Language of document : ECLI:EU:C:2009:418

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

2 de Julho de 2009 (*)

«Regulamento (CE) n.° 6/2002 – Desenhos ou modelos comunitários – Artigos 14.° e 88.° – Titularidade do direito ao desenho ou modelo comunitário – Desenho ou modelo não registado – Desenho ou modelo por encomenda»

No processo C‑32/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Juzgado de lo Mercantil n° 1 de Alicante y n° 1 de Marca Comunitaria (Espanha), por decisão de 18 de Janeiro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 28 de Janeiro de 2008, no processo

Fundación Española para la Innovación de la Artesanía (FEIA)

contra

Cul de Sac Espacio Creativo SL,

Acierta Product & Position SA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: P. Jann, presidente de secção, M. Ilešič (relator), A. Tizzano, A. Borg Barthet e E. Levits, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 29 de Janeiro de 2009,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Fundación Española para la Innovación de la Artesanía (FEIA), por M. J. Sanmartín Sanmartín, abogada,

–        em representação da Cul de Sac Espacio Creativo SL, por O. L. Herreros Chico, abogado,

–        em representação da Acierta Product & Position SA, por T. Sánchez Morgado, abogada,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por I. Rao, na qualidade de agente, assistida por S. Malynicz, barrister,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por I. Martínez del Peral e H. Krämer, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de Março de 2009,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 14.°, n.os 1 e 3, e 88.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 6/2002 do Conselho, de 12 de Dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários (JO 2002, L 3, p. 1, a seguir «regulamento»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Fundación Española para la Innovación de la Artesanía (a seguir «FEIA»), às sociedades Cul de Sac Espacio Creativo SL (a seguir «Cul de Sac») e Acierta Product & Position SA (a seguir «Acierta»), a respeito da propriedade de desenhos ou modelos comunitários de relógios de parede.

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

3        Decorre do primeiro considerando do regulamento que este tem por objectivo criar «um desenho ou modelo comunitário, beneficiando de protecção uniforme e produzindo os mesmos efeitos em todo o território da Comunidade».

4        O oitavo considerando do regulamento prevê:

«É essencial para a indústria comunitária a instituição de um sistema de protecção dos desenhos ou modelos que seja mais acessível e adaptado às necessidades do mercado interno.»

5        O nono considerando deste regulamento enuncia:

«As disposições substantivas do presente regulamento sobre desenhos ou modelos deveriam ser alinhadas com as correspondentes disposições da Directiva 98/71/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Outubro de 1998, relativa à protecção legal de desenhos e modelos (JO L 289, p. 28)].»

6        Nos termos do décimo sexto considerando do regulamento:

«Alguns [dos sectores da indústria da Comunidade] produzem grandes quantidades de desenhos ou modelos para produtos que frequentemente têm um ciclo de vida económica curto, para os quais uma protecção que não implique formalidades de registo constitui uma vantagem e a duração da protecção desempenha um papel secundário. […]»

7        O vigésimo primeiro considerando do regulamento dispõe:

«[…] o desenho ou modelo comunitário não registado apenas deve conferir o direito de impedir a sua reprodução. […]»

8        O vigésimo quinto considerando do regulamento tem a seguinte redacção:

«Os sectores da indústria que produzem, em breves períodos de tempo, grandes quantidades de desenhos ou modelos com um tempo de vida relativamente curto, dos quais apenas uma pequena proporção acabará por ser comercializada, terão vantagem em utilizar o desenho ou modelo comunitário não registado. Estes sectores necessitam igualmente de poder recorrer mais facilmente aos desenhos ou modelos comunitários registados. Esta necessidade seria pois resolvida pela possibilidade de combinar diversos desenhos ou modelos num pedido múltiplo. Todavia, os desenhos ou modelos incluídos num pedido múltiplo podem ser tratados independentemente uns dos outros para efeitos de […] cessão […].»

