Language of document : ECLI:EU:C:2011:613

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 22 de setembro de 2011 (1)

Processo C‑524/10

Comissão Europeia

contra

República Portuguesa

«Sistema comum do IVA — Diretiva 2006/112/CE — Imposto a montante − Regime forfetário dos produtores agrícolas — Compensação forfetária em lugar de dedução — Percentagem forfetária de compensação de nível zero — Requisitos»





I –    Introdução

1.        O sistema comum do IVA (2) prevê, em princípio, que o IVA deve ser cobrado da forma mais geral possível e o seu âmbito abranger todas as fases da produção e da distribuição. Cada empresa participante na cadeia de produção e/ou de distribuição deve acrescentar ao preço, líquido de imposto, dos seus produtos ou serviços o IVA e entregá‑lo à Administração Fiscal. Contudo, uma empresa sujeita ao IVA tem direito à dedução do imposto suportado a montante, ou seja, pode deduzir o IVA que pagou aos seus próprios fornecedores. Em conclusão, cada empresa paga apenas o IVA sobre o valor acrescentado que ela própria criou. Economicamente, o IVA cobrado nos vários estádios é suportado pelo respetivo cliente e, por último, apenas pelo consumidor final.

2.        Os Estados‑Membros podem aplicar um regime especial aos produtores agrícolas aos quais seja difícil aplicar o regime normal do IVA, o chamado regime comum forfetário dos produtores agrícolas. Segundo este regime, os Estados‑Membros podem dispensar os agricultores da obrigação de liquidação do IVA, sendo a dedução habitual, calculada em concreto, substituída por uma compensação calculada forfetariamente.

3.        No presente processo por incumprimento, a Comissão Europeia critica, no essencial, o facto de Portugal ter fixado em zero a taxa para esta compensação forfetária, não recebendo os agricultores portugueses sujeitos a este regime uma compensação pelo IVA suportado a montante.

II – Quadro jurídico

A –    Direito da União

4.        O título XI da Diretiva IVA, com a epígrafe «Obrigações dos sujeitos passivos e de determinadas pessoas que não sejam sujeitos passivos», contém, no seu capítulo 7, «Disposições diversas», o artigo 272.°, n.° 1, primeiro parágrafo, alínea e), que prevê que os Estados‑Membros podem dispensar os sujeitos passivos que beneficiem do regime comum forfetário dos produtores agrícolas do cumprimento de determinadas obrigações ou de todas as obrigações referidas nos capítulos 2 a 6. Entre as referidas obrigações figura a de se identificar como sujeito passivo de IVA perante a Administração Fiscal, emitir faturas com IVA, manter uma contabilidade e apresentar declarações de IVA.

5.        O título XII, «Regimes especiais», da Diretiva IVA prevê, no seu capítulo 2, que inclui os artigos 295.° a 305.°, o «Regime comum forfetário dos produtores agrícolas».

6.        Nos termos do artigo 296.°, n.° 1, da Diretiva, os Estados‑Membros podem aplicar aos produtores agrícolas em relação aos quais seja difícil aplicar o regime normal do IVA ou, se for o caso, o regime especial das pequenas empresas, um regime forfetário destinado a compensar o IVA pago a montante relativamente aos seus inputs. A compensação forfetária prevista nesse âmbito substitui assim o direito à dedução [do imposto suportado a montante] (artigo 302.°). Contudo, um agricultor sujeito ao regime forfetário pode também optar pela aplicação do regime normal do IVA (artigo 296.°, n.° 3).

7.        O artigo 297.° da Diretiva tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros estabelecem, se necessário, as percentagens forfetárias de compensação. Os Estados‑Membros podem estabelecer percentagens forfetárias de compensação diferenciadas para a silvicultura, para os diversos subsectores da agricultura e para as pescas.

Antes de aplicarem as percentagens forfetárias de compensação fixadas ao abrigo do disposto no primeiro parágrafo, os Estados‑Membros devem notificá‑las à Comissão.»

8.        O artigo 298.° da referida Diretiva dispõe:

«As percentagens forfetárias de compensação são determinadas com base nos dados macroeconómicos relativos apenas aos agricultores sujeitos ao regime forfetário nos últimos três anos.

As percentagens podem ser arredondadas em meio ponto por excesso ou por defeito. Os Estados‑Membros podem igualmente reduzir essas percentagens até ao nível zero» (3).

9.        As percentagens forfetárias de compensação não podem ter por efeito que os agricultores sujeitos ao regime forfetário recebam reembolsos superiores à carga fiscal do IVA a montante (artigo 299.°). A compensação forfetária a conceder a cada agricultor sujeito ao regime forfetário é calculada aplicando a percentagem forfetária de compensação pertinente ao preço, líquido de IVA, dos bens por si entregues e dos serviços por si prestados (artigo 300.°). A compensação forfetária é paga quer pelo cliente quer pelos poderes públicos (artigo 301.°). Quando é o cliente sujeito passivo a pagar, tem o direito a deduzir do IVA de que é devedor, referente aos seus próprios outputs, o montante da referida compensação, ou a solicitar o reembolso à Administração Fiscal (artigo 303.°).

B –    Direito português

10.      Nos termos do artigo 9.°, alínea 33), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, a seguir «CIVA») (4), estão isentas de IVA as transmissões de bens efetuadas no âmbito das explorações enunciadas no anexo A, «Lista das atividades de produção agrícola» do CIVA, bem como as prestações de serviços agrícolas no anexo B, «Lista das prestações de serviços agrícolas», quando efetuadas com carácter acessório por um produtor agrícola que utiliza os seus próprios recursos de mão‑de‑obra e equipamento normal da respetiva exploração agrícola e silvícola. Os anexos A e B mencionados correspondem, em substância, aos anexos VII e VIII da Diretiva IVA.

11.      Os produtores agrícolas que realizam exclusivamente operações isentas de IVA encontram‑se, em virtude do artigo 29.°, n.° 3, do CIVA, dispensados do cumprimento das obrigações de liquidação de imposto, de faturação, de declaração de imposto e de contabilização, que recaem sobre os sujeitos passivos sujeitos ao regime normal do IVA. Podem optar pela aplicação do regime normal, incluído o direito à dedução do imposto pago a montante, mas são obrigados a permanecer no regime pelo qual optaram, durante um período de cinco anos (artigo 12.°).

