Language of document : ECLI:EU:C:2015:7

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 14 de janeiro de 2015 (1)

Processo C‑62/14

Peter Gauweiler,

Bruno Bandulet,

Wilhelm Hankel,

Wilhelm Nölling,

Albrecht Schachtschneider,

Joachim Starbatty,

Roman Huber e o.,

Johann Heinrich von Stein e o.,

e

Fraktion DIE LINKE im Deutschen Bundestag

contra

Deutscher Bundestag

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesverfassungsgericht (Alemanha)]

«Política económica e monetária ― Validade da decisão do Conselho do Banco Central Europeu de 6 de setembro de 2012 ― Características técnicas relativas às operações de compra de títulos de dívida soberana no mercado secundário [‘Outright Monetary Transactions’(OMT)] ― Fiscalização de constitucionalidade nacional de atos da União ― Atos ultra vires ― Identidade constitucional ― Cooperação leal ― Admissibilidade ― Natureza de ato impugnável no âmbito de um processo prejudicial ― Política de comunicação pública do Banco Central Europeu ― Competências do Banco Central Europeu ― Estabilidade dos preços ― Restabelecimento dos mecanismos de transmissão da política monetária ― Artigos 119.° e 127.°, n.os 1 e 2, TFUE ― Circunstâncias excecionais ― Medidas não convencionais de política monetária ― Princípio da proporcionalidade ― Artigo 5.°, n.° 4, TUE ― Artigo 123.° TFUE ― Proibição de financiamento monetário dos Estados‑Membros da área do euro»






Índice


I ―   Quadro jurídico

A ―   Quadro jurídico da União

B ―   Quadro jurídico nacional

II ― Matéria de facto e tramitação processual no órgão jurisdicional nacional

III ― Pedido prejudicial dirigido ao Tribunal de Justiça

IV ― Consideração preliminar: dificuldade «funcional» do pedido prejudicial, colocado no contexto da jurisprudência pertinente do BVerfG

V ―   Admissibilidade

VI ― Questões prejudiciais

A ―   Primeira questão prejudicial: artigos 119.° TFUE e 127.°, n.os 1 e 2, TFUE e limites da política monetária do BCE

1.     Posição dos intervenientes

2.     Apreciação

a)     Observações preliminares

i)     Quanto ao Estatuto e ao mandato do BCE

ii)   Medidas não convencionais da política monetária e inclusão nas mesmas do programa OMT

―       Medidas não convencionais de política monetária, segundo o BCE

―       Programa OMT como medida não convencional de política monetária

b)     Competências do BCE e programa OMT

i)     Programa OMT e política económica da União e dos Estados‑Membros como limites à competência do BCE

―       Política económica e política monetária da União

―       Programa OMT à luz dos critérios qualificativos da política económica e da política monetária da União

ii)   Fiscalização da proporcionalidade do programa OMT (artigo 5.°, n.° 4, TUE)

―       Fundamentação das circunstâncias justificativas do programa OMT, premissa da proporcionalidade

―       Critério da adequação

―       Critério da necessidade

―       Critério da proporcionalidade em sentido estrito

―       Conclusão intercalar

c)     Resposta à primeira questão prejudicial

B ―   Segunda questão prejudicial: compatibilidade do programa OMT com o artigo 123.°, n.° 1, TFUE (proibição do financiamento monetário dos Estados da área do euro)

1.     Posição dos intervenientes

2.     Análise

a)     Proibição do financiamento monetário dos Estados‑Membros (artigo 123.°, n.° 1, TFUE) e compra de dívida pública pelo BCE

b)     Programa OMT e sua compatibilidade com a proibição prevista no artigo 123.°, n.° 1, TFUE

i)     Renúncia a direitos e estatuto pari passu

ii)   Risco de incumprimento

iii) Conservação até à maturidade

iv)   Momento da compra

v)     Estímulo à compra no mercado primário

3.     Resposta à segunda questão prejudicial

VII ― Conclusão


1.        Através de um comunicado de imprensa, difundido após a reunião do Conselho de 5 e 6 de setembro de 2012, o Banco Central Europeu informou da existência de um acordo que delineava um programa de compra de títulos de dívida pública emitidos pelos Estados‑Membros da área do euro, denominado «Outright Monetary Transactions» (operações monetárias definitivas, a seguir «OMT»). O comunicado de imprensa especificava as características básicas do referido programa de compra de títulos. No entanto, a aprovação dos instrumentos jurídicos reguladores do programa ficaram em suspenso, e assim se mantêm até hoje.

2.        No referido comunicado de imprensa, o Banco Central Europeu (a seguir «BCE») anunciava a sua disposição para comprar dívida pública dos Estados da área do euro nos mercados secundários, sob algumas condições. Resumidamente enunciadas, o BCE subordinava a implementação do programa à condição de o ou os Estados em causa estarem sujeitos a um programa de assistência financeira do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira ou do Mecanismo Europeu de Estabilidade, devendo esse programa incluir a possibilidade de efetuar compras no mercado primário. Do mesmo modo, as operações no âmbito do programa OMT concentrar‑se‑iam nos prazos mais curtos da curva dos rendimentos, sem estabelecer limites quantitativos ex ante, aceitando‑se simultaneamente receber o mesmo tratamento (pari passu) dos credores privados, e assumindo‑se o compromisso de esterilizar totalmente a liquidez gerada.

3.        Desta forma nasceu o programa OMT, no contexto e como resposta a uma situação considerada excecional para a viabilidade da política monetária confiada ao BCE. A crise económica internacional desencadeada em 2008 tinha‑se transformado em 2010 numa crise da dívida soberana de vários Estados da área do euro. No verão de 2012, face às dúvidas dos investidores quanto à viabilidade do euro, diversos Estados‑Membros estavam perto de um cenário financeiro insustentável, consequência dos aumentos, aparentemente imparáveis, dos prémios de risco aplicados aos seus títulos de dívida pública. A «reversibilidade» do euro e o subsequente regresso às moedas nacionais pareciam destinados a transformar‑se numa profecia autorrealizada. É neste preciso contexto que o BCE anuncia o programa OMT, geralmente considerado como a concretização da promessa do seu presidente, M. Draghi, expressa algumas semanas antes, de fazer, no âmbito das suas competências, «tudo o que fosse necessário» para restaurar a confiança na moeda única.

4.        Pela primeira vez da sua história, o Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht, a seguir «BVerfG») dirigiu‑se ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267.° TFUE, questionando a legalidade do referido programa OMT. Como se exporá a seguir, as questões formuladas pelo BVerfG traduzem consideráveis dificuldades de interpretação que o Tribunal deverá resolver.

5.        Um primeiro ponto que merece atenção neste processo reside no facto de o BVerfG apresentar o pedido prejudicial no âmbito do que qualifica de fiscalização ultra vires dos atos da União, com repercussão na «identidade constitucional» da República Federal da Alemanha. O BVerfG parte da apreciação inicial segundo a qual o ato do BCE em causa é ilegal à luz do direito constitucional alemão, bem como à luz do direito da União, mas, antes de continuar a sua apreciação, submete‑o ao Tribunal de Justiça para que este se pronuncie a este respeito do ponto de vista do direito da União.

6.        O Tribunal de Justiça deve igualmente abordar uma questão de admissibilidade, centrada no caráter impugnável de um acordo do qual só as características principais foram enunciadas através de um comunicado de imprensa. Não obstante essa aparência de simples comunicado de imprensa dificilmente suscetível de ser objeto de fiscalização de validade, as circunstâncias do presente processo, às quais acresce o papel particular que a comunicação pública desempenha na atividade dos bancos centrais, podem justificar uma resposta diferente.

7.        Já quanto ao mérito do processo, o Tribunal de Justiça é confrontado com as dificuldades que as situações de emergência apresentam tradicionalmente para o direito público. Perante a possibilidade de uma desintegração da área do euro, é perguntado quais são os poderes de que o BCE dispõe, sendo uma instituição que, contrariamente aos outros bancos centrais, é regida por um mandato particularmente limitado. O BCE alegou que o programa OMT constitui um instrumento adequado para enfrentar situações excecionais, pois, apesar do seu caráter «não convencional» e dos riscos que comporta, o seu único objetivo é fazer o que é indispensável para recuperar a capacidade do BCE de utilizar eficazmente os seus instrumentos de política monetária. Pelo contrário, os recorrentes nos processos principais, bem como o próprio órgão jurisdicional de reenvio, duvidam de que esta seja a verdadeira finalidade do programa, uma vez que consideram que o seu objetivo final é transformar o BCE num «mutuante de último recurso» para os Estados da área do euro.

8.        Esta situação levou o BVerfG a submeter ao Tribunal de Justiça as suas dúvidas quanto à compatibilidade do programa OMT com os Tratados. Pergunta, em primeiro lugar, se o referido programa não constitui sobretudo uma medida de política económica, que é, portanto, externa ao mandato do BCE, e não uma medida de política monetária. Põe em causa, em segundo lugar, que a referida medida respeite a proibição de financiamento monetário prevista no artigo 123.°, n.° 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

I ―    Quadro jurídico

A ―    Quadro jurídico da União

9.        O Título VIII da terceira parte do Tratado FUE, com a rubrica «A política económica e monetária», tem a seguinte disposição inicial:

«Artigo 119.°

1.      Para alcançar os fins enunciados no artigo 3.° do Tratado da União Europeia, a ação dos Estados‑Membros e da União implica, nos termos do disposto nos Tratados, a adoção de uma política económica baseada na estreita coordenação das políticas económicas dos Estados‑Membros, no mercado interno e na definição de objetivos comuns, e conduzida de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberto e de livre concorrência.

2.      Paralelamente, nos termos e segundo os procedimentos previstos nos Tratados, essa ação implica uma moeda única, o euro, e a definição e condução de uma política monetária e de uma política cambial únicas, cujo objetivo primordial é a manutenção da estabilidade dos preços e, sem prejuízo desse objetivo, o apoio às políticas económicas gerais na União, de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberto e de livre concorrência.

3.      Essa ação dos Estados‑Membros e da União implica a observância dos seguintes princípios orientadores: preços estáveis, finanças públicas e condições monetárias sólidas e balança de pagamentos sustentável.»

10.      O Tratado FUE prevê em seguida uma cláusula de proibição do financiamento monetário dos Estados‑Membros, com o seguinte teor:

«Artigo 123.°

1.      É proibida a concessão de créditos sob a forma de descobertos ou sob qualquer outra forma pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais dos Estados‑Membros, adiante designados por ‘bancos centrais nacionais’, em benefício de instituições, órgãos ou organismos da União, governos centrais, autoridades regionais, locais, ou outras autoridades públicas, outros organismos do setor público ou empresas públicas dos Estados‑Membros, bem como a compra direta de títulos de dívida a essas entidades, pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais.

2.      As disposições do n.° 1 não se aplicam às instituições de crédito de capitais públicos às quais, no contexto da oferta de reservas pelos bancos centrais, será dado, pelos bancos centrais nacionais e pelo Banco Central Europeu, o mesmo tratamento que às instituições de crédito privadas.»

11.      Os objetivos e atribuições fundamentais do BCE constam do TFUE, nos seguintes termos:

«Artigo 127.°

1.      O objetivo primordial do Sistema Europeu de Bancos Centrais, adiante designado ‘SEBC’, é a manutenção da estabilidade dos preços. Sem prejuízo do objetivo da estabilidade dos preços, o SEBC apoiará as políticas económicas gerais na União tendo em vista contribuir para a realização dos objetivos da União tal como se encontram definidos no artigo 3.° do Tratado da União Europeia. O SEBC atuará de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberto e de livre concorrência, incentivando a repartição eficaz dos recursos e observando os princípios definidos no artigo 119.°

2.      As atribuições fundamentais cometidas ao SEBC são:

¾        a definição e execução da política monetária da União,

¾        a realização de operações cambiais compatíveis com o disposto no artigo 219.°,

¾        a detenção e gestão das reservas cambiais oficiais dos Estados‑Membros,

¾        a promoção do bom funcionamento dos sistemas de pagamentos.

[…]»

12.      A independência do BCE é consagrada e garantida no artigo 130.° TFUE, com a seguinte redação:

«No exercício dos poderes e no cumprimento das atribuições e deveres que lhes são conferidos pelos Tratados e pelos Estatutos do SEBC e do BCE, o Banco Central Europeu, os bancos centrais nacionais, ou qualquer membro dos respetivos órgãos de decisão não podem solicitar ou receber instruções das instituições, órgãos ou organismos da União, dos Governos dos Estados‑Membros ou de qualquer outra entidade. As instituições, órgãos ou organismos da União, bem como os Governos dos Estados‑Membros, comprometem‑se a respeitar este princípio e a não procurar influenciar os membros dos órgãos de decisão do Banco Central Europeu ou dos bancos centrais nacionais no exercício das suas funções.»

