de 27 de Dezembro de 2003, a seguir «Lei das Finanças n.° 350/2003»). O referido decreto‑lei, conforme convertido e alterado (a seguir «Decreto‑Lei n.° 332/1994»), dispõe que o Estado detém direitos especiais em determinadas sociedades (a seguir «direitos especiais»).

3        Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, do Decreto‑Lei n.° 332/1994:

«De entre as sociedades directa ou indirectamente controladas pelo Estado, que operem nos sectores da defesa, dos transportes, das telecomunicações, das fontes de energia e doutros serviços públicos, um decreto do Presidente do Conselho de Ministros, adoptado sob proposta do Ministro da Economia e Finanças, em concertação com o Ministro das Actividades Produtivas e os ministros da tutela, determinará, após comunicação às comissões parlamentares competentes, as empresas em cujos estatutos, previamente a qualquer acto que implique a perda do controlo, deve ser introduzida uma cláusula, por deliberação da assembleia extraordinária, pela qual seja atribuído ao Ministro da Economia e Finanças um ou mais dos direitos especiais seguintes, que serão exercidos de acordo com o Ministro das Actividades Produtivas […]».

4        Os direitos especiais enunciados no referido artigo 2.°, n.° 1, alíneas a) a d), são os seguintes:

a)      Oposição à aquisição por investidores de participações importantes que representem, pelo menos, 5% dos direitos de voto ou uma percentagem inferior que o Ministro da Economia e Finanças fixe por decreto. Para deduzirem a sua oposição, as autoridades dispõem de um prazo de 10 dias contados a partir da data da comunicação que deve ser efectuada pelos administradores da sociedade em causa no momento do pedido de inscrição no registo dos accionistas, ao passo que o cessionário dispõe de 60 dias para impugnar a decisão das autoridades no tribunal competente;

b)      Oposição à celebração de pactos ou de acordos entre accionistas que representem, pelo menos, 5% dos direitos de voto ou uma percentagem inferior que o Ministro da Economia e Finanças fixe por decreto. Os prazos de 10 e de 60 dias referidos na alínea a) são, respectivamente, aplicáveis à oposição das autoridades e às actuações judiciais dos accionistas que adiram aos pactos ou acordos em causa;

c)      Veto das decisões de dissolução da sociedade, de transferência da empresa, de fusão, de cisão, de transferência da sede social para o estrangeiro, de alteração do objecto social ou dos estatutos da sociedade, que suprimam ou modifiquem os direitos especiais. É previsto um prazo de 60 dias para impugnar a decisão de veto;

d)      Nomeação de um administrador sem direito de voto.

5        Decorre da petição inicial que foi introduzido um critério para o exercício dos direitos especiais, designadamente nos estatutos das sociedades de direito italiano ENI, Telecom Italia, Enel e Finmeccanica, que actuam nos sectores da petroquímica e da energia, das telecomunicações, da electricidade e da defesa, respectivamente.

6        O artigo 4.°, n.° 230, da Lei das Finanças n.° 350/2003 dispõe que um decreto ad hoc do Presidente do Conselho de Ministros, sob proposta dos Ministros da Economia e Finanças e das Actividades Produtivas, que deve ser aprovado no prazo de 90 dias após a entrada em vigor da referida lei, institui os critérios para o exercício dos direitos especiais, limitando a sua utilização apenas aos casos de prejuízo dos interesses vitais do Estado.

 Decreto de 2004

7        De acordo com o artigo 1.°, n.os 1 e 2, do Decreto de 2004:

«1.      Os direitos especiais do artigo 2.° do Decreto‑Lei n.° 332/1994 serão exercidos em exclusivo quando se verifiquem motivos relevantes e imperativos de interesse geral, relativos, em especial, à ordem pública, à segurança pública, à saúde pública e à defesa, de modo adequado e na medida proporcionada à protecção desses interesses, tais como a eventual previsão dos prazos oportunos, sem prejuízo do respeito dos princípios do ordenamento interno e do direito comunitário e, em primeiro lugar, do princípio da não discriminação.

2.      Sem prejuízo da finalidade indicada no n.° 1, os direitos especiais do artigo 2.°, n.° 1, alíneas a), b) e c), do Decreto‑Lei n.° 332/1994 serão exercidos quando se verifiquem as seguintes circunstâncias:

a)      perigo real e grave de corte no aprovisionamento nacional mínimo em produtos petrolíferos e energéticos, bem como no fornecimento de serviços conexos e derivados e, em geral, no aprovisionamento de matérias‑primas e de bens essenciais para a colectividade, ou no nível mínimo de serviços de telecomunicações e de transporte;

b)      perigo real e grave para a continuidade do exercício das obrigações para com a colectividade num serviço público, bem como para o exercício das missões de interesse geral confiadas à sociedade;

c)      risco real e grave para a segurança das instalações e redes nos serviços públicos essenciais;

d)      risco real e grave para a defesa nacional, a segurança militar, a ordem pública e a segurança pública;

e)      urgências sanitárias.»