III – Matéria de facto, fase pré‑contenciosa e pedidos das partes

12.      Por carta de 6 de junho de 2008, a Comissão notificou às autoridades portuguesas que considerava o regime facultativo aplicado em Portugal aos agricultores incompatível com o regime comum forfetário previsto na Diretiva IVA. Com efeito, o regime aplicado em Portugal não prevê uma compensação pelo IVA pago a montante e limita‑se, na realidade, a estabelecer uma isenção para as atividades agrícolas, acompanhada da impossibilidade de deduzir o imposto suportado a montante.

13.      Na sua resposta de 20 de agosto de 2008, as autoridades portuguesas contestaram a existência de um incumprimento: o artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva IVA permite expressamente aos Estados‑Membros estabelecerem percentagens forfetárias de compensação de nível zero, sem que tal possibilidade esteja subordinada aos valores de imposto a montante suportados pelos produtores agrícolas abrangidos pelo regime forfetário. O regime português atingiria também resultados coerentes com os objetivos prosseguidos pelo regime comum forfetário dos produtores agrícolas, em particular com o objetivo da simplificação. Acresce que o regime controvertido não é comparável a uma isenção fiscal sem direito a dedução. De resto, os Estados‑Membros podem escolher livremente a forma e os meios de dar aplicação às Diretivas, pelo que não existe nenhum impedimento ao regime aplicado em Portugal.

14.      Não tendo ficado convencida por esta argumentação, a Comissão dirigiu à República Portuguesa, em 26 de junho de 2009, um parecer fundamentado, no qual reiterou que o regime aplicado em Portugal era incompatível com os artigos 296.° a 298.° da Diretiva IVA.

15.      Por carta de 31 de agosto de 2009, dirigida à Comissão, a República Portuguesa recusou‑se a adotar as medidas necessárias para se conformar com o parecer fundamentado e apresentou de forma mais desenvolvida a sua anterior argumentação.

16.      A Comissão continua a considerar que o regime aplicado em Portugal não é compatível com o direito da União e pede, por isso, com a presente ação, entrada no Tribunal de Justiça em 11 de novembro de 2010, que:

1.      Declare verificado que, ao aplicar aos produtores agrícolas um regime especial que não respeita o regime instituído pela Diretiva IVA, pelo facto de os dispensar do pagamento do IVA e de lhes aplicar uma percentagem forfetária de compensação de nível zero, ao mesmo tempo que procede a uma compensação negativa substancial nos seus recursos próprios para contrabalançar a cobrança do IVA, a República Portuguesa não deu cumprimento ao disposto nos artigos 296.° a 298.° da Diretiva IVA.

2.      Condene a República Portuguesa nas despesas do processo.

17.      A República Portuguesa conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

1.      Declarar a ação improcedente.

2.      Condenar a Comissão no pagamento das despesas do processo.

18.      Terminada a fase escrita, teve lugar uma audiência em 14 de setembro de 2011.

IV – Apreciação jurídica

A –    Quanto ao fundamento de recurso baseado na percentagem forfetária de compensação de nível zero

1.      Quanto à interpretação do artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva

19.      Para efeitos da solução do presente litígio, importa esclarecer, em primeira linha, em que condições os Estados‑Membros, e, deste modo, também Portugal, podem prever, segundo a Diretiva IVA, no âmbito do regime forfetário dos agricultores, uma percentagem forfetária de compensação de nível zero. Através dessa taxa zero, acaba, afinal, por não ser efetuada uma compensação do IVA que incide sobre os inputs dos agricultores.

a)      Quanto ao teor do artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva

20.      Portugal entende que uma taxa zero é perfeitamente admissível e remete para a redação do artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva. Na verdade, este prevê expressamente que «[o]s Estados‑Membros podem […] reduzir essas percentagens até ao nível zero».

21.      Contudo, a Comissão sustenta que isto não pode ser entendido como concessão de uma carta branca. Pelo contrário, a taxa zero só é admissível em determinadas condições, ou seja, quando a percentagem forfetária de compensação calculada nos termos da Diretiva se aproxime do nível zero ou quando os inputs dos agricultores forem isentos de imposto, de modo que não há nada a compensar.

22.      Da redação do artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva nada resulta em apoio de uma tal limitação da possibilidade concedida aos Estados‑Membros, de reduzir a percentagem forfetária de compensação até ao nível zero. Contudo, a sua redação também não exclui a interpretação restritiva defendida pela Comissão. Por conseguinte, importa analisar o contexto sistemático assim como o espírito e a finalidade do regime (5) e a sua génese (6), para verificar se existem outros elementos que esclareçam em que sentido deve ser interpretada esta norma.

b)      Quanto à génese do artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva

23.      No que respeita à génese do artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva, à qual as partes se referiram abundantemente, importa notar, antes de mais, que já o artigo 25.°, n.° 3, primeiro parágrafo, quarto período, da Sexta Diretiva IVA 77/388 (7), na redação dada pela Diretiva IVA, previa, desde o início, que «[o]s Estados‑Membros podem […] reduzir essas percentagens até ao nível zero».

24.      Esta disposição resulta, ao que parece, de uma proposta de alteração, apresentada pela República da Irlanda, à proposta inicial de Diretiva da Comissão (8). No âmbito do debate sobre a sua proposta, a Comissão elaborou um «compromisso final» para o regime especial dos produtores agrícolas (9), que tem em consideração «algumas [] das alterações nele feitas [] na reunião do Comité de Representantes Permanentes de 3 de dezembro de 1976», no qual foi introduzido, no artigo 27.° (10), n.° 3, primeiro parágrafo, um novo quarto período, segundo o qual «[o]s Estados‑Membros podem […] reduzir esses reembolsos até ao nível zero». Numa nota de rodapé, é referido que o Comité de Representantes Permanentes procedeu à inclusão deste período a pedido da delegação irlandesa.

25.      Na nota R/3260/76 (FIN 892) do Conselho, de 21 de dezembro de 1976 (11), relativa às reuniões do Comité de Representantes Permanentes de 3 e 8 de dezembro de 1976, é referido, que «[t]odas as delegações […] se pronunciaram a favor de os Estados‑Membros terem a oportunidade de reduzir as respetivas taxas de compensação até ao nível zero».

26.      Numa carta do Representante Permanente da Irlanda, de 19 de novembro de 1976 (12), dirigida ao Conselho, em relação ao artigo 27.° da Sexta Diretiva IVA — Regime especial dos produtores agrícolas, não se encontra, no entanto, a proposta em causa, nem a carta permite tirar conclusões sobre as considerações subjacentes. Nela vem apenas referido, em termos gerais, «que a versão atual coloca a Irlanda perante dificuldades substanciais. A Comissão foi informada destas dificuldades, tendo em vista uma adaptação do projeto […]».