13.      O Protocolo (n.° 4) relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu enumera os instrumentos de política monetária de que o BCE dispõe, de entre os quais destaca, para efeitos do presente processo, o seguinte:

«Artigo 18.°

Operações de ‘open market’ e de crédito

18.°‑1. A fim de alcançarem os objetivos e de desempenharem as atribuições do SEBC, o BCE e os bancos centrais nacionais podem:

¾        intervir nos mercados financeiros, quer comprando e vendendo firme (à vista e a prazo) ou ao abrigo de acordos de recompra, quer emprestando ou tomando de empréstimo ativos e instrumentos negociáveis, denominados em euros ou outras moedas, bem como metais preciosos;

¾        efetuar operações de crédito com instituições de crédito ou com outros intervenientes no mercado, sendo os empréstimos adequadamente garantidos.

18.°‑2. O BCE definirá princípios gerais para as operações de ‘open market’ e de crédito a realizar por si próprio ou pelos bancos centrais nacionais, incluindo princípios para a divulgação das condições em que estão dispostos a efetuar essas operações.»

14.      Em 1993, antes da criação do BCE e em pleno processo de transição para a União Europeia e Monetária, o Conselho adotou o Regulamento n.° 3603/93, de 13 de dezembro de 1993, que especifica as definições necessárias à aplicação das proibições enunciadas no artigo 104.° e no n.° 1 do artigo 104.°‑B do Tratado [artigo 123.° TFUE] (JO L 332, p. 1). Para efeitos do presente processo, há que salientar os seguintes excertos e disposições do referido regulamento:

«[…]

Considerando que os Estados‑Membros devem adotar as medidas adequadas para que as proibições previstas no artigo 104.° do Tratado sejam efetiva e plenamente aplicadas; que, nomeadamente, as aquisições efetuadas no mercado secundário não devem servir para iludir o objetivo visado nesse artigo»

Artigo 1.°

«1.   Para efeitos da aplicação do artigo 104.° do Tratado, entende‑se por:

a)      Créditos sob a forma de descobertos: qualquer disponibilização de recursos em benefício do sector público que dê origem ou possa dar origem a um saldo de conta devedor;

b)      Créditos sob qualquer outra forma:

i)      qualquer crédito sobre o sector público existente em 1 de janeiro de 1994, com exceção dos créditos de prazo fixo constituídos antes dessa data,

ii)      qualquer financiamento de obrigações do sector público em relação a terceiros,

iii)      sem prejuízo do n.° 2 do artigo 104.° do Tratado, qualquer operação com o sector público que dê origem ou possa dar origem a um crédito sobre este.

[…]»

B ―    Quadro jurídico nacional

15.      Para efeitos do presente processo, há que referir as seguintes disposições da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha:

«Artigo 1.°

(1)      A dignidade do ser humano é inviolável. Todos os poderes públicos têm a obrigação de a respeitar e proteger.

(2)      Consequentemente, o povo alemão reconhece os direitos invioláveis e inalienáveis do ser humano como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no mundo.

(3)      Os direitos fundamentais a seguir enunciados vinculam os poderes legislativo, executivo e judicial a título de direito diretamente aplicável.

Artigo 20.°

(1)      A República Federal da Alemanha é um Estado federal democrático e social.

(2)      O poder do Estado emana do povo. O povo exerce‑o através de eleições e votações e de órgãos especiais investidos dos poderes legislativo, executivo e judicial.

(3)      O poder legislativo está vinculado pela ordem constitucional; os poderes executivo e judicial estão vinculados pela lei e pelo direito.

[…]

Artigo 23.°

(1)      Para a construção de uma Europa unida, a República Federal da Alemanha contribuirá para o desenvolvimento da União Europeia que está obrigada a salvaguardar os princípios democrático, do Estado de Direito, social e federativo e do princípio da subsidiariedade e que garante uma proteção dos direitos fundamentais substancialmente comparável à assegurada pela presente Lei Fundamental. Para este efeito, a Federação pode transferir direitos de soberania através de uma lei aprovada pelo Bundesrat. O artigo 79.°, n.os 2 e 3, é aplicável à criação da União Europeia, bem como às alterações dos Tratados constitutivos e a toda a regulamentação equiparável através da qual a presente Lei Fundamental seja alterada ou completada no seu conteúdo ou que tornem possíveis tais alterações ou aditamentos.

Artigo 79.°

[…]

3)      Qualquer alteração da presente Lei Fundamental que afete a organização da Federação em Länder, ou o princípio da participação dos Länder na legislação, ou os princípios enunciados nos artigos 1.° e 20.°, é proibida.

Artigo 88.°

A Federação cria um banco monetário e emissor com carácter de banco federal. As suas atribuições e competências podem, no âmbito da União Europeia, ser transferidas para o Banco Central Europeu, que é independente e tem como objetivo primordial assegurar a estabilidade dos preços.»

16.      O Bundesverfassungsgericht desenvolveu uma jurisprudência nos termos da qual efetua uma fiscalização da constitucionalidade dos atos das instituições e organismos da União, quando tais atos se baseiem num excesso de poder manifesto ou afetem a sua «identidade constitucional», conforme resulta da «cláusula de perenidade» que figura no artigo 79.°, n.° 3, da Lei Fundamental de Bona.

17.      No que respeita à fiscalização dos abusos de poder manifestos, designada «fiscalização ultra vires», o BVerfG considerou, em acórdão de 6 de julho de 2010, que só pode ser exercida da maneira mais favorável à aplicação do direito da União. Do mesmo modo, o BVerfG salientou que essa fiscalização implica o reconhecimento do caráter vinculativo das decisões do Tribunal de Justiça sobre a interpretação do direito da União.

18.      Para o BVerfG, a fiscalização do caráter ultra vires de um ato da União só tem lugar quando for manifesto que os atos das instituições e organismos europeus foram adotados fora das competências que lhes foram conferidas, desde que as violações sejam «suficientemente caracterizadas» à luz do princípio da atribuição de competências e do princípio da legalidade próprio do Estado de Direito (2).

II ― Matéria de facto e tramitação processual no órgão jurisdicional nacional

19.      Entre o início de 2010 e o início de 2012, os chefes de Estado e de Governo da União e da área do euro adotaram muitas medidas destinadas a obviar às graves consequências da crise financeira que acossava a economia mundial. À medida que a crise financeira se transformava numa crise da dívida soberana em vários Estados‑Membros, foi acordado, entre outras iniciativas, a criação com caráter permanente do Mecanismo de Estabilidade Europeu, cujo objetivo é preservar a estabilidade financeira da área do euro através da concessão de assistência financeira a qualquer dos Estados participantes no Mecanismo.

20.      Não obstante os esforços da União e dos Estados‑Membros, os prémios de risco exigidos relativamente aos títulos de dívida de vários Estados da área do euro sofreram aumentos muito significativos durante o verão de 2012. Atendendo às dúvidas manifestadas pelos investidores quanto à viabilidade da União Monetária, os representantes da União e dos Estados da área do euro salientaram reiteradamente o caráter irreversível da moeda única. Foi então que o presidente do BCE declarou, em termos posteriormente repetidos à saciedade, que faria, no âmbito das suas competências, tudo o que fosse necessário para preservar o euro (3).

21.      Algumas semanas mais tarde, e segundo consta da ata da 340.ª reunião de 5 e 6 de setembro de 2012, o Conselho do BCE aprovou os aspetos básicos do programa de operações monetárias definitivas nos mercados secundários de obrigações soberanas, formalmente denominado «Outright Monetary Transactions». Como resulta das observações escritas apresentadas pelo BCE no presente processo, nessa reunião foi assim aprovado um projeto de Decisão relativo às operações monetárias definitivas e de revogação da Decisão BCE/2010/5, bem como um projeto de Orientação relativa à realização das operações monetárias definitivas. Os dois projetos foram objeto de alterações posteriores, nas reuniões do Conselho de 4 de outubro e de 7 e 8 de novembro de 2012.

22.      Em 6 de setembro de 2012, o presidente do BCE anunciou, na conferência de imprensa que se seguiu à reunião do Conselho, os principais aspetos do programa OMT, que foram igualmente reproduzidos no comunicado de imprensa desse mesmo dia, disponível na página web do BCE em inglês. Esse comunicado é o texto em que se enunciam as características técnicas do programa OMT, expostas nos seguintes termos:

«Como anunciado em 2 de agosto de 2012, o Conselho do Banco Central Europeu (BCE) tomou hoje decisões sobre diversas características técnicas respeitantes às transações definitivas do Eurosistema nos mercados secundários de obrigações soberanas, destinadas a salvaguardar um mecanismo de transmissão da política monetária adequado e a unicidade da política monetária. Estas transações serão conhecidas por Transações Monetárias Definitivas (TMD) (Outright Monetary Transactions ― OMTs) e serão conduzidas no seguinte quadro:

Condicionalidade

Uma condição necessária para as Transações Monetárias Definitivas é a existência de rigorosa e efetiva condicionalidade, associada a um programa adequado do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira/Mecanismo Europeu de Estabilidade (European Financial Stability Facility/European Stability Mechanism ― [FEEF/MEE). Esses programas podem revestir a forma de um programa de ajustamento macroeconómico global no âmbito do [FEEF/MEE] ou de um programa preventivo [Linha de Crédito com Melhores Condições (Enhanced Conditions Credit Line)], desde que incluam a possibilidade de serem efetuadas compras no mercado primário pelo [FEEF/MEE]. Procurar‑se‑á igualmente o envolvimento do FMI no que respeita à conceção da condicionalidade específica para cada país e ao acompanhamento do referido programa.

O Conselho do BCE considerará a realização de Transações Monetárias Definitivas enquanto tal se justificar numa perspetiva da política monetária, desde que a condicionalidade do programa seja integralmente respeitada, e terminará as referidas transações quando os respetivos objetivos forem alcançados ou em caso de incumprimento do programa de ajustamento macroeconómico ou preventivo.

Após uma avaliação rigorosa, o Conselho do BCE tem o poder discricionário de decidir sobre o início, continuação e suspensão das Transações Monetárias Definitivas, deliberando em conformidade com o mandato de política monetária que lhe foi atribuído.

Cobertura

As Transações Monetárias Definitivas serão consideradas em futuros casos de programas de ajustamento macroeconómico ou de programas preventivos no âmbito do [FEEF/MEE], como especificado acima. Podem igualmente ser consideradas para os Estados‑Membros atualmente sujeitos a um programa de ajustamento macroeconómico quando estes estiverem em condições de retomar o acesso aos mercados obrigacionistas.

As transações concentrar‑se‑ão nos prazos mais curtos da curva de rendimentos e, em particular, nas obrigações soberanas com prazo entre um e três anos.

Não são fixados limites quantitativos ex ante para o montante das Transações Monetárias Definitivas.

Tratamento dos credores

O Eurosistema tenciona clarificar através do ato jurídico relativo às Transações Monetárias Definitivas que aceita (pari passu) receber o mesmo tratamento que os credores privados ou outros, no que respeita às obrigações emitidas por países da área do euro e adquiridas pelo Eurosistema através de Transações Monetárias Definitivas, de acordo com os termos dessas obrigações.

Esterilização

A liquidez criada através das Transações Monetárias Definitivas será totalmente esterilizada.

Transparência

As posições agregadas das Transações Monetárias Definitivas e os respetivos valores de mercado serão publicados numa base semanal. A maturidade média das posições de Transações Monetárias Definitivas e a desagregação por país serão publicadas numa base mensal.

Programa dos Mercados de Títulos de Dívida

Na sequência da decisão tomada hoje sobre as Transações Monetárias Definitivas, o Programa dos Mercados de Títulos de Dívida ― PMTD (Securities Markets Programme ― SMP) é cancelado. A liquidez injetada através do PMTD continuará a ser absorvida como no passado e os títulos existentes na carteira do PMTD serão detidos até ao vencimento.»

23.      Vários recorrentes individuais alemães interpuseram um recurso de proteção de direitos fundamentais no BVerfG, com o fundamento de que o Governo Federal alemão não tinha apresentado um recurso de anulação no Tribunal de Justiça contra o comunicado de 6 de setembro de 2012 relativo ao programa OMT.

24.      Do mesmo modo, a Fraktion DIE LINKE im Deutschen Bundestag (a seguir «Die Linke»), formação política com representação parlamentar no Bundestag, intentou no BVerfG um procedimento de resolução de um litígio entre órgãos constitucionais, destinado a que o Bundestag promovesse a derrogação do programa OMT anunciado pelo BCE em 6 de setembro de 2012.