 Procedimento pré‑contencioso

8        Por notificação para cumprir enviada à República Italiana em 6 de Fevereiro de 2003, a Comissão iniciou o processo de incumprimento por violação dos artigos 43.° CE e 56.° CE relativamente aos critérios para o exercício dos direitos especiais. Na sequência disso, este Estado‑Membro alterou a sua regulamentação adoptando a Lei das Finanças n.° 350/2003 e o Decreto de 2004. Considerando, no entanto, que essas alterações não eram suficientes, a Comissão enviou‑lhe, em 22 de Dezembro de 2004, uma notificação para cumprir complementar.

9        Depois de ter recebido a resposta do Governo italiano de 20 de Maio de 2005, a Comissão, não tendo ficado satisfeita com os argumentos nela desenvolvidos, enviou à República Italiana, em 18 de Outubro de 2006, um parecer fundamentado relativo apenas aos critérios definidos no artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004, convidando‑a a dar‑lhe cumprimento num prazo de dois meses a contar da data da sua recepção. Em resposta ao parecer fundamentado, este Estado‑Membro enviou uma nota contestando, no essencial, a análise da Comissão.

10      Considerando que a situação ainda não era satisfatória, a Comissão decidiu então propor a presente acção.

 Quanto à acção

 Argumentos das partes

11      Segundo a Comissão, a violação dos artigos 43.° CE e 56.° CE pela República Italiana deve‑se ao facto de o Decreto de 2004 não precisar suficientemente os critérios para o exercício dos direitos especiais. Na opinião desta instituição, os referidos critérios não permitem aos investidores conhecer as situações em que esses direitos serão exercidos.

12      Assim, a Comissão sustenta que as situações concretas que podem ser abrangidas pelo conceito de «risco real e grave» previsto no artigo 1.°, n.° 2, alíneas a) a d), do Decreto de 2004 são potencialmente numerosas, indeterminadas e indetermináveis. Esta falta de precisão na determinação das circunstâncias específicas e objectivas que justificam o recurso do Estado aos direitos especiais confere um carácter discricionário aos referidos direitos, tendo em conta a margem de apreciação de que as autoridades italianas dispõem. Esta situação desencoraja de forma geral os investidores e, em especial, os que pretendem instalar‑se em Itália com vista a exercer uma influência na gestão das empresas abrangidas pela regulamentação em causa.

13      A Comissão observa que, uma vez que o artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004 diz respeito ao exercício dos direitos especiais previstos no Decreto‑Lei n.° 332/1994, a avaliação da proporcionalidade desse decreto inclui o exame da legitimidade dos referidos direitos em situações determinadas.

14      A Comissão reconhece que a liberdade de estabelecimento e a livre circulação de capitais podem ser limitadas por medidas nacionais justificadas com base nos artigos 46.° CE e 58.° CE, ou por razões imperiosas de interesse geral, mas apenas desde que não exista regulamentação comunitária de harmonização que preveja medidas necessárias para assegurar a protecção dos interesses fundamentais do Estado.

15      Relativamente aos sectores regulamentados, como os da energia, do gás natural e das telecomunicações, a Comissão considera que o objectivo de protecção dos interesses fundamentais do Estado pode ser atingido com medidas menos restritivas, como as previstas pelo legislador europeu. A Comissão refere em especial a Directiva 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade e que revoga a Directiva 96/92/CE (JO L 176 p. 37), a Directiva 2003/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno de gás natural e que revoga a Directiva 98/30/CE (JO L 176, p. 57), bem como a Directiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações electrónicas (directiva‑quadro) (JO L 108, p. 33). A Comissão salienta que essas directivas prevêem a aplicação de medidas destinadas a proteger o aprovisionamento nacional mínimo nos referidos domínios. Esta instituição alega que a República Italiana não indica por que é que a protecção do aprovisionamento nacional mínimo nos sectores da economia assim regulamentados não pode ser assegurada com base nas referidas directivas.

16      No que se refere a sectores não regulamentados, a Comissão sustenta que a República Italiana não justificou a aplicação dos critérios controvertidos.

17      Observa, além disso, que não existe nenhum nexo causal entre, por um lado, a necessidade de garantir o aprovisionamento energético e o fornecimento dos serviços públicos e, por outro, a fiscalização da estrutura accionista e da gestão de uma empresa.

