Language of document : ECLI:EU:C:2011:335

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

24 de Maio de 2011 (*)

«Incumprimento de Estado – Artigo 43.° CE – Liberdade de estabelecimento – Notários – Requisito da nacionalidade – Artigo 45.º CE – Actividades ligadas ao exercício da autoridade pública»

No processo C‑50/08,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 12 de Fevereiro de 2008,

Comissão Europeia, representada por J.-P. Keppenne e H. Støvlbæk, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

apoiada por:

Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por E. Jenkinson e S. Ossowski, na qualidade de agentes,

interveniente,

contra

República Francesa, representada por E. Belliard, G. de Bergues e B. Messmer, na qualidade de agentes,

demandada,

apoiada por:

República da Bulgária, representada por T. Ivanov e E. Petranova, na qualidade de agentes,

República Checa, representada por M. Smolek, na qualidade de agente,

República da Letónia, representada por L. Ostrovska, K. Drēviņa e J. Barbale, na qualidade de agentes,

República da Lituânia, representada por D. Kriaučiūnas e E. Matulionytė, na qualidade de agentes,

República da Hungria, representada por R. Somssich, K. Veres e M. Fehér, na qualidade de agentes,

Roménia, representada por C. Osman, A. Gheorghiu, A. Stoia e A. Popescu, na qualidade de agentes,

República Eslovaca, representada por J. Čorba e B. Ricziová, na qualidade de agentes,

intervenientes,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts, J.-C. Bonichot, A. Arabadjiev (relator) e J.-J. Kasel, presidentes de secção, R. Silva de Lapuerta, E. Juhász, G. Arestis, M. Ilešič, C. Toader e M. Safjan, juízes,

advogado-geral: P. Cruz Villalón,

secretário: M.-A. Gaudissart, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 27 de Abril de 2010,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 14 de Setembro de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        Através da sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao impor um requisito de nacionalidade para o acesso à profissão de notário, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.º CE e 45.º CE.

 Quadro jurídico

 Organização geral da profissão de notário em França

2        Na ordem jurídica francesa, os notários exercem as suas funções no âmbito de uma profissão liberal. O estatuto desta profissão é regulado pelo Despacho nº 45‑2590, de 2 de Novembro de 1945, relativo ao Estatuto do Notariado (ordonnance n° 45‑2590, du 2 novembre 1945, relative au statut du notariat; JORF de 3 de Novembro de 1945, p. 7160), conforme alterado pela Lei n.º 2004‑130, de 11 de Fevereiro de 2004 (loi n° 2004‑130 du 11 février 2004; JORF de 12 de Fevereiro de 2004, p. 2847).

3        Nos termos do artigo 1.º deste despacho, os notários são «oficiais públicos competentes para receber todos os actos e contratos aos quais as partes devem ou querem conferir o carácter de autenticidade reconhecido aos actos da autoridade pública e para assegurar a respectiva data, o respectivo arquivamento e extrair públicas formas».

4        Nos termos do artigo 1.º bis do referido despacho, o notário pode exercer a sua profissão a título individual, quer no âmbito de uma sociedade civil profissional ou de uma sociedade de exercício liberal, quer na qualidade de assalariado de uma pessoa singular ou colectiva que seja titular de um cartório.

5        Segundo o artigo 6.º‑1, primeiro parágrafo, do mesmo despacho, a responsabilidade civil profissional dos notários é garantida através de um contrato de seguro subscrito pelo Conseil supérieur du notariat (Conselho Superior do Notariado).

6        A competência territorial dos notários, o seu número e a localização dos seus cartórios são determinados em conformidade com as disposições do Decreto nº 71‑942, de 26 de Novembro de 1971, relativo às criações, às transferências e às supressões de cartórios, à competência para a elaboração de actos e à residência dos notários, ao depósito e à transmissão das minutas e aos registos profissionais dos notários (décret n° 71‑942, du 26 novembre 1971, relatif aux créations, transferts et suppressions d’office de notaire, à la compétence d’instrumentation et à la résidence des notaires, à la garde et à la transmission des minutes et registres professionnels des notaires; JORF de 3 de Dezembro de 1971, p. 11796), conforme alterado pelo Decreto n.º 2005‑311, de 25 de Março de 2005 (décret n° 2005‑311, du 25 mars 2005; JORF de 3 de Abril de 2005, p. 6062).

7        Nos termos do artigo 1.º do Decreto n.º 78‑262, de 8 de Março de 1978, que fixa os honorários dos notários (décret n° 78‑262, du 8 mars 1978, portant fixation du tarif des notaires; JORF de 10 de Março de 1978, p. 995), conforme alterado pelo Decreto n.º 2006‑558, de 16 de Maio de 2006 (décret n° 2006‑558, du 16 mai 2006; JORF de 18 de Maio de 2006, p. 7327), os montantes devidos a estes últimos a título das suas prestações são determinados em conformidade com o disposto neste decreto. O artigo 4.º do referido decreto prevê que os notários são remunerados, pelos serviços prestados no exercício das actividades não previstas no título II do mesmo decreto e que sejam compatíveis com a função notarial, através de honorários fixados de comum acordo com as partes, ou, se for caso disso, pelo juiz encarregado de fixar o montante.

8        O artigo 4.º do Regulamento Nacional dos Notários (règlement national des notaires) elaborado pelo Conseil supérieur du notariat ao abrigo do artigo 26.º do Decreto n.º 71‑942 e aprovado por despacho do garde des Sceaux, Ministro da Justiça, de 24 de Dezembro de 1979 (JORF de 3 de Janeiro de 1980, N.C., p. 45), prevê que qualquer pessoa colectiva ou singular de direito privado ou de direito público é livre de escolher o seu notário. Esta mesma disposição precisa que a clientela de um notário é constituída pelas «pessoas que, voluntariamente, requeiram os seus conselhos, os seus pareceres, os seus serviços, ou que lhe confiem a elaboração das suas convenções».