27.      No presente processo, a Comissão alega que o regime em causa se explica sobretudo pelo facto de, naquela altura, determinados Estados‑Membros, entre os quais a Irlanda, aplicarem uma taxa zero a fatores de produção agrícola, o que a Diretiva 77/388 continuou a permitir, embora dentro de limites estritos (13). Para este tipo de situações, o Conselho concedeu aos Estados‑Membros a possibilidade de prever uma percentagem forfetária de compensação de nível zero.

28.      No entanto, importa contrapor que a compensação forfetária pressupõe necessariamente o pagamento de imposto a montante (14), sendo que, no caso de uma taxa zero sobre os inputs, uma percentagem forfetária de compensação superior a zero é à partida inconcebível e, consequentemente, não seria necessária para esse efeito uma autorização expressa. Além disso, na altura em que o regime aqui em causa foi introduzido na proposta da Diretiva 77/388, o artigo 27.°, n.° 3 (15), já referia que os Estados‑Membros fixam, «em caso de necessidade», as percentagens forfetárias de compensação. Caso vigore para os inputs uma taxa zero, a referida necessidade não existe, não sendo por isso requerida uma autorização para estabelecer uma percentagem forfetária de compensação de nível zero.

29.      Por seu lado, Portugal remete para a exposição de motivos da Comissão, anexa à sua proposta inicial de Diretiva de junho de 1973 (16), na qual a própria Comissão indicou, quanto aos n.os 4 e 5 do artigo 27.°, «Regime forfetário dos produtores agrícolas», que os Estados‑Membros podem, dentro do limite máximo estabelecido nos termos do n.° 3, fixar livremente as percentagens forfetárias de compensação. É certo que na versão alemã de exposição de motivos da proposta falta a palavra «frei»; no entanto, no texto francês, é efetivamente referido «peuvent librement fixer»; no inglês, «may freely fix», no italiano, «possono liberamente fissare»; e, no neerlandês, «vrijelijk kunnen vaststellen».

30.      Surpreende a impressão de liberdade que daqui resulta. Se a Comissão pretendesse efetivamente conceder aos Estados‑Membros, abaixo do limite máximo referido, uma liberdade absoluta, teria sido mais fácil para a Comissão e para o Conselho incluírem esta indicação no texto da Diretiva. Porém, assim não aconteceu. Pelo contrário, só após insistência por parte da República da Irlanda, num estado já bastante avançado do debate, é que o Conselho chegou a um acordo sobre um regime que é muito menos claro em relação à margem de discricionariedade concedida aos Estados‑Membros.

31.      Além disso, na altura em que se ocupava da proposta de alteração irlandesa, o Conselho também tratava de um aditamento ao artigo 27.°, n.° 3, primeiro parágrafo, proposto pela Representação Permanente alemã (17) e por esta considerado «absolutamente necessário» (18), para que as percentagens forfetárias de compensação pudessem ser arredondadas em meio ponto por excesso ou por defeito. Esta proposta foi introduzida como quinto período nesta disposição (19). Se as delegações, já na altura da proposta inicial de Diretiva ou, o mais tardar, no momento da introdução do quarto período, por iniciativa da Irlanda, tivessem partido do pressuposto de que os Estados‑Membros teriam, abaixo de um limite máximo, uma liberdade absoluta para estabelecer a percentagem forfetária de compensação, não seria necessário um regime de arredondamento. Antes pelo contrário, os termos estritos do regime do arredondamento apontam precisamente no sentido de não conceder aos Estados‑Membros uma liberdade absoluta na sua apreciação.

32.      Por conseguinte, as indicações da Comissão na exposição de motivos da proposta inicial de Diretiva não podem ser consideradas decisivas para determinar em que sentido se deve interpretar o regime aqui em causa.

33.      Assim, a génese do artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva IVA não fornece indícios claros sobre se este deve ser interpretado no sentido defendido pela Comissão ou por Portugal.

c)      Quanto ao contexto sistemático e à finalidade

i)      O contexto sistemático concreto

34.      No âmbito das considerações relativas à génese, já foram feitas algumas reflexões sistemáticas.

35.      Assim, foi já determinado que a fixação de percentagens forfetárias de compensação nos termos do artigo 297.°, primeiro parágrafo, da Diretiva (20) é apenas prevista para o caso de necessidade. Se os fatores de produção agrícola não estiverem onerados com o imposto a montante, não se verifica essa necessidade e, no fundo, não seria necessário o artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva, para poder estabelecer uma taxa de compensação de nível zero.

36.      Neste sentido, o artigo 299.° da Diretiva (21) estabelece que as percentagens forfetárias de compensação não podem ter por efeito que os agricultores sujeitos ao regime forfetário recebam, no total, reembolsos superiores à carga fiscal do IVA a montante. Isto destina‑se a garantir que o regime forfetário para agricultores não contenha um elemento de ajuda (22).

37.      Estes dois aspetos sistemáticos apontam mais no sentido de que o artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva estabelece um regime próprio e que pretende conceder aos Estados‑Membros também a possibilidade da compensação zero, quando os inputs forem onerados por imposto a montante.

38.      Com uma interpretação desta natureza, é dificilmente concebível que as «dificuldades substanciais» da República da Irlanda, por causa da taxa zero em vigor neste Estado para fatores de produção agrícola, tenham, de facto, dado origem a este regime. Com efeito, à data em que a República da Irlanda invocou, perante o Conselho, «dificuldades substanciais» (23), o projeto da Diretiva 77/388 já continha uma disposição correspondente ao artigo 299.° da Diretiva IVA (24) e, na altura em que foi introduzido no projeto da Diretiva 77/388, como proposta da Irlanda, o regime que antecedeu o artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva IVA (25), a disposição que antecedeu o artigo 297.°, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA (26) já determinava que os Estados‑Membros apenas estabelecem as percentagens forfetárias de compensação «em caso de necessidade» (27).

39.      No entanto, a já referida regra do arredondamento do artigo 298.°, segundo parágrafo, primeiro período, da Diretiva aponta mais contra um entendimento do segundo período, no sentido de que a fixação de uma taxa zero não está associada a condições. Se os Estados‑Membros tivessem, de facto, a liberdade, nos termos do artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva, que segundo a sua génese é mais antigo, de prever uma compensação zero, embora existisse um imposto substancial a montante, não seria necessária uma disposição que permitisse o arredondamento em meio ponto, por excesso ou por defeito, da percentagem forfetária de compensação, calculada de acordo com determinados parâmetros.