III ― Pedido prejudicial dirigido ao Tribunal de Justiça

25.      Em 10 de fevereiro de 2014 deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo BVerfG, formulado no quadro dos procedimentos iniciados pelos recorrentes individuais acima referidos e pelo grupo parlamentar Die Linke.

26.      As questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio são as seguintes:

«1)      a)      A decisão do Conselho do Banco Central Europeu, de 6 de setembro de 2012, [sobre diversas características técnicas respeitantes às transações definitivas], é incompatível com os artigos 119.° e 127.°, n.os 1 e 2, [TFUE] e com os artigos 17.° a 24.° do Protocolo Relativo aos Estatutos do [SEBC] e do [BCE], por exceder o mandato do [BCE] em matéria de política monetária, regulado nas referidas disposições, e usurpar a competência dos Estados‑Membros?

O mandato do [BCE] é excedido em especial porque a decisão do Conselho […] de 6 de setembro de 2012:

aa)      está ligada a programas de assistência económica do [FEEF] ou do [MEE] (condicionalidade)?

bb)      prevê a [compra] de [obrigações soberanas] apenas de certos Estados‑Membros (seletividade)?

cc)      prevê a [compra] de [obrigações soberanas] dos países do programa além de programas de assistência do [FEEF] ou do [MEE] (paralelismo)?

dd)      é suscetível de eludir os limites e as condições dos programas de assistência do [FEEF] ou do [MEE] (desvio)?

b)      A decisão do Conselho do Banco Central Europeu, de 6 de setembro de 2012, [sobre diversas características técnicas respeitantes às transações definitivas], é incompatível com a proibição de financiamento monetário dos orçamentos consagrada no artigo 123.° [TFUE]?

A compatibilidade com o artigo 123.° [TFUE] é posta em causa, em especial, pelo facto de a decisão do Conselho do [BCE] de 6 de setembro de 2012:

aa)      não prever uma limitação quantitativa da [compra] de [obrigações soberanas] (volume)?

bb)      não prever um intervalo temporal entre a emissão de [obrigações soberanas] no mercado primário e a sua [compra] pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais no mercado secundário (formação do preço de mercado)?

cc)      permitir que [todas as obrigações soberanas compradas] sejam [conservadas] até à sua maturidade (interferência na lógica do mercado)?

dd)      não comportar exigências específicas quanto à qualidade do crédito [das obrigações soberanas] a [comprar] (risco de perda)?

ee)      prever um tratamento do SEBC] igual ao de particulares e de outros detentores de [obrigações soberanas] (perdão parcial de dívida)?

2)      A título subsidiário, para o caso de o Tribunal de Justiça considerar que a decisão do Conselho do [BCE], de 6 de setembro de 2012, [sobre diversas características técnicas respeitantes às transações definitivas], como ato adotado por uma instituição da União Europeia, não pode ser objeto de um pedido prejudicial na aceção do artigo 267.°, primeiro período, alínea b), [TFUE]:

a)      Devem os artigos 119.° e 127.° [TFUE], bem como os artigos 17.° a 24.° do Protocolo Relativo aos Estatutos do [SEBC] e do [BCE] ser interpretados no sentido de que permitem ao Eurosistema ― alternativa ou cumulativamente:

aa)      subordinar a [compra] de [obrigações soberanas] à existência e à observância de programas de assistência económica do [FEEF] ou do [MEE] (condicionalidade)?

bb)      [comprar obrigações soberanas] apenas de certos Estados‑Membros (seletividade)?

cc)      [comprar obrigações soberanas] de países do programa adicionalmente aos programas de assistência do [FEEF] ou do [MEE] (paralelismo)?

dd)      eludir os limites e as condições dos programas de assistência do [FEEF] ou do [MEE] (desvio)?

b)      Deve o artigo 123.° do [TFUE], atendendo à proibição de financiamento monetário dos orçamentos, ser interpretado no sentido de que permite ao Eurosistema ― alternativa ou cumulativamente:

aa)      [comprar obrigações soberanas] sem limite quantitativo (volume)?

bb)      [comprar obrigações soberanas] no mercado primário sem um intervalo temporal mínimo contado a partir da sua emissão (formação do preço de mercado)?

cc)      conservar [todas as obrigações soberanas compradas] até à sua maturidade (interferência na lógica do mercado)?

dd)      [comprar obrigações soberanas] sem requisitos mínimos quanto à qualidade do crédito (risco de perda)?

ee)      aceitar um tratamento do [SEBC] igual ao de particulares e de outros detentores de [obrigações soberanas] (perdão parcial de dívida)?

ff)      influenciar a formação dos preços através da divulgação de intenções de [compra] ou de outro modo, na sequência da emissão de [obrigações soberanas] de Estados‑Membros da área do euro (encorajamento da primeira [compra])?»

27.      Apresentaram observações escritas os recorrentes individuais nos processos principais de proteção de direitos fundamentais, a Die Linke, a República Federal da Alemanha, a República Helénica, a República de Chipre, a República Portuguesa, a República da Polónia, a República Francesa, a República Italiana, o Reino dos Países Baixos, o Reino de Espanha, a República da Irlanda e a República da Finlândia, bem como o BCE, o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia.

28.      A título preliminar, note‑se que o Parlamento Europeu, não obstante ter apresentado observações escritas e orais, não está habilitado a fazê‑lo num processo como este. Tratando‑se de uma questão prejudicial sobre validade que tem por objeto um ato que não foi adotado por essa instituição, o artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia não lhe permite participar no presente processo na qualidade de interveniente. Por conseguinte, considero que o Tribunal não deve tomar em consideração as observações escritas e orais formuladas pelo Parlamento.

29.      A audiência realizou‑se em 14 de outubro de 2014. Nela participaram os intervenientes que tinham anteriormente apresentado observações escritas, com exceção da República de Chipre e da República da Finlândia.

IV ― Consideração preliminar: dificuldade «funcional» do pedido prejudicial, colocado no contexto da jurisprudência pertinente do BVerfG

30.      A decisão de reenvio (que contém o presente pedido prejudicial) tem a particularidade de dedicar uma extensa parte introdutória às disposições e jurisprudência nacionais consideradas pertinentes. Esta particularidade não reside, naturalmente, na referência às disposições nacionais, no caso em apreço um pequeno número de normas constitucionais (os artigos 20.°, 23.°, 38.°, 79.° e 88.° da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha; a seguir «LF»), mas na apresentação circunstanciada da jurisprudência do BVerfG sobre o fundamento e os limites constitucionais da integração da República Federal da Alemanha na União Europeia. Numa parte dedicada à «jurisprudência do BVerfG» (4), a decisão de reenvio interpreta o alcance da sua própria jurisprudência anterior, constituída, no essencial, pelos seus acórdãos de 12 de outubro de 1993 (Maastricht) (5), de 30 de junho de 2009 (Lisboa) (6) e de 6 de julho de 2010 (Honeywell) (7), precedente direto da decisão aqui em apreço.

31.      Poderia pensar‑se que, como em tantos outros processos, essa parte introdutória da decisão de reenvio tem somente por objeto ajudar o Tribunal de Justiça a situar as questões submetidas no seu contexto. E fá‑lo, certamente, embora não se possa dizer que a referida parte se limite a reproduzir resumidamente a referida jurisprudência nacional. Nela estão contidas, em simultâneo, apreciações que não se podem considerar menores (8).

32.      Esta apresentação do referido contexto jurisprudencial nacional, cujo alcance é explicado a título preliminar ao Tribunal de Justiça, tem a meu ver consequências diretas sobre a funcionalidade do presente pedido prejudicial. Note‑se desde já que toda esta jurisprudência é suficientemente complexa para que formule a leitura que dela faço em termos cautelosos. Já os votos de vencido que acompanham a decisão de reenvio manifestam diferentes abordagens quanto à aplicação ao presente processo do acórdão Honeywell (9).

33.      Dito da forma mais simples possível, do conteúdo da referida parte dedicada à jurisprudência nacional resulta o seguinte: em algumas hipóteses nas quais de momento não é indispensável entrar, a resposta do Tribunal de Justiça ao pedido que lhe foi submetido a respeito de um determinado ato da União, como o que está em causa no presente processo, não tem de ser necessariamente um elemento determinante para a decisão dos processos a quo. Pelo contrário, uma vez ultrapassado, se for caso disso, o parâmetro constituído pelo direito da União, outro parâmetro de validade, a cargo do BVerfG, pode eventualmente ser aplicado a esse mesmo ato controvertido: a própria Constituição nacional.

34.      De forma mais precisa, tal parâmetro constitucional de apreciação sucessiva pelo BVerfG compreende tanto o conteúdo imutável da Constituição nacional («identidade constitucional», nos termos do artigo 79.°, n.° 3, LF), como o princípio da atribuição de competências (com as consequências lógicas para os atos da União adotados «ultra vires», implicitamente previsto no artigo 23.°, n.° 1, LF). Estes dois parâmetros constitucionais, longe de se excluírem um ao outro, podem reforçar‑se mutuamente (10), como parece acontecer no presente processo. Estes parâmetros de validade (as chamadas «fiscalização de identidade» e «fiscalização ultra vires») só podem, por definição, ser aplicados pelo próprio BVerfG (11).

35.      Assim, não surpreende que vários Estados intervenientes no presente processo (o Reino dos Países Baixos, a República Italiana e o Reino de Espanha) tenham posto em causa, ou mesmo negado, de forma mais ou menos assertiva, a admissibilidade do pedido prejudicial. Simplificando, novamente, alegam que o pedido prejudicial não é um mecanismo processual destinado a proporcionar aos órgãos jurisdicionais nacionais uma fiscalização da validade dos atos da União realizada por eles próprios, como no presente caso, mas a garantir que essa fiscalização seja efetuada no órgão jurisdicional exclusivamente competente: o Tribunal de Justiça. Na mesma linha: se o órgão jurisdicional nacional se reservasse a última palavra no que diz respeito à validade de um ato da União, o pedido prejudicial teria, então, um simples caráter consultivo, o que desvirtuaria a sua função no sistema de recursos previsto pelos Tratados (12).

36.      Em suma, um tribunal nacional não deve poder dirigir um pedido prejudicial ao Tribunal de Justiça se o seu reenvio contém já, de forma consubstancial ou conceptual, a hipótese de demarcação efetiva da resposta recebida. E não pode fazê‑lo porque essa não é uma hipótese suscetível de se considerar inserida no âmbito do artigo 267.° TFUE (13).

37.      Tendo assim exposto a dificuldade, que me permito qualificar de «funcional», do presente pedido prejudicial, parece‑me que o Tribunal de Justiça deve abordá‑la como parte da resposta às questões colocadas. Assinalo igualmente, no entanto, que só deve fazê‑lo na medida indispensável para efeitos do processo em apreço, isto é, na medida das consequências para a viabilidade do pedido prejudicial. Não se pode negar, efetivamente, a importância, bem como as eventuais consequências, da referida jurisprudência do BVerfG, como é suficientemente sublinhado desde há muito em todo o tipo de comentários doutrinários (14). Basta indicar, a título de exemplo, a alusão que figura no n.° 30 da decisão de reenvio, segundo a qual os conceitos de «identidade constitucional» e de «fiscalização ultra vires» fazem parte do património constitucional de muitos Estados‑Membros.

38.      Quanto a este último aspeto, é certo que, de forma muito diversa mas com uma finalidade essencialmente preventiva, vários tribunais nacionais constitucionais e supremos consideraram oportuno formular ou enunciar a hipótese, normalmente concebida como extrema (15), dito da forma mais geral possível, de uma rutura do «pacto constitucional» europeu subjacente ao processo de integração e, mais precisamente, como consequência de uma ação empreendida por um dos organismos da União.

39.      Como para outras questões de importância análoga, não me parece, no entanto, indispensável, para efeitos do presente processo, que o Tribunal de Justiça aprecie a razão de ser destas diversas formulações que, insisto, são normalmente enunciadas como extremas, assim como a sua maior ou menor generalização ao nível dos Estados‑Membros, e a sua maior ou menor coincidência com as abordagens expostas pelo BVerfG. «One case at a time» (16), deverá ser a prudente divisa também nesta situação concreta. Tentarei explicar as razões que assim me fazem pensar.

40.      Note‑se desde já que a circunstância de esta ser a primeira vez, no decurso de uma longa história, em que o BVerfG dirige ao Tribunal de Justiça um pedido prejudicial não merece qualquer comentário específico da minha parte, a não ser a confirmação de algo que começa a ser normal. A densificação, por assim dizer, da ordem jurídica da União leva as jurisdições especificamente constitucionais dos Estados‑Membros a comportar‑se cada vez mais como órgãos jurisdicionais na aceção do artigo 267.° TFUE (17). A posição particular que ocupam os órgãos jurisdicionais constitucionais na maioria dos Estados‑Membros pôde, no passado, constituir uma explicação suficiente do caráter excecional dos casos em que esses tribunais recorreram ao Tribunal de Justiça, quer em busca de cooperação judicial quer de colaboração para garantir a interpretação uniforme do direito da União. O panorama geral começa a mudar e este pedido de decisão prejudicial vem talvez confirmá‑lo.