9        No que respeita aos requisitos de acesso às funções de notário, o artigo 3.º do Decreto n.º 73‑609, de 5 de Julho de 1973, relativo à formação profissional no notariado e aos requisitos de acesso às funções de notário (décret n° 73‑609, du 5 juillet 1973, relatif à la formation professionnelle dans le notariat et aux conditions d’accès aux fonctions de notaire; JORF de 7 de Julho de 1973, p. 7341), conforme alterado pelo Decreto n.º 2006‑1299, de 24 de Outubro de 2006, relativo aos notários assalariados (décret n° 2006‑1299, du 24 octobre 2006, relatif aux notaires salariés; JORF de 25 de Outubro de 2006, p. 15781), dispõe que ninguém pode ser notário se não for, nomeadamente, francês.

 Actividades notariais em França

10      No que respeita às diferentes actividades do notário na ordem jurídica francesa, é ponto assente que a sua principal função consiste em lavrar actos autênticos. A intervenção do notário pode, assim, ser obrigatória ou facultativa, em função do acto que seja chamado a autenticar. Quando intervém, o notário verifica se estão reunidos todos os requisitos legalmente exigidos para a realização do acto assim como a capacidade jurídica e a capacidade para agir das partes em causa.

11      O acto autêntico está definido no artigo 1317.º do Código Civil (code civil), que consta do capítulo VI, intitulado «Da prova das obrigações e da prova do pagamento», do título III do livro III deste código. Constitui um acto autêntico, nos termos deste artigo, «aquele que é recebido por oficiais públicos que têm direito a exarar documentos no lugar onde o acto foi redigido, com as formalidades exigidas».

12      Por força do artigo 19.º da Lei de 25 de Ventoso do ano XI que contém a organização do notariado (loi du 25 ventôse an XI contenant organisation du notariat), os actos notariais «farão fé em juízo e serão executórios em toda a República».

13      Precisa‑se, no artigo 1319.º do Código Civil, que «[o] acto autêntico faz fé da convenção dele constante, celebrada entre as partes outorgantes e os respectivos herdeiros ou sucessores».

14      O artigo 1322.º do mesmo código prevê que «[o] acto autenticado, reconhecido por aquele a quem é oposto, ou legalmente reconhecido como tal, goza, entre aqueles que o subscreveram e entre os respectivos herdeiros e sucessores, da mesma fé que o acto autêntico».

15      Em conformidade com o artigo 1.º do Despacho n.º 45‑2592, de 2 de Novembro de 1945, relativo ao estatuto dos huissiers (ordonnance n° 45-2592, du 2 novembre 1945, relative au statut des huissiers; JORF de 3 de Novembro de 1945, p. 7163), conforme alterado pela Lei n.º 73‑546, de 25 de Junho de 1973, relativa à regulamentação e ao estatuto dos notários e de certos officiers ministériels (loi n° 73‑546, du 25 juin 1973, relative à la discipline et au statut des notaires et de certains officiers ministériels; JORF de 26 de Junho de 1973, p. 6731), só os huissiers de justice têm competência para, nomeadamente, fazerem executar as decisões judiciais, bem como os actos ou títulos que revistam fórmula executiva. O artigo 18.º da Lei n.º 91‑650, de 9 de Julho de 1991, que introduziu alterações aos processos civis de execução (loi n° 91‑650, du 9 juillet 1991, portant réforme des procédures civiles d’exécution; JORF de 14 de Julho de 1991, p. 9228), dispõe que só os huissiers de justice encarregados da execução podem proceder à execução e aos arrestos.

16      Nos termos do artigo L. 213‑6 do Código da Organização Judiciária (code de l’organisation judiciaire), o juge de l'exécution (juiz da execução) conhece, de forma exclusiva, das dificuldades relativas aos títulos executivos e das impugnações suscitadas por ocasião da execução, ainda que tenham por objecto uma questão de mérito, excepto nos casos em que estas não sejam da competência dos órgãos jurisdicionais da ordem judiciária. Nas mesmas condições, o juge de l'exécution autoriza as medidas de conservação das garantias e conhece das impugnações relativas à sua implementação.

 Procedimento pré-contencioso

17      Foi apresentada à Comissão uma queixa relativa ao requisito da nacionalidade para o acesso à profissão de notário em França. Depois de ter examinado esta queixa, a Comissão, por carta de 8 de Novembro de 2000, enviou à República Francesa uma notificação para cumprir, para que esta, no prazo de dois meses, lhe apresentasse as suas observações a propósito da conformidade do referido requisito da nacionalidade com o artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE.

18      Por carta de 13 de Março de 2001, a República Francesa respondeu à referida notificação para cumprir.

19      Em 12 de Julho de 2002, a Comissão enviou a este Estado‑Membro uma notificação para cumprir complementar, na qual o acusava de não ter cumprido as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.º CE e 45.º, primeiro parágrafo, CE.

20      O referido Estado‑Membro respondeu a esta notificação para cumprir complementar, por carta de 11 de Outubro de 2002.

21      Não tendo ficado convencida com os argumentos invocados pela República Francesa, a Comissão, em 18 de Outubro de 2006, enviou a este Estado‑Membro um parecer fundamentado, no qual concluiu que este não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbiam por força dos artigos 43.º CE e 45.º, primeiro parágrafo, CE. Esta instituição convidou o referido Estado‑Membro a adoptar as medidas necessárias para dar cumprimento ao parecer fundamentado no prazo de dois meses a contar da sua recepção.

22      Por carta de 12 de Dezembro de 2006, a República Francesa apresentou os motivos pelos quais considerava que a posição defendida pela Comissão não era procedente.

23       Foi nestas condições que a Comissão decidiu intentar a presente acção.

 Quanto à acção

 Quanto à admissibilidade da intervenção do Reino Unido

24      A República Francesa considera que o articulado de intervenção do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte é inadmissível porque não contém, em violação das disposições do artigo 40.º, quarto parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e do artigo 93.º, n.º 5, segundo parágrafo, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, conclusões que sustentem as conclusões da Comissão. A título subsidiário, a República Francesa invoca a inadmissibilidade parcial da referida intervenção, pelo facto de as conclusões do Reino Unido ultrapassarem as que foram apresentadas pela Comissão, na medida em que este Estado‑Membro conclui, por um lado, pela aplicabilidade da Directiva 2005/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Setembro de 2005, relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais (JO L 255, p. 22), à profissão de notário e, por outro, pela natureza destacável da profissão de notário das actividades notariais não abrangidas pelo artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE.