40.      Do ponto de vista sistemático, o segundo período não é um simples complemento do primeiro, no sentido de que um arredondamento também pode levar a uma taxa zero. Com efeito, em primeiro lugar, a ordem destes períodos na Diretiva 77/388 era inversa; em segundo lugar, a sequência cronológica da introdução destes períodos na proposta da Diretiva 77/388 exclui esse entendimento; e, em terceiro lugar, pela sua própria natureza, o arredondamento também pode levar a uma taxa zero. Por uma questão de exaustividade, há que notar que a palavra «igualmente», no artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva IVA, é uma novidade desta Diretiva. Visto que esta modificação não está, nos termos do terceiro considerando desta Diretiva, mencionada nas disposições que regem a sua transposição e a sua entrada em vigor (28), não se visava desta forma uma modificação do conteúdo. Para a interpretação que aqui deve ser feita, não se retiram indícios adicionais desta modificação meramente de redação.

41.      Visto que as considerações sistemáticas até aqui analisadas não apontam claramente para uma interpretação do artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva IVA, num sentido ou no outro, esta disposição deve ser analisada no seu contexto geral; além disso, importa atender ao sentido e à finalidade do regime forfetário para agricultores.

ii)    O contexto geral e a finalidade do regime forfetário

42.      O regime forfetário para agricultores faz parte dos regimes especiais do sistema comum do IVA e, como tal, deve ser objeto de interpretação estrita (29).

43.      Como é logo indicado pela epígrafe do capítulo 2, aqui pertinente, do título XII da Diretiva IVA, «Regime comum forfetário dos produtores agrícolas», e é concretizado pelos artigos 296.° e 302.°, em conjugação com o artigo 272.°, n.° 1, primeiro parágrafo, alínea e), da Diretiva, este regime especial visa dar aos agricultores, a quem o regime normal ou até o regime especial para pequenas empresas cause dificuldades, a possibilidade de receberem uma compensação forfetária pelo imposto suportado a montante (30). Este regime está concebido de modo a que os agricultores por ele abrangidos não sujeitem os seus outputs ao IVA e não o entreguem à Administração Fiscal, não tendo, em contrapartida, direito a dedução. O imposto a montante deve antes ser compensado de forma forfetária.

44.      Neste contexto, importa lembrar que, segundo jurisprudência assente, o direito a dedução constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA (31) e, por conseguinte, não deve ser limitado (32). Com efeito, o direito a dedução garante a neutralidade do IVA (33).

45.      É certo que, através da compensação forfetária, não é atingida a neutralidade do IVA de forma tão individual como através do direito a dedução, mas a ideia básica do regime é garantir a neutralidade do IVA para todo o grupo dos agricultores sujeitos ao regime forfetário (34) e, no plano individual, aproximar‑se daquela o mais possível. Isto é alcançado na medida em que as percentagens forfetárias de compensação, que, nos termos do artigo 295.°, n.° 1, ponto 7, da Diretiva, permitem a compensação do imposto a montante, nos termos do artigo 298.°, primeiro parágrafo, da Diretiva, são determinadas com base nos dados macroeconómicos relativos a este grupo (35) e são posteriormente aplicadas, de acordo com o artigo 300.° da Diretiva, aos outputs de cada agricultor sujeito ao regime forfetário.

46.      Diferentemente dos sujeitos passivos aos quais se aplica o regime normal, o regime forfetário dos agricultores leva a que os outputs destes não sejam sujeitos ao IVA e, por isso, pode colocar‑se a questão de saber por que razão, afinal, deve ser feita uma compensação do imposto a montante, se, como Portugal defende, no caso de outputs isentos de IVA nos termos do artigo 168.° da Diretiva, também não existe um direito a dedução.

47.      Ora, o regime especial dos agricultores não foi concebido como isenção fiscal. Dado que os agricultores, como a Comissão afirma, pertencem habitualmente aos primeiros elos de uma longa cadeia de transformação e distribuição até ao consumidor final (36), uma simples isenção fiscal dos seus outputs teria como consequência que o imposto que foi suportado a montante nos seus inputs fosse transmitido como IVA oculto e que sobre os respetivos montantes de imposto fosse também cobrado IVA em estádios posteriores, ou seja, que tivesse lugar uma oneração múltipla e que a neutralidade do sistema do IVA viesse, por isso, a ser posta em risco.

48.      Precisamente para evitar esses efeitos da compensação forfetária, o artigo 303.° da Diretiva permite ao cliente sujeito passivo de IVA que paga, em vez do fisco, a compensação forfetária ao agricultor deduzir este montante do IVA dos seus próprios outputs ou solicitar a sua restituição. Isto assegura que não seja transmitido IVA oculto.

49.      Contudo, o artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva permite excluir completamente a compensação do imposto pago a montante, ao prever que as percentagens forfetárias de compensação possam ser também reduzidas até ao nível zero. Não se trata, neste caso, de uma exceção à exceção, que volta à regra de base e que, por isso, deva ser interpretada de forma extensiva (37), distanciando‑se, pelo contrário, o tratamento em termos de IVA dos agricultores sujeitos ao regime forfetário ainda mais do regime normal do que tem sido o caso até agora. Por conseguinte, o artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva deve ser objeto de interpretação estrita.

50.      Como resulta da exposição de motivos que acompanhou a proposta inicial da Comissão, o regime comum forfetário dos agricultores é «apenas uma modalidade de aplicação fiscal técnica e prática», através da qual deve ser atribuída aos agricultores sujeitos ao regime forfetário uma compensação forfetária para o imposto a montante dedutível. Foi introduzido como um regime transitório, para libertar sobretudo as pequenas explorações agrícolas das formalidades necessárias no regime normal (38).

51.      Para garantir a cobrança uniforme dos recursos próprios e evitar distorções na concorrência devidas à aplicação do IVA nos diversos Estados‑Membros, o regime comum forfetário não devia, segundo a exposição de motivos que acompanhou a proposta inicial, estar associado a vantagens ou desvantagens financeiras para a totalidade dos agricultores sujeitos ao regime forfetário (39). É fácil de entender que a aplicação do regime forfetário — no que respeita à cobrança de recursos próprios e às condições de concorrência entre os agricultores dos diversos Estados‑Membros — não teria os mesmos efeitos, se os agricultores sujeitos ao regime forfetário de um destes países recebessem a compensação forfetária e os agricultores sujeitos ao regime forfetário de outros países não pudessem beneficiar de um tal direito de compensação (40).

52.      Embora a proposta inicial da Diretiva tenha sido modificada em muitos aspetos, parece‑me que as passagens reproduzidas da respetiva exposição de motivos continuam a descrever bem a finalidade do regime comum forfetário dos agricultores. Se um Estado‑Membro pudesse livremente estabelecer que, não obstante um imposto a montante substancial, não seria concedida uma compensação forfetária, o regime forfetário comum deixava de fazer sentido. Consequentemente, essa interpretação não seria conciliável com a finalidade do regime.