18      Segundo a Comissão, o Decreto de 2004 constitui, portanto, um instrumento que vai além do necessário para defender os interesses públicos visados.

19      Em primeiro lugar, a República Italiana afirma que uma grande parte da análise da Comissão se dedica à alegada ilegalidade dos direitos especiais cujo regime é fixado pelo Decreto‑Lei n.° 332/1994. Ora, o incumprimento imputado tanto pela acção como pelo parecer fundamentado incide unicamente sobre o Decreto de 2004 e não sobre o Decreto‑Lei n.° 332/94. Consequentemente, a alegada ilegalidade do regime dos direitos especiais que resulta desse decreto‑lei não pode ser abrangida pela presente acção.

20      Segundo este Estado‑Membro, daqui resulta que o essencial das acusações desenvolvidas pela Comissão na acção não podem ser procedentes. É o que acontece com as relativas aos limites impostos pela República Italiana à aquisição de acções nas sociedades em causa, acusações que dizem respeito à propriedade das acções, isto é, à estrutura dessas sociedades. Com efeito, a Comissão acusa a República Italiana, principalmente, de ter instituído medidas de fiscalização sobre a referida estrutura, e não medidas que permitem fiscalizar decisões de gestão específicas. Ora, essas críticas são relativas ao Decreto‑Lei n.° 332/1994 e não ao Decreto de 2004.

21      A República Italiana conclui, assim, que as acusações fundadas na falta de proporcionalidade das disposições relativas aos direitos especiais são improcedentes, dado que esta parte da acção visa, na realidade, o Decreto‑Lei n.° 332/1994.

22      Em segundo lugar, a República Italiana contesta a análise da Comissão na medida em que baseia o essencial das suas acusações numa alegada violação do artigo 56.° CE, relativo à livre circulação de capitais, ao mesmo tempo que acrescenta que essas acusações podem também basear‑se numa violação do artigo 43.° CE, relativo à liberdade de estabelecimento. Segundo este Estado‑Membro, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente do acórdão de 12 de Setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schwepps Overseas (C‑196/04, Colect., p. I‑7995), que se uma questão pode ser examinada à luz da liberdade de estabelecimento, isso exclui que esteja abrangida pela livre circulação de capitais. Ora, uma vez que as medidas controvertidas incidem sobre actos destinados a exercer uma influência determinante na gestão das sociedades em causa, os artigos 43.° CE, 45.° CE e 46.° CE são pertinentes. Este aspecto é importante, uma vez que esses artigos contêm disposições menos restritivas que as dos artigos 56.° CE e 58.° CE.

23      Em terceiro lugar, a República Italiana contesta a procedência da acusação relativa ao carácter discricionário que as disposições do Decreto de 2004 conferem aos direitos especiais atribuídos à Administração nacional.

24      Em quarto lugar, este Estado‑Membro rejeita a argumentação da Comissão relativa às directivas aplicáveis aos sectores regulamentados. Com efeito, essas directivas só seriam pertinentes se a acção dissesse respeito ao Decreto‑Lei n.° 332/1994, que prevê medidas estruturais. Por sua vez, o Decreto de 2004 não introduziu nenhuma medida deste tipo, limitando‑se a indicar os casos e as condições de adopção das medidas previstas pelo referido decreto‑lei. A República Italiana sustenta que, de qualquer forma, os Estados‑Membros não estão impedidos de adoptar, nesses sectores essenciais, as medidas que instituem poderes de intervenção que vão mesmo além das disposições das referidas directivas.

25      A República Italiana acrescenta que se deve aplicar o princípio da subsidiariedade. Com efeito, a legislação nacional está mais vocacionada do que a legislação comunitária para regulamentar situações que apresentem riscos para os interesses vitais do Estado, situações que só este pode apreciar num prazo útil e de forma adequada.

26      Nos outros sectores dos serviços públicos, que ainda não foram objecto de harmonização, como o sector da defesa nacional, um Estado‑Membro está habilitado a adoptar medidas com vista a fazer face a situações fortemente prejudiciais para o interesse geral.

27      Segundo a República Italiana, o único argumento da acção a ter em consideração é a alegada falta de previsibilidade dos casos concretos em que é possível recorrer às disposições do Decreto‑Lei n.° 332/1994. No entanto, este Estado‑Membro sustenta que é apenas no momento em que surge um investidor que todas as circunstâncias específicas são identificadas e podem ser apreciadas. Conclui, assim, que as condições de exercício dos direitos especiais não podem ser determinadas com mais exactidão do que no Decreto de 2004.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

 Quanto ao objecto da acção

28      Segundo a República Italiana, através de uma parte significativa dos seus argumentos, a Comissão, na realidade, não contesta os critérios que constam do Decreto de 2004, mas sim os direitos especiais instituídos pelo Decreto‑Lei n.° 332/1994, e pretende que se declare que esses direitos violam o direito comunitário. Esses argumentos ampliam assim o objecto da lide e não são, portanto, admissíveis.