25      A este respeito, convém recordar que, segundo o artigo 40.º, quarto parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça, as conclusões do pedido de intervenção se devem limitar a sustentar as conclusões de uma das partes.

26      Do mesmo modo, o artigo 93.º, n.º 5, segundo parágrafo, do Regulamento de Processo dispõe, nomeadamente, que as alegações devem conter uma exposição em que o interveniente declare as razões pelas quais entende que os pedidos de uma das partes deveriam ser deferidos ou indeferidos, no todo ou em parte, e os fundamentos e argumentos invocados pelo interveniente.

27      A conclusão a que chega o Reino Unido no seu articulado de intervenção está formulada do seguinte modo:

«[A] profissão de notário é abrangida pelo âmbito de aplicação da Directiva [2005/36]. Certas actividades exercidas pelos notários só podem ser excluídas do âmbito de aplicação [desta] directiva se o Tribunal de Justiça concluir que estas actividades estão abrangidas pela excepção mencionada no considerando 41 da [referida] directiva, nos termos dos artigos 39.º, n.º 4, CE e/ou 45.º CE.»

28      Importa salientar que, na sua acção, a Comissão não conclui pedindo que o Tribunal de Justiça declare que a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 2005/36. Por conseguinte, visto o Reino Unido ter concluído pela aplicabilidade desta directiva à profissão de notário, a sua intervenção é inadmissível.

29      Quanto ao demais, ainda que, literalmente, o objecto da intervenção do referido Estado‑Membro assim descrito pareça diferente daquele que pode validamente constar de um articulado de intervenção, resulta de uma leitura global do articulado de intervenção em causa e do contexto em que este último se insere que os argumentos que o Reino Unido apresentou tendem a demonstrar, à semelhança das considerações desenvolvidas pela Comissão na sua petição inicial, que a profissão de notário não está ligada ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE.

30      No que se refere, em especial, à objecção formulada pela República Francesa contra o argumento, apresentado pelo Reino Unido, segundo o qual a aplicação do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE não pode ser alargada a todas as actividades dos notários, ao contrário do que a Comissão considerou na sua petição inicial, há que salientar que o dito Estado‑Membro não pode ser acusado de ter acrescentado novas conclusões às que foram apresentadas pela Comissão. Com efeito, o referido argumento constitui apenas uma remissão para o n.º 47 do acórdão de 21 de Junho de 1974, Reyners (2/74, Colect., p. 325), não tendo o Reino Unido tomado posição sobre a aplicabilidade desta jurisprudência às actividades concretas exercidas pelos notários em França.

31      Há assim que considerar que o articulado de intervenção do Reino Unido só é inadmissível na parte em que conclui pela aplicabilidade da Directiva 2005/36 à profissão de notário.

 Quanto ao mérito

 Argumentos das partes

32      A Comissão sublinha, a título preliminar, que o acesso à profissão de notário não está sujeito a nenhum requisito de nacionalidade em certos Estado‑Membros e que este requisito foi eliminado por outros Estados‑Membros, como o Reino de Espanha, a República Italiana e a República Portuguesa.

33      Em primeiro lugar, esta instituição recorda que o artigo 43.º CE constitui uma das disposições fundamentais do direito da União que visa garantir o direito ao tratamento nacional a todos os nacionais de um Estado‑Membro que se estabeleçam noutro Estado‑Membro, mesmo que a título secundário, para aí exercerem uma actividade não assalariada, e proíbe qualquer discriminação em razão da nacionalidade.

34      A referida instituição e o Reino Unido alegam que o artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE deve ser objecto de uma interpretação autónoma e uniforme (acórdão de 15 de Março de 1988, Comissão/Grécia, 147/86, Colect., p. 1637, n.º 8). Na parte em que prevê uma excepção à liberdade de estabelecimento para as actividades ligadas ao exercício da autoridade pública, este artigo deve, além disso, ser interpretado de forma estrita (acórdão Reyners, já referido, n.º 43).

35      A excepção prevista no artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE deve assim ser restringida às actividades que, em si próprias, constituem a participação directa e específica no exercício do poder público (acórdão Reyners, já referido, n.os 44 e 45). Segundo a Comissão, o conceito de poder público decorre de um poder de decisão que extravase do direito comum, que se traduz na capacidade de agir independentemente da vontade de outros sujeitos ou mesmo contra essa vontade. Em especial, a autoridade pública manifesta‑se, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, através do exercício de poderes para impor obrigações (acórdão de 29 de Outubro de 1998, Comissão/Espanha, C‑114/97, Colect., p. I‑6717, n.º 37).

36      A Comissão e o Reino Unido são de opinião de que as actividades que estão ligadas ao exercício da autoridade pública devem ser distinguidas das que são exercidas no interesse geral. Com efeito, são atribuídas a diversas profissões competências específicas no interesse geral, que não são suficientes para conferir à sua actividade a natureza de exercício da autoridade pública.

37      Também ficam excluídas do âmbito de aplicação do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE as actividades que constituem assistência ou colaboração no funcionamento da autoridade pública (v., neste sentido, acórdão de 13 de Julho de 1993, Thijssen, C‑42/92, Colect., p. I‑4047, n.º 22).

38      Além disso, a Comissão e o Reino Unido recordam que o artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE visa, em princípio, actividades determinadas, e não uma profissão na sua totalidade, a menos que as actividades em causa não sejam destacáveis do conjunto das que são exercidas no âmbito da referida profissão.

39      A Comissão procede, em segundo lugar, ao exame das diferentes actividades exercidas pelo notário na ordem jurídica francesa.

40      No que respeita, primeiro, à autenticação dos actos e das convenções, a Comissão alega que o notário se limita a testemunhar a vontade das partes, depois de as ter aconselhado, e a conferir efeitos jurídicos a essa vontade. No exercício desta actividade, o notário não dispõe de poder de decisão relativamente às partes. Assim, a autenticação efectuada pelo notário mais não é do que a confirmação de um acordo prévio entre as partes. O facto de certos actos deverem obrigatoriamente ser autenticados não é relevante, uma vez que vários procedimentos têm carácter obrigatório, sem, no entanto, constituírem a manifestação do exercício da autoridade pública.