53.      Contudo, Portugal alega que o principal objetivo do regime comum forfetário dos produtores agrícolas consiste na simplificação do sistema do IVA para os agricultores sujeitos ao regime forfetário e que o seu regime corresponde a este fim, ao estabelecer uma simplificação máxima. Face aos números relativos a 2005, Portugal indica que a sua agricultura é composta quase em exclusivo por explorações familiares muito pequenas, que o nível de instrução é em parte muito reduzido e que quase metade dos agricultores tem mais de 65 anos. Uma percentagem forfetária de compensação positiva implicaria inevitavelmente certas obrigações mínimas para os agricultores, em especial relativamente à contabilidade e faturação.

54.      Está fora de questão que o regime forfetário comum, como resulta em especial do artigo 296.°, n.° 1, em conjugação com o artigo 272.°, n.° 1, primeiro parágrafo, alínea e), da Diretiva, tem por objetivo uma simplificação do sistema do IVA para determinados agricultores (41). Porém, a Diretiva não prevê uma simplificação a todo o custo. Pelo contrário, a simplificação está associada a um mecanismo que, através da compensação forfetária do imposto a montante, garante, na medida do possível, a neutralidade do IVA.

d)      Conclusão provisória

55.      Perante este cenário, e tendo em conta o facto de que o artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva deve ser objeto de interpretação estrita, a finalidade do regime comum forfetário dos agricultores impõe uma interpretação desta norma no sentido de não conferir aos Estados‑Membros plena liberdade de fixar em zero a percentagem forfetária de compensação, independentemente da quantia do imposto a montante efetivo. Pelo contrário, esta taxa zero só é admissível quando o imposto a montante der razão para tal, quer por não existir quer por ser tão reduzido que pode ser negligenciado.

e)      Quanto ao argumento da inadmissibilidade da interpretação corretiva

56.      Portugal opõe a uma interpretação que leve ao resultado a que aqui se chegou o acórdão Comissão/Reino Unido, de 15 de julho de 2010 (42). Segundo o referido acórdão, um Estado‑Membro cuja legislação interna está em conformidade com a letra clara e precisa de uma disposição da Diretiva não pode ser acusado de não ter cumprido as obrigações que lhe incumbem por força dessa disposição, por não ter feito uma interpretação destinada a corrigir a referida disposição, para se conformar com a lógica geral do sistema comum do IVA e sanar um erro do legislador da União.

57.      No referido processo, estava em causa a questão de saber se o Reino Unido deveria interpretar e aplicar o artigo 2.°, n.° 1, da Décima Terceira Diretiva 86/560 (43), que apenas remete para o artigo 169.°, alíneas a) e b), da Diretiva IVA, no sentido de que também remete para a sua alínea c). A Comissão defendeu este entendimento, invocando os trabalhos preparatórios, a sistemática e a finalidade das disposições em causa. Contudo, o Tribunal de Justiça não seguiu o argumento da Comissão, segundo o qual existia um erro efetivo, e indicou que não cabe ao Tribunal de Justiça proceder a essa interpretação corretiva, mesmo admitindo que esse erro exista e que a interpretação da Comissão corresponda mais à lógica do sistema comum do IVA (44).

58.      No entanto, a situação é diferente no presente processo. O artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva IVA é muito menos claro do que a disposição em causa no acórdão Comissão/Reino Unido; pelo contrário, devido à sistemática e à finalidade do regime comum forfetário, do qual faz parte esta disposição, coloca‑se precisamente a questão de saber quando pode ser estabelecida uma taxa zero. Como expliquei, a interpretação teleológica, conciliável com o teor literal, leva à conclusão de que o artigo 298.°, segundo parágrafo, segundo período, da Diretiva não concede aos Estados‑Membros uma liberdade absoluta. É certo que uma formulação mais clara da disposição garantiria melhor o princípio da segurança jurídica. Todavia, o conteúdo desta disposição pode ser determinado recorrendo aos métodos habituais de interpretação, resultando dessa interpretação que um regime nacional ao abrigo do qual não é atribuída uma compensação forfetária, embora exista um imposto a montante substancial, é incompatível com aquela disposição.

2.      Quanto à existência de um imposto a montante substancial

59.      Após ter sido constatado que os Estados‑Membros não dispõem de poder discricionário para estabelecer uma percentagem forfetária de compensação de zero independentemente do imposto a montante efetivamente suportado pelos agricultores sujeitos ao regime forfetário, importa examinar se existe em Portugal uma «necessidade» de conceder uma compensação forfetária, ou se o imposto a montante suportado pelos agricultores sujeitos ao regime forfetário é igual a zero ou próximo de zero.

60.      Na sua petição, a Comissão indica que, nos termos do CIVA, se aplica uma taxa de imposto de 6% à maioria dos inputs agrícolas em Portugal e uma taxa de imposto de 13% a máquinas, equipamentos e combustíveis. No essencial, isto foi confirmado por Portugal na sua contestação.

61.      A Comissão indicou ainda que o IVA a montante suportado pelos agricultores portugueses sujeitos ao regime forfetário, que estes não puderam deduzir em 2004 e 2005, ascendeu, respetivamente, a cerca de 5,3% e 7,9% das suas vendas. Isto foi comunicado pelas autoridades portuguesas à Comissão, na sequência de uma missão de controlo dos recursos próprios, relativamente a estes anos, efetuada em Portugal, em novembro de 2007.

62.      Certos aspetos da origem e da exatidão destes números são controversos entre as partes. Todavia, na sua réplica, a Comissão nota, acertadamente, que, no presente processo, não se trata de fixar as percentagens forfetárias de compensação concretas, mas sim da questão de saber se estão preenchidos os requisitos para a fixação de uma compensação zero. Com os referidos números, a Comissão pretendeu demonstrar que o imposto a montante dos agricultores sujeitos ao regime forfetário é substancial. A veracidade desta afirmação não foi negada por Portugal de modo fundado e também é plausível, tendo em conta as taxas de IVA sobre os inputs da agricultura em vigor em Portugal.

63.      Por conseguinte, importa constatar que Portugal aplica uma percentagem forfetária de compensação de nível zero, embora os inputs dos agricultores portugueses sujeitos ao regime forfetário sejam consideravelmente onerados com o imposto a montante e, consequentemente, haja necessidade de serem compensados.