41.      Ao mesmo tempo, no entanto, esta parte preliminar da decisão de reenvio realça uma acentuada nota de «excecionalidade» na iniciativa do BVerfG. Não é de modo nenhum claro que este pedido de decisão prejudicial deva ser considerado um elemento de normalização no sentido que acabei de indicar.

42.      Com efeito, decorre da referida jurisprudência que o pedido prejudicial aqui em causa é a consequência inevitável de uma situação considerada «excecional», que por agora, simplificando, se pode qualificar de «ultra vires»: a apreciação do facto de um órgão ou instância da União ter cometido uma violação qualificada da ordem de competências resultante dos Tratados, mas com fundamento e condicionamentos prévios previstos na Constituição nacional. Por enquanto, limito‑me à dimensão ultra vires desta jurisprudência, deixando de lado a dimensão da «identidade constitucional».

43.      O presente processo corresponde precisamente à hipótese que se acaba de descrever. O tribunal nacional parte da constatação de princípio de um ato ultra vires de um órgão da União (18). Trata‑se, mais precisamente, à luz do direito nacional, de «um ato ultra vires manifesta e estruturalmente significativo» (19), com repercussões, além disso, no caso em apreço, em aspetos fundamentais da ordem constitucional nacional (20).

44.      No que se refere à funcionalidade do presente pedido prejudicial, o acórdão Honeywell declarou que, numa situação análoga, e no âmbito de uma fiscalização ultra vires, de certa forma já iniciada, importa «dar» ao Tribunal de Justiça a «ocasião» de decidir sobre a validade do ato controvertido, decisão que o BVerfG considerará uma «interpretação [essencialmente] vinculativa do direito da União» (21).

45.      Afasta‑se de momento a dúvida quanto à questão de saber se esta forma de expressão do órgão jurisprudencial de reenvio corresponde suficientemente ao dever que incumbe aos tribunais nacionais de última instância na aceção do artigo 267.° TFUE. O que importa é que, deste modo, «se insere» num processo principal que tem por objeto, desde o seu início, uma fiscalização ultra vires, um processo no Tribunal de Justiça relativo à validade do mesmo ato controvertido. Parte‑se, certamente, do reconhecimento de princípio de que compete ao Tribunal dar a sua interpretação, vinculativa para o tribunal nacional, do direito da União no âmbito da fiscalização do ato controvertido. A questão é, porém, um pouco mais problemática.

46.      De facto, como se acrescenta imediatamente, e se bem entendi, tal não exclui uma fiscalização sucessiva («além disso») pelo BVerfG quando seja «manifesto» que o ato controvertido violou o princípio da atribuição de competências, entendendo‑se que essa infração é «manifesta» se tiver lugar de «maneira» que «viole especificamente» este princípio e possa, além disso, ser qualificada de «suficientemente caracterizada» (22). Se a minha interpretação da referida passagem está correta, é claro que a «inserção», por assim dizer, do pedido de decisão prejudicial no iter de uma apreciação final de um ato ultra vires pelo tribunal nacional coloca problemas que qualificarei de funcionais.

47.      Por sua vez, este convite, considerado necessário, feito ao Tribunal de Justiça, para que se pronuncie previamente sobre o ato controvertido, embora apenas do ponto de vista do direito da União, é apresentado como expressão da «relação de cooperação» que deve existir entre os dois tribunais, sendo este conceito uma criação do próprio órgão jurisprudencial de reenvio.

48.      Esta «relação de cooperação» está longe de ter um conteúdo preciso, mas visa claramente ser algo mais do que o «diálogo» impreciso entre tribunais judiciais. O seu fundamento último reside no conceito segundo o qual o dever que incumbe ao Tribunal constitucional federal de garantir a ordem essencial decorrente da Constituição nacional deve ser sempre exercido com uma atitude aberta ou recetiva face ao direito da União («europarechtsfreundlich»), um conceito ao qual também se poderia ter chegado através do princípio da cooperação leal (artigo 4.°, n.° 3, TUE).

49.      Assim se percebe toda a ambiguidade com que o Tribunal de Justiça se confronta neste pedido prejudicial: por um lado, um tribunal constitucional nacional que assume a final a sua condição de tribunal nacional de última instância na aceção do artigo 267.° TFUE, e isto enquanto expressão de uma relação particular de cooperação e de um princípio geral de ação favorável ao «programa de integração». Por outro lado, porém, um tribunal nacional que pretende, o que deixa bem claro, dirigir‑se ao Tribunal de Justiça sem renunciar à sua responsabilidade final de decidir no que diz respeito às condições e aos limites constitucionais de integração na União do seu respetivo Estado. Esta ambivalência é omnipresente no pedido prejudicial em causa, tornando extremamente difícil não a ter em conta na análise do caso.

50.      Limitando‑me ao problema que qualifiquei de funcionalidade do presente pedido prejudicial, considero que há que começar por analisar se o presente pedido prejudicial assenta nas bases essenciais em que este processo no Tribunal de Justiça, denominado reenvio prejudicial, foi estabelecido nos sucessivos Tratados e sobre o qual, de forma estratégica, se construiu a garantia jurisdicional do direito da União (23).

51.      De facto, se a única forma de interpretar o presente pedido prejudicial fosse a que a República Italiana propõe de forma expressiva (24), não havia outra solução a não ser considerar que, para além das aparências, não estamos realmente perante um pedido prejudicial «do artigo 267.°», mas perante algo diferente, algo em todo o caso difícil de encontrar no Tratado.

52.      Com efeito, o reenvio prejudicial, e neste ponto têm razão alguns dos intervenientes no presente processo, nunca foi concebido como uma simples «oportunidade» concedida ao Tribunal de Justiça de «coincidir» com o tribunal nacional, seja numa apreciação de ultra vires, seja noutra diferente, com a possível consequência de que uma eventual «não coincidência» por parte do Tribunal de Justiça poderia privar de relevância a resposta por ele dada. É evidente que esta apreciação não é desvirtuada pela atitude em princípio aberta a uma determinada interpretação, conforme ao ato controvertido. Por último, nessa situação, o pedido de decisão prejudicial dirigido ao Tribunal poderia mesmo ter a indesejável consequência final de, pura e simplesmente, englobar o próprio Tribunal de Justiça no iter causal conducente à consumação da rutura do pacto constitucional subjacente à integração europeia (25).

53.      Atendendo a este entendimento do presente pedido prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio parece querer dizer, sempre no âmbito da fiscalização ultra vires, que o seu parâmetro ou critério de apreciação do ato controvertido poderia ser diferente do do Tribunal de Justiça («não estar totalmente em harmonia») (26). Tal teria a consequência de tornar até certo ponto diferente o litígio perante o BVerfG do processo anterior no Tribunal. No entanto, quer a prudência com que se exprime o BVerfG como a natureza dos argumentos que apresenta (27), levam‑me a pensar que, materialmente, o parâmetro da fiscalização ultra vires seria em grande medida o mesmo.

54.      Neste sentido, o presente reenvio pode ser uma prova de que assim é. Com efeito, se uma parte importante do julgamento da validade da decisão controvertida do BCE for determinada pela interpretação dada à extensão da competência do banco, em particular, o objetivo primordial da «estabilidade dos preços», o referido conceito é parte integrante tanto do Tratado (artigo 127.°, n.° 1, TFUE) como da Constituição nacional (artigo 88.° da LF, in fine). Em ambos os casos, trata‑se de interpretar o alcance de um mesmo conceito, o de «estabilidade dos preços», como principal missão do BCE, independentemente da questão de saber se figura numa ou noutra norma fundamental, ou nas duas.

55.      Todavia, segundo a decisão de reenvio, não é apenas o princípio de atribuição (ultra vires), que está em causa no processo principal, mas também a «identidade constitucional» da RFA, devido às consequências que o ato controvertido acarretaria para o órgão constitucional nacional primordialmente chamado a exprimir a vontade dos cidadãos. «Fiscalização ultra vires» e «fiscalização de identidade», na própria terminologia do BVerfG, confluiriam no processo principal.

56.      Ora, a questão do parâmetro de fiscalização diferente que deve aplicar um e outro tribunal volta a surgir nesta parte da decisão de reenvio. Assim, tratando‑se especificamente da «fiscalização de identidade», o BVerfG propõe expressamente que «[n]o contexto da relação de cooperação existente, compete ao Tribunal de Justiça a interpretação da medida. Por sua vez, cabe ao [BVerfG] determinar o núcleo inviolável da identidade constitucional e examinar se a medida (como interpretada pelo Tribunal de Justiça) afeta este núcleo» (28).

57.      Mais uma vez, caberia fazer aqui uma série de considerações de certa importância. Limito‑me, todavia, a observar, sem que seja necessário analisar outras hipóteses, que, no presente processo, em que tudo parece indicar que «fiscalização ultra vires» e «fiscalização de identidade» estão indissociavelmente ligadas, continuam a ser válidas as dificuldades já mencionadas para admitir uma diferença de parâmetros de fiscalização entre a função do Tribunal de Justiça e a função do BVerfG.

58.      Em todo o caso, permita‑se‑me formular, nesta fase da minha reflexão, alguns comentários de ordem geral.

59.      Em primeiro lugar, parece‑me uma tarefa pouco menos que impossível preservar esta União, tal como a conhecemos hoje, se se pretende submetê‑la a uma reserva absoluta, pouco pormenorizada e deixada praticamente à livre disposição de cada um dos Estados, plasmada numa categoria designada «identidade constitucional», sobretudo se se considerar diferente da «identidade nacional» que figura no artigo 4.°, n.° 2, TUE.

60.      Essa «reserva de identidade», concebida de forma autónoma e interpretada pelos órgãos competentes, frequentemente jurisdicionais, dos Estados‑Membros, cujo número, é necessário recordar, é hoje 28, deixaria muito provavelmente a ordem jurídica da União numa posição residual, pelo menos em termos qualitativos. Sem entrar em detalhes, e sem qualquer intenção de julgamento, parece‑me que as características do presente processo podem ser uma boa ilustração do cenário que acabo de evocar.

61.      Em segundo lugar, não creio que seja inútil recordar que o Tribunal de Justiça trabalha desde há muito com a categoria das «tradições constitucionais comuns» dos Estados‑Membros, quando procura inspiração para a construção do sistema de valores em que assenta a União (29). Em particular, nestas tradições constitucionais comuns o Tribunal procurou, de forma claramente preferencial, estabelecer uma cultura própria de direitos, a cultura dos direitos da União. A União adquiriu assim o caráter, não apenas de uma comunidade de direito, mas também de uma «comunidade de cultura constitucional» (30). Esta cultura constitucional comum aparece como parte da identidade comum da União, com a importante consequência, em minha opinião, de a identidade constitucional de cada Estado‑Membro, naturalmente específica na medida do necessário, não poder estar a uma distância astronómica da referida cultura constitucional comum, para o dizer com prudência. Pelo contrário, uma clara atitude aberta face ao direito da União deveria inspirar, a médio e a longo prazo, um princípio de convergência básica entre a identidade constitucional da União e a de cada um dos Estados‑Membros.

62.      Para voltar à dificuldade funcional do pedido prejudicial, considero que o risco de «instrumentalização» da mesma, num contexto de apreciação nacional de um caso de «fiscalização ultra vires» conjugada com «fiscalização de identidade», é suficientemente real para se colocar a questão da possibilidade de uma abordagem alternativa, que permita superar a referida dificuldade. Na minha opinião, tal leitura alternativa seria possível, atendendo ao que parecem ter sido as origens desta disposição jurisprudencial, utilizando simultaneamente as potencialidades do princípio da cooperação leal (artigo 4.°, n.° 3, TUE). Em suma, tratar‑se‑ia de explorar as virtudes da já referida ambiguidade que envolve o pedido prejudicial.

63.      Não se deve esquecer que, ao que parece, o compromisso, digamos assim, de submeter um pedido prejudicial ao Tribunal de Justiça constitui uma inovação do acórdão do BVerfG de 6 de julho de 2010 (Honeywell) com o propósito, como foi amplamente reconhecido, de manter aberto o diálogo entre os tribunais, de forma a que este prossiga até onde o exija a importância do processo (31). Deste ponto de vista, o facto de se prever o reenvio prejudicial seria uma tentativa honesta de que a interpretação do direito da União a que procede o Tribunal de Justiça seja suficiente para permitir responder aos pedidos formulados nos processos a quo. O resultado final desejável seria que uma eventual fiscalização sucessiva efetuada com base nos parâmetros constitucionais, nas circunstâncias do processo, não chegasse a conclusões em aberta contradição com a resposta do Tribunal.