9        O trigésimo primeiro considerando do regulamento dispõe:

«O presente regulamento não exclui a aplicação aos desenhos ou modelos protegidos pelo desenho ou modelo comunitário das regulamentações relativas à propriedade industrial ou de outras regulamentações relevantes dos Estados‑Membros, tal como as relativas à protecção obtida por via de registo ou as relativas a direitos aos desenhos ou modelos não registados […].»

10      Nos termos do artigo 1.°, n.° 2, alínea a), do regulamento:

«Um desenho ou modelo comunitário será protegido:

a)      Enquanto ‘desenho ou modelo comunitário não registado’, se divulgado ao público nos termos do presente regulamento.»

11      No entanto, nos termos do n.° 3 do mesmo artigo:

«O desenho ou modelo comunitário possui carácter unitário. Produz efeitos idênticos em toda a Comunidade. Só pode ser […] transmitido […] em toda a Comunidade. Este princípio é aplicável salvo disposição em contrário do presente regulamento.»

12      O título II do regulamento, sob a epígrafe «Direito relativo aos desenhos e modelos», contém, nomeadamente, uma secção 1, sob a epígrafe «Requisitos de protecção», constituída pelos artigos 3.° a 9.°, uma secção 3, sob a epígrafe «Direito ao desenho ou modelo comunitário», constituída pelos artigos 14.° a 18.°, e uma secção 5, sob a epígrafe «Nulidade», constituída pelos artigos 24.° a 26.°

13      O artigo 3.°, alínea a), do regulamento define «Desenho ou modelo» como «a aparência da totalidade ou de uma parte de um produto resultante das suas características, nomeadamente, das linhas, contornos, cores, forma, textura e/ou materiais do próprio produto e/ou da sua ornamentação».

14      O artigo 11.° do regulamento, sob a epígrafe «Início e duração da protecção do desenho ou modelo comunitário não registado», dispõe, no seu n.° 1:

«Um desenho ou modelo que preencha os requisitos definidos na secção 1 será protegido enquanto desenho ou modelo comunitário não registado por um período de três anos a contar da data em que o desenho ou modelo tiver sido pela primeira vez divulgado ao público na Comunidade.»

15      O artigo 14.° do regulamento, sob a epígrafe «Direito ao desenho ou modelo comunitário», dispõe, nos seus n.os 1 e 3:

«1.      O direito ao desenho ou modelo comunitário pertence ao criador ou ao seu sucessível.

[…]

3.      Contudo, sempre que um desenho ou modelo for realizado por um trabalhador por conta de outrem no desempenho das suas funções ou segundo instruções dadas pelo seu empregador, o direito ao desenho ou modelo pertence a este último, salvo convenção ou disposição da legislação nacional aplicável em contrário.»

16      O artigo 19.° do regulamento, sob a epígrafe «Direitos conferidos pelo desenho ou modelo comunitário», dispõe, no seu n.° 2:

«Todavia, um desenho ou modelo comunitário não registado só confere ao seu titular o direito de proibir os actos mencionados no n.° 1, se o uso em litígio resultar de uma cópia do desenho ou modelo protegido.»

17      O artigo 25.° do regulamento, sob a epígrafe «Causas de nulidade», prevê, no seu n.° 1, alínea c), que um desenho ou modelo comunitário só pode ser declarado nulo «[s]e, na sequência de uma decisão judicial, o titular do desenho ou modelo comunitário não tiver direito ao mesmo nos termos do artigo 14.°».

18      O artigo 27.°, sob a epígrafe «Equiparação dos desenhos ou modelos comunitários a desenhos ou modelos nacionais», enuncia, no seu n.° 1:

«Salvo disposição em contrário dos artigos 28.°, 29.°, 30.°, 31.° e 32.°, um desenho ou modelo comunitário enquanto objecto de propriedade será considerado, na sua totalidade e em relação a todo o território comunitário, como um desenho ou modelo nacional do Estado‑Membro em que:

a)      O titular tenha a sua sede ou domicílio na data considerada relevante; ou,

b)      Caso a alínea a) não seja aplicável, o titular tenha um estabelecimento, na data considerada relevante.»