3.      Quanto aos restantes argumentos de defesa de Portugal

a)      Compensação forfetária só em caso de crédito de imposto da agricultura

64.      Portugal alega que os Estados‑Membros, no âmbito do regime forfetário, podem também tomar em conta o IVA que os agricultores sujeitos ao regime forfetário deveriam entregar à Administração Fiscal, se estivessem sujeitos ao regime normal. Manifestamente, Portugal é de opinião de que uma compensação forfetária positiva apenas deve ser considerada quando, no âmbito do regime normal, o imposto a montante exceda o imposto a pagar e o conjunto dos agricultores sujeitos ao regime forfetário se encontrem numa situação de crédito de imposto perante o Estado. No entanto, aplicando em Portugal o regime normal, o imposto a entregar excederia o imposto a montante dedutível. Por conseguinte, a compensação zero corresponde à racionalidade orçamental e não implica desvantagens para os agricultores sujeitos ao regime forfetário.

65.      Mas, como a Comissão afirma corretamente na sua réplica, nada na Diretiva indica que uma compensação forfetária positiva só deveria ser concedida no caso atípico de o imposto a montante suportado pelo conjunto do sector agrícola exceder o IVA sobre os outputs, que, ao aplicar o regime normal, deveria ser pago. Caso fosse seguida a tese das autoridades portuguesas, o regime forfetário distanciar‑se‑ia muito do regime normal e da possibilidade de dedução que este comporta; por regra, a repercussão do IVA oculto não seria evitada.

66.      Caso estes argumentos apresentados por Portugal assentem em considerações puramente orçamentais, deve, além disso, ser assinalado que o regime comum forfetário dos produtores agrícolas constitui tão‑só um regime especial opcional e que os Estados‑Membros não estão obrigados a fazer uso do mesmo. No entanto, caso optem por esse regime especial, as disposições de transposição devem respeitar o quadro criado pela Diretiva IVA. A este respeito, também não são pertinentes as alegações de Portugal segundo as quais compete aos Estados‑Membros escolher a forma e os meios da transposição.

b)      Nenhuma alteração da situação em matéria de IVA a nível da agricultura

67.      Portugal alega ainda que a Comissão parte indevidamente do pressuposto de que a situação do sector da agricultura em Portugal, em termos de IVA, se alterou de tal forma que, contrariamente ao que acontecia no passado, já não é possível uma percentagem forfetária de compensação de zero. Embora as taxas do imposto se tenham alterado, a situação em 1989, quando Portugal se teve de adaptar à Diretiva 77/388 após um período transitório, é comparável à situação atual em matéria de tributação de inputs e outputs. Mesmo que se admita uma alteração significativa, a mesma ocorreu há já 17 anos, quando Portugal, em 1992, suprimiu a taxa zero sobre diversos fatores de produção agrícola.

68.      A este respeito é suficiente a referência à jurisprudência assente segundo a qual a existência de um incumprimento deve ser analisada tendo em conta a situação em que o Estado‑Membro se encontrava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado (45), e é da competência exclusiva da Comissão decidir se (46) e quando (47) intenta uma ação por incumprimento. Por isso, não é necessário analisar como a situação se apresentava em 1989 e 1992.

c)      Compensação de outra forma

69.      Por último, Portugal alega que a compensação forfetária, caso deva efetivamente ser concedida, não teria natureza fiscal, contrariamente ao que sucede com o direito a dedução. Pelo contrário, entende que se trata exclusivamente de atribuir aos agricultores sujeitos ao regime forfetário uma compensação financeira pelos custos relacionados com as suas explorações. Em Portugal, isto é quase sempre assegurado por meio de ajudas, compensações, prémios e outras subvenções atribuídas pelo Estado.

70.      Contudo, o regime forfetário comum dos produtores agrícolas faz, sem dúvida, parte do sistema comum do IVA, como está regulado na Diretiva. Não me parece sustentável qualificar este regime especial, caso preveja uma compensação forfetária, como não pertencente à matéria fiscal. Acresce que a necessidade de aplicação uniforme deste sistema não permite escolher ajudas ou outras subvenções atribuídas pelo Estado para substituir a falta de uma compensação pelo imposto suportado a montante.

4.      Conclusão

71.      Em suma, cabe por isso afirmar que Portugal violou o regime comum forfetário dos produtores agrícolas, ao fixar em zero a percentagem forfetária de compensação, embora o imposto a montante suportado pelos agricultores sujeitos ao regime forfetário não seja igual a zero nem próximo de zero.

B –    Quanto à acusação relacionada com o cálculo dos recursos próprios

72.      Através da sua petição inicial, a Comissão critica não apenas o regime especial até aqui tratado, que Portugal aplica aos agricultores sujeitos ao regime forfetário, mas também que Portugal procede a uma compensação negativa substancial nos seus recursos próprios, para contrabalançar a cobrança do IVA.

73.      Diferentemente da acusação relativa ao regime especial, ambas as partes tratam apenas superficialmente, nas suas peças, esta segunda parte das críticas da Comissão.

74.      A Comissão dedicou a este aspeto apenas um número na sua petição inicial. Refere aí que, embora o presente processo por incumprimento não tenha por objeto examinar em que medida a República Portuguesa deu cumprimento às suas obrigações em matéria de cobrança dos recursos próprios, cumpre recordar que, se Portugal violou a Diretiva IVA e o referido incumprimento provocou uma redução dos recursos próprios da União Europeia, a Comissão pode exigir um pagamento dos retroativos acrescidos de juros. Nas suas observações sobre a interpretação do artigo 298.° da Diretiva, a Comissão referiu de passagem que Portugal, em 2004, procedeu a uma compensação negativa, de cerca de 70 milhões de euros, nos cálculos dos seus recursos próprios, para tomar em consideração o imposto a montante não deduzido pelos agricultores sujeitos ao regime forfetário.

75.      Na sua contestação, Portugal aborda este ponto também de modo sumário. Embora o presente processo tenha a sua origem em discordâncias entre a Comissão e Portugal acerca do cálculo correto dos recursos próprios relacionados com o regime especial dos agricultores, o referido aspeto não representa o objeto deste processo, como a própria Comissão refere. Mesmo que o Tribunal de Justiça seguisse a interpretação do regime comum forfetário que a Comissão defende, isto não pode levar a um aumento da contribuição portuguesa para os recursos próprios, dado que já foi atingido o nível máximo. Na sua tréplica, Portugal indica ainda que a Comissão se baseia nas disposições da Sexta Diretiva 77/388 sobre o cálculo dos recursos próprios no contexto do regime comum forfetário dos agricultores (48), que já não se aplicam desde há muito tempo, pelo menos desde a entrada em vigor do Regulamento n.° 1553/89 (49), e que também não têm equivalente na atual Diretiva IVA.

