Language of document : ECLI:EU:C:2008:335

TOMADA DE POSIÇÃO DO ADVOGADO‑GERAL

MIGUEL POIARES MADURO

apresentada em 11 de Junho de 2008 1(1)

Processo C‑127/08

Blaise Baheten Metock,

Hanette Eugenie Ngo Ikeng,

Christian Joel Baheten,

Samuel Zion Ikeng Baheten,

Hencheal Ikogho,

Donna Ikogho,

Roland Chinedu,

Marlene Babucke Chinedu,

Henry Igboanusi,

Roksana Batkowska

contra

Minister for Justice, Equality and Law Reform

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela High Court (Irlanda)]

«Direito de livre circulação e de residência dos cidadãos da União no território de um Estado‑Membro – Cônjuge nacional de um Estado terceiro»





1.        No presente reenvio, que é objecto do processo com tramitação acelerada previsto no artigo 104.°‑A do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, discute‑se o alcance do direito de residência dos nacionais de países terceiros, membros da família de um cidadão da União. A questão é sensível, uma vez que nos obriga a fazer a destrinça entre aquilo que é do domínio das disposições relativas à liberdade de circulação e de residência dos cidadãos da União e aquilo que se enquadra no âmbito do controlo da imigração, matéria em que os Estados‑Membros continuam a ser competentes enquanto a Comunidade Europeia não proceder a uma harmonização completa. A dimensão constitucional do problema explica a vivacidade do debate: nada menos de dez Estados‑Membros intervieram em apoio do governo demandado no processo principal, a fim de contestar a interpretação defendida pelos demandantes e pela Comissão das Comunidades Europeias. É verdade também que as anteriores tomadas de posição do Tribunal de Justiça contribuíram para alimentar a discussão, já que a coerência da linha jurisprudencial delineada não ressalta com clareza. Deste modo, as questões prejudiciais relativas à interpretação da Directiva 2004/38/CE (2), que foram remetidas nos presentes processos, oferecem ao Tribunal uma boa oportunidade de clarificação.

I –    Matéria de facto do litígio no processo principal e questões prejudiciais

2.        O presente reenvio prejudicial foi submetido pela High Court (Irlanda) no quadro de um litígio relativo a quatro processos apensos nos quais é contestada a recusa de concessão de uma autorização de residência a um nacional de um país terceiro casado com uma cidadã da União estabelecida na Irlanda. Em cada um dos quatro processos, um nacional de um país terceiro entrou directamente na Irlanda e apresentou um pedido de asilo político, o qual foi rejeitado. Posteriormente à sua chegada à Irlanda, o interessado casou com uma nacional de outro Estado‑Membro estabelecida e a trabalhar na Irlanda. Após o casamento, requereu uma autorização de residência («residence card») como cônjuge de um nacional de um Estado‑Membro residente legalmente na Irlanda. Tal autorização foi recusada pelo Ministro da Justiça, com o fundamento de que o requerente não tinha demonstrado ter residido legalmente noutro Estado‑Membro antes de entrar na Irlanda, como exige a legislação irlandesa de transposição da Directiva 2004/38. Os requerentes recorreram destas decisões ministeriais de indeferimento da autorização de residência, alegando que o requisito de residência legal prévia noutro Estado‑Membro, exigido pela legislação irlandesa e cuja inobservância justificou os indeferimentos impugnados, é contrário às disposições da Directiva 2004/38.

3.        É por esta razão que, a fim de poder apreciar a procedência dos recursos contra as decisões controvertidas de indeferimento das autorizações de residência, o órgão jurisdicional de reenvio entende ser necessário interrogar o Tribunal de Justiça, em substância, sobre a questão de saber se o benefício das disposições da Directiva 2004/38, mais concretamente do direito de residência em benefício do cônjuge não comunitário de um cidadão da União, pode depender de um requisito de residência legal noutro Estado‑Membro antes da entrada deste último no Estado‑Membro de acolhimento. É este o objecto da primeira questão prejudicial. Admitindo que assim não seja, ficaria ainda por determinar se, nesse caso, não poderia ser recusada aos nacionais de países terceiros a possibilidade de beneficiarem das disposições da Directiva 2004/38, uma vez que o artigo 3.°, n.° 1, da referida directiva reserva o direito de invocar as suas disposições aos membros da família que «acompanhem» ou «se reúnam» a um cidadão da União, quando a verdade é que os requerentes apenas se casaram depois de terem entrado em território irlandês. Isto explica a segunda e terceira questões prejudiciais, que têm por objecto, no essencial, a questão da incidência da data do casamento na aplicabilidade da Directiva 2004/38. Analisarei estes dois aspectos posteriormente.