19      O título IX do regulamento, sob a epígrafe «Competência e procedimento em acções judiciais relativas a desenhos e modelos comunitários», compreende uma secção 2, sob a epígrafe «Litígios em matéria de infracção e validade dos desenhos ou modelos comunitários», na qual se inclui o artigo 88.°

20      Este artigo, sob a epígrafe «Direito aplicável», dispõe, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      Os tribunais de desenhos e modelos comunitários aplicarão as disposições do presente regulamento.

2.      Às questões não abrangidas pelo presente regulamento, os tribunais de desenhos e modelos comunitários aplicarão o seu direito nacional, incluindo o seu direito internacional privado.»

21      O artigo 96.°, sob a epígrafe «Relação com outras formas de protecção ao abrigo do direito nacional», prevê, no seu n.° 1:

«O disposto no presente regulamento não prejudica as disposições do direito comunitário ou do direito dos Estados‑Membros em questão aplicáveis aos desenhos ou modelos não registados […]»

22      Nos termos do seu terceiro considerando, a Directiva 98/71 visa aproximar as legislações dos Estados‑Membros em matéria de protecção de desenhos e modelos.

23      Esta directiva esclarece, no seu artigo 2.°, que é aplicável, nomeadamente, aos registos de desenhos e modelos nos serviços centrais de propriedade industrial dos Estados‑Membros ou no Instituto de Desenhos e Modelos do Benelux.

24      Nos termos do artigo 11.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 98/71:

«O registo de um desenho ou modelo será recusado ou, se já tiver sido efectuado, será anulado se:

[…]

c)      O requerente do registo, ou o seu titular, não tiver o direito ao desenho ou modelo nos termos da legislação do Estado‑Membro em causa [...]»

 Legislação nacional

25      A Lei 20/2003, de 7 de Julho de 2003, relativa à protecção jurídica do desenho [ou modelo] industrial [Ley 20/2003, de Protección Jurídica del Diseño Industrial (BOE n.° 162, de 8 de Julho de 2003, p. 26348, a seguir «LPJDI»)], só diz respeito aos desenhos ou modelos registados.

26      O artigo 14.°, n.° 1, da LPJDI estabelece que «[o] direito de registar o desenho [ou modelo] pertence ao criador ou ao seu sucessível».

27      O artigo 15.° da LPJDI, sob a epígrafe «Desenhos [ou modelos] criados no quadro de uma relação de trabalho ou de prestação de serviços», dispõe:

«Quando o desenho [ou modelo] tenha sido desenvolvido por um trabalhador por conta de outrem, em execução das suas funções ou seguindo as instruções do seu empregador, ou por encomenda no quadro de uma relação de prestação de serviços, o direito a registar o desenho [ou modelo] pertence ao empregador ou ao contraente que tenha encomendado a realização do desenho [ou modelo], salvo convenção em contrário.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

28      A FEIA concebeu um projecto denominado «D’ARTES», no âmbito do qual cinquenta oficinas de artesãos de diversos sectores podiam criar, mediante um projecto de desenho ou modelo realizado por um profissional na matéria, uma colecção de objectos para comercialização.

29      A sociedade AC&G SA (a seguir «AC&G»), na qualidade de comissária do projecto, concretizou os parâmetros de execução material do projecto D’ARTES e ficou encarregada de seleccionar os desenhadores e de celebrar acordos com eles.

30      Foi nestas circunstâncias que a AC&G celebrou com a Cul de Sac um contrato verbal, que não está sujeito ao Código de Trabalho espanhol, nos termos do qual esta última ficou encarregada da elaboração de um desenho ou modelo e da prestação de assistência técnica ao artesão, na criação, por este, de uma nova colecção de produtos. Como contrapartida da sua prestação, a Cul de Sac recebeu da AC&G a quantia de 1 800 euros, excluindo imposto.