29      A este respeito, importa recordar que o objecto de uma acção por incumprimento é delimitado pelo parecer fundamentado e pela petição inicial (v., neste sentido, designadamente, acórdão de 24 de Junho de 2004, Comissão/Países Baixos, C‑350/02, Colect., p. I‑6213, n.° 20 e jurisprudência referida). Tendo em conta que, no caso em apreço, esses dois actos visam unicamente os critérios definidos no artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004, há que concluir que a Comissão não ampliou o objecto da lide, de forma que a acção é admissível.

30      É verdade que a Comissão desenvolve argumentos críticos a respeito dos direitos especiais instituídos pelo Decreto‑Lei n.° 332/1994, mas não os põe em causa e apenas contesta os critérios que permitem o seu exercício.

31      Uma vez que o alegado incumprimento só diz respeito aos critérios definidos no artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004, importa apenas decidir sobre a conformidade desta disposição com o direito comunitário.

 Quanto à aplicação dos artigos 43.° CE e 56.° CE

32      A Comissão considera que o incumprimento que denuncia deve ser examinado à luz dos artigos 43.° CE, relativo à liberdade de estabelecimento, e 56.° CE, relativo à livre circulação de capitais.

33      Quanto à questão de saber qual destas liberdades se aplica a uma legislação nacional, resulta de jurisprudência bem assente que se deve ter em conta o objecto da legislação em causa (v. acórdão de 24 de Maio de 2007, Holböck, C‑157/05, Colect., p. I‑4051, n.° 22 e jurisprudência referida).

34      Incluem‑se no âmbito de aplicação material das disposições do Tratado CE relativas à liberdade de estabelecimento as disposições nacionais que se aplicam à detenção, por um nacional de um Estado‑Membro, de uma participação no capital de uma sociedade com sede noutro Estado‑Membro, que lhe confira uma influência efectiva nas decisões dessa sociedade e lhe permita determinar as respectivas actividades (v., neste sentido, nomeadamente, acórdãos de 13 de Abril de 2000, Baars, C‑251/98, Colect., p. I‑2787, n.° 22, e de 23 de Outubro de 2007, Comissão/Alemanha, C‑112/05, Colect., p. I‑8995, n.° 13).

35      Incluem‑se no âmbito de aplicação material do artigo 56.° CE, relativo à livre circulação de capitais, designadamente, os investimentos directos, ou seja, os investimentos de qualquer natureza efectuados por pessoas singulares ou colectivas e que servem para criar ou manter relações duradouras e directas entre o investidor e a empresa a que se destinam esses fundos com vista ao exercício de uma actividade económica. Esse objectivo pressupõe que as acções detidas pelo accionista lhe dão a possibilidade de participar efectivamente na gestão dessa sociedade ou no seu controlo (v. acórdão Comissão/Alemanha, já referido, n.° 18 e jurisprudência referida).

36      Uma legislação nacional que não é aplicável apenas às participações que permitem exercer uma influência efectiva nas decisões de uma sociedade e determinar as suas actividades, mas que se aplica independentemente da dimensão da participação detida pelo accionista na sociedade, é susceptível de ser abrangida quer pelo artigo 43.° CE quer pelo artigo 56.° CE (v., neste sentido, acórdão Holböck, já referido, n.os 23 e 24). Contrariamente ao que a República Italiana sustenta, o acórdão Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, já referido, não permite concluir que, nesse caso, só o artigo 43.° CE seria pertinente. Com efeito, como decorre do seu n.° 32, esse acórdão diz apenas respeito a uma situação em que uma sociedade detém participações que lhe conferem o controlo de outras sociedades (v. acórdão de 17 de Julho de 2008, Comissão/Espanha, C‑207/07, n.° 36).

37      No caso em apreço, há que distinguir em função da aplicação dos critérios aos direitos de oposição do Estado à aquisição de participações e à celebração de pactos de accionistas representativos de uma determinada percentagem dos direitos de voto, ou ao exercício do direito de veto quanto a determinadas decisões da sociedade.