II – Apreciação

A –    Compatibilidade da exigência de residência legal prévia noutro Estado‑Membro com a Directiva 2004/38

4.        Interrogar‑se sobre a questão de saber se a Directiva 2004/38 permite subordinar a concessão do direito de residência no Estado‑Membro de acolhimento aos nacionais de um país terceiro, membros da família de um cidadão da União, a um requisito que consiste em esses nacionais terem previamente residido noutro Estado‑Membro, é questionar o âmbito de aplicação do referido texto: será que este apenas se aplica às famílias que já estavam estabelecidas num Estado‑Membro antes de se deslocarem para o Estado‑Membro de acolhimento? Dito de outra forma, a Directiva 2004/38 apenas garante a livre circulação dos membros não comunitários da família de um cidadão da União, no território da União, ou também, em certos casos, o acesso daqueles ao território da União?

5.        A Directiva 2004/38 não fornece uma resposta explícita. Limita‑se a reconhecer, nos seus artigos 6.°, 7.° e 16.°, um direito de residência aos membros da família de um cidadão da União que não tenham a nacionalidade de um Estado‑Membro e que «acompanhem ou se reúnam ao cidadão da União». Uma vez que a análise do referido texto não nos é de grande utilidade, há que ter em conta os seus objectivos. A Directiva 2004/38 tem como finalidade garantir o «direito fundamental e individual de circular e de residir livremente no território dos Estados‑Membros» conferido aos cidadãos da União directamente pelo artigo 18.° CE (3). Assim, é à luz do direito fundamental de circulação e de residência dos cidadãos da União que devem ser interpretadas as disposições da referida directiva. Os direitos que prevê devem ser entendidos numa óptica funcional, reconhecendo‑se‑lhes apenas o alcance, mas todo o alcance, necessário para assegurar a efectividade do direito de circulação e de residência dos cidadãos da União. Por outras palavras, trata‑se de determinar se o gozo pleno pelo cidadão da União do seu direito de residência implica que o direito de residência dos membros não comunitários da sua família, que é um direito derivado e dependente do direito do cidadão da União (4), comporta um direito de entrada no território da União.

6.        A este entendimento e à resposta que dele decorrer não podem validamente os Estados‑Membros intervenientes contrapor a repartição vertical constitucional das competências. Embora seja verdade que os Estados‑Membros conservam, em princípio, competência em matéria de controlo da imigração, e, consequentemente, de admissão de nacionais de países terceiros provenientes do exterior do território comunitário, daqui não se pode deduzir que a Directiva 2004/38 apenas diga respeito à circulação entre Estados‑Membros dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias, e não ao acesso destes ao território da União. Com efeito, é jurisprudência assente que os Estados‑Membros devem exercer as suas competências nacionais no respeito pelo direito comunitário, em especial pelas liberdades fundamentais de circulação (5). Assim, já foi expressamente declarado que as exigências do respeito da liberdade de circulação e de residência dos cidadãos da União podiam condicionar o exercício pelos Estados‑Membros das respectivas competências (6), designadamente das competências em matéria de controlo da imigração (7).