64.      Além disso, é evidente que o princípio da cooperação leal se aplica também aos tribunais, incluindo os dois tribunais em causa neste importante processo (32). Esta lealdade mútua é ainda mais urgente nos casos em que um tribunal supremo de um Estado‑Membro, no exercício responsável das suas competências constitucionais, e sem entrar noutras considerações, expõe lealmente a sua inquietação face a uma determinada decisão de um órgão da União. Este princípio da cooperação leal vincula naturalmente o órgão jurisdicional nacional, sendo da sua própria responsabilidade dar‑lhe forma e efeito. No que respeita ao Tribunal de Justiça, considero que o referido princípio, nas circunstâncias do processo, o vincula duplamente.

65.      Em primeiro lugar, e quanto ao mérito, importa referir que o obriga a responder com a maior lealdade possível a uma questão que lhe foi colocada por sua vez com toda a lealdade, aspeto sobre o qual não se pode ter a menor dúvida. Em particular, se, ao expor em que medida o ato em questão lhe suscita muito sérias dúvidas quanto à validade ou à interpretação, o tribunal nacional utilizou uma linguagem particularmente explícita, há que considerá‑lo expressão do seu nível de preocupação a este respeito. Na minha opinião é esse o sentido do apelo do Governo alemão a um tratamento «construtivo» do presente processo (33).

66.      Em segundo lugar, e é disto que se trata sobretudo nesta fase, o princípio da cooperação leal exige ao Tribunal de Justiça um esforço particular, tendo em vista proporcionar uma resposta substantiva ao pedido que lhe é dirigido, para além de todas as dificuldades a que se fez abundantemente referência. Tal implica que o Tribunal parta de um determinado pressuposto quanto ao destino final da sua resposta.

67.      Em concreto, este pressuposto consistiria em não descartar à partida, e mesmo confiar, que o tribunal nacional, perante a resposta dada pelo Tribunal de Justiça, e tendo‑a em consideração, sem prejuízo do exercício da sua própria responsabilidade, assumiria como determinante nos processos a quo a referida resposta ao pedido dirigido ao Tribunal. A cooperação leal engloba um elemento de confiança, e essa confiança pode assumir um sentido particular no presente processo. Há que ter em conta o facto de o presente pedido prejudicial ter sido concebido pelo BVerfG em termos que permitem ao Tribunal de Justiça confiar, dentro dos limites do razoável, que aquele considerará como suficiente e definitiva a resposta recebida, podendo bastar por si só para fornecer parâmetros suficientes para se pronunciar sobre os pedidos formulados nos processos a quo (34). O «roteiro» que o BVerfG impõe a si próprio no acórdão Honeywell poderia confirmar esta abordagem (35).

68.      Na medida em que este diagnóstico da situação seja aceitável, considero que o Tribunal de Justiça deveria abordar o problema da «funcionalidade» que suscita este pedido prejudicial, descartando hipóteses diferentes da que acabo de sugerir, desde que possam ser consideradas extremas, dificilmente possíveis e, em última análise, insuficientes para recusar uma resposta substantiva às questões colocadas no presente pedido prejudicial.

69.      Por conseguinte, e a título de conclusão intercalar, proponho ao Tribunal de Justiça que declare que o pedido é suscetível de obter uma resposta substantiva.

V ―    Admissibilidade

70.      Um grande número de Estados‑Membros, bem como as instituições que apresentaram observações no presente processo, invocaram um problema de admissibilidade quanto às questões formuladas a título principal, na medida em que dizem respeito a um problema de validade de um ato, o programa OMT, que não produz efeitos jurídicos em relação a terceiros.

71.      Muito resumidamente, os referidos intervenientes destacam o caráter não definitivo, ou mesmo, pode dizer‑se, «preparatório», do ato acordado em 6 de setembro de 2012, através do qual o Conselho do BCE decidiu adotar os critérios essenciais destinados a regular o referido programa, cuja aprovação ainda não é definitiva. Como confirmou o BCE, nessa reunião foram acordados certos critérios, mas não o programa OMT enquanto tal. A fiscalização da sua validade só poderá ser efetuada quando o Conselho, nos termos do sistema de atos previsto no Estatuto do Banco Central Europeu, o adotar formalmente e proceder à sua publicação.

72.      A jurisprudência do Tribunal de Justiça pode em princípio ratificar esta interpretação. A jurisprudência em matéria de recursos de anulação opõe‑se a que atos desprovidos de efeitos jurídicos possam ser impugnados (36). No contexto preciso dos pedidos prejudiciais, o Tribunal já declarou no passado a inadmissibilidade de remissões prejudiciais para exame da validade de um ato atípico, não publicado e sem efeitos obrigatórios (37). Este seria, segundo vários intervenientes no presente processo, o caso do programa OMT anunciado em 6 de setembro de 2012 numa conferência de imprensa pelo presidente do BCE, seguida de um comunicado de imprensa pormenorizando as suas principais características técnicas.

73.      Pelas razões que passarei a expor, entendo, no entanto, que o programa OMT constitui um ato cuja validade pode ser apreciada num processo de reenvio prejudicial para exame de validade. Esta conclusão assenta em dois fundamentos diferentes. Em primeiro lugar, considero determinante o facto de se tratar de um ato que fixa as características gerais de um programa geral de atuação de uma instituição da União. Em segundo lugar, parece‑me necessário prestar atenção à importância particular que a comunicação pública tem para o BCE na execução da política monetária contemporânea.

74.      Desde os seus primeiros anos de atividade, o Tribunal de Justiça exigiu como requisito de impugnabilidade dos atos a existência de natureza vinculativa e de capacidade para produzir efeitos jurídicos (38). Estes requisitos são necessários conjuntamente, ainda que em certos casos, como o da fiscalização prejudicial da validade de recomendações, possam existir alternativamente (39).

75.      Considero, contudo, que estes dois requisitos devem ser apreciados de maneira diferente em função do destinatário direto do ato recorrido. Como passo a expor, quando o ato impugnado constitui uma medida de conceção de um programa geral de ação, destinado a vincular a própria autoridade autora da decisão, a jurisprudência revela‑se mais flexível na aplicação dos referidos requisitos do que quando o ato contém uma medida com efeitos constitutivos nas relações jurídicas com terceiros. A razão é que os programas gerais de ação de uma autoridade pública podem manifestar‑se sob formas atípicas, dispondo, ainda assim, de capacidade para influir muito diretamente na situação jurídica dos particulares. Pelo contrário, as medidas cujos destinatários diretos são particulares devem reunir algumas condições de forma e de substância, sob pena de serem consideradas inexistentes.

76.      Um programa geral de ação, como o que está aqui em causa, poderá revelar‑se através de técnicas atípicas, poderá ter como destinatário a própria autoridade autora do ato, poderá ser formalmente inexistente de um ponto de vista exterior, mas o facto de ter a capacidade de influenciar de forma decisiva a situação jurídica de terceiros justifica que o seu tratamento como «ato» seja abordado numa perspetiva antiformalista. Se assim não for, corre‑se o risco de que uma instituição desvirtue o sistema de atos e as suas correspondentes garantias jurisdicionais, dissimulando atos destinados a produzir efeitos para o exterior sob a capa de programas gerais.

77.      A jurisprudência do Tribunal de Justiça fez prova de uma particular flexibilidade ao abordar este tipo de programas gerais de ação suscetíveis de produzir efeitos externos.

78.      O acórdão Comissão/Conselho («AETR») (40), proferido em 1971, constitui um ponto de partida importante, uma vez que nele se discutia, entre outras coisas, a condição de ato de uma deliberação do Conselho relativa à negociação e à celebração, pelos Estados‑Membros, de um acordo internacional. Segundo a opinião do Conselho, esta deliberação não constituía, nem pela sua forma nem pelo seu objetivo ou o seu conteúdo, um ato impugnável, mas um acordo político entre Estados‑Membros no âmbito do Conselho, sem qualquer intenção de criar um direito, impor uma obrigação ou alterar uma situação jurídica.

79.      Ao analisar os argumentos do Conselho, o Tribunal de Justiça declarou que devem ser suscetíveis de fiscalização jurisdicional «todas as disposições tomadas pelas instituições que se destinem a produzir efeitos jurídicos, quaisquer que sejam a respetiva natureza ou forma» (41). Após ter analisado o ato impugnado, o Tribunal destacou principalmente duas características: primeira, que o acordo não era a expressão de uma coordenação voluntária, mas o reflexo de uma linha de conduta obrigatória (42); segunda, que as disposições adotadas nesse acordo podiam constituir uma hipótese de «derrogação dos processos previstos pelo Tratado» (43).

80.      Do mesmo modo, e em complemento à declaração de princípio do acórdão AETR (EU:C:1971:32), o Tribunal de Justiça dedicou uma atenção particular às circunstâncias em que o ato impugnado é adotado. Além da componente objetiva sublinhada supra, o contexto que envolve a adoção do ato pode fornecer indícios suplementares que confirmem, ou a intenção do autor do ato de produzir efeitos sobre terceiros, ou o conhecimento que o autor do ato tinha do potencial impacto externo da medida. A relevância das circunstâncias foi salientada pelo Tribunal no processo França/Comissão (44), onde esta última admitiu a impugnabilidade de uma instrução interna, com o fundamento de que se podia distinguir de uma simples instrução de serviço, «tanto pelas circunstâncias em que foi adotad[a] como pelas modalidades da sua elaboração, redação e publicação» (45).

81.      Com a referida jurisprudência como pano de fundo, passo agora a analisar o caráter impugnável do ato cuja validade é posta em causa pelo órgão de reenvio.

82.      Pelo menos na sua apresentação formal, o programa OMT é uma medida que apresenta características atípicas. Foi concebido no Conselho do BCE em 5 e 6 de setembro de 2012, foi plasmado na respetiva ata dessa reunião, a qual remete para um futuro comunicado de imprensa a descrição das suas características técnicas. Assim, foi numa conferência de imprensa realizada pelo presidente da instituição, com posterior difusão de um comunicado de imprensa em inglês na página web do BCE, que se pormenorizaram as características técnicas do programa. A publicação e a divulgação na Internet do programa constitui o único texto escrito «oficial» disponível sobre o programa OMT, se excetuarmos os projetos de decisão e de orientação que o BCE produziu neste processo, mas que ainda são documentos internos da instituição, que aguardam a sua aprovação definitiva e a sua subsequente publicação no Jornal Oficial. Estes projetos descrevem em pormenor o que o comunicado de imprensa enuncia em termos gerais, mas também com uma precisão considerável.

83.      Não há dúvida de que o programa OMT é uma decisão com um conteúdo preciso, que foi objeto de discussão durante dois dias, e cujas características principais foram aprovadas no Conselho do BCE. Do mesmo modo, a publicação das características básicas do programa, tanto na conferência de imprensa como em formato escrito na página web do BCE, confirmam a evidente vontade da instituição de dar a conhecer o que tinha sido anteriormente acordado no Conselho. Trata‑se de um programa geral de ação, dado que estabelece as condições em que o BCE agirá em caso de bloqueio dos canais de transmissão da política monetária, mas também de uma medida que prossegue diretamente um efeito externo. Se assim não fosse, não teria sido anunciado com a maior publicidade possível em conferência de imprensa, nem publicadas as suas caraterísticas técnicas na página web do BCE.

84.      Além disso, as circunstâncias que envolvem o programa OMT parecem confirmar que o objetivo do BCE era «intervir» nos mercados, mesmo que de forma não convencional, através do simples anúncio do programa. O discurso do presidente do BCE de 26 de julho de 2012, em Londres, já referido, que anunciava a adoção de todas as medidas necessárias para «salvar a moeda comum», a conferência de imprensa de 2 de agosto que se seguiu à reunião do Conselho do BCE do mesmo dia, bem como a situação que nesse momento vários Estados‑Membros atravessavam nos mercados da dívida pública confirmam que a intenção do BCE ao anunciar o programa OMT não era simplesmente dar conta dos trabalhos internos de uma iniciativa ainda em fase de discussão, mas também provocar um efeito através do anúncio do nascimento de um programa potencialmente ambicioso, visando, conforme foi dito, remediar algumas das dificuldades que então atravessavam os canais de transmissão da política monetária. A prova é o impacto substancial que, segundo todos os indícios, o anúncio do programa teve nos mercados financeiros, impacto que, de acordo com o BCE e a Comissão, perdura ainda passados mais de dois anos.