76.      É certo que Portugal não contestou expressamente que, quanto ao regime que aplica aos agricultores sujeitos ao regime forfetário, efetua uma compensação negativa dos recursos próprios e que o fez, em especial, em 2004. No entanto, devido às observações da Comissão acima expostas, reforçadas na audiência ao ser interrogada a este respeito, nos termos das quais o presente processo não respeita à cobrança dos recursos próprios, o referido aspeto não é suscetível de ser oposto a Portugal. Com efeito, resulta do artigo 38.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e da jurisprudência pertinente que a petição inicial deve indicar o objeto do litígio e conter a exposição sumária dos fundamentos do pedido, os quais devem ser suficientemente claros e precisos para permitir ao demandado preparar a sua defesa e ao Tribunal de Justiça exercer a sua fiscalização. Daí que os elementos essenciais de facto e de direito em que a ação se baseia devem decorrer de modo coerente e compreensível do texto da própria petição (50). A segunda parte da petição inicial da Comissão não cumpre esta exigência.

77.      Dado que a Comissão não retirou expressamente a segunda parte da sua petição inicial e que, consequentemente, é necessário tomar uma decisão a este respeito, essa parte deve ser declarada inadmissível por falta de fundamentação suficiente.

V –    Quanto às despesas

78.      Tendo cada uma das partes pedido a condenação da outra nas despesas e tendo cada uma das partes sido parcialmente vencida, proponho que, nos termos do artigo 69.°, n.° 3, do Regulamento de Processo, cada uma delas suporte as suas próprias despesas.

VI – Conclusão

79.      Tendo em conta as observações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que declare que:

1)         A República Portuguesa não deu cumprimento ao disposto nos artigos 296.° a 298.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, ao aplicar aos produtores agrícolas um regime especial que não respeita o regime instituído pela referida Diretiva, pelo facto de os dispensar do pagamento do IVA e de lhes aplicar uma percentagem forfetária de compensação de nível zero.

2)         A ação é declarada improcedente quanto ao restante.

3)         Cada parte suportará as suas próprias despesas.


1 – Língua original: alemão.


2 – Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO L 347, p. 1, a seguir «Diretiva IVA ou Diretiva»).


3 –      O sublinhado é meu.


4 – Na sua versão alterada pelo Decreto‑Lei n.° 195/89, de 12 de junho de 1989, e republicado pelo Decreto‑Lei n.° 102/2008, de 20 de junho (na versão da Declaração de Retificação n.° 44‑A/2008, de 13 de agosto).


5 – V. acórdãos de 15 de julho de 2004, Harbs (C‑321/02, Colet., p. I‑7101, n.° 28), de 26 de maio de 2005, Stadt Sundern (C‑43/04, Colet., p. I‑4491, n.° 24), e de 9 de março de 2010, Comissão/Alemanha (C‑518/07, Colet., p. I‑1885, n.° 17).


6 – V. acórdãos de 23 de abril de 2009, Falco Privatstiftung e Rabitsch (C‑533/07, Colet., p. I‑3327, n.° 20), de 10 de setembro de 2009, Eschig (C‑199/08, Colet., p. I‑8295, n.° 58), e de 28 de outubro de 2010, Volvo Car Germany (C‑203/09, Colet., p. I‑10721, n.° 40).


7 – Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54).


8 – Disponível em http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/170.pdf.


9 – Remetido às delegações com a nota R/2892/1/76 (FIN 758) rev. 1 do Conselho, de 7 de dezembro de 1976, disponível em http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/226.pdf. As versões alemã, dinamarquesa, italiana, neerlandesa e inglesa datam de 8 de dezembro de 1976.


10 – Trata‑se do futuro artigo 25.° da Diretiva 77/388.


11 – Disponível em http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/227.pdf. A versão alemã data de 23 de dezembro de 1976 e as versões dinamarquesa, italiana, neerlandesa e inglesa datam de 22 de dezembro de 1976.


12 – Documento R/2855/76 (FIN 750) do Conselho, de 23 e 24 de novembro de 1976, disponível em http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/222.pdf.


13 – A este respeito, a Comissão remete para o acórdão de 21 de junho de 1988, Comissão/Irlanda (415/85, Colet., p. 3097, n.os 29 e 30). Neste processo, a Comissão criticava a Irlanda, designadamente, por ter aplicado a taxa zero a alimentos para animais e fertilizantes assim como a sementes, tendo o Tribunal de Justiça considerado a taxa zero aplicada a estes fatores de produção agrícola compatível com a Diretiva 77/388.


14 – V. acórdão Comissão/Irlanda (já referido na nota 13, n.° 25).


15 – Que passou a artigo 25.°, n.° 3, da Diretiva 77/388 e, mais tarde, a artigo 297.°, n.° 1, da Diretiva IVA.


16 – V. nota 8.


17 – Telex de 19 de novembro de 1976 dirigido ao Conselho; documento R/2847/76 (FIN 747) do Conselho, de 22 e 24 de novembro de 1976, disponível em http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/222.pdf.


18 – V., a este respeito, o documento R/2892/1/76 (FIN 758) rev. 1 do Conselho, de 7 de dezembro de 1976 (já referido na nota 9).


19 – V. artigo 25.°, n.° 3, primeiro parágrafo, quinto período, da Diretiva 77/388 e artigo 298.°, n.° 2, primeiro período da Diretiva IVA.


20 – Anterior artigo 25.°, n.° 3, primeiro período, da Diretiva 77/388.


21 – O projeto da Diretiva 77/388 dispunha já de um regime correspondente no artigo 27.°, n.° 1, primeiro parágrafo, terceiro período, antes de o quarto e quinto períodos serem introduzidos; v. o documento R/2892/1/76 (FIN 758) rev. 1 do Conselho, de 7 de dezembro de 1976 (já referido na nota 9).


22 – V., para considerações similares da Comissão no contexto da proposta inicial da Diretiva 77/388 (já referida na nota 8), embora em relação ao artigo 27.°, n.° 11, da referida proposta, a fundamentação que lhe foi anexada, segundo a qual uma compensação exageradamente elevada equivale a uma ajuda económica. V. também o acórdão de 28 de junho de 1988, Comissão/Itália (3/86, Colet., p. 3369, n.° 14).


23 – V. a carta do Representante Permanente da Irlanda, de 19 de novembro de 1976 (já referida na nota 12).