7.        Para contestar a aplicabilidade da Directiva 2004/38 à questão da entrada dos membros não comunitários da família de um cidadão da União no território da Comunidade, também não se pode legitimamente invocar a estruturação das competências comunitárias resultante das diferentes bases jurídicas previstas pelo Tratado CE. É verdade que só o título IV do Tratado CE permite a adopção de actos legislativos comunitários em matéria de imigração e de controlo nas fronteiras externas (8), ao passo que a Directiva 2004/38 se baseia no título III do Tratado CE. Mas esta apenas regulamenta directamente os direitos dos cidadãos da União, sendo os direitos dos membros das suas famílias apreendidos unicamente na medida em que constituem o acessório dos precedentes. O facto de, ao dispor deste modo, esta directiva poder ter uma incidência em matéria de controlo da imigração não significa que exista uma extensão do seu âmbito às competências fundadas no título IV, uma vez que o seu objecto essencial se limita a garantir o exercício do direito de circulação e de residência dos cidadãos da União.

8.        Assim, resta determinar se o efeito pleno dos direitos decorrentes da cidadania da União pressupõe que o direito de residência conferido aos membros da família do cidadão da União pela Directiva 2004/38 possa englobar, em certos casos, um direito de acesso ao território comunitário. Para este efeito, importa recordar, em primeiro lugar, que tanto o legislador (9) como o Tribunal de Justiça (10) têm reiteradamente salientado a importância da protecção da vida familiar dos cidadãos dos Estados‑Membros, com vista à eliminação dos obstáculos ao exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado. Este nexo instrumental entre o direito ao respeito pela vida familiar e as liberdades de circulação levou designadamente o Tribunal de Justiça a considerar que as disposições do artigo 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE) e da Directiva 73/148/CEE (11) devem ser interpretadas no sentido de que obrigam um Estado‑Membro a autorizar a entrada e a residência no seu território do cônjuge, seja qual for a sua nacionalidade, do nacional desse Estado que se deslocou, com o seu cônjuge, para o território de outro Estado‑Membro para nele exercer uma actividade assalariada, na acepção do artigo 48.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 39.° CE), e que, na acepção do artigo 52.° do Tratado, regressa ao território do seu Estado de origem para nele se estabelecer; segundo o Tribunal de Justiça, um nacional de um Estado‑Membro poderia ser dissuadido de abandonar o seu país de origem para exercer uma actividade assalariada ou não assalariada no território de outro Estado‑Membro se, ao regressar ao Estado‑Membro de que tem a nacionalidade, a fim de nele exercer uma actividade assalariada ou não assalariada, o seu cônjuge e os seus filhos não fossem igualmente autorizados a entrar e a residir no território deste Estado, em condições pelo menos equivalentes às que lhes são reconhecidas pelo direito comunitário no território de outro Estado‑Membro (12). O referido nexo instrumental explica igualmente que o Tribunal de Justiça tenha declarado que o artigo 49.° CE, considerado à luz do direito fundamental ao respeito pela vida familiar, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que o Estado‑Membro de origem de um prestador de serviços estabelecido nesse mesmo Estado, que presta serviços a destinatários estabelecidos noutros Estados‑Membros, recuse autorizar a residência no seu território ao cônjuge deste prestador, nacional de um país terceiro (13). Mesmo no acórdão Akrich (14), no qual recusou reconhecer, com fundamento no Regulamento n.° 1612/68, um direito de residência ao cônjuge, nacional de um país terceiro, do cidadão da União que regressa ao seu Estado‑Membro de origem para nele se estabelecer, pelo facto de esse cônjuge não ter previamente residido de forma legal num Estado‑Membro, o Tribunal de Justiça obrigou as autoridades competentes do Estado‑Membro de origem a apreciarem o pedido do cônjuge para entrar e residir no seu território, à luz do direito fundamental ao respeito pela vida familiar na acepção do artigo 8.° da CEDH (15), uma vez que estava em causa a liberdade de circulação do cidadão da União.

