Language of document : ECLI:EU:C:2011:100

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

1 de Março de 2011 (*)

«Reenvio prejudicial – Direitos fundamentais – Luta contra as discriminações – Igualdade de tratamento entre homens e mulheres – Acesso a bens e serviços e seu fornecimento – Prémios e prestações de seguro – Factores actuariais – Tomada em consideração do critério do sexo enquanto factor de avaliação de risco de seguro – Contratos privados de seguro de vida – Directiva 2004/113/CE – Artigo 5.°, n.° 2 – Derrogação sem limite temporal – Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Artigos 21.° e 23.° – Invalidade»

No processo C‑236/09,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pela Cour constitutionnelle (Bélgica), por decisão de 18 de Junho de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 29 de Junho de 2009, no processo

Association belge des Consommateurs Test‑Achats ASBL,

Yann van Vugt,

Charles Basselier

contra

Conseil des ministres,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts, J.‑C. Bonichot e A. Arabadjiev, presidentes de secção, E. Juhász (relator), G. Arestis, A. Borg Barthet, M. Ilešič, L. Bay Larsen, P. Lindh e T. von Danwitz, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: R. Şereş, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 1 de Junho de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Association belge des Consommateurs Test‑Achats ASBL, de Y. van Vugt e de C. Basselier, por F. Krenc, avocat,

–        em representação do Conseil des ministres, por P. Slegers, avocat,

–        em representação do Governo belga, por L. Van den Broeck, na qualidade de agente, assistida por P. Slegers, avocat,

–        em representação da Irlanda, por D. O’Hagan, na qualidade de agente, assistido por B. Murray, BL,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues e A. Czubinski, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo lituano, por R. Mackevičienė, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo finlandês, por J. Heliskoski, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por I. Rao, na qualidade de agente, assistida por D. Beard, barrister,

–        em representação do Conselho da União Europeia, por M. Veiga, F. Florindo Gijón e I. Šulce, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Van Hoof e M. van Beek, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 30 de Setembro de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a validade do artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113/CE do Conselho, de 13 de Dezembro de 2004, que aplica o princípio de igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a bens e serviços e seu fornecimento (JO L 373, p. 37).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Association belge des Consommateurs Test‑Achats ASBL, Y. van Vugt e C. Basselier ao Conseil des ministres do Reino da Bélgica a propósito da anulação da Lei de 21 de Dezembro de 2007, que altera a Lei de 10 de Maio de 2007, relativa à luta contra a discriminação entre homens e mulheres, em razão do sexo, em matéria de seguros (Moniteur belge de 31 de Dezembro de 2007, p. 66175, a seguir «Lei de 21 de Dezembro de 2007»).

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        A Directiva 2004/113 foi adoptada com base no artigo 13.°, n.° 1, CE. O primeiro, quarto, quinto, décimo segundo, décimo quinto, décimo oitavo e décimo nono considerandos desta directiva têm a seguinte redacção:

«1)      Nos termos do artigo 6.° do Tratado da União Europeia, a União assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de direito, princípios que são comuns aos Estados‑Membros, e respeita os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção [Europeia] para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais[, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950,] e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário.

[…]

4)      A igualdade entre homens e mulheres é um princípio fundamental da União Europeia. Os artigos 21.° e 23.°, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir ‘Carta’) proíbem toda e qualquer discriminação em função do sexo e exigem que seja garantida, em todos os domínios, a igualdade entre homens e mulheres.

5)      O artigo 2.° do Tratado que institui a Comunidade Europeia determina que a promoção dessa igualdade é uma missão essencial da Comunidade. Do mesmo modo, o n.° 2 do artigo 3.° do Tratado exige que a Comunidade tenha como objectivo, na realização de todas as suas acções, eliminar as desigualdades e promover a igualdade entre homens e mulheres.

[…]

12)      A fim de evitar a discriminação em função do sexo, a presente directiva dever‑se‑á aplicar tanto à discriminação directa como à discriminação indirecta. Considera‑se que existe discriminação directa apenas quando, em função do sexo, uma pessoa for sujeita a tratamento menos favorável do que aquele que é dado a outra pessoa em situação equivalente. Nesse sentido, por exemplo, as diferenças entre homens e mulheres na prestação de serviços de saúde, resultantes das diferenças físicas entre homens e mulheres, não se referem a situações equivalentes, pelo que não constituem discriminação.