41      O facto de o notário se responsabilizar no momento em que são lavrados actos notariais aproxima‑o da maioria dos profissionais independentes, como os advogados, os arquitectos ou os médicos, que também são responsabilizados no âmbito das actividades que exercem.

42      Quanto à força executória dos actos autênticos, a Comissão considera que a aposição da fórmula executória antecede a execução propriamente dita, sem dela fazer parte. Deste modo, esta força executória não confere aos notários o poder para impor obrigações. Por outro lado, as eventuais impugnações são decididas não pelo notário mas pelo juiz.

43      Segundo, o papel do notário em matéria de cobrança de impostos também não constitui uma actividade ligada ao exercício da autoridade pública, uma vez que as pessoas privadas são frequentemente levadas a exercer esse tipo de responsabilidade no domínio fiscal. Assim, as empresas privadas actuam por conta de terceiros, quando procedem à retenção na fonte dos impostos (précompte profissionnel) dos seus empregados. O mesmo sucede com os estabelecimentos de crédito, quando retêm na fonte o montante dos impostos devidos sobre os bens de natureza mobiliária (précompte mobilier) dos seus clientes que auferem rendimentos provenientes de bens de natureza mobiliária.

44      Terceiro, o estatuto específico do notário no direito francês não é directamente pertinente para efeitos da apreciação da natureza das actividades em causa.

45      Em terceiro lugar, a Comissão considera, à semelhança do Reino Unido, que as regras do direito da União que contêm referências à actividade notarial não prejudicam a aplicação dos artigos 43.º CE e 45.º, primeiro parágrafo, CE a esta actividade.

46      Com efeito, tanto o artigo 1.º, n.º 5, alínea d), da Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno («Directiva sobre o comércio electrónico») (JO L 178, p. 1), como o considerando 41 da Directiva 2005/36 só excluem dos respectivos âmbitos de aplicação as actividades notariais na parte em que tenham uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública. Trata‑se, assim, de uma simples reserva que não tem nenhuma incidência na interpretação do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE. Quanto ao artigo 2.º, n.º 2, alínea l), da Directiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (JO L 376, p. 36), que exclui as actividades notariais do âmbito de aplicação desta directiva, a Comissão sublinha que o facto de o legislador ter optado por excluir uma determinada actividade do âmbito de aplicação da referida directiva não significa que o artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE seja aplicável a essa actividade.

47      No que respeita ao Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), ao Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (JO L 338, p. 1), e ao Regulamento (CE) n.º 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados (JO L 143, p. 15), a Comissão considera que se limitam a prever a obrigação de os Estados‑Membros reconhecerem e conferirem força executória a actos recebidos e executórios noutro Estado‑Membro.

48      Além disso, o Regulamento (CE) n.º 2157/2001 do Conselho, de 8 de Outubro de 2001, relativo ao estatuto da sociedade europeia (SE) (JO L 294, p. 1), e a Directiva 2005/56/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro de 2005, relativa às fusões transfronteiriças das sociedades de responsabilidade limitada (JO L 310, p. 1), não são pertinentes para a resolução do presente litígio, uma vez que se limitam a atribuir aos notários, bem como a outras autoridades competentes designadas pelo Estado, a função de certificar a realização de certos actos e formalidades prévios à transferência de sede, à constituição e à fusão de sociedades.

49      Por seu turno, a Resolução do Parlamento Europeu de 23 de Março de 2006 sobre as profissões jurídicas e o interesse geral no funcionamento da ordem jurídica (JO C 292E, p. 105, a seguir «Resolução de 2006») constitui um acto puramente político, cujo conteúdo é ambíguo porque, por um lado, no n.º 17 desta resolução, o Parlamento Europeu afirmou que o artigo 45.º CE se deve aplicar à profissão de notário, quando, por outro, no seu n.º 2, confirmou a posição formulada na sua Resolução de 18 de Janeiro de 1994 sobre a situação e organização do notariado nos doze Estados‑Membros da Comunidade (JO C 44, p. 36, a seguir «Resolução de 1994»), na qual manifestava o desejo de que o requisito da nacionalidade para o acesso à profissão de notário, previsto na regulamentação de vários Estados‑Membros, fosse eliminado.

50      A Comissão e o Reino Unido acrescentam que o processo que deu origem ao acórdão de 30 de Setembro de 2003, Colegio de Oficiales de la Marina Mercante Española (C‑405/01, Colect., p. I‑10391), ao qual vários Estados‑Membros se referem nas suas observações escritas, dizia respeito ao exercício, por parte dos capitães e dos imediatos de navios mercantes, de um vasto conjunto de funções de manutenção da segurança, de poderes de polícia, bem como de competências em matéria notarial e de registo civil. Deste modo, o Tribunal de Justiça não teve a ocasião de examinar em pormenor as diferentes actividades exercidas pelos notários, à luz do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE. Por conseguinte, este acórdão não é suficiente para se concluir pela aplicação desta disposição aos notários.

51      Por outro lado, contrariamente ao que afirma a República Francesa, a jurisprudência do Tribunal de Justiça distingue os notários das autoridades públicas, quando reconhece que um acto autêntico pode ser elaborado por uma autoridade pública ou qualquer outra autoridade para isso habilitada (acórdão de 17 de Junho de 1999, Unibank, C‑260/97, Colect., p. I‑3715, n.os 15 e 21).

52      A República Francesa, apoiada pela República da Bulgária, pela República Checa, pela República da Letónia, pela República da Lituânia, pela República da Hungria, pela Roménia e pela República Eslovaca, alega, em primeiro lugar, que a Comissão viola a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Com efeito, esta jurisprudência não limita a aplicação do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE unicamente às actividades que implicam um poder para impor obrigações, uma vez que esse poder constitui apenas uma das componentes do exercício da autoridade pública.

53      A este respeito, o Tribunal de Justiça reconheceu, no seu acórdão Colegio de Oficiales de la Marina Mercante Española, já referido, que as funções notariais constituem actividades que estão ligadas ao exercício de prerrogativas de poder público.