9.        Adoptando este ponto de vista, há que reconhecer que interpretar a Directiva 2004/38 no sentido de que o direito de residência que confere aos nacionais de um país terceiro, membros da família de um cidadão da União, no Estado‑Membro de acolhimento, não lhes garante um direito de acesso ao território comunitário, ou seja, apenas se efectivará se essas pessoas tiverem previamente residido de forma legal noutro Estado‑Membro, consubstancia uma inobservância do direito que assiste ao cidadão da União de ter uma vida familiar normal e, portanto, do seu direito de residência no Estado‑Membro de acolhimento. Nos processos nacionais em causa, a impossibilidade de os cidadãos da União estabelecidos na Irlanda chamarem para junto de si os respectivos cônjuges, provenientes do exterior da Comunidade, é susceptível de pôr em causa o direito de optarem livremente por residir neste Estado‑Membro, na medida em que os pode incitar a abandonar o território irlandês para se deslocarem para outro Estado, Estado‑Membro ou Estado terceiro, onde poderão viver com os respectivos cônjuges. Consequentemente, a efectividade do direito que assiste ao cidadão da União de residir num Estado‑Membro diferente do seu Estado de origem obriga a conceber o direito de residência derivado reconhecido aos membros não comunitários da sua família pela Directiva 2004/38 no sentido de que implica o direito de estes se juntarem a ele, mesmo que provenham directamente do exterior da União. Daqui resulta que um Estado‑Membro não pode validamente exigir que os referidos membros da família tenham previamente residido de forma legal noutro Estado‑Membro para poderem invocar a aplicação das disposições da referida directiva.

10.      A esta interpretação da Directiva 2004/38, o Governo irlandês e os Estados‑Membros intervenientes contrapõem a solução resultante do acórdão Akrich (16), segundo a qual a possibilidade de beneficiar do direito de residência conferido pelo artigo 10.° do Regulamento n.° 1612/68 ao nacional de um Estado terceiro, cônjuge de um cidadão da União, que se desloca para um Estado‑Membro da União para onde o cidadão da União migrou, está sujeita ao requisito de uma residência prévia legal noutro Estado‑Membro, na medida em que o referido regulamento apenas se aplica à livre circulação no interior da Comunidade e nada dispõe relativamente aos direitos do referido nacional de um país terceiro, cônjuge de um cidadão da União, quanto ao acesso ao território da Comunidade.

11.      A solução do acórdão Akrich, já referido, não pode, porém, por diversas razões, revestir o alcance geral que os Estados‑Membros lhe conferem. Destoa de uma corrente jurisprudencial que se limita a subordinar o direito de residência conferido pela legislação comunitária ao nacional de um país terceiro, membro da família de um cidadão da União, à verificação da existência de um «nexo de natureza familiar». Assim foi decidido pelo Tribunal de Justiça antes de 2003 (17). E assim continuou a sê‑lo depois (18). Deste direito de residência directamente conferido pelo direito comunitário com base unicamente num nexo de natureza familiar deduziu a impossibilidade de um Estado‑Membro adoptar medidas de expulsão de um membro não comunitário da família de um cidadão da União, unicamente pelo facto de não terem sido cumpridas as formalidades legais relativas ao controlo dos estrangeiros (19), e o carácter de simples reconhecimento da concessão de uma autorização de residência ao referido membro (20).

12.      Por outro lado, o próprio Tribunal de Justiça, no acórdão Jia (21), associou expressamente o requisito da residência legal prévia, formulado no acórdão Akrich, ao contexto factual muito específico do processo principal, em que um nacional de um país terceiro, cônjuge de um cidadão da União, tinha residido ilegalmente num Estado‑Membro e procurara subtrair‑se abusivamente a uma legislação nacional em matéria de imigração. H. Akrich, casado com uma nacional britânica, dado que não dispunha de um direito de residência no Reino Unido, tinha aceite ser expulso para a Irlanda, país onde se juntou à mulher que aí se instalara pouco antes, e esperava regressar ao Reino Unido com ela, invocando o direito de residência conferido pelo direito comunitário na sua qualidade de cônjuge de uma cidadã da União que fez uso da liberdade de circulação.