85.      Do mesmo modo, é importante salientar que o programa OMT não traduz a comunicação de um simples ato individual, mas o anúncio de todo um programa normativo, pro futuro, dotado de condições relativamente precisas e vocação reguladora. Atendendo ao seu conteúdo, pode acrescentar‑se que em 6 de setembro de 2012 o BCE não anunciou uma decisão menor. Pelo contrário, nesse dia deram‑se a conhecer os pormenores de uma medida que apresenta uma importância evidente para a área do euro, destinada, apesar do seu caráter inacabado, a perdurar no tempo.

86.      É aqui que há que abordar a segunda circunstância que me parece pertinente para refutar as objeções respeitantes à admissibilidade. É indispensável ter em conta o facto de que o presente processo tem por objeto um ato de comunicação pública de um banco central, que contém um programa de ação de política monetária. Os atos de comunicação pública dos bancos centrais não são equiparáveis aos de outras instituições, sejam políticas ou técnicas. Durante os últimos 30 anos, os bancos centrais têm passado por uma importante evolução que afetou os seus instrumentos de política monetária, nos quais se enquadra, hoje, segundo opinião unânime dos especialistas, a comunicação pública.

87.      É pacífico que a política de comunicação pública dos bancos centrais se tornou um dos eixos fulcrais da política monetária contemporânea. Perante a impossibilidade de vaticinar comportamentos racionais nos mercados, uma forma eficaz de não frustar algumas expectativas e, assim, garantir a eficácia da política monetária consiste em aproveitar todas as potencialidades da comunicação pública («estratégias comunicativas») dos bancos centrais (46). Atendendo ao prestígio e à informação de que estas instituições dispõem, mas também aos seus poderes atribuídos pelos instrumentos convencionais de política monetária, os anúncios, opiniões ou declarações dos representantes dos bancos centrais desempenham, em geral, um papel crucial no desenvolvimento da política monetária contemporânea.(47).

88.      É indubitável que o BCE integrou também a comunicação nos seus instrumentos centrais de política monetária. A própria instituição o reconheceu no passado, e ninguém contestará que a comunicação pública que o BCE efetua regularmente, anunciando as linhas essenciais da sua ação, ou transmitindo algumas opiniões suscetíveis de refletir futuras ações da instituição, constitui um pilar essencial da sua ação (48). Na minha opinião, esta circunstância, atribuível de forma bastante singular e característica ao BCE, qualifica muito significativamente a natureza de um ato como o anunciado programa OMT de 6 de setembro de 2012.

89.      Por último, e tendo em conta a importância das políticas de comunicação do BCE, importa ter presente que a opção alternativa, que consiste em declarar o caráter inimpugnável de um ato como o programa OMT, acarreta o risco de excluir um número considerável de decisões do BCE de qualquer fiscalização jurisdicional, com o simples argumento de que não foram ainda formalmente adotadas e publicadas no Jornal Oficial. Em última análise, se uma medida não precisar de ser publicada oficialmente sob a sua forma habitual para exercer os seus efeitos, uma vez que basta difundi‑la numa conferência de imprensa ou através de um comunicado de imprensa para que tenha todo o seu impacto no exterior, o sistema de atos e de fiscalização jurisdicional previsto pelos Tratados fica gravemente comprometido.

90.      Atendendo às considerações que precedem, no caso específico deste tipo de ações do BCE, em que os atos de comunicação pública adquirem um significado particular para a efetividade da política monetária, considero que um ato como o posto em causa pelo órgão jurisdicional de reenvio, tal como foi anunciado em 6 de setembro de 2012, atendendo ao seu conteúdo, aos efeitos objetivos que pode produzir, mas também às circunstâncias em que foi decidido, constitui um ato de uma instituição cuja validade pode ser posta em causa no âmbito de um processo de reenvio prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE.

91.      Por conseguinte, considero que há que rejeitar as objeções à admissibilidade das questões prejudiciais relativas à validade, não sendo, pois, necessário apreciar o pedido prejudicial de interpretação, apresentado a título subsidiário pelo órgão de reenvio.

VI ― Questões prejudiciais

A ―    Primeira questão prejudicial: artigos 119.° TFUE e 127.°, n.os 1 e 2, TFUE e limites da política monetária do BCE

92.      Com a sua primeira questão, o BVerfG questiona a validade do programa OMT anunciado pelo BCE em 6 de setembro de 2012, perguntando especificamente ao Tribunal de Justiça se se trata de uma medida incompatível com os artigos 119.° TFUE e 127.°, n.os 1 e 2, TFUE, e se usurpa as competências dos Estados‑Membros.

93.      Na sua decisão de reenvio, o BVerfG, após uma extensa e pormenorizada fundamentação, conclui que existem elementos suficientes para considerar que o BCE adotou uma medida de política económica e não de política monetária, ao mesmo tempo que constata uma violação do princípio da atribuição de competências, que deve reger o comportamento do BCE. O BVerfG salienta quatro aspetos do programa OMT que confirmam a referida violação: a condicionalidade, a seletividade, o paralelismo e o desvio. As preocupações do órgão de reenvio evidenciam, em termos mais gerais, a questão dos limites das competências do BCE quando enfrenta cenários excecionais como os verificados durante os meses de verão de 2012.

1.      Posição dos intervenientes

94.      Todos os recorrentes no processo principal concordam no essencial com uma interpretação dos Tratados segundo a qual um programa como o anunciado em 6 de setembro de 2012 pelo BCE constitui uma medida de política económica. No entender dos recorrentes, o programa OMT ignora o mandato que impõe ao BCE principalmente um objetivo de manutenção da estabilidade dos preços, já que se trata de uma medida que tem por objeto diretamente as fontes de financiamento dos Estados‑Membros afetados, o que coloca a medida impugnada no âmbito da política económica. Nas suas alegações invocam reiteradamente o acórdão Pringle (49), no qual se declara que a criação do MEE constituía uma medida de política económica, recusando a sua qualificação de política monetária. Os recorrentes consideram que, atendendo às características que o MEE e um programa como o programa OMT partilham, também este se deve qualificar de medida de política económica.

95.      Tanto P. Gauweiler como R. Huber salientam, em particular, que o verdadeiro objetivo do programa OMT não é o restabelecimento dos canais de transmissão da política monetária, mas «salvar o euro» através de uma comunitarização da dívida desses Estados, que é incompatível com os Tratados, uma vez que expõe certos Estados‑Membros à assunção da dívida de outros Estados‑Membros. Uma medida deste tipo vai claramente além do «apoio» às políticas económicas da União e dos Estados‑Membros que os Tratados autorizam o BCE a prestar.

96.      Por sua vez, J. von Stein contesta que os mercados da dívida soberana tenham sido caracterizados por taxas de juro artificiais durante os meses que precederam o anúncio do programa OMT. Considera que essas taxas apenas refletem um verdadeiro preço de mercado, no qual o BCE intervém, manipulando‑o artificialmente, ao anunciar estar disposto a comprar títulos de dívida de certos Estados‑Membros. Esta alteração do mercado não corresponde ao mandato que os Tratados atribuem ao BCE, ou seja, a manutenção da estabilidade dos preços.

97.      B. Bandulet salienta que o programa OMT não pode suprir as deficiências estruturais na conceção da União Monetária. Considera que não se trata de forma alguma de uma competência do BCE e que, a não ser assim, violar‑se‑ia o princípio da democracia e da soberania do povo.

98.      O grupo parlamentar Die Linke contesta igualmente a competência do BCE para adotar o programa OMT, embora utilize argumentos distintos. Salienta as consequências económicas que os sucessivos programas de assistência financeira ocasionaram em vários Estados‑Membros. Este impacto confirma que o BCE, ao apoiar esses resgates através da implementação do programa OMT, estaria a imiscuir‑se na política económica dos Estados‑Membros. Invoca também vários princípios da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia para pôr em causa as intervenções da União e do BCE nos Estados sujeitos a um programa de assistência financeira.

99.      Todos os Estados que intervieram no presente processo, bem como o BCE e a Comissão consideram, com alguns cambiantes, que o programa OMT, tal como foi tornado público através de comunicado de imprensa, constitui uma medida de política monetária, compatível com as competências que os Tratados atribuem ao BCE.

100. Os Estados e as instituições acima referidos estão igualmente de acordo em que o BCE dispõe de um amplo poder discricionário para definir e executar a política monetária. O Tribunal de Justiça deveria reconhecer essa margem e aceitar os objetivos que o BCE referiu ao anunciar o seu programa OMT. Entre estes objetivos, os Estados e as instituições admitem que o BCE pode adotar medidas não convencionais de política monetária, sempre que tal seja estritamente necessário para alcançar as metas fixadas. Concretamente, tanto a República da Polónia como o Reino de Espanha consideram que o programa OMT é compatível com os aspetos próprios do princípio da proporcionalidade.

101. Os Estados‑Membros e as instituições estão igualmente de acordo em negar, contrariando o declarado pelo órgão jurisdicional de reenvio, que o acórdão Pringle (EU:C:2012:756) conduza à conclusão de que o programa OMT é uma medida de política económica. Em sua opinião, esse acórdão reconhece que a política económica e a política monetária estão estreitamente ligadas, de modo que uma medida de política económica pode ter influência na política monetária e vice‑versa, sem que tal altere a natureza da medida. No presente processo, o facto de o programa OMT poder influenciar a política económica não o converte, por si só, numa medida de política económica.

102. Quanto ao facto de o programa OMT produzir uma alteração artificial dos preços no mercado da dívida pública, os governos da República da Polónia, a Comissão e o BCE salientam que qualquer política monetária tem como objetivo a alteração dos preços, dado que uma das funções inerentes à referida política é a de influenciar os mercados através de medidas que alterem certos comportamentos, mas sempre com o objetivo de cumprir o mandato atribuído ao BCE, neste caso a manutenção da estabilidade dos preços.

103. Por sua vez, a República Federal da Alemanha defende, em linha de princípio, a legalidade do programa OMT nos termos em que é conhecido, ainda que tenha insistido no facto de atualmente apenas existir um anúncio do mesmo, sendo necessário verificar a sua aplicação concreta para determinar se se trata efetivamente de uma medida de política económica ou de política monetária. Em todo o caso, a República Federal da Alemanha considera que o BCE dispõe de uma ampla margem de apreciação e que só no caso de uma medida ser manifestamente de política económica se violariam os Tratados. Assinala igualmente o interesse em que o Tribunal de Justiça forneça critérios que permitam uma aplicação do programa OMT em conformidade com os Tratados e, na medida do possível, com os instrumentos constitucionais fundamentais da República Federal da Alemanha.

104. O BCE defende a legalidade do programa OMT invocando as circunstâncias verificadas durante o verão de 2012. Nesse momento, o receio da reversibilidade do euro propagou‑se entre os investidores, provocando um notório e significativo aumento das taxas de juro pagas pelos títulos de dívida pública de vários Estados‑Membros. Perante este cenário, o BCE alega que perdeu a sua capacidade para executar a política monetária através dos seus canais habituais de transmissão, uma vez que a subsequente fragmentação dos mercados da dívida soberana, associada às dificuldades de financiamento de vários Estados (e, por conseguinte, das suas instituições financeiras), impedia a boa transmissão dos impulsos que o BCE normalmente emite. Segundo este último, estas circunstâncias justificaram a adoção de uma medida não convencional de política monetária como o programa OMT. Em suma, a finalidade do programa, ainda segundo o BCE, não é facilitar as condições de financiamento de certos Estados‑Membros, ou condicionar as suas políticas económicas, mas desbloquear os referidos canais de transmissão da política monetária do BCE.

105. O BCE nega que as características técnicas do programa OMT ocultem uma medida de política económica. Em seu entender, a «condicionalidade» a que é feita referência é um meio indispensável para evitar que a implementação do programa OMT incite os Estados afetados a renunciar à realização de reformas estruturais necessárias para melhorar os seus fundamentos económicos. Da mesma forma, o BCE alega que a «seletividade» das medidas é inerente ao programa OMT, uma vez que as perturbações dos canais de transmissão resultavam dos aumentos das taxas de juro dos títulos de dívidas de certos Estados. Em suma, o BCE considera que o programa OMT prevê salvaguardas que permitem garantir a sua vinculação à política monetária e a sua inclusão nos poderes que os Tratados atribuem a essa instituição.