54      A participação dos notários em actividades ligadas ao exercício da autoridade pública é, em segundo lugar, demonstrada através das funções que lhes são atribuídas em matéria de cobrança de impostos. Estas funções não se limitam apenas à posse de fundos públicos, mas incluem igualmente a fixação da base para o apuramento do imposto sobre o rendimento em matéria de mais‑valias respeitantes a bens imobiliários e a cobrança dos emolumentos registais e do imposto sobre o rendimento em matéria de sucessões, assumindo os notários a responsabilidade pelo pagamento destes emolumentos registais. Ao realizarem estas tarefas, os notários liquidam o imposto por conta de terceiros, a saber, os seus clientes.

55      Em terceiro lugar, a República Francesa sublinha, à semelhança da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da Roménia e da República Eslovaca, que as actividades exercidas pelos notários incluem a elaboração de actos autênticos que revestem força probatória e força executória, o que constitui uma manifestação concreta da autoridade pública. Para certos actos, como as doações e as sucessões testamentárias a favor dos herdeiros legitimários, as convenções antenupciais, as constituições de hipotecas, as «ventes en état futur d’achèvement» (vendas de bens imóveis com imediata transferência da propriedade do solo com projecto de construção futura) e os arrendamentos rurais transmissíveis, a intervenção do notário constitui um requisito da sua validade.

56      No exercício da sua actividade, compete ao notário explicar às partes o alcance do seu acto, certificar‑se de que o consentimento destas é dado de livre vontade e colocar as questões úteis para obter os elementos indispensáveis ao cumprimento das disposições legais. O notário está também obrigado a proceder, consoante o caso, a todas as verificações adequadas a garantir a validade jurídica do acto. Por outro lado, o notário deve recusar receber todos os actos que sejam contrários à ordem pública ou ilegais.

57      Além disso, o acto notarial tem a força probatória mais elevada na hierarquia dos meios de prova no direito francês. A referida força probatória decorre da data do acto, das assinaturas que são apostas no acto e dos factos que o notário afirma que foram por si realizados ou que ocorreram na sua presença. A autenticidade destes elementos só pode ser questionada através do processo de falsidade, previsto nos artigos 303.º a 316.º do Código de Processo Civil (code de procédure civile).

58      Por outro lado, resulta do acórdão Unibank, já referido, que a intervenção de uma autoridade pública ou de qualquer outra autoridade habilitada pelo Estado é necessária para conferir a um determinado acto a qualidade de acto autêntico.

59      Os actos notariais são igualmente dotados de força executória, sem que seja necessário obter uma decisão judicial prévia. Assim, ainda que se admita que a jurisprudência do Tribunal de Justiça limita a aplicação do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE apenas às actividades que comportam um poder para impor obrigações, a profissão de notário é abrangida por esta disposição pelo facto de o acto notarial ter força executória.

60      Em quarto lugar, a República Francesa alega que o estatuto do notário na ordem jurídica francesa comprova uma ligação directa do notário ao exercício da autoridade pública. Assim, os notários são nomeados pelo Ministro da Justiça e estão sujeitos à fiscalização dos procuradores. Além disso, prestam juramento e estão sujeitos a um estrito regime de incompatibilidades.

61      Em quinto lugar, o referido Estado‑Membro observa que o legislador da União confirmou que a actividade dos notários está ligada ao exercício da autoridade pública. A este respeito, refere‑se aos actos da União mencionados no n.º 46 do presente acórdão, que excluem as actividades exercidas pelos notários do seu âmbito de aplicação respectivo, devido à ligação destes últimos ao exercício da autoridade pública, ou reconhecem que os actos autênticos são elaborados por uma autoridade pública ou por qualquer outra autoridade habilitada para este efeito pelo Estado. Por outro lado, decorre dos actos mencionados nos n.os 47 e 48 do presente acórdão que os actos notariais são equiparados às decisões judiciais.

62      Além disso, o Parlamento, nas suas Resoluções de 1994 e de 2006, afirmou que a profissão de notário está ligada ao exercício da autoridade pública.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

–       Considerações preliminares

63      A Comissão acusa a República Francesa de criar obstáculos ao estabelecimento, com vista ao exercício da profissão de notário, dos nacionais dos outros Estados‑Membros no seu território, reservando o acesso a esta profissão aos seus próprios nacionais, em violação do artigo 43.º CE.

64      A presente acção tem assim apenas por objecto o requisito da nacionalidade, exigido pela legislação francesa em causa, para o acesso à referida profissão, à luz do artigo 43.º CE.

65      Por conseguinte, há que precisar que a referida acção não tem por objecto o estatuto e a organização do notariado na ordem jurídica francesa nem os requisitos de acesso, para além do que se refere à nacionalidade, à profissão de notário neste Estado‑Membro.

66      De resto, importa sublinhar, como a Comissão indicou na audiência, que a sua acção também não se refere à aplicação das disposições do Tratado CE relativas à livre prestação de serviços. Do mesmo modo, a referida acção também não tem por objecto a aplicação das disposições do Tratado relativas à livre circulação dos trabalhadores.

–       Quanto ao incumprimento alegado

67      Há que recordar, em primeiro lugar, que o artigo 43.º CE constitui uma das disposições fundamentais do direito da União (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão Reyners, já referido, n.º 43).

68      O conceito de estabelecimento, na acepção desta disposição, é um conceito muito amplo, que implica a possibilidade de um nacional da União participar, de modo estável e contínuo, na vida económica de um Estado‑Membro diferente do seu Estado‑Membro de origem, e de dela tirar proveito, favorecendo assim a interpenetração económica e social no interior da União Europeia no domínio das actividades não assalariadas (v., nomeadamente, acórdão de 22 de Dezembro de 2008, Comissão/Áustria, C‑161/07, Colect., p. I‑10671, n.º 24).

69      A liberdade de estabelecimento reconhecida aos nacionais de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro comporta, nomeadamente, o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício nas mesmas condições que as definidas pela legislação do Estado‑Membro de estabelecimento para os seus próprios nacionais (v., nomeadamente, acórdão de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, 270/83, Colect., p. 273, n.º 13, e, neste sentido, acórdão Comissão/Áustria, já referido, n.º 27). Por outras palavras, o artigo 43.º CE proíbe que cada Estado‑Membro preveja na sua legislação, para as pessoas que exercem a liberdade de nele se estabelecer, requisitos para o exercício das suas actividades diferentes dos definidos para os seus próprios nacionais (acórdão Comissão/Áustria, já referido, n.º 28).