31      A Cul de Sac desenhou uma série de relógios de parede (de cuco) que foram realizados, no âmbito do projecto D’ARTES, pela artesã Verónica Palomares e apresentados, em Abril de 2005, com a denominação de colecção «Santamaría».

32      Subsequentemente, a Cul de Sac e a Acierta fabricaram e comercializaram relógios de cuco, com a denominação de colecção «TIMELESS».

33      A FEIA, considerando que estes relógios de cuco constituíam uma cópia dos desenhos e modelos comunitários não registados que faziam parte da colecção «Santamaría», de que se considera titular, tanto devido à sua qualidade de patrocinador e de principal financiador do projecto D’ARTES como devido à cessão que lhe foi feita, pela AC&G, dos direitos exclusivos de exploração dos produtos realizados no âmbito da primeira edição do referido projecto, intentou uma acção contra a Cul de Sac e a Acierta, a título principal, por violação dos referidos desenhos ou modelos comunitários e, a título subsidiário, por actos de concorrência desleal.

34      A FEIA alega, nomeadamente, que é titular dos desenhos ou modelos comunitários não registados relativos aos relógios da colecção «Santamaría», em conformidade com o disposto no artigo 15.° da LPJDI, na medida em que estes foram realizados pela Cul de Sac em execução de uma encomenda da AC&G, agindo na qualidade de comissária «visível» da FEIA, no âmbito de uma prestação de serviços remunerada.

35      A Cul de Sac e a Acierta contestam que a AC&G e/ou a FEIA tenham sido ou sejam titulares dos referidos desenhos ou modelos e, consequentemente, que a FEIA tenha legitimidade activa.

36      O Juzgado de lo Mercantil n° 1 de Alicante y n° 1 de Marca Comunitaria considera que a FEIA só pode invocar a titularidade dos desenhos ou modelos em causa no processo principal, se a AC&G, que lhos tinha cedido, fosse, ela própria, titular do direito aos referidos desenhos ou modelos.

37      Nestas condições, o Juzgado de lo Mercantil n° 1 de Alicante y n° 1 de Marca Comunitaria decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 14.°, n.° 3, do Regulamento n.° 6/2002 deve ser interpretado no sentido de que apenas abrange os desenhos e modelos comunitários realizados no quadro de uma relação laboral em que o criador‑autor está vinculado por um contrato sujeito ao direito do trabalho, caracterizado pela dependência e pelo trabalho por conta de outrem?

ou

2)      Há que interpretar as expressões ‘trabalhador por conta de outrem’ e ‘empregador’, do artigo 14.°, n.° 3, do Regulamento n.° 6/2002, em sentido amplo, a fim de abranger situações diferentes da relação laboral, como aquelas em que, em virtude de um contrato civil/comercial (e, portanto, sem existir dependência, trabalho por conta de outrem e habitualidade), uma pessoa (o criador) se obriga a executar um desenho/modelo a outra, por um preço certo, e, por conseguinte, entende‑se que pertence à pessoa que o encomenda, salvo se o contrato estipular o contrário?

3)      Em caso de resposta negativa à segunda questão, uma vez que a criação de desenhos/modelos, no quadro de uma relação laboral, e a criação de desenhos/modelos, no quadro de uma relação não laboral, são realidades de facto diferentes:

a)      Há que aplicar a regra geral do artigo 14.°, n.° 1, do Regulamento n.° 6/2002 e, por conseguinte, deve entender‑se que pertencem ao autor, salvo se as partes dispuserem o contrário no contrato?

b)      O tribunal de desenhos e modelos comunitários deve aplicar a legislação nacional que regula os desenhos e modelos, por remissão do artigo 88.°, n.° 2, do Regulamento n.° 6/2002?

4)      No caso de se considerar aplicável a remissão para a legislação nacional, se esta equiparar (como acontece no direito espanhol) os desenhos/modelos criados no quadro de uma relação laboral (pertencem ao empregador, salvo convenção em contrário) aos desenhos/modelos criados por encomenda (pertencem à parte que os encomenda, salvo convenção em contrário), é possível a aplicação do direito nacional nesse caso?