24 – Artigo 27.°, n.° 3, primeiro parágrafo, terceiro período, que passou a artigo 25.°, n.° 3, primeiro parágrafo, terceiro período, da Diretiva 77/388.


25 – Como artigo 27.°, n.° 3, primeiro parágrafo, quarto período, que passou a artigo 25.°, n.° 3, primeiro parágrafo, quarto período, da Diretiva 77/388.


26 – Artigo 27.°, n.° 3, primeiro parágrafo, primeiro período, que passou a artigo 25.°, n.° 3, primeiro parágrafo, primeiro período, da Diretiva 77/388.


27 – V. os diferentes estados da proposta, tal como resultam dos documentos do Conselho, R/2514/76 (FIN 663), de 22 de outubro de 1976 (a versão alemã data de 27 de outubro de 1976), disponível em http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/219.pdf, R/2892/1/76 (FIN 758), de 25 de novembro de 1976 (a versão alemã data de 1 de dezembro de 1976), disponível em http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cmsUpload/222.pdf, e R/2892/1/76 (FIN 758) rev. 1, de 7 de dezembro de 1976 (já referido na nota 9).


28 – V. artigo 412.° da Diretiva.


29 – Acórdãos Harbs (já referido na nota 5, n.° 27) e Stadt Sundern (já referido na nota 5, n.° 27); v., quanto ao regime especial das pequenas empresas, acórdão de 28 de setembro de 2006, Comissão/Áustria (C‑128/05, Colet., p. I‑9265, n.° 22), bem como as minhas conclusões de 17 de junho de 2010 no processo Schmelz (C‑97/09, Colet., p. I‑10465, n.° 32).


30 – V. também o considerando 50 da Diretiva.


31 – Acórdãos de 10 de julho de 2008, Sosnowska (C‑25/07, Colet., p. I‑5129, n.° 14), de 30 de setembro de 2010, Uszodaépítő (C‑392/09, Colet., p. I‑8791, n.° 15), e de 12 de maio de 2011, Enel Maritsa Iztok 3 (C‑107/10, Colet., p. I‑3873, n.° 31).


32 – Acórdãos de 11 de dezembro de 2008, Danfoss e AstraZeneca (C‑371/07, Colet., p. I‑9549, n.° 26), de 15 de julho de 2010, Pannon Gép Centrum (C‑368/09, Colet., p. I‑7467, n.° 37), e de 22 de dezembro de 2010, RBS Deutschland Holdings (C‑277/09, Colet., p. I‑13805, n.° 39).


33 – Acórdãos Danfoss e AstraZeneca (já referido na nota 32, n.° 26), Uszodaépítő (já referido na nota 31, n.° 35) e de 22 de dezembro de 2010, Dankowski (C‑438/09, Colet., p. I‑14009, n.° 24).


34 – V., a este respeito, artigo 295.°, n.° 1, pontos 6 e 7.


35 – V., a este respeito, acórdão Comissão/Itália (já referido na nota 22, n.° 8).


36 – No acórdão Comissão/Irlanda (já referido na nota 13, n.° 29), bem como no acórdão de 21 de junho de 1988, Comissão/Reino Unido (416/85, Colet., p. 3127, n.° 20), o Tribunal de Justiça entendeu mesmo assim que o fornecimento de meios de produção agrícola no contexto da questão de saber se ao seu fornecimento poderia, excecionalmente, continuar a ser aplicada uma taxa zero, estava suficientemente próximo dos consumidores finais.


37 – V. acórdãos de 26 de junho de 2003, MKG‑Kraftfahrzeuge‑Factoring (C‑305/01, Colet., p. I‑6729, n.° 72), e de 28 de outubro de 2010, Axa UK (C‑175/09, Colet., p. I‑10701, n.° 30).


38 – V., na proposta referida na nota 8, a fundamentação do artigo 27.°, n.os 1, 6, 12, 13 e 16.


39 – V., na proposta referida na nota 8, a fundamentação do artigo 27.°, n.° 1.


40 – V., na proposta referida na nota 8, a fundamentação do artigo 27.°, n.° 2, quarto e quinto travessões.


41 – V. também o acórdão Stadt Sundern (já referido na nota 5, n.° 28).


42 – Acórdão de 15 de julho de 2010, Comissão/Reino Unido (C‑582/08, Colet., p. I‑7195, n.° 48).


43 – Décima Terceira Diretiva 86/560/CEE do Conselho, de 17 de novembro de 1986, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Modalidades de reembolso do IVA aos sujeitos passivos não estabelecidos no território da Comunidade (JO L 326, p. 40).


44 – Acórdão Comissão/Reino Unido (já referido na nota 42, n.os 28 e segs., 36 e 46).


45 – Acórdãos de 26 de abril de 2005, Comissão/Irlanda (C‑494/01, Colet., p. I‑3331, n.° 29), de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França (C‑333/08, Colet., p. I‑757, n.° 55), e de 7 de abril de 2011, Comissão/Portugal (C‑20/09, Colet., p. I‑2637, n.° 31).


46 – Acórdãos de 26 de junho de 2003, Comissão/França (C‑233/00, Colet., p. I‑6625, n.° 31), de 2 de junho de 2005, Comissão/Luxemburgo (C‑266/03, Colet., p. I‑4805, n.° 35), de 21 de janeiro de 2010, Comissão/Alemanha (C‑17/09, n.° 20), e de 26 de maio de 2011, Comissão/Espanha (C‑306/08, Colet., p. I‑4541, n.° 66).


47 – Acórdãos de 1 de fevereiro de 2001, Comissão/França (C‑333/99, Colet., p. I‑1025, n.° 25), de 4 de março de 2010, Comissão/Itália (C‑297/08, Colet., p. I‑1749, n.° 87), de 28 de outubro de 2010, Comissão/Lituânia (C‑350/08, Colet., p. I‑10525, n.° 33), e Comissão/Espanha (já referido na nota 46, n.° 66).


48 – Artigo 25.°, n.° 12, em conjugação com o anexo C da Sexta Diretiva 77/388.


49 – Regulamento (CEE, Euratom) n.° 1553/89 do Conselho, de 29 de maio de 1989, relativo ao regime uniforme e definitivo de cobrança dos recursos próprios provenientes do IVA (JO L 155, p. 9).


50 – Acórdãos de 21 de fevereiro de 2008, Comissão/Itália (C‑412/04, Colet., p. I‑619, n.° 103), de 16 de julho de 2009, Comissão/Polónia (C‑165/08, Colet., p. I‑6843, n.° 42), e de 5 de maio de 2011, Comissão/Portugal (C‑267/09, Colet., p. I‑3197, n.° 25).