70      O artigo 43.º CE visa, assim, garantir o direito ao tratamento nacional a todos os nacionais de um Estado‑Membro que se estabeleçam noutro Estado‑Membro para aí exercerem uma actividade não assalariada e proíbe qualquer discriminação em razão da nacionalidade, resultante das legislações nacionais, enquanto restrição à liberdade de estabelecimento (acórdão Comissão/França, já referido, n.º 14).

71      Ora, no presente caso, a legislação nacional controvertida reserva o acesso à profissão de notário aos cidadãos franceses, consagrando assim uma diferença de tratamento em razão da nacionalidade, proibida, em princípio, pelo artigo 43.º CE.

72      A República Francesa alega, no entanto, que as actividades notariais não são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 43.º CE, porque estão ligadas ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE. Assim, num primeiro momento, há que examinar o alcance do conceito de exercício da autoridade pública na acepção desta última disposição e, num segundo momento, verificar se as actividades atribuídas aos notários na ordem jurídica francesa são abrangidas por este conceito.

73      Relativamente ao conceito de «exercício da autoridade pública» na acepção do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE, importa sublinhar que a apreciação deste deve tomar em consideração, segundo jurisprudência constante, o carácter, próprio ao direito da União, dos limites impostos por esta disposição às excepções permitidas ao princípio da liberdade de estabelecimento, para evitar que o efeito útil do Tratado em matéria de liberdade de estabelecimento seja neutralizado por disposições unilaterais adoptadas pelos Estados‑Membros (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Reyners, n.º 50, e Comissão/Grécia, n.º 8; e acórdão de 22 de Outubro de 2009, Comissão/Portugal, C-438/08, Colect., p. I‑10219, n.º 35).

74      É também jurisprudência constante que o artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE constitui uma derrogação à regra fundamental da liberdade de estabelecimento. Como tal, esta derrogação deve ser objecto de uma interpretação que limite o seu alcance ao estritamente necessário para salvaguardar os interesses que esta disposição permite aos Estados‑Membros proteger (acórdãos, já referidos, Comissão/Grécia, n.º 7, e Comissão/Espanha, n.º 34; acórdão de 30 de Março de 2006, Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, C‑451/03, Colect., p. I‑2941, n.º 45; acórdãos de 29 de Novembro de 2007, Comissão/Áustria, C‑393/05, Colect., p. I‑10195, n.º 35, e Comissão/Alemanha, C‑404/05, Colect., p. I‑10239, n.os 37 e 46; e acórdão Comissão/Portugal, já referido, n.º 34).

75      Além disso, o Tribunal de Justiça já sublinhou repetidamente que a derrogação prevista no artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE se deve restringir apenas às actividades que, consideradas em si mesmas, apresentem uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública (acórdãos, já referidos, Reyners, n.º 45; Thijssen, n.º 8; Comissão/Espanha, n.º 35; Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, n.º 46; Comissão/Alemanha, n.º 38; e Comissão/Portugal, n.º 36).

76      A este respeito, o Tribunal de Justiça já teve ocasião de considerar que estão excluídas da derrogação prevista no artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE certas actividades que são auxiliares ou preparatórias relativamente ao exercício da autoridade pública (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Thijssen, n.º 22; Comissão/Espanha, n.º 38; Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, n.º 47; Comissão/Alemanha, n.º 38; e Comissão/Portugal, n.º 36), ou certas actividades cujo exercício, embora comporte contactos, ainda que regulares e orgânicos, com autoridades administrativas ou judiciárias, ou uma contribuição, mesmo que obrigatória, para o seu funcionamento, deixe intactos os poderes de apreciação e de decisão das referidas autoridades (v., neste sentido, acórdão Reyners, já referido, n.os 51 e 53), ou ainda certas actividades que não comportam o exercício de poderes decisórios (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Thijssen, n.os 21 e 22; de 29 de Novembro de 2007, Comissão/Áustria, n.os 36 e 42; Comissão/Alemanha, n.os 38 e 44; e Comissão/Portugal, n.os 36 e 41), de poderes para impor obrigações (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão Comissão/Espanha, já referido, n.º 37) ou de poderes de coerção (v., neste sentido, acórdão de 30 de Setembro de 2003, Anker e o., C‑47/02, Colect., p. I‑10447, n.º 61, e acórdão Comissão/Portugal, já referido, n.º 44).

77      Há que verificar, à luz das considerações precedentes, se as actividades confiadas aos notários na ordem jurídica francesa têm uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública.

78      Para este efeito, há que tomar em consideração a natureza das actividades exercidas pelos membros da profissão em causa (v., neste sentido, acórdão Thijssen, já referido, n.º 9).

79      A República Francesa e a Comissão estão de acordo sobre o facto de que a actividade principal dos notários na ordem jurídica francesa consiste em lavrar, com as formalidades exigidas, actos autênticos. Para tal, o notário deve verificar, nomeadamente, se estão reunidos todos os requisitos legalmente exigidos para a realização do acto. Além disso, o acto autêntico goza de força probatória e de força executória.

80      A este respeito, há que sublinhar, em primeiro lugar, que são objecto de autenticação, por força da legislação francesa, os actos ou as convenções a que as partes livremente aderiram. Com efeito, estas decidem, dentro dos limites impostos por lei, do alcance dos respectivos direitos e obrigações e escolhem livremente as estipulações a que se querem submeter quando apresentam para autenticação ao notário um acto ou uma convenção. A intervenção deste pressupõe, assim, a existência prévia de um consentimento ou de um acordo de vontade entre as partes.

81      Além disso, o notário não pode alterar unilateralmente a convenção que é chamado a autenticar, sem ter previamente obtido o consentimento das partes.

82      Assim, a actividade de autenticação confiada aos notários não está, em si mesma, directa e especificamente ligada ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE.