38      No que se refere, em primeiro lugar, aos direitos de oposição visados no artigo 2.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Decreto‑Lei n.° 332/1994, resulta dos autos que a percentagem de, pelo menos, 5% dos direitos de voto ou, se for o caso, uma percentagem inferior fixada pelo ministro competente deve permitir aos interessados participar de maneira efectiva na gestão da sociedade em causa, o que decorre do artigo 56.° CE. Contudo, em sociedades com um elevado grau de dispersão da estrutura accionista, não se exclui a possibilidade de os detentores de participações correspondentes a essas percentagens terem o poder de influenciar de maneira efectiva a gestão dessa sociedade e de determinar as suas actividades, o que está abrangido pelo artigo 43.° CE, como sustenta a República Italiana. Além disso, uma vez que o Decreto‑Lei n.° 332/1994 fixa uma percentagem mínima, esta legislação também é aplicável a participações que ultrapassem essa percentagem e confiram um manifesto poder de controlo. Impõe‑se, assim, examinar os critérios relativos ao exercício dos referidos direitos de oposição à luz das duas disposições do Tratado.

39      Em segundo lugar, relativamente ao direito de veto previsto no artigo 2.°, n.° 1, alínea c), do Decreto‑Lei n.° 332/1994, há que observar que esse direito é exercido sobre as decisões relativas à gestão da sociedade e, consequentemente, só diz respeito aos accionistas susceptíveis de exercer uma influência efectiva nas sociedades abrangidas, de forma que os critérios relacionados com o exercício deste direito devem ser examinados à luz do artigo 43.° CE. De resto, admitindo que esses critérios tenham efeitos restritivos na livre circulação de capitais, esses efeitos são a consequência inevitável de um eventual obstáculo à liberdade de estabelecimento e não justificam uma análise autónoma na óptica do artigo 56.° CE (v. acórdão Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, já referido, n.° 33). Consequentemente, a análise dos critérios relativos ao exercício do direito de veto deve ser efectuada unicamente na perspectiva do artigo 43.° CE.

 Quanto aos critérios enunciados no artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004 na medida em que se referem ao exercício dos direitos de oposição

–       Quanto ao incumprimento das obrigações decorrentes do artigo 56.° CE

40      A título preliminar, importa observar que os critérios aqui examinados determinam as situações em que podem ser exercidos os direitos de o Estado se opor à aquisição de certas participações ou à celebração de determinados pactos de accionistas nas sociedades em causa. Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o exercício desses direitos pode ser contrário à livre circulação de capitais garantida pelo artigo 56.° CE (v., designadamente, acórdãos de 13 de Maio de 2003, Comissão/Reino Unido, C‑98/01, Colect., p. I‑4641, n.° 50, e Comissão/Espanha, já referido, n.° 58). O que está em causa no caso em apreço é saber se os referidos critérios definem as condições que permitem justificar o exercício desses direitos.

41      A este respeito, importa recordar que a livre circulação de capitais pode ser limitada por medidas nacionais justificadas pelas razões mencionadas no artigo 58.° CE, ou por razões imperiosas de interesse geral, desde que não haja nenhuma disposição comunitária de harmonização que preveja medidas necessárias para assegurar a protecção desses interesses (v. acórdão Comissão/Alemanha, já referido, n.° 72 e jurisprudência referida).

42      Não havendo essa harmonização comunitária, compete, em princípio, aos Estados‑Membros decidir do nível a que pretendem assegurar a protecção de tais interesses legítimos e do modo como esse nível deve ser alcançado. No entanto, só o podem fazer dentro dos limites traçados pelo Tratado e, em especial, respeitando o princípio da proporcionalidade, que exige que as medidas adoptadas sejam adequadas para garantir a realização do objectivo que prosseguem e não ultrapassem o necessário para atingir esse objectivo (v. acórdão Comissão/Alemanha, já referido, n.° 73 e jurisprudência referida).

43      Além disso, mesmo em domínios que foram objecto de harmonização, o princípio da proporcionalidade é aplicável nos casos em que o legislador comunitário deixou aos Estados‑Membros uma margem de apreciação.

44      No caso vertente, as posições da República Italiana e da Comissão divergem quanto à questão de saber se os critérios aplicáveis ao exercício dos direitos de oposição à aquisição de participações ou à celebração de pactos entre accionistas que representem, pelo menos, 5% dos direitos de voto, ou até uma percentagem inferior em determinados casos, tornam esse exercício proporcionado aos objectivos prosseguidos e, consequentemente, compatível com a liberdade garantida pelo artigo 56.° CE.

45      A este respeito, importa observar que os critérios controvertidos visam interesses gerais relativos, em especial, ao aprovisionamento mínimo em recursos energéticos e em bens essenciais à colectividade, à continuidade do serviço público, à segurança das instalações utilizadas no âmbito de serviços públicos essenciais, à defesa nacional, à protecção da ordem pública e da segurança pública bem como às urgências sanitárias. A prossecução desses interesses pode, sem prejuízo da observância do princípio da proporcionalidade, justificar certas restrições ao exercício das liberdades fundamentais (v., designadamente, acórdão de 14 de Fevereiro de 2008, Comissão/Espanha, C‑274/06, n.° 38).