5)      Em caso de resposta afirmativa à quarta questão, tal solução (pertencem à parte que os encomenda, salvo convenção em contrário) não estaria em contradição com a resposta negativa à segunda questão?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira e segunda questões, relativas ao âmbito de aplicação do artigo 14.°, n.° 3, do regulamento

38      Com estas questões, que importa analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 14.°, n.° 3, do regulamento é igualmente aplicável ao desenho ou modelo comunitário que foi criado por encomenda e, portanto, fora de uma relação laboral.

 Observações submetidas ao Tribunal de Justiça

39      A FEIA e o Governo do Reino Unido pronunciaram‑se a favor da aplicação do artigo 14.°, n.° 3, do regulamento aos desenhos e modelos criados por encomenda, considerando que esta disposição e, em particular, os conceitos de «empregador» e de «trabalhador por conta de outrem», aos quais se refere, devem ser interpretados não só com base na redacção da referida disposição mas também à luz da economia geral e dos objectivos do sistema em que se inserem.

40      A Comissão das Comunidades Europeias, a Cul de Sac e a Acierta alegam, ao invés, que a regra prevista no artigo 14.°, n.° 3, do regulamento é aplicável exclusivamente aos desenhos e modelos criados no quadro de uma relação de trabalho subordinado.

41      A Acierta e a Comissão observam, além disso, que o artigo 14.°, n.° 3, contém uma norma derrogatória ou uma excepção ao princípio geral enunciado no n.° 1 do referido artigo, que, como tal, não permite nem uma interpretação extensiva, nem uma aplicação por analogia a casos não expressamente previstos.

42      A Comissão considera, por último, que a interpretação proposta é confirmada pelos trabalhos preparatórios e pelo processo de adopção do regulamento e que é coerente com a legislação comunitária e internacional relativa aos outros direitos de propriedade industrial.

 Resposta do Tribunal de Justiça

43      Tal como decorre do artigo 14.°, n.° 1, do regulamento, o direito ao desenho ou modelo comunitário pertence ao criador ou ao seu sucessível.

44      Ao invés, resulta do n.° 3 desse artigo que o direito ao desenho ou modelo comunitário pertence ao empregador sempre que esse desenho ou modelo for realizado por um trabalhador por conta de outrem no desempenho das suas funções ou segundo instruções dadas pelo seu empregador, salvo convenção ou disposição da legislação nacional aplicável em contrário.

45      Por conseguinte, deve rejeitar‑se a argumentação da FEIA e do Governo do Reino Unido, segundo a qual, em particular, os conceitos de «empregador» e de «trabalhador por conta de outrem», que constam do referido parágrafo, devem ser interpretados de forma ampla, a fim de serem igualmente aplicáveis aos desenhos ou modelos realizados por encomenda.

46      A este respeito, há que observar que o legislador comunitário previu nesse parágrafo um regime específico relativo aos desenhos ou modelos comunitários realizados no quadro de uma relação laboral.

47      Isto decorre, em particular, do facto de, na redacção do referido parágrafo, ter optado pelo termo «empregador», para se referir ao titular do desenho ou modelo comunitário realizado no quadro de uma relação de trabalho, e não pelo termo nitidamente mais amplo de «comitente».

48      Resulta, aliás, da redacção do artigo 14.°, n.° 3, do regulamento que o «empregador» se torna titular do desenho ou modelo comunitário, sempre que o «trabalhador por conta de outrem» o realize no desempenho das suas funções ou segundo instruções dadas pelo seu empregador.

49      No que diz respeito à expressão «trabalhador por conta de outrem», há que referir ainda que o legislador comunitário não optou, na referida disposição, relativamente à pessoa que realizou um desenho ou modelo, pelo termo, nitidamente mais amplo, de «comissário». Por conseguinte, o conceito de «trabalhador por conta de outrem» refere‑se à pessoa que está subordinada ao seu «empregador», quando realiza um desenho ou modelo comunitário no quadro de uma relação laboral.