[…]

15)      Existe já uma série de instrumentos legais em vigor para a implementação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres na área do emprego e da profissão. Por conseguinte, a presente directiva não é aplicável nesta área. O mesmo se aplica a questões de trabalho não assalariado, na medida em que estejam cobertas por instrumentos legais em vigor. A presente directiva deverá aplicar‑se apenas aos seguros e pensões privados, voluntários e independentes da relação de trabalho.

[…]

18)      A utilização de factores actuariais em função do sexo é generalizada na prestação de serviços de seguros e outros serviços financeiros. Por conseguinte, para garantir a igualdade de tratamento entre homens e mulheres, a consideração do sexo enquanto factor actuarial não deve resultar numa diferenciação nos prémios e benefícios individuais. Para evitar reajustamentos bruscos do mercado, a implementação desta regra só deve ser aplicável a novos contratos celebrados após a data de transposição da presente directiva.

19)      Algumas categorias de riscos podem variar entre os sexos. Em certos casos, o sexo é um factor, mas não necessariamente o único factor determinante na avaliação dos riscos segurados. Para os contratos de seguros desses tipos de riscos, os Estados‑Membros podem decidir autorizar derrogações à regra dos prémios e prestações unissexo, desde que possam assegurar que os dados actuariais e estatísticos em que se baseiam os cálculos são fiáveis, regularmente actualizados e postos à disposição do público. Só serão permitidas derrogações nos casos em que a legislação nacional ainda não tenha aplicado a regra unissexo. Cinco anos após a transposição da presente directiva, os Estados‑Membros devem reanalisar a justificação para essas derrogações, tendo em conta os últimos dados actuariais e estatísticos e o relatório elaborado pela Comissão três anos após a data de transposição da presente directiva.»

4        O objecto da Directiva 2004/113 é definido no seu artigo 1.° do seguinte modo:

«A presente directiva tem por objecto estabelecer um quadro para o combate à discriminação em função do sexo no acesso a bens e serviços e seu fornecimento, com vista a concretizar, nos Estados‑Membros, o princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres.»

5        O artigo 4.°, n.° 1, desta directiva prevê:

«1.      Para efeitos da presente directiva, o princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres significa:

a)      A proibição de qualquer discriminação directa em função do sexo, incluindo um tratamento menos favorável dispensado às mulheres por motivos de gravidez e maternidade;

b)      A proibição de qualquer discriminação indirecta em função do sexo.»

6        O artigo 5.° da referida directiva, sob a epígrafe «Factores actuariais», dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros devem assegurar que, em todos os novos contratos celebrados, o mais tardar, depois de 21 de Dezembro de 2007, a consideração do sexo enquanto factor de cálculo dos prémios e das prestações para efeitos de seguros e outros serviços financeiros não resulte, para os segurados, numa diferenciação dos prémios e prestações.

2.      Sem prejuízo do n.° 1, os Estados‑Membros podem decidir, antes de 21 de Dezembro de 2007, permitir diferenciações proporcionadas nos prémios e benefícios individuais sempre que a consideração do sexo seja um factor determinante na avaliação de risco com base em dados actuariais e estatísticos relevantes e rigorosos. Os Estados‑Membros em questão devem informar a Comissão e garantir que sejam recolhidos, publicados e regularmente actualizados dados rigorosos relevantes para a consideração do sexo como factor actuarial determinante. Esses Estados‑Membros devem rever a sua decisão cinco anos depois de 21 de Dezembro de 2007, tendo em conta o relatório da Comissão mencionado no artigo 16.°, e enviar à Comissão os resultados dessa revisão.

3.      Em qualquer caso, os custos relacionados com a gravidez e a maternidade não devem resultar, para os segurados, numa diferenciação dos prémios e prestações.

4.      Os Estados‑Membros poderão diferir a aplicação das medidas necessárias para dar cumprimento ao presente número até dois anos depois de 21 de Dezembro de 2007, o mais tardar. Nesse caso, os Estados‑Membros em questão devem informar imediatamente a Comissão.»