83      O facto de certos actos ou certas convenções deverem obrigatoriamente ser objecto de autenticação, sob pena de nulidade, não é susceptível de pôr em causa esta conclusão. Com efeito, é frequente que a validade dos actos mais diversos seja submetida, nas ordens jurídicas nacionais e segundo as modalidades previstas, a requisitos formais ou ainda a procedimentos obrigatórios de validação. Esta circunstância não é, assim, suficiente para sustentar a tese defendida pela República Francesa.

84      A obrigação de os notários verificarem, antes de procederem à autenticação de um acto ou de uma convenção, que estão reunidos todos os requisitos legalmente exigidos para a realização desse acto ou dessa convenção e, se tal não suceder, de recusarem proceder a essa autenticação também não é susceptível de pôr em causa a conclusão acima exposta.

85      É certo que, como sublinha a República Francesa, o notário exerce essa verificação, prosseguindo um objectivo de interesse geral, isto é, garantir a legalidade e a segurança jurídica dos actos celebrados entre particulares. No entanto, a mera prossecução desse objectivo não pode justificar que as prerrogativas necessárias para esse fim estejam reservadas apenas aos notários nacionais do Estado‑Membro em causa.

86      O facto de agir prosseguindo um objectivo de interesse geral não basta, em si mesmo, para que se considere que uma determinada actividade está directa e especificamente ligada ao exercício da autoridade pública. Com efeito, é ponto assente que as actividades exercidas no âmbito de diversas profissões regulamentadas implicam frequentemente, nas ordens jurídicas nacionais, para as pessoas que as exercem, a obrigação de prosseguirem esse objectivo, sem que essas actividades façam parte, no entanto, do exercício dessa autoridade.

87      Contudo, o facto de as actividades notariais prosseguirem objectivos de interesse geral, que visam, nomeadamente, garantir a legalidade e a segurança jurídica dos actos celebrados entre particulares, constitui uma razão imperiosa de interesse geral que permite justificar eventuais restrições ao artigo 43.º CE, decorrentes das especificidades próprias da actividade notarial, como sejam o enquadramento de que os notários são objecto através dos processos de recrutamento que lhes são aplicáveis, a limitação do seu número e das suas competências territoriais ou ainda o seu regime de remuneração, de independência, de incompatibilidades e de inamovibilidade, desde que essas restrições permitam alcançar os referidos objectivos e sejam necessárias para esse efeito.

88      Também é verdade que o notário deve recusar autenticar um acto ou uma convenção que não preencha os requisitos legalmente exigidos, fazendo‑o independentemente da vontade das partes. No entanto, na sequência dessa recusa, estas são livres de corrigir a ilegalidade constatada, de alterar as estipulações do acto ou da convenção em causa, ou ainda de renunciar a esse acto ou a essa convenção.

89      Por outro lado, a consultoria e a assistência jurídicas asseguradas pelo notário no momento da autenticação do referido acto ou convenção não podem ser consideradas actividades que estão ligadas ao exercício da autoridade pública, mesmo quando haja, para ele, uma obrigação legal de assegurar essa consulta ou assistência (v., neste sentido, acórdão Reyners, já referido, n.º 52).

90      Relativamente à força probatória e à força executória de que o acto notarial beneficia, não se pode contestar que estas conferem aos referidos actos efeitos jurídicos importantes. No entanto, o facto de uma determinada actividade comportar a elaboração de actos dotados de tais efeitos não basta para que se considere que essa actividade está directa e especificamente ligada ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE.

91      Com efeito, no que respeita, em especial, à força probatória de que goza um acto notarial, há que precisar que esta decorre do regime probatório consagrado por lei na ordem jurídica em causa. Assim, o artigo 1319.º do Código Civil, que estabelece a força probatória do acto autêntico, faz parte do capítulo VI do referido código, intitulado «Da prova das obrigações e da prova do pagamento». A força probatória conferida por lei a um determinado acto não tem, portanto, incidência directa na questão de saber se a actividade ao abrigo da qual esse acto é lavrado, considerada em si mesma, tem uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública, como exigido pela jurisprudência (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Thijssen, n.º 8, e Comissão/Espanha, n.º 35).

92      Além disso, nos termos do artigo 1322.º do Código Civil, «[o] acto autenticado, reconhecido por aquele a quem este é oposto, ou legalmente reconhecido como tal, goza, entre aqueles que o subscreveram e entre os respectivos herdeiros e sucessores, da mesma fé que o acto autêntico».

93      No que respeita à força executória do acto autêntico, há que indicar, como alega a República Francesa, que permite que a obrigação contida nesse acto seja executada sem a intervenção prévia do juiz.

94      No entanto, a força executória do acto autêntico não se traduz, para o notário, em poderes que têm uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública. Com efeito, embora a aposição, pelo notário, da fórmula executória no acto autêntico confira a este força executória, esta assenta na vontade de as partes celebrarem um acto ou uma convenção, depois de o notário verificar a respectiva conformidade com a lei, e de lhes conferirem a referida força executória.

95      Por conseguinte, a elaboração de actos autênticos dotados de efeitos jurídicos, como os que foram descritos nos n.os 90 a 94 do presente acórdão, não comporta uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE.

96      No que se refere, em segundo lugar, às funções de cobrança de impostos, de que o notário está encarregado, estas não podem ser consideradas em si mesmas como estando ligadas directa e especificamente ao exercício da autoridade pública. A este respeito, há que precisar que esta cobrança é realizada pelo notário, por conta do devedor, é seguida de uma entrega dos respectivos montantes ao serviço competente do Estado, não sendo, deste modo, fundamentalmente diferente da respeitante ao imposto sobre o valor acrescentado.

97      No que se refere, em terceiro lugar, a actos, como sejam as doações e as sucessões testamentárias a favor dos herdeiros legitimários, as convenções antenupciais, as constituições de hipotecas, as «ventes en état futur d’achèvement» e os arrendamentos rurais transmissíveis, que devem ser celebrados através de acto notarial, sob pena de nulidade, remete‑se para as considerações constantes dos n.os 80 a 95 do presente acórdão.