50      No que se refere ao excerto do referido parágrafo que dispõe «salvo convenção ou disposição da legislação nacional aplicável em contrário», há que esclarecer que, por um lado, permite que as partes num contrato de trabalho designem o «trabalhador por conta de outrem» como titular de um desenho ou modelo comunitário e, por outro, confere aos Estados‑Membros a faculdade de, na sua legislação nacional, dispor que o «trabalhador por conta de outrem» seja o titular de um desenho ou modelo comunitário, desde que, nos dois casos mencionados, esse desenho ou modelo tenha sido realizado no quadro de uma relação laboral.

51      Daqui decorre que o legislador comunitário pretendeu definir o regime especial previsto no artigo 14.°, n.° 3, do regulamento, por referência a um tipo específico de relação contratual, ou seja, a relação laboral, o que exclui a aplicabilidade do referido parágrafo às outras relações contratuais, como a relativa a um desenho ou modelo comunitário criado por encomenda.

52      Esta interpretação é, além do mais, confirmada pelos trabalhos preparatórios do regulamento.

53      A este respeito, a Comissão alega que se afirma especificamente na exposição de motivos da Proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo aos desenhos ou modelos comunitários [COM (93) 342 final, de 3 de Dezembro de 1993] que o empregador é o titular de um desenho ou modelo comunitário, sempre que esse desenho ou modelo tenha sido realizado por um trabalhador por conta de outrem no exercício das suas funções que decorrem do contrato de trabalho.

54      De resto, segundo a Comissão e tal como decorre dos n.os 27 a 32 das conclusões do advogado‑geral, embora seja verdade que o primeiro anteprojecto de proposta de regulamento da Comissão continha, além de uma disposição relativa à titularidade de um desenho ou modelo comunitário realizado por um trabalhador por conta de outrem, uma disposição expressa relativa à titularidade de um desenho ou modelo comunitário criado por encomenda, esta última disposição não foi mantida no regulamento.

55      Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 14.°, n.° 3, do regulamento não é aplicável ao desenho ou modelo comunitário realizado por encomenda.

 Quanto à terceira questão, alínea a), relativa à interpretação do artigo 14.°, n.° 1, do regulamento

56      Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 14.°, n.° 1, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que o direito ao desenho ou modelo comunitário pertence ao criador, salvo se tiver sido transferido para o seu sucessível através de um contrato.

 Observações submetidas ao Tribunal de Justiça

57      A FEIA considera que o artigo 14.° deve ser interpretado, no seu todo, à luz dos objectivos do regulamento e tendo em conta a intenção do legislador de estabelecer apenas uma regulamentação mínima na matéria. Invoca, em especial, por um lado, os artigos 27.°, 88.° e 96.° do regulamento, que remetem para as legislações nacionais e permitem que estas estabeleçam uma protecção dos desenhos e modelos comunitários mais ampla do que a prevista pelo regulamento, e, por outro, o sexto, oitavo e nono considerandos do mesmo regulamento, nos quais figuram as exigências relativas ao respeito dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade e se define o objectivo do alinhamento das disposições substantivas do regulamento pelas da Directiva 98/71.

58      A FEIA propõe ainda que se interprete o conceito de «sucessível», que figura no artigo 14.°, n.° 1, do regulamento, como uma referência às diversas modalidades possíveis de aquisição do direito ao desenho ou modelo previstas pela legislação dos Estados‑Membros, incluindo a da LPJDI, pelo comitente do referido desenho ou modelo.