7        O artigo 16.° da mesma directiva, intitulado «Relatórios», prevê:

«1.      Os Estados‑Membros devem comunicar à Comissão todas as informações disponíveis relativas à aplicação da presente directiva, até 21 de Dezembro de 2009, e posteriormente de cinco em cinco anos.

A Comissão deve elaborar um relatório de síntese, o qual deve incluir uma análise das práticas relativas ao artigo 4.° em vigor nos Estados‑Membros no que se refere à utilização do sexo como factor de cálculo dos prémios e benefícios. Esse relatório deve ser apresentado ao Parlamento Europeu e ao Conselho até 21 de Dezembro de 2010. Sempre que adequado, a Comissão deve fazer acompanhar o seu relatório de propostas de alteração da presente directiva.

2.      O relatório da Comissão deve ter em consideração a opinião das entidades relevantes.»

8        Nos termos do artigo 17.°, n.° 1, da Directiva 2004/113, os Estados‑Membros devem pôr em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente directiva até 21 de Dezembro de 2007. Os Estados‑Membros devem comunicar imediatamente à Comissão o texto dessas disposições.

 Direito nacional

9        O artigo 2.° da Lei de 21 de Dezembro de 2007 precisa que esta transpõe a Directiva 2004/113.

10      O artigo 3.° desta lei inclui a disposição que substitui o artigo 10.° da Lei de 10 de Maio de 2007, relativa à luta contra a discriminação entre homens e mulheres, em razão do sexo, em matéria de seguros.

11      O novo artigo 10.° desta última tem agora a seguinte redacção:

«§ 1. Em derrogação do artigo 8.°, pode ser estabelecida uma distinção directa proporcionada em razão do sexo para a fixação dos prémios e das prestações de seguro, se o sexo for um factor determinante na avaliação de risco com base em dados actuariais e estatísticos pertinentes e rigorosos.

Esta derrogação aplica‑se apenas aos contratos de seguro de vida, na acepção do artigo 97.° da Lei de 25 de Junho de 1992 sobre o contrato de seguro terrestre.

§ 2.      A partir de 21 de Dezembro de 2007, os custos relacionados com a gravidez e a maternidade não podem, em caso algum, implicar uma diferenciação dos prémios e prestações de seguro.

§ 3.      A Comissão para o sector bancário, financeiro e dos seguros recolhe os dados actuariais e estatísticos previstos no § 1, assegura a sua publicação, o mais tardar até 20 de Junho de 2008, bem como a dos dados actualizados de dois em dois anos, e publica‑os no seu sítio Internet. Estes dados serão actualizados de dois em dois anos.

A Comissão para o sector bancário, financeiro e dos seguros tem poderes para exigir às instituições, às empresas ou às pessoas interessadas os dados necessários para este efeito. A comissão especificará os dados que lhe devem ser transmitidos, bem como o modo e a forma de transmissão.

§ 4.      A Comissão para o sector bancário, financeiro e dos seguros fornecerá à Comissão Europeia, o mais tardar até 21 de Dezembro de 2009, os dados de que disponha nos termos do presente artigo. Transmitirá estes dados à Comissão Europeia sempre que os mesmos forem actualizados.

§ 5.      As Câmaras legislativas avaliarão, antes de 1 de Março de 2011, a aplicação do presente artigo com base nos dados referidos nos §§ 3 e 4, no relatório da Comissão Europeia previsto no artigo 16.° da Directiva 2004/113/CE, bem como na situação nos outros Estados‑Membros da União Europeia.

Esta avaliação será feita com base num relatório apresentado às Câmaras legislativas, no prazo de dois anos, por uma Comissão de avaliação.

Por decreto aprovado em Conselho de Ministros, o Rei fixará regras mais precisas relativas à composição e à nomeação da Comissão de avaliação, bem como à forma e ao conteúdo do relatório.

A Comissão de avaliação fará um relatório, nomeadamente, sobre as consequências do presente artigo sobre a situação do mercado e examinará também outros critérios de segmentação que não os associados ao sexo.

§ 6.      A presente disposição não é aplicável aos contratos de seguro celebrados no âmbito de um regime complementar de segurança social. Tais contratos estão exclusivamente sujeitos ao artigo 12.°»

 Factos no processo principal e questões prejudiciais

12      Os recorrentes no processo principal interpuseram, na Cour constitutionnelle, um recurso de anulação da Lei de 21 de Dezembro de 2007 que transpôs para direito belga a Directiva 2004/113.