13.      Finalmente, importa ter em conta o dado novo que representa a Directiva 2004/38. Mesmo admitindo que a solução do acórdão Akrich, já referido, tenha tido um alcance não limitado ao contexto específico do caso em discussão (abuso de direito), esse acórdão foi proferido sob a égide e para efeitos da aplicação do Regulamento n.° 1612/68. Ora, como indica o seu terceiro considerando, a Directiva 2004/38 visa não apenas codificar mas rever os instrumentos legislativos existentes, a fim de «reforçar» o direito de livre circulação e residência de todos os cidadãos da União. Além disso, enquanto o Regulamento n.° 1612/68 apenas tinha por objecto, se nos reportarmos ao seu título, a «livre circulação» dos trabalhadores no interior da Comunidade, a Directiva 2004/38, na linha do direito enunciado pelo artigo 18.° CE, é relativa ao direito de os cidadãos da União não só «circularem» mas «residirem» livremente no território dos Estados‑Membros. Por outras palavras, a livre circulação dos trabalhadores e a regulamentação adoptada em sua aplicação destinavam‑se essencialmente a suprimir os obstáculos à mobilidade dos trabalhadores. A tónica era portanto posta no efeito dissuasivo que as medidas tomadas pelos Estados‑Membros podiam provocar na entrada ou na saída de um Estado‑Membro. E, no fim de contas, foi esta óptica que inspirou a ratio decidendi do acórdão Akrich, já referido. Na verdade, depois de recordar que a economia das disposições comunitárias se destina a garantir a liberdade de circulação dos trabalhadores na Comunidade, cujo exercício não pode penalizar o trabalhador migrante e a sua família, o Tribunal de Justiça concluiu que quando um cidadão da União estabelecido num Estado‑Membro, casado com um nacional de um país terceiro sem direito de residência nesse Estado‑Membro, se desloca para outro Estado‑Membro a fim de aí exercer um emprego assalariado, o facto de o seu cônjuge não possuir um direito, ao abrigo do artigo 10.° do Regulamento n.° 1612/68, de se instalar com ele nesse outro Estado‑Membro não configura um tratamento menos favorável do que aquele de que beneficiavam antes de o referido cidadão fazer uso das facilidades oferecidas pelo Tratado em matéria de circulação de pessoas e, portanto, não é susceptível de dissuadir o cidadão da União de exercer os direitos de circulação reconhecidos pelo artigo 39.° CE; ao invés, quando um cidadão da União estabelecido num Estado‑Membro, casado com um nacional de um país terceiro com direito de residência nesse Estado‑Membro, se desloca para outro Estado‑Membro a fim de aí exercer um emprego assalariado, essa deslocação não se deve traduzir na perda da possibilidade de viverem legalmente juntos, razão pela qual o artigo 10.° do Regulamento n.° 1612/68 confere ao referido cônjuge o direito de se instalar nesse outro Estado‑Membro (22). Actualmente, a Directiva 2004/38 dá a mesma ênfase ao direito de residir livremente no território dos Estados‑Membros. Por conseguinte, já não é apenas a mobilidade, mas também a estabilidade, a perenidade da permanência noutro Estado‑Membro que se pretende garantir. Nesta nova óptica, é fácil perceber que a imposição de um requisito de residência legal prévia para efeitos de concessão do direito de residência conferido pela Directiva 2004/38 aos nacionais de países terceiros, membros da família de um cidadão da União, seria susceptível de afectar a manutenção da residência no Estado‑Membro que o cidadão da União escolheu livremente. Se a sua vida familiar se modificar e o membro da família não se puder socorrer do direito comunitário para se juntar a ele, por não ter previamente residido de forma legal noutro Estado‑Membro, o cidadão da União será incitado a abandonar o território do Estado‑Membro no qual tinha optado por se estabelecer, para se fixar num Estado, seja ele um Estado‑Membro ou um Estado terceiro, onde poderá reconstituir a unidade da célula familiar. Como é bom de ver, a violação do direito de ter uma vida familiar normal, que seria causada pela exigência de uma residência legal prévia noutro Estado‑Membro, afectaria a efectividade do direito de residência. Ora, não há razão para tratar de forma diferente as violações da vida familiar consoante entravem a liberdade do cidadão da União de se deslocar para outro Estado‑Membro ou a liberdade de residir noutro Estado‑Membro. Consequentemente, dado que a Directiva 2004/38 deve, tal como o Regulamento n.° 1612/68 (23), ser igualmente interpretada à luz do direito fundamental ao respeito pela vida familiar, há que concluir que o benefício do direito de residência concedido pela Directiva 2004/38 aos nacionais de países terceiros, membros da família de um cidadão da União, não pode ser condicionado pela existência de uma residência legal prévia dos referidos nacionais noutro Estado‑Membro.