2.      Apreciação

a)      Observações preliminares

106. Antes de entrar na análise específica do pedido apresentado pelo BVerfG, é útil atentar em dois aspetos determinantes no presente processo: o Estatuto e o mandato do BCE, tal como definidos nos Tratados, e o conceito de «medidas não convencionais de política monetária». Estas duas dimensões irão fornecer‑nos os elementos essenciais para apreciar a legalidade de um programa como o OMT, o qual, segundo o BCE, se enquadra nas referidas medidas não convencionais de política monetária.

i)      Quanto ao Estatuto e ao mandato do BCE

107. O BCE é a instituição a que os Tratados confiam o exercício das competências exclusivas da União em matéria de política monetária. Com os bancos centrais nacionais constitui o SEBC, cuja principal missão é assegurar a «estabilidade dos preços», sem prejuízo das medidas que possa adotar em «apoio às políticas económicas» (50). Assim, e diversamente de outros bancos centrais, o BCE caracteriza‑se pelo facto de estar vinculado por um mandato claro e estreitamente ligado ao combate à inflação. Os trabalhos preparatórios que deram origem ao Tratado de Maastricht (51), bem como a historiografia dedicada à política monetária (52), confirmam a importância deste mandato nas negociações que conduziram à criação do BCE.

108. Além da sua estrita vinculação ao objetivo de garantir a estabilidade dos preços, o BCE caracteriza‑se por um nível importante de independência, tanto no plano funcional como orgânico (53). Os Tratados reiteram em muitas ocasiões o caráter independente de todas as ações do BCE, ao qual acresce a considerável rigidez dos procedimentos de alteração dos Estatutos do SEBC e do BCE, o que distingue essa instituição dos bancos centrais que o rodeiam, cujas normas reguladoras podem ser alteradas pelo respetivo Parlamento nacional (54). Não é esse o caso do BCE, uma vez que qualquer alteração do seu Estatuto exige uma alteração dos Tratados (55).

109. A independência do BCE, como acontece também com os bancos centrais nacionais, tem igualmente por finalidade manter a instituição afastada do debate político, proibindo categoricamente quaisquer injunções provenientes de outras instituições ou dos Estados‑Membros (56). Do mesmo modo, esta separação da atividade política é exigida pelo caráter extremamente técnico e pelo elevado nível de especialização que caracterizam a política monetária (57).

110. Com efeito, os Tratados confiam exclusivamente ao BCE a conceção e a execução da política monetária, atribuindo‑lhe para isso importantes meios para exercer as suas funções. Graças a estes meios o BCE dispõe simultaneamente de conhecimentos e de informações particularmente valiosas que lhe permitem realizar mais eficazmente a sua missão, reforçando ao mesmo tempo as suas capacidades técnicas e a sua reputação. Estas características são fundamentais para garantir que os impulsos da política monetária chegam efetivamente à economia, uma vez que, como já foi referido supra, uma das funções dos bancos centrais contemporâneos consiste em gerir as expectativas, função para a qual o conhecimento técnico, a reputação e a comunicação pública são ferramentas fundamentais.

111. Como consequência necessária do exposto, deve ser reconhecida ao BCE uma ampla margem de apreciação na conceção e execução da política monetária da União (58). Os tribunais, ao proceder a uma fiscalização da atividade do BCE, devem, portanto, evitar o risco de se substituírem a essa instituição, entrando num terreno altamente técnico que exige uma especialização e experiência que, segundo os Tratados, são exclusivas do BCE. Por conseguinte, a intensidade da fiscalização jurisdicional da atividade do BCE, além do seu caráter imperativo, deve possuir um grau considerável de contenção (59).

112. Por último, é importante salientar que a política monetária do BCE é aplicada, como já se disse, através de vários «canais ou mecanismos de transmissão», pelos quais a instituição intervém no mercado e cumpre o seu mandato que consiste em assegurar a estabilidade dos preços (60). Para executar a sua política monetária, o BCE controla a base monetária na economia da área do euro, o que faz emitindo os «impulsos» correspondentes, principalmente através da fixação das taxas de juro, que posteriormente serão transferidos do setor financeiro para as empresas e os particulares (61).

113. Neste sentido, para assegurar o correto funcionamento desses canais de transmissão, os Estatutos do SEBC e do BCE atribuem ao SEBC uma competência expressa para adotar uma série de «funções monetárias e operações». Entre essas operações, destacam‑se, para efeitos do presente processo, as previstas no artigo 18.°, n.° 1, do Estatuto, que autoriza o BCE e os bancos centrais nacionais a «intervir nos mercados financeiros, quer comprando e vendendo firme (à vista e a prazo) ou ao abrigo de acordos de recompra, quer emprestando ou tomando de empréstimo ativos e instrumentos negociáveis, denominados em euros ou outras moedas, bem como metais preciosos».

114. Todavia, e como passarei a demonstrar, um programa como o OMT não pode ser considerado parte dos instrumentos normais de política monetária do BCE. O programa OMT utiliza formalmente uma das operações monetárias supramencionadas, mas fá‑lo em termos suficientemente inabituais para justificar a qualificação de «medida não convencional de política monetária». Explicarei a seguir a que faz referência mais concretamente essa expressão, como a justificou o BCE e em que medida se trata de um meio legalmente previsto nos Tratados.

ii)    Medidas não convencionais da política monetária e inclusão nas mesmas do programa OMT

¾       Medidas não convencionais de política monetária, segundo o BCE

115. O BCE defende a legalidade do programa OMT enquanto intervenção que visa desbloquear os canais de transmissão da política monetária da União. Como acaba de se explicar, estes canais de transmissão da política monetária não funcionam como mecanismos com efeitos imediatos, mas como um quadro através do qual o BCE lança uma série de «impulsos» com vista a que cheguem à economia real. Segundo o BCE, a política monetária pode ser afetada por fatores exógenos aos canais de transmissão, fatores suscetíveis de alterar o bom funcionamento dos impulsos que lança: uma crise política ou económica internacional, ou uma alteração significativa dos preços do petróleo, entre outros fatores, podem perturbar gravemente os «impulsos» que o BCE lança através dos canais de transmissão da política monetária.

116. Quando se verifica uma situação deste tipo, o BCE considera‑se competente para intervir através dos seus próprios instrumentos, com o objetivo de desbloquear os referidos canais. Trata‑se nesse caso de intervenções diferentes das que são habituais na prática do BCE, pois não correspondem a uma operação «ordinária», mas a uma operação de desbloqueio e posterior recuperação dos instrumentos de política monetária propriamente ditos (62).

117. Tanto o BCE como os Estados‑Membros que intervieram no presente processo defendem a legitimidade do recurso a este tipo de medidas não convencionais como parte da política monetária. Como resulta dos autos, trata‑se efetivamente de um tipo de intervenção a que recorreu a maioria dos bancos centrais durante a crise financeira internacional que começou em 2008 (63), incluindo, como se depreende do presente processo, o próprio BCE (64). Segundo este último e os Estados‑Membros intervenientes, os Tratados não o impedem de exercer os seus poderes para recuperar os seus instrumentos de política monetária quando ocorram circunstâncias que alterem significativamente o normal funcionamento dos canais de transmissão. Segundo a Comissão, essa faculdade é compatível com os Tratados, desde que exercida de forma prudente e munida de garantias.

118. A partir destas premissas, importa analisar a natureza precisa do programa OMT tal como foi tornado público através do comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012.

¾       Programa OMT como medida não convencional de política monetária

119. O programa OMT inclui‑se formalmente nas operações que os Estatutos do SEBC e do BCE preveem no seu artigo 18.°, n.° 1, já referido. É evidente que, ao atribuir ao SEBC competência para comprar os ativos e instrumentos negociáveis, esta disposição tem por finalidade, antes de mais, que o BCE disponha de ferramentas para controlar a base monetária, como meio convencional de manutenção da estabilidade dos preços.

120. Importa, todavia, acrescentar de imediato que o programa OMT utiliza os poderes previstos no artigo 18.°, n.° 1, dos Estatutos em termos alheios à prática normal das operações do BCE. É evidente que uma medida seletiva, dirigida a um ou mais Estados da área do euro, que consiste na aquisição sem limitação quantitativa prévia dos seus títulos de dívida, confiando que as suas condições de financiamento nos mercados serão melhoradas, é alheia à prática normal do BCE.

121. Tal como foi indicado no comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012, o programa OMT prevê uma intervenção do BCE nos mercados secundários de obrigações soberanas, permitindo‑lhe comprar títulos de dívida dos Estados da área do euro sujeitos a um programa de assistência financeira e, presumivelmente, com dificuldades em colocar os seus títulos de dívida. A premissa em que assenta o programa OMT é a irrupção de um fator exógeno que altera os canais de transmissão da política monetária. Este elemento perturbador é, segundo alega o BCE, um aumento relativamente brusco e praticamente insuportável dos prémios de risco de certos Estados da área do euro, aumento em princípio incompatível com a realidade macroeconómica dos referidos Estados e que, consequentemente, impede o BCE de transmitir eficazmente os seus impulsos e, portanto, de cumprir o seu mandato de garantia da estabilidade dos preços.

122. Assim, e à luz das considerações que precedem, considero que o programa OMT pode ser qualificado de medida não convencional de política monetária, com as consequências que essa qualificação implica do ponto de vista da sua fiscalização.

b)      Competências do BCE e programa OMT

123. Tendo em conta as observações precedentes, concentro‑me nos dois aspetos que devem ser examinados para dar uma resposta completa à primeira questão prejudicial submetida pelo BVerfG.

124. Em primeiro lugar, é necessário apreciar se um programa como o OMT pode ser qualificado de medida de política monetária, ou se se trata antes de uma medida de política económica que, portanto, seria proibida ao BCE, dedicando uma atenção particular às características técnicas que o BVerfG sublinha. Em seguida, caso o programa OMT possa ser qualificado de medida de política monetária, como proponho, há que analisá‑lo à luz do princípio da proporcionalidade, na aceção do artigo 5.°, n.° 4, TUE.

i)      Programa OMT e política económica da União e dos Estados‑Membros como limites à competência do BCE

¾       Política económica e política monetária da União

125. Como indicado, o BVerfG pergunta se, ao aprovar o programa OMT, o BCE adotou uma medida de política económica e não de política monetária, violando assim a competência que o artigo 119.°, n.° 1, TFUE atribui ao Conselho do BCE e aos Estados‑Membros.

126. Se se tiver em conta apenas o direito primário da União, o artigo 119.°, n.° 1, TFUE descreve sumariamente os principais componentes da política económica que incumbe à União, ao enunciar que esta será baseada «na estreita coordenação das políticas económicas dos Estados‑Membros, no mercado interno e na definição de objetivos comuns, e conduzida de acordo com o princípio de uma economia de mercado aberto e de livre concorrência». Embora esta disposição seja geral e, portanto, ambígua, fornece, não obstante, os elementos principais e qualificativos dos aspetos da política económica que são da competência da União.

127. Os Tratados, em contrapartida, são omissos quando se trata de definir a competência exclusiva de política monetária que incumbe à União. O Tribunal de Justiça verteu esta conclusão no seu acórdão Pringle, sendo obrigado a recorrer, a título de único critério de referência, aos objetivos que o TFUE atribui à política monetária (65). O objetivo primordial da política monetária da União, ou seja, a estabilidade dos preços, e o apoio às políticas económicas gerais da União, constituem o principal critério qualificativo da política monetária (artigos 127.°, n.° 1, TFUE e 282.°, n.° 2, TFUE). Este entendimento foi confirmado pelo Tribunal no acórdão Pringle, onde o único parâmetro a que recorreu para apreciar se uma alteração do Tratado era ou não abrangida pelo âmbito da política monetária foi o dos objetivos atribuídos à referida política.

128. Apesar dos escassos critérios que à primeira vista os Tratados fornecem, o direito da União dispõe de instrumentos interpretativos úteis para determinar se uma decisão se inclui na política económica ou na política monetária da União.

129. Ainda que possa parecer uma evidência, é importante observar que a política monetária se enquadra da política económica geral. A separação entre estas duas políticas no direito da União é uma exigência imposta pela estrutura dos Tratados, bem como pela distribuição horizontal e vertical dos poderes na União, mas, em termos económicos, pode afirmar‑se que, no limite, qualquer medida de política monetária se inclui na categoria mais ampla da política económica geral. Esta associação entre ambas políticas foi salientada pelo próprio Tribunal de Justiça e pela advogada‑geral J. Kokott nas suas conclusões no processo Pringle, ao declarar que não se pode equiparar uma medida de política económica a uma medida de política monetária apenas porque é suscetível de ter efeitos indiretos na estabilidade do euro (66). Este raciocínio é perfeitamente válido na sua formulação inversa, como sublinharam o BCE, a Comissão e a maioria dos Estados‑Membros que intervieram no presente processo, pois uma medida de política monetária não se transforma numa política económica pelo simples facto de poder ter efeitos indiretos na política económica da União e dos Estados‑Membros.