13      Consideraram que a Lei de 21 de Dezembro de 2007, que aplica a derrogação permitida pelo artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113, é contrária ao princípio da igualdade entre homens e mulheres.

14      Na medida em que a Lei de 21 de Dezembro de 2007 utiliza a possibilidade de derrogação ao abrigo do artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113, a Cour constitutionnelle, considerando que o recurso interposto suscita um problema de validade de uma disposição de uma directiva da União, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113[…] é compatível com o artigo 6.°, n.° 2, [UE] e, mais especificamente, com o princípio da igualdade e da não discriminação garantido por esta disposição?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, o mesmo artigo 5.°, n.° 2, d[est]a directiva também é incompatível com o artigo 6.°, n.° 2, [UE], se a sua aplicação se limitar aos contratos de seguro de vida?»

 Quanto às questões prejudiciais

15      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113 é válido à luz do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres.

16      O artigo 6.° UE, a que o órgão jurisdicional de reenvio faz referência nas suas questões e que é mencionado no primeiro considerando da Directiva 2004/113, dispunha, no seu n.° 2, que a União respeita os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário. Esses direitos fundamentais estão consagrados na Carta que, desde 1 de Dezembro de 2009, tem o mesmo valor jurídico que os Tratados.

17      Os artigos 21.° e 23.° da Carta enunciam que, por um lado, é proibida qualquer discriminação assente no sexo e, por outro, a igualdade entre homens e mulheres deve ser garantida em todos os domínios. Uma vez que o quarto considerando da Directiva 2004/113 se refere expressamente a estes artigos, há que apreciar a validade do artigo 5.°, n.° 2, desta directiva à luz das referidas disposições da Carta (v., neste sentido, acórdão de 9 de Novembro de 2010, Volker und Markus Scheke e Eifert, C‑92/09 e C‑93/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 46).

18      O direito à igualdade de tratamento entre homens e mulheres é objecto de disposições do Tratado FUE. Por um lado, segundo o artigo 157.°, n.° 1, TFUE, os Estados‑Membros assegurarão a aplicação do princípio da igualdade da remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos, por trabalho igual ou de valor igual. Por outro lado, o artigo 19.°, n.° 1, TFUE prevê que o Conselho, após aprovação do Parlamento, pode tomar as medidas necessárias para combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual.

19      Enquanto o artigo 157.°, n.° 1, TFUE estabelece o princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres num domínio específico, o artigo 19.°, n.° 1, TFUE constitui, por seu turno, uma norma de habilitação do Conselho que este deve exercer em conformidade, designadamente, com o artigo 3.°, n.° 3, segundo parágrafo, TUE, que dispõe que a União combate a exclusão social e as discriminações e promove a justiça e a protecção sociais, a igualdade entre homens e mulheres, a solidariedade entre as gerações e a protecção dos direitos da criança, e com o artigo 8.° TFUE, segundo o qual, na realização de todas as suas acções, a União terá por objectivo eliminar as desigualdades e promover a igualdade entre homens e mulheres.

20      Na concretização progressiva dessa igualdade, é o legislador da União que, considerando a missão que o artigo 3.°, n.° 3, segundo parágrafo, TUE e o artigo 8.° TFUE confiaram à União, determina o momento da sua intervenção tendo em conta a evolução das condições económicas e sociais na União.

21      Todavia, decidida uma intervenção desta natureza, a União deve agir de forma coerente para a concretização do objectivo visado, o que não exclui a possibilidade de prever períodos transitórios ou derrogações de alcance limitado.

22      Como reconhece o décimo oitavo considerando da Directiva 2004/113, a utilização de factores actuariais em função do sexo era generalizada na prestação de serviços de seguros e outros serviços financeiros à época da adopção da referida directiva.

23      Por conseguinte, era legítimo ao legislador da União implementar o princípio da igualdade entre homens e mulheres, mais precisamente a aplicação da regra dos prémios e prestações unissexo, gradualmente com períodos de transição adequados.