59      Segundo a Comissão, a Acierta e a Cul de Sac, o artigo 14.°, n.° 1, do regulamento contém uma disposição geral a favor da atribuição do direito ao desenho ou modelo ao seu criador. A única excepção a esta regra consta do n.° 3 e diz unicamente respeito ao caso dos desenhos e modelos realizados pelo trabalhador por conta de outrem, no âmbito da relação de trabalho subordinado. Não há, pois, nenhuma lacuna no regulamento, quanto à determinação da titularidade do direito ao desenho ou modelo comunitário.

60      A Acierta e a Cul de Sac indicam que o direito ao desenho ou modelo comunitário pode ser transferido para o sucessível através de contrato.

61      O Governo do Reino Unido alega que o artigo 14.°, n.° 1, do regulamento não prevê o caso do titular de um desenho ou modelo criado por encomenda. Por conseguinte, entende que os Estados‑Membros podem, em conformidade com o trigésimo primeiro considerando e com o artigo 88.°, n.° 2, do regulamento, aplicar a sua legislação nacional relativa aos desenhos ou modelos não registados.

 Resposta do Tribunal de Justiça

62      Antes de mais, deve recordar‑se que, no presente processo, o Tribunal de Justiça foi chamado a conhecer unicamente de um caso que, por um lado, diz respeito a desenhos ou modelos comunitários não registados, que foram criados por encomenda, e em que, por outro, a LPJDI não equipara esses desenhos ou modelos aos realizados no quadro de uma relação laboral.

63      Assim, decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito comunitário como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito comunitário que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros, para determinar o seu sentido e alcance, devem normalmente encontrar, em toda a Comunidade, uma interpretação autónoma e uniforme que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pelas normas em causa (v., designadamente, acórdãos de 18 de Janeiro de 1984, Ekro, 327/82, Recueil, p. 107, n.° 11; de 19 de Setembro de 2000, Linster, C‑287/98, Colect., p. I‑6917, n.° 43; e de 14 de Dezembro de 2006, Nokia, C‑316/05, Colect., p. I‑12083, n.° 21).

64      É este o caso dos conceitos de «criador» e de «sucessível» que constam do artigo 14.° do regulamento.

65      Ora, se os referidos conceitos fossem interpretados de modo diferente nos diversos Estados‑Membros, as mesmas circunstâncias podiam dar origem a que o direito ao desenho ou modelo comunitário pertencesse, em determinados Estados, ao criador e, noutros, ao seu sucessível. Nesse caso, a protecção garantida aos referidos desenhos ou modelos comunitários não seria uniforme em todo o território da Comunidade (v., por analogia, acórdão Nokia, já referido, n.° 27).

66      É essencial, por isso, que os conceitos acima mencionados sejam objecto de interpretação uniforme na ordem jurídica comunitária.

67      Esta interpretação é corroborada pelo primeiro considerando do regulamento, segundo o qual «[a] instituição de um sistema unificado para a obtenção de um desenho ou modelo comunitário, [beneficia] de protecção uniforme e [produz] os mesmos efeitos em todo o território da Comunidade […]».

68      Além disso, resulta do artigo 1.°, n.° 3, do regulamento que o referido desenho ou modelo só pode ser transferido em toda a Comunidade, salvo disposição em contrário do regulamento.

69      No que se refere, mais concretamente, à transferência do direito a um desenho ou modelo comunitário do criador para o seu sucessível, na acepção do artigo 14.°, n.° 1, do regulamento, importa referir, conforme observam, no essencial, a FEIA, a Cul de Sac e a Acierta, que a possibilidade de tal transferência decorre implicitamente da redacção do referido artigo.

70      Além disso, essa interpretação decorre expressamente de certas versões linguísticas do conceito de «sucessível», como as versões alemã, polaca, eslovena, sueca e inglesa, que mencionam, respectivamente, «Rechtsnachfolger», «następcy prawnemu», «pravni naslednik», «den till vilken rätten har övergått» e «successor in title».

71      Uma tal transferência inclui a transferência através de contrato.

72      Com efeito, resulta dos trabalhos preparatórios do regulamento, como sublinha o advogado‑geral nos n.os 46 a 50 das suas conclusões, que o criador pode transferir para o seu sucessível, através de um contrato, o direito ao desenho ou modelo comunitário.