14.      Finalmente, escusado será recordar que o facto de o direito de residência reconhecido pela Directiva 2004/38 aos nacionais de países terceiros, membros da família de um cidadão da União, englobar um direito de acesso ao território da Comunidade não significa que este último não possa ser objecto de limitações pelos Estados‑Membros. Estas estão expressamente previstas. O artigo 27.° do referido diploma recorda a reserva tradicional de ordem pública à liberdade de circulação e de residência de um cidadão da União e de um membro da sua família, seja qual for a sua nacionalidade. O artigo 35.°, por seu turno, impõe restrições em caso de abuso de direito ou de fraude. Tem‑se evidentemente em vista a eventualidade de casamentos de conveniência, mas pode igualmente considerar‑se que o abuso de direito cobre também a hipótese Akrich, de tentativa de subtracção abusiva à aplicação de uma legislação nacional em matéria de imigração. Assinale‑se que estas limitações permitidas pela Directiva 2004/38 cobrem as que o Tribunal de Justiça autorizou os Estados‑Membros a introduzirem, no quadro da liberdade de prestação de serviços, em relação ao direito ao respeito pela vida familiar na acepção do artigo 8.° da CEDH (24).

15.      Assim, há que responder à primeira questão prejudicial que a Directiva 2004/38 não autoriza um Estado‑Membro a submeter o direito de residência que confere aos nacionais de Estados terceiros, membros da família de um cidadão da União, ao requisito de uma residência legal prévia dos referidos nacionais noutro Estado‑Membro.

B –    Incidência da data do casamento no direito de residência conferido pela Directiva 2004/38

16.      Através da segunda e terceira questões prejudiciais, o Tribunal de Justiça é convidado, em substância, a pronunciar‑se sobre a questão de saber se o nacional de um Estado terceiro pode invocar as disposições da Directiva 2004/38 para obter o direito de residir no Estado‑Membro de acolhimento com o seu cônjuge, cidadão da União, quanto tiver entrado no Estado‑Membro de acolhimento antes de se casar, ou até antes da entrada do cidadão da União nesse Estado. E a questão coloca‑se porque o artigo 3.°, n.° 1, da directiva reserva a aplicação das suas disposições aos cidadãos da União e «aos membros das suas famílias […] que os acompanhem ou que a eles se reúnam». Não será de considerar que esta formulação pressupõe que o nacional de um país terceiro deve ter obtido o estatuto de membro da família antes de entrar no Estado‑Membro de acolhimento? É essa a opinião do Governo irlandês. De contrário, como se poderia considerar que o nacional de um país terceiro acompanha o cidadão da União ou a ele se reúne, enquanto membro da sua família?

17.      No entanto, os termos do artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 2004/38 não apoiam verdadeiramente a tese do Estado‑Membro demandado no processo principal. A palavra «acompanhar», designadamente, tanto pode indicar um movimento e ser entendida no sentido de «ir com alguém» como ter uma conotação estática e significar «estar com alguém». Este duplo significado encontra‑se igualmente no equivalente do termo francês noutras versões linguísticas, quer se trate da palavra inglesa «accompany», da palavra espanhola «acompañar», do termo italiano «accompagnare» ou da palavra portuguesa «acompanhar». Para dissipar esta ambiguidade de formulação, impõe‑se portanto proceder de novo a uma interpretação funcional. A este respeito, se a tónica estivesse unicamente na mobilidade dos cidadãos comunitários, na sua liberdade de se deslocarem para outro Estado‑Membro, poderia defender‑se com alguma pertinência que o direito comunitário não garante ao membro da família um direito de residência no Estado‑Membro de acolhimento do cidadão migrante da União, uma vez que os laços familiares apenas se constituíram após o exercício da liberdade de circulação. Nessa hipótese, com efeito, o facto de impedir o reagrupamento familiar não pode ter desempenhado um efeito dissuasivo da liberdade de movimentos do cidadão comunitário.