46      Contudo, como foi recordado nos n.os 42 e 43 do presente acórdão, o respeito do princípio da proporcionalidade exige, em primeiro lugar, que as medidas adoptadas sejam adequadas para atingir os objectivos que prosseguem.

47      Ora, a aplicação dos critérios controvertidos na medida em que se referem ao exercício dos direitos de oposição não é apta para a realização dos objectivos prosseguidos no caso em apreço, uma vez que não existe um nexo entre os referidos critérios e esses poderes.

48      Com efeito, o Tribunal de Justiça decidiu anteriormente que a simples aquisição de uma participação superior a 10% do capital de uma sociedade que actua no sector da energia ou qualquer outra aquisição que confira uma influência significativa nessa sociedade não podem, em princípio, ser consideradas, em si mesmas, uma ameaça real e suficientemente grave para a segurança do aprovisionamento (v. acórdão de 17 de Julho de 2008, Comissão/Espanha, já referido, n.os 38 e 51).

49      Nos seus articulados, a República Italiana não fez prova nem sequer apresentou indícios de que a aplicação dos critérios controvertidos ao exercício dos direitos de oposição permite realizar os objectivos prosseguidos. É verdade que, na audiência, esse Estado‑Membro deu alguns exemplos. Referiu, assim, a eventualidade de um operador estrangeiro com ligações a uma organização terrorista pretender adquirir participações significativas em sociedades nacionais num domínio estratégico. Aludiu também à possibilidade de uma sociedade estrangeira que controle as redes internacionais de transporte de energia e que, no passado, tenha utilizado essa posição para criar dificuldades graves ao aprovisionamento dos países limítrofes, procurar adquirir acções numa sociedade nacional. Segundo este Estado‑Membro, a existência de precedentes desta natureza poderia justificar uma oposição à aquisição por esses investidores de participações significativas nas sociedades nacionais em causa.

50      Importa, contudo, concluir que essas considerações não constam do Decreto de 2004, que não menciona nenhuma circunstância específica e objectiva.

51      O Tribunal de Justiça decidiu anteriormente que poderes de intervenção de um Estado‑Membro, como os direitos de oposição cujos critérios em causa determinam as condições de exercício, que não estão sujeitos a nenhuma condição, com excepção de uma referência à protecção dos interesses nacionais formulada em termos gerais e sem que sejam determinadas as circunstâncias específicas e objectivas em que esses poderes serão exercidos, constituem uma grave violação da liberdade de circulação de capitais (v., neste sentido, acórdão de 4 de Junho de 2002, Comissão/França, C‑483/99, Colect., p. I‑4781, n.os 50 e 51).

52      Estas considerações são aplicáveis ao caso em apreço. Com efeito, embora os critérios em causa visem diferentes tipos de interesses gerais, estes são formulados em termos gerais e imprecisos. Acresce que a falta de nexo entre esses critérios e os direitos especiais a que se referem reforça a incerteza quanto às circunstâncias em que esses direitos são susceptíveis de ser exercidos e confere um carácter discricionário aos referidos direitos, tendo em conta a margem de apreciação de que dispõem as autoridades nacionais para os exercer. Essa margem de apreciação é desproporcionada relativamente aos objectivos prosseguidos.

53      Por outro lado, a simples menção, no artigo 1.°, n.° 1, do Decreto de 2004, de que os direitos especiais só devem ser exercidos em conformidade com o direito comunitário não torna a aplicação desses critérios compatível com este direito. Com efeito, o carácter geral e abstracto dos critérios não é susceptível de garantir que o exercício dos direitos especiais será efectuado em conformidade com as exigências do direito comunitário (v., neste sentido, acórdão de 13 de Maio de 2003, Comissão/Espanha, C‑463/00, Colect., p. I‑4581, n.os 63 e 64).

54      Por último, embora a faculdade de submeter o exercício dos direitos especiais, nos termos do artigo 2.°, n.° 1, alíneas a) a c), do Decreto‑Lei n.° 332/1994, à fiscalização dos tribunais nacionais seja necessária para a protecção das pessoas relativamente à aplicação das regras sobre a livre circulação de capitais, isso, por si só, não é suficiente para sanar a incompatibilidade dos critérios de exercício dos direitos especiais com estas regras.

55      Consequentemente, há que concluir que, ao adoptar as disposições constantes do artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 56.° CE, na medida em que essas disposições se aplicam aos direitos especiais previstos no artigo 2.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Decreto‑Lei n.° 332/1994.