73      Esta interpretação é corroborada pelo oitavo e décimo quinto considerandos do regulamento, que sublinham a necessidade de adaptar a protecção dos desenhos ou modelos comunitários às necessidades de todos os sectores da indústria da Comunidade.

74      Além disso, é essencial, para efeitos da protecção, em particular, dos desenhos ou modelos comunitários não registados, fazer valer, em conformidade com o disposto no vigésimo primeiro considerando e no artigo 19.°, n.° 2, do regulamento, o direito à proibição de cópias desses desenhos ou modelos.

75      Com efeito, com excepção dos criadores individuais referidos no sétimo considerando do regulamento, decorre do décimo sexto e vigésimo quinto considerandos do mesmo que determinados sectores da indústria da Comunidade podem também ser produtores de desenhos ou modelos comunitários não registados.

76      Em tais circunstâncias, não se pode excluir, conforme observou, no essencial, o Governo do Reino Unido, que o sucessível seja uma parte economicamente mais forte do que o criador e disponha de meios mais substanciais de modo a intentar uma acção judicial destinada a impedir a cópia dos referidos desenhos ou modelos.

77      Daqui se infere que a adaptação da protecção dos desenhos ou modelos comunitários às necessidades de todos os sectores da indústria da Comunidade, que decorre do oitavo e décimo quinto considerandos do regulamento, através da transferência contratual do direito ao desenho ou modelo comunitário, pode contribuir para o objectivo essencial do exercício eficaz dos direitos conferidos por um desenho ou modelo comunitário em todo o território da Comunidade, tal como resulta do vigésimo nono considerando do regulamento.

78      De resto, o reforço da protecção da estética industrial tem como efeito, de acordo com o sétimo considerando do regulamento, não só encorajar os criadores individuais a contribuir para estabelecer uma superioridade da Comunidade neste domínio mas também para incentivar a inovação e o desenvolvimento de novos produtos e o investimento na sua produção.

79      Resulta do exposto que a possibilidade de transferir, através de contrato, o direito ao desenho ou modelo comunitário do criador para o seu sucessível, na acepção do artigo 14.°, n.° 1, do regulamento, é conforme tanto com a redacção do referido artigo como com os objectivos prosseguidos pelo dito regulamento.

80      No entanto, compete ao órgão jurisdicional nacional verificar o conteúdo de tal contrato e, a este respeito, determinar se, eventualmente, o direito ao desenho ou modelo comunitário não registado foi efectivamente transferido do criador para o seu sucessível.

81      As considerações anteriores não se opõem, evidentemente, a que o órgão jurisdicional nacional, no âmbito da referida análise, aplique a legislação relativa aos contratos, a fim de determinar a quem pertence, nos termos do artigo 14.°, n.° 1, do regulamento, o direito ao desenho ou modelo comunitário não registado.

82      À luz de todas as considerações precedentes, há que responder à terceira questão, alínea a), que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, o artigo 14.°, n.° 1, do referido regulamento deve ser interpretado no sentido de que o direito ao desenho ou modelo comunitário pertence ao criador, salvo se tiver sido transferido para o seu sucessível através de um contrato.

 Quanto à terceira questão, alínea b), e à quarta e quinta questões

83      À luz da resposta dada à terceira questão, alínea a), não é necessário responder à terceira questão, alínea b), nem à quarta e quinta questões.

 Quanto às despesas

84      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 14.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 6/2002 do Conselho, de 12 de Dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários, não é aplicável ao desenho ou modelo comunitário realizado por encomenda.

2)      Em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, o artigo 14.°, n.° 1, do Regulamento n.° 6/2002 deve ser interpretado no sentido de que o direito ao desenho ou modelo comunitário pertence ao criador, salvo se tiver sido transferido para o seu sucessível através de um contrato.

Assinaturas


* Língua do processo: espanhol.