18.      No entanto, como sabemos, entre os direitos que o artigo 18.° CE considera inerentes ao estatuto de cidadão da União encontra‑se igualmente o direito de residir livremente no território dos Estados‑Membros. Logicamente, a Directiva 2004/38, que visa regulamentar o exercício do direito fundamental de circulação e de residência dos cidadãos da União, aplica‑se, por força do seu artigo 3.°, a todos os cidadãos da União «que se desloquem ou residam» num Estado‑Membro diferente do Estado de que são nacionais. Ora, já o salientei no quadro da resposta à primeira questão, a perenidade da residência do cidadão da União no Estado‑Membro de acolhimento seria posta em causa se ele não pudesse viver nesse Estado com os membros da sua família. Pouco importa, à luz da efectividade do seu direito de residência, em que momento uma pessoa se tornou membro da sua família. Pouco importa igualmente que a pessoa que se tornou membro da sua família já se encontrasse no território do Estado‑Membro de acolhimento antes da entrada do cidadão da União nesse Estado. Mesmo que, como acontece nos processos principais, o nacional de um país terceiro apenas se case com o cidadão da União quando este já reside no Estado‑Membro de acolhimento, ou que, no momento do casamento, já tenha entrado no Estado‑Membro de acolhimento, o facto de o referido Estado‑Membro recusar conceder‑lhe uma autorização de residência na sua qualidade de cônjuge de um cidadão da União, criando assim um obstáculo à vida familiar, não deixaria de afectar a residência do cidadão da União no seu território.

19.      Já no contexto do direito de residência associado à liberdade fundamental de circulação dos trabalhadores, o Tribunal de Justiça declarou que um Estado‑Membro não pode, sem violar o direito de residência reconhecido aos trabalhadores comunitários, e, portanto, aos membros das suas famílias pelas Directivas 68/360/CEE (25) e 73/148, recusar conceder uma autorização de residência a um nacional de um país terceiro que se tenha casado com um trabalhador comunitário no país de acolhimento depois de nele ter entrado ilegalmente (26). O que era verdade sob a égide dos textos anteriores à Directiva 2004/38 é, a fortiori, igualmente verdade hoje em dia. Escusado será repetir que a referida directiva visa «reforçar» o direito de residência de todos os cidadãos da União. Em consequência, deve concluir‑se que os nacionais de um país terceiro podem reivindicar a possibilidade de beneficiar dos direitos conferidos pela Directiva 2004/38 aos membros da família que «acompanham» o cidadão da União, na acepção do artigo 3.° da referida directiva, seja qual for a data em que se tornaram membros da família do referido cidadão.

20.      Assim, há que responder à segunda e terceira questões prejudiciais que o artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 2004/38 se aplica ao nacional de um país terceiro, cônjuge de um cidadão da União que reside no Estado‑Membro de acolhimento, seja qual for a data e o local do casamento e a data e o modo como entrou no Estado‑Membro de acolhimento.

III – Conclusão

21.      Tendo em conta as considerações precedentes, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões submetidas pela High Court (Irlanda):

«1)      A Directiva 2004/38 não autoriza um Estado‑Membro a submeter o direito de residência que confere aos nacionais de Estados terceiros, membros da família de um cidadão da União, ao requisito de uma residência legal prévia dos referidos nacionais noutro Estado‑Membro.

2)      O artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 2004/38 aplica‑se ao nacional de um país terceiro, cônjuge de um cidadão da União que reside no Estado‑Membro de acolhimento, seja qual for a data e o local do casamento e a data e o modo como entrou no Estado‑Membro de acolhimento.»


1 – Língua original: francês.


2 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.° 1612/68 e que revoga as Directivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO L 158, p. 77).


3 – V. acórdão de 17 de Setembro de 2002, Baumbast e R (C‑413/99, Colect., p. I‑7091, n.° 84).


4 – Para ilustrar esta situação, v. acórdão de 11 de Dezembro de 2007, Eind (C‑291/05, Colect., p. I‑10719, n.os 23, 24 e 30).


5 – Para ilustrar esta situação, v. acórdão de 13 de Dezembro de 2005, Marks & Spencer (C‑446/03, Colect., p. I‑10837, n.° 29).