–       Quanto ao incumprimento das obrigações decorrentes do artigo 43.° CE

56      Na medida em que o exercício dos direitos de oposição visa também as participações que conferem aos seus detentores o poder de influenciarem de uma maneira efectiva a gestão das sociedades em causa e determinarem as suas actividades, pelo que pode restringir a liberdade de estabelecimento, deve‑se considerar, pelas mesmas razões que foram antes expostas no âmbito do exame relativo à compatibilidade dos critérios previstos no artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004 com o artigo 56.° CE, que esses critérios conferem às autoridades italianas uma margem de apreciação desproporcionada no exercício dos direitos de oposição.

57      Consequentemente, há que declarar que, ao adoptar as disposições constantes do artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 43.° CE, na medida em que essas disposições se aplicam aos direitos especiais previstos no artigo 2.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Decreto‑Lei n.° 332/1994.

 Quanto aos critérios enunciados no artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004, na medida em que se referem ao exercício do direito de veto

58      Como referido no n.° 39 do presente acórdão, a aplicação dos critérios previstos no artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004 ao direito de veto de determinadas decisões deve ser analisada unicamente à luz do artigo 43.° CE.

59      A Comissão considera que esses critérios, na medida em que se aplicam a esse direito de veto, são desproporcionados face ao objectivo prosseguido e, consequentemente, contrários ao artigo 43.° CE. A República Italiana contesta esta análise.

60      Há que verificar que, relativamente às sociedades em causa, as decisões sobre a sua dissolução, a transferência da sede da sociedade, a fusão, a cisão, a transferência da sede social para o estrangeiro, a alteração do objecto social e as alterações dos estatutos que suprimam ou alterem os direitos especiais dizem respeito a aspectos importantes da gestão dessas sociedades.

61      É possível que essas decisões, que podem incidir sobre a própria subsistência dessas sociedades, afectem, designadamente, a continuidade do serviço público ou a manutenção do aprovisionamento nacional mínimo em bens essenciais à colectividade, que constituem interesses gerais referidos no Decreto de 2004.

62      Existe, portanto, um nexo entre o direito especial de veto e os critérios previstos no Decreto de 2004.

63      Contudo, as circunstâncias em que esse direito pode ser exercido são imprecisas.

64      O Tribunal de Justiça decidiu, a propósito do direito de oposição a determinadas decisões de cessão ou de constituição de garantia sobre os activos de sociedades que actuam no domínio petrolífero, que, na medida em que o exercício desse direito não estava sujeito a condição alguma que limitasse o poder discricionário do ministro quanto ao controlo da identidade dos detentores de activos dessas sociedades, o regime em causa ia além do necessário para atingir o objectivo invocado, isto é, a prevenção de um prejuízo para o aprovisionamento mínimo em produtos petrolíferos em caso de ameaça efectiva. O Tribunal de Justiça acrescentou que, face à ausência de critérios objectivos e precisos na estrutura do referido regime, a regulamentação em causa era desproporcionada relativamente ao objectivo indicado (v. acórdão Comissão/França, já referido, n.os 52 e 53).

65      Há que verificar se considerações similares são aplicáveis ao caso em apreço.

66      O Decreto de 2004 não especifica as circunstâncias em que se aplicam os critérios para o exercício do direito de veto previsto no artigo 2.°, n.° 1, alínea c), do Decreto‑Lei n.° 332/1994. Mesmo que, de acordo com o disposto no artigo 1.°, n.° 2, do referido decreto e no respeito das condições do artigo 1.°, n.° 1, desse mesmo diploma, esse direito só possa ser exercido em situações de risco real e grave ou de urgências sanitárias, a saber, designadamente por motivos de ordem pública, de segurança pública, de saúde pública e de defesa, na ausência de precisões sobre as circunstâncias concretas que permitem exercer o direito em questão, os investidores não sabem quando é que esse direito de veto pode ser utilizado. Consequentemente, há que considerar, como defende a Comissão, que as situações que permitem exercer o direito de veto são potencialmente numerosas, indeterminadas e indetermináveis e deixam um amplo poder de apreciação às autoridades italianas.

67      Contudo, a República Italiana alega que o princípio da subsidiariedade é aplicável nos domínios estratégicos em causa e que os Estados‑Membros devem conservar um amplo poder de apreciação, uma vez que são quem está em melhor posição para resolver situações urgentes que afectem os interesses vitais do Estado. As directivas adoptadas nos domínios regulamentados, como o da energia, apenas contêm regras mínimas relativas ao cumprimento das exigências de serviço público.

68      A este respeito, como foi referido no n.° 43 do presente acórdão, mesmo que essas directivas deixem uma margem de apreciação aos Estados‑Membros, designadamente para adoptarem medidas em caso de urgência, as disposições que adoptem devem respeitar os limites traçados pelo Tratado e, em especial, o princípio da proporcionalidade.