98      No que respeita, em quarto lugar, ao estatuto específico dos notários na ordem jurídica francesa, basta recordar, como resulta dos n.os 75 e 78 do presente acórdão, que é à luz da natureza das actividades em causa, consideradas em si mesmas, e não à luz desse estatuto enquanto tal, que há que verificar se essas actividades são abrangidas pela derrogação prevista no artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE.

99      Impõem‑se, no entanto, duas precisões a este respeito. Primeiro, é ponto assente que, exceptuados os casos em que a designação de um notário é feita pela via judicial, as partes são livres de escolher o notário, em conformidade com o artigo 4.º do Regulamento Nacional dos Notários mencionado no n.º 8 do presente acórdão. Embora seja verdade que uma parte dos honorários dos notários é fixada por lei, não deixa de ser verdade que a qualidade dos serviços fornecidos pode variar de um notário para outro, em função, nomeadamente, das aptidões profissionais das pessoas em causa. Daqui resulta que, nos limites das respectivas competências territoriais, os notários exercem a sua profissão, como salientou o advogado‑geral no n.º 18 das suas conclusões, em condições de concorrência, o que não constitui uma característica do exercício da autoridade pública.

100    Segundo, há que salientar, como alega a Comissão, sem ser contradita neste ponto pela República Francesa, que os notários são directa e pessoalmente responsáveis, perante os seus clientes, pelos danos resultantes dos erros cometidos no exercício das suas actividades.

101    De resto, o argumento que a República Francesa retira de certos actos da União também não é convincente. Relativamente aos actos mencionados no n.º 46 do presente acórdão, há que precisar que o facto de o legislador ter optado por excluir as actividades notariais do âmbito de aplicação de um determinado acto não significa que estas sejam necessariamente abrangidas pela derrogação prevista no artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE. Quanto, em especial, à Directiva 2005/36, resulta da própria redacção do considerando 41 desta directiva, segundo o qual esta «não prejudica a aplicação do […] artigo 45.º [CE], designadamente no que diz respeito aos notários», que o legislador da União não tomou precisamente posição sobre a aplicabilidade do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE à profissão de notário.

102    A argumentação baseada nos actos da União visados nos n.os 47 e 48 do presente acórdão também não é relevante. No que se refere aos regulamentos mencionados no n.º 47 deste acórdão, têm por objecto o reconhecimento e a execução de actos autênticos recebidos e executórios num Estado‑Membro e não afectam, por conseguinte, a interpretação do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE. Impõe‑se a mesma conclusão relativamente aos actos da União mencionados no n.º 48 do presente acórdão, uma vez que se limitam, como alega correctamente a Comissão, a confiar aos notários, bem como a outras autoridades competentes designadas pelo Estado, a função de certificar a realização de certos actos e formalidades prévios à transferência de sede, à constituição e à fusão de sociedades.

103    Quanto às Resoluções de 1994 e de 2006, mencionadas no n.º 49 do presente acórdão, há que sublinhar que não produzem efeitos jurídicos, uma vez que não constituem, por natureza, actos vinculativos. De resto, embora indiquem que a profissão de notário é abrangida pelo artigo 45.º CE, o Parlamento, na primeira destas resoluções, manifestou expressamente o desejo de que fossem adoptadas medidas para que o requisito da nacionalidade para o acesso à profissão de notário fosse eliminado, tendo esta posição sido de novo implicitamente confirmada na Resolução de 2006.

104    No que respeita ao argumento que a República Francesa retira do acórdão Colegio de Oficiales de la Marina Mercante Española, já referido, há que precisar que o processo que deu origem a esse acórdão tinha por objecto a interpretação do artigo 39.º, n.º 4, CE, e não a do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE. Além disso, resulta do n.º 42 do referido acórdão que, quando declarou que as funções confiadas aos capitães e aos imediatos de navios constituem uma actividade ligada ao exercício de prerrogativas de poder público, o Tribunal de Justiça tinha em vista todas as funções exercidas por estes. O Tribunal de Justiça não examinou assim a única atribuição em matéria notarial confiada aos capitães e aos imediatos de navios, ou seja, a recepção, o depósito e a entrega de testamentos, separadamente das suas outras competências, como, por exemplo, os poderes de coerção ou de sanção de que estão investidos.

105    Quanto ao acórdão Unibank, já referido, ao qual a República Francesa também se refere, há que constatar que o processo que deu origem a esse acórdão não tinha de modo nenhum por objecto a interpretação do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE. Além disso, o Tribunal de Justiça declarou, no n.º 15 do referido acórdão, que, para que um acto seja qualificado de autêntico na acepção do artigo 50.º da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1989, L 285, p. 24), é necessária a intervenção de uma autoridade pública ou de qualquer outra autoridade habilitada pelo Estado de origem.

106    Nestas condições, há que concluir que as actividades notariais, conforme definidas no estado actual da ordem jurídica francesa, não estão ligadas ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.º, primeiro parágrafo, CE.

107    Por conseguinte, há que declarar que o requisito da nacionalidade exigido pela legislação francesa para o acesso à profissão de notário constitui uma discriminação baseada na nacionalidade, proibida pelo artigo 43.º CE.

108    Atendendo a todas as considerações precedentes, há que julgar procedente a acção intentada pela Comissão.

109    Por conseguinte, há que declarar que, ao impor um requisito de nacionalidade para o acesso à profissão de notário, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do disposto no artigo 43.º CE.

 Quanto às despesas

110    Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Francesa e tendo esta sido vencida nos seus fundamentos, há que a condenar nas despesas.

111    Nos termos do artigo 69.º, n.º 4, primeiro parágrafo, deste mesmo regulamento, os Estados‑Membros que intervenham no processo devem suportar as suas próprias despesas. Por conseguinte, a República da Bulgária, a República Checa, a República da Letónia, a República da Lituânia, a República da Hungria, a Roménia, a República Eslovaca e o Reino Unido suportarão as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

1)      Ao impor um requisito de nacionalidade para o acesso à profissão de notário, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do disposto no artigo 43.° CE.

2)      A República Francesa é condenada nas despesas.

3)      A República da Bulgária, a República Checa, a República da Letónia, a República da Lituânia, a República da Hungria, a Roménia, a República Eslovaca e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte suportam as suas próprias despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.