6 – V. acórdãos de 23 de Novembro de 2000, Elsen (C‑135/99, Colect., p. I‑10409, n.° 33); de 2 de Outubro de 2003, Garcia Avello (C‑148/02, Colect., p. I‑11613, n.° 25); de 29 de Abril de 2004, Pusa (C‑224/02, Colect., p. I‑5763, n.° 22); de 15 de Março de 2005, Bidar (C‑209/03, Colect., p. I‑2119, n.° 33); de 26 de Outubro de 2006, Tas‑Hagen e Tas (C‑192/05, Colect., p. I‑10451, n.° 22); e de 22 de Maio de 2008, Nerkowska (C‑499/06, Colect., p. I‑3993, n.° 24).


7 – V. acórdão de 25 de Julho de 2002, MRAX (C‑459/99, Colect., p. I‑6591). V., igualmente, acórdão de 14 de Abril de 2005, Comissão/Espanha (C‑157/03, Colect., p. I‑2911).


8 – V. um exemplo na Directiva 2003/86/CE do Conselho, de 22 de Setembro de 2003, relativa ao direito ao reagrupamento familiar (JO L 251, p. 12), que confere um direito ao reagrupamento familiar aos nacionais de Estados terceiros.


9 – Após recordar, no seu quinto considerando, que «o direito de livre circulação exige, a fim de que possa exercer‑se em condições objectivas de liberdade e de dignidade […], que sejam eliminados os obstáculos que se opõem à mobilidade dos trabalhadores, nomeadamente no que se refere ao direito ao reagrupamento familiar», o Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 127, p. 2; EE 05 F1 p. 77), consagra, no seu artigo 10.°, o direito de os membros da família, seja qual for a sua nacionalidade, se instalarem com o trabalhador nacional de um Estado‑Membro empregado no território de outro Estado‑Membro. Em termos muito semelhantes, o quinto considerando da Directiva 2004/38 recorda que «[o] direito de todos os cidadãos da União circularem e residirem livremente no território dos Estados‑Membros implica, para que possa ser exercido em condições objectivas de liberdade e de dignidade, que este seja igualmente concedido aos membros das suas famílias, independentemente da sua nacionalidade».


10 – V. acórdãos de 11 de Julho de 2002, Carpenter (C‑60/00, Colect., p. I‑6279, n.° 38); MRAX, já referido (n.° 53); de 14 de Abril de 2005, Comissão/Espanha, já referido (n.° 26); de 31 de Janeiro de 2006, Comissão/Espanha (C‑503/03, Colect., p. I‑1097, n.° 41); e Eind, já referido (n.° 44).


11 – Directiva do Conselho, de 21 de Maio de 1973, relativa à supressão das restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados‑Membros na Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços (JO L 172, p. 14; EE 06 F1 p. 132).


12 – V. acórdão de 7 de Julho de 1992, Singh (C‑370/90, Colect., p. I‑4265).


13 – V. acórdão Carpenter, já referido.


14 – Acórdão de 23 de Setembro de 2003 (C‑109/01, Colect., p. I‑9607).


15 – Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950.


16 – Já referido (n.os 49 a 51).


17 – V. acórdão MRAX, já referido (n.° 59).


18 – V. acórdão de 14 de Abril de 2005, Comissão/Espanha, já referido (n.° 28).


19 – V. acórdão MRAX, já referido (n.os 73 a 80).


20 – V. acórdão de 14 de Abril de 2005, Comissão/Espanha, já referido (n.° 28).


21 – Acórdão de 9 de Janeiro de 2007 (C‑1/05, Colect., p. I‑1).


22 – V. acórdão Akrich, já referido (n.os 51 a 54).


23 – V. acórdão de 18 de Maio de 1989, Comissão/Alemanha (249/86, Colect., p. 1263, n.° 10), e acórdão Baumbast e R, já referido (n.° 72).


24 – V. acórdão Carpenter, já referido.


25 – Directiva do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativa à supressão das restrições à deslocação e permanência dos trabalhadores dos Estados‑Membros e suas famílias na Comunidade (JO L 257, p. 13; EE 05 F1 p. 88).


26 – V. acórdão MRAX, já referido (n.os 63 a 80).