69      O Tribunal de Justiça admitiu, quanto a entidades que actuam nos sectores do petróleo, das telecomunicações e da electricidade, que o objectivo de garantir a segurança do aprovisionamento nesses produtos ou o fornecimento desses serviços em caso de crise no território do Estado‑Membro em causa pode constituir uma razão de segurança pública e, assim, justificar uma restrição a uma liberdade fundamental (v. acórdão de 13 de Maio de 2003, Comissão/Espanha, já referido, n.° 71).

70      No entanto, o Tribunal de Justiça também decidiu que, embora, quanto ao essencial, os Estados‑Membros continuem a ter a liberdade de determinar, em conformidade com as suas necessidades nacionais, as exigências de ordem pública e de segurança pública, enquanto razões de derrogação a uma liberdade fundamental, essas exigências devem ser entendidas estritamente, de modo que o seu alcance não pode ser determinado unilateralmente, sem controlo das instituições da Comunidade Europeia. Assim, a ordem pública e a segurança pública só podem ser invocadas em caso de ameaça real e suficientemente grave que afecte um interesse fundamental da sociedade (v., designadamente, acórdãos de 9 de Março de 2000, Comissão/Bélgica, C‑355/98, Colect., p. I‑1221, n.° 28; de 14 de Março de 2000, Église de scientologie, C‑54/99, Colect., p. I‑1335, n.° 17; e de 17 de Julho de 2008, Comissão/Espanha, já referido, n.° 47).

71      O Tribunal de Justiça aplicou esta análise a um regime de oposição que vigorava na Bélgica no sector da energia, que visava determinadas decisões relativas aos activos estratégicos de sociedades nacionais, em particular as redes de energia, bem como decisões de gestão específicas que lhes diziam respeito, sendo que as intervenções do Estado só podiam ter lugar no caso de os objectivos da política energética serem postos em causa. O Tribunal de Justiça considerou que esse regime assentava em critérios objectivos e passíveis de fiscalização pelos órgãos jurisdicionais e que a Comissão não tinha demonstrado que se podiam ter tomado medidas menos restritivas para atingir o objectivo prosseguido (v. acórdão de 4 de Junho de 2002, Comissão/Bélgica, C‑503/99, Colect., p. I‑4809, n.os 50 a 53).

72      Contudo, no caso em apreço, como se concluiu no n.° 66 do presente acórdão, o Decreto de 2004 não especifica as circunstâncias concretas em que o direito de veto pode ser exercido e, consequentemente, os critérios que enuncia não assentam em condições objectivas passíveis de fiscalização.

73      Como foi recordado nos n.os 53 e 54 do presente acórdão, a menção de que o direito de veto só pode ser exercido em conformidade com o direito comunitário e o facto de o seu exercício poder estar sujeito à fiscalização do juiz nacional não tornam o Decreto de 2004 compatível com o direito comunitário.

74      Assim, há que declarar que, ao adoptar as disposições constantes do artigo 1.°, n.° 2, do Decreto de 2004, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 43.° CE, na medida em que essas disposições se aplicam ao direito especial previsto no artigo 2.°, n.° 1, alínea c), do Decreto‑Lei n.° 332/1994.

 Quanto às despesas

75      Por força do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Italiana e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) decide:

1)      Ao adoptar as disposições constantes do artigo 1.°, n.° 2, do Decreto do Presidente do Conselho de Ministros que define os critérios para o exercício dos direitos especiais previstos no artigo 2.° do Decreto‑Lei n.° 332/1994, de 31 de Maio de 1994, convertido, após alterações, em Lei n.° 474, de 30 de Julho de 1994 (decreto del Presidente del Consiglio dei Ministri, definizione dei criteri di esercizio dei poteri speciali, di cui all’art. 2 del decreto‑legge 31 maggio 1994, n. 332, convertito, con modificazioni, dalla legge 30 luglio 1994, n. 474), de 10 de Junho de 2004, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem:

–        por força dos artigos 43.° CE e 56.° CE, na medida em que as referidas disposições se aplicam aos direitos especiais previstos no artigo 2.°, n.° 1, alíneas a) e b), desse decreto‑lei, conforme alterado pela Lei n.° 350, que regula a elaboração do orçamento anual e plurianual do Estado (Lei das Finanças de 2004) [legge n. 350, disposizioni per la formazione del bilancio annuale e pluriennale dello Stato (legge finanziaria 2004)], de 24 de Dezembro de 2003, e

–        por força do artigo 43.° CE, na medida em que as referidas disposições se aplicam ao direito especial previsto no referido artigo 2.°, n.° 1, alínea c).

2)      A República Italiana é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: italiano.