24      Foi neste sentido que o legislador da União previu no artigo 5.°, n.° 1, da Directiva 2004/113 que as diferenças em matéria de prémios e prestações que decorrem da utilização do sexo enquanto factor de cálculo destes devem ser abolidas o mais tardar até 21 de Dezembro de 2007.

25      Em derrogação da regra geral dos prémios e das prestações unissexo instituída por este artigo 5.°, n.° 1, o n.° 2 do mesmo artigo atribuiu, por seu turno, aos Estados‑Membros, cujo direito nacional não aplicasse já esta regra à época da adopção da Directiva 2004/113, a faculdade de decidir, antes de 21 de Dezembro de 2007, permitir diferenciações proporcionadas nos prémios e benefícios individuais sempre que a consideração do sexo seja um factor determinante na avaliação de risco com base em dados actuariais e estatísticos relevantes e rigorosos.

26      Esta faculdade, segundo esse mesmo número, será revista cinco anos depois de 21 de Dezembro de 2007, tendo em conta um relatório da Comissão, mas, dado não existir, na Directiva 2004/113, uma disposição sobre a duração da aplicação destas diferenças, os Estados‑Membros que tenham utilizado a referida faculdade são autorizados a permitir às seguradoras que apliquem este tratamento desigual sem limite temporal.

27      O Conselho exprime as suas dúvidas quanto à questão de saber se as situações dos segurados do sexo feminino e do sexo masculino, no âmbito de certos ramos dos seguros privados, se podem considerar equivalentes, uma vez que, do ponto de vista da técnica das seguradoras, que classificam os riscos com base em estatísticas por categorias, os níveis de risco segurado podem ser diferentes para as mulheres e para os homens. Defende que a opção prevista no artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113 só visa permitir que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual.

28      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o princípio da igualdade de tratamento exige que situações comparáveis não sejam tratadas de modo diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual, excepto se esse tratamento for objectivamente justificado (v. acórdão de 16 de Dezembro de 2008, Arcelor Atlantique e Lorraine e o., C‑127/07, Colect., p. I‑9895, n.° 23).

29      A este respeito, importa sublinhar que o carácter comparável das situações deve ser apreciado à luz do objecto e da finalidade do acto da União que institui a distinção em causa (v., neste sentido, acórdão Arcelor Atlantique e Lorraine e o., já referido, n.° 26). No caso concreto, esta distinção é instituída pelo artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113.

30      É pacífico que a finalidade prosseguida pela Directiva 2004/113 no sector dos serviços de seguros é, como reflecte o seu artigo 5.°, n.° 1, a aplicação da regra dos prémios e das prestações unissexo. O décimo oitavo considerando desta directiva enuncia expressamente que, para garantir a igualdade de tratamento entre homens e mulheres, a consideração do sexo enquanto factor actuarial não deve resultar numa diferenciação nos prémios e benefícios individuais. O décimo nono considerando da referida directiva identifica a faculdade concedida aos Estados‑Membros de não aplicarem a regra dos prémios e das prestações unissexo como «derrogação». Assim, a Directiva 2004/113 assenta na premissa de que, para efeitos de aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres consagrado nos artigos 21.° e 23.° da Carta, as situações respectivas das mulheres e dos homens no que respeita aos prémios e às prestações de seguro que contratam são equivalentes.

31      Nestas circunstâncias, existe o risco de que a derrogação à igualdade de tratamento entre homens e mulheres prevista no artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113 seja indefinidamente permitida pelo direito da União.

32      Tal disposição, que permite aos Estados‑Membros em causa manter sem limite temporal uma derrogação à regra dos prémios e das prestações unissexo, é contrária à concretização do objectivo de igualdade de tratamento entre homens e mulheres prosseguido pela Directiva 2004/113 e incompatível com os artigos 21.° e 23.° da Carta.

33      Por conseguinte, esta disposição deve ser considerada inválida após um período de transição adequado.

34      Em face do exposto, há que responder à primeira questão submetida que o artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113 é inválido, com efeitos a 21 de Dezembro de 2012.

35      Tendo em conta esta resposta, não há que responder à segunda questão.

 Quanto às despesas

36      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113/CE do Conselho, de 13 de Dezembro de 2004, que aplica o princípio de igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a bens e serviços e seu fornecimento, é inválido, com efeitos a 21 de Dezembro de 2012.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.