130. O silêncio do Tratado ao renunciar a definir com precisão a política monetária da União é coerente com uma conceção funcional do papel da política monetária, segundo a qual se enquadra na política monetária qualquer medida implementada através dos instrumentos próprios da referida política. Por conseguinte, se uma medida se inclui nos instrumentos que o direito prevê para o exercício da política monetária, existe uma presunção inicial de que essa medida é fruto do exercício da política monetária da União. Trata‑se, evidentemente, de uma presunção que pode ser ilidida se, por exemplo, a medida prosseguir objetivos distintos dos enumerados taxativamente nos artigos 127.°, n.° 1, TFUE e 282.°, n.° 2, TFUE.

131. Do mesmo modo, outras disposições do Tratado relativas à política monetária fornecem indícios pertinentes que vêm enriquecer o conteúdo qualificativo da referida política. Assim, os artigos 123.° TFUE e 125.° TFUE, aos quais me referirei mais atentamente ao examinar a segunda questão prejudicial, fixam proibições rigorosas de financiamento dos Estados quer através de medidas de financiamento monetário, quer através de transferências entre Estados, respetivamente. Estas proibições confirmam que a União Monetária, ainda que incluída numa União baseada no valor da solidariedade (artigo 2.° TUE) (67), prossegue igualmente a manutenção da estabilidade financeira, para a qual se baseia num princípio de disciplina fiscal e de não co‑responsabilidade financeira (68).

132. Por conseguinte, para que uma medida do BCE se inclua efetivamente na política monetária, deve servir especificamente o objetivo primordial que consiste em manter a estabilidade dos preços, desde que seja implementado através de um dos instrumentos de política monetária expressamente previstos nos Tratados e não ponha em causa os imperativos de disciplina fiscal e de não co‑responsabilidade. Se essa medida apresentar aspetos pontuais próprios de uma política económica, só será compatível com o mandato do BCE se servir de «apoio» às medidas de política económica e estiver subordinada ao objetivo prioritário do BCE.

¾       Programa OMT à luz dos critérios qualificativos da política económica e da política monetária da União

133. Concentrando‑nos agora nos critérios que acabam de ser expostos, importa apreciar se o programa OMT tem o caráter de uma medida de política monetária ou de política económica. O órgão jurisdicional de reenvio destacou uma série de elementos suscetíveis de demonstrar que se trata de uma medida de política económica, sobre os quais me debruçarei individualmente. No entanto, a título preliminar, é importante atentarmos nos objetivos que o BCE apresentou para justificar o programa OMT, que foram postos em causa pelo BVerfG e refutados pelos recorrentes no processo principal. Após ter examinado os fundamentos acima referidos e procedido à sua qualificação jurídica, apreciarei os elementos evocados separadamente pelo órgão de reenvio: condicionalidade, paralelismo, seletividade e desvio.

¾        Objetivos do programa OMT

134. Como expôs de forma circunstanciada o BCE nas suas observações escritas, durante os meses de verão de 2012 conjugaram‑se uma série de circunstâncias excecionais na economia da área do euro: prémios de risco excessivos aplicados a certos Estados‑Membros, grande volatilidade nos mercados da dívida pública, fragmentação do crédito no mercado interbancário e aumento dos custos de financiamento das empresas devido ao exposto. Estes eventos estavam também fortemente influenciados pelo crescente receio dos mercados face a uma hipotética desintegração da moeda única, quer pela saída seletiva de um ou mais dos seus Estados‑Membros, quer pelo seu imediato desaparecimento e o regresso às moedas nacionais. Estes factos não foram substancialmente negados por nenhuma das partes no presente processo judicial.

135. Segundo o BCE, as circunstâncias mencionadas interferiram nos instrumentos convencionais da política monetária. As taxas de juro da dívida pública eram fixadas em função, não da qualidade do crédito emitido, mas do local de estabelecimento do devedor. Uma fragmentação territorial das taxas de juro aplicadas aos títulos de dívida pública emitidos pelos Estados da área do euro, em condições, por vezes, que não correspondiam aos fundamentos macroeconómicos dos Estados afetados, constituía, ainda segundo o BCE, um sério obstáculo à sua política monetária, baseada na utilização de vários meios ou canais de transmissão. Quando o mercado da dívida pública, um dos canais importantes de transmissão da política monetária, sofreu uma alteração da gravidade descrita, o BCE perdeu grande parte da margem de que dispunha para cumprir as atribuições que os Tratados lhe conferem.

136. Tendo em conta as circunstâncias factuais referidas, e sempre segundo o BCE, o programa OMT tinha um duplo objetivo, a saber, um objetivo direto e um objetivo indireto: em primeiro lugar, tinha por finalidade reduzir as taxas de juro exigidas em relação aos títulos de dívida de um Estado‑Membro, para poder seguidamente «normalizar» as discrepâncias e assim recuperar os seus instrumentos de política monetária.

137. Alguns dos recorrentes no processo principal alegam que o objetivo do BCE não era o que se acaba de expor, mas sim «salvar a moeda única» através da transformação do BCE num mutuante de último recurso para os Estados‑Membros, suprindo assim algumas deficiências de conceção da União Monetária. Não creio que existam argumentos concludentes que o fundamentem. O facto de, no Boletim Mensal do BCE de agosto de 2012, a propósito das medidas que conduziriam ao anúncio de 6 de setembro desse ano, ter destacado a relação entre o programa e a «irreversibilidade do euro» não me parece suficiente para pôr em causa a constante e reiterada defesa dos objetivos do programa OMT que o BCE invocou no seu anúncio, e manteve até ao presente processo (69).

138. Por conseguinte, e tendo em conta os elementos factuais e a finalidade esgrimida pelo BCE, considero que existem elementos suficientes para reconhecer que os objetivos associados ao programa OMT podem ser, em princípio, aceites como legítimos. As circunstâncias factuais verificadas no verão de 2012 não parecem discutíveis, assim como a situação de vários Estados‑Membros nos mercados da dívida pública, ao que importa acrescentar o reconhecimento de um grau considerável de deferência que é devido ao BCE quando há que avaliar as apreciações de elementos de facto a que procedeu.

139. Em suma, considero que os objetivos que o programa OMT prossegue podem ser aceites nos termos expostos pelo BCE, partindo do reconhecimento da intenção do mesmo de prosseguir um objetivo de política monetária ao anunciar o referido programa. Uma questão diferente é a de saber se a análise do conteúdo do programa OMT conduz a uma conclusão contrária. A este respeito, o órgão de reenvio destaca diferentes aspetos que, em seu entender, transformam o programa OMT numa medida de política económica, que passo a analisar.

¾        Condicionalidade e paralelismo

140. O BVerfG trata dois aspetos que podem ser analisados conjuntamente. O facto de o programa OMT estar condicionado pela existência de um programa de assistência financeira de que beneficiam um ou mais Estados cujos títulos serão objeto de compra no mercado secundário, e de ao mesmo tempo o BCE vincular os objetivos do programa OMT aos do programa de assistência financeira, confirma, segundo o BVerfG, que a ação do BCE se inclui no âmbito da política económica e não no âmbito da política monetária (70). Foi neste sentido que se manifestaram também todos os recorrentes no processo principal, nem sempre com a mesma fundamentação, mas coincidindo no resultado.

141. O BCE alega que o programa OMT só será ativado na condição de um Estado da área do euro estar sujeito a um programa de assistência financeira do MEE ou do FEEF, de forma a que a condicionalidade imposta nesse programa garanta que a implementação do programa OMT não incita os Estados afetados a atrasar a adoção das reformas estruturais necessárias, risco que se qualifica habitualmente de «risco moral» (71). Segundo o BCE, a compra de dívida pública no mercado secundário não pode ser interpretada como uma medida de apoio incondicional porque, em substância, a intervenção do BCE só se verificará enquanto forem implementadas as reformas estruturais impostas pelo correspondente programa de assistência financeira. Para o BCE, o risco de interferência na política económica é compensado pelo efeito neutralizador sobre o «risco moral» que uma intervenção significativa do BCE nos mercados secundários de obrigações soberanas poderia comportar.

142. O argumento dos recorrentes no processo principal não é totalmente desprovido de fundamento. Ainda que o BCE tenha alegado que a vinculação do programa OMT ao respeito dos programas de assistência financeira seja uma condição que impõe a si próprio, da qual se pode libertar em qualquer altura, os recorrentes e, em particular, a Die Linke salientaram que o BCE não se limita a remeter para a implementação de um programa de assistência ao qual é totalmente alheio. Pelo contrário, o BCE participa ativamente nos referidos programas de assistência financeira. Este «duplo papel» do BCE, de titular de um direito de crédito baseado num título de dívida pública de um Estado e de supervisor e negociador de um programa de assistência financeira aplicado a esse mesmo Estado, com uma condicionalidade macroeconómica incluída, poria seriamente em causa o argumento do BCE.

143. Estou, no essencial, de acordo com esta abordagem. Ainda que, no seu comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012, o BCE subordine a implementação do programa OMT ao cumprimento efetivo dos compromissos acordados no âmbito de um programa de assistência financeira, é certo que o papel desempenhado por essa instituição no âmbito dos programas de assistência financeira vai muito além de uma simples adesão unilateral. As disposições que regem o MEE (72), mas também a experiência dos programas de assistência financeira que foram aplicados e estão ainda em fase de aplicação demonstram perfeitamente que o BCE desempenha um papel significativo, para não dizer determinante, na conceção, aprovação e supervisão periódica dos referidos programas (73). Além disso, como sublinhou a Die Linke nas suas observações escritas e orais, a condicionalidade imposta no âmbito dos programas de assistência financeira concedidos até à data e nos quais o BCE participou ativamente teve um impacto macroeconómico relevante nas economias dos Estados afetados, tal como em toda a área do euro. Esta constatação confirma que o BCE, ao participar nos referidos programas de assistência, interveio ativamente em medidas que, em certas circunstâncias, se pode considerar que vão além do «apoio» à política económica.

144. Com efeito, o Tratado MEE confere ao BCE múltiplas responsabilidades no decurso de um programa de assistência financeira, incluindo a participação na negociação e monitorização (74). Assim, o BCE participa na conceção da condicionalidade imposta ao Estado que requer a assistência, e participa, posteriormente, nas missões de avaliação do respeito da condicionalidade, que são cruciais para a prossecução efetiva e o eventual encerramento do programa. Esta tarefa é partilhada com a Comissão, mesmo que o Tratado MEE atribua a esta segunda instituição funções ainda mais significativas.

145. Para que o programa OMT seja qualificado de medida de política monetária é imprescindível, como se referiu anteriormente, que os objetivos se enquadrem no âmbito dessa política e que os instrumentos utilizados sejam instrumentos próprios da política monetária. A vinculação do programa OMT ao respeito dos programas de assistência financeira pode ser justificada pelo interesse, sem dúvida legítimo, de erradicar qualquer sombra de «risco moral» que possa resultar de uma intervenção significativa do BCE no mercado da dívida pública. Todavia, o facto de esta instituição participar ativamente no desenrolar dos programas de assistência financeira pode transformar o programa OMT, na medida em que está unilateralmente subordinado àqueles, em algo mais do que uma medida de política monetária. É diferente subordinar unilateralmente a compra de dívida pública ao respeito de certas exigências fixadas por um terceiro, e fazê‑lo quando o terceiro não o é verdadeiramente Nestas circunstâncias, a compra condicionada de dívida pode transformar‑se em mais um instrumento da referida condicionalidade. E o simples facto de ser possível entendê‑la desta forma, isto é, como um instrumento ao serviço da condicionalidade macroeconómica, é suscetível de ter impacto suficiente para falsear, ou mesmo desvirtuar os objetivos de política monetária que o programa OMT prossegue.

146. É certo que o BCE pode sempre exercer pressão sobre um Estado sujeito a um programa de assistência financeira ao subordinar, mesmo unilateralmente, o programa OMT à observância da condicionalidade acordada no âmbito do MEE. É contudo necessário diferenciar uma medida destinada a excluir o «risco moral», como pode ser a sujeição unilateral à condicionalidade imposta num programa de assistência financeira, de uma medida que, considerada no seu conjunto, inclui o BCE como instituição negociadora e, sobretudo, co‑supervisora direta da referida condicionalidade (75).

147. Em suma, considero que o BCE, ao conceber e anunciar o programa OMT, na medida em que se inclui num mais amplo âmbito de intervenção dessa instituição nos programas de assistência financeira concedidos no quadro do MEE, não ponderou adequadamente o impacto que a sua intervenção nos referidos programas de assistência financeira teria sobre a natureza monetária do programa OMT.

148. Assim, há que examinar que consequências diretas tem este argumento para a recondução do programa OMT à política monetária da União.

149. Na minha opinião, a conclusão que precede não impede que o BCE participe regularmente nos programas de assistência financeira, tal como os concebe o Tratado MEE. O facto de um programa de assistência financeira ser aprovado em nada prejudica o surgimento das circunstâncias necessárias para que o BCE ative o programa OMT.

150. Dito isto, se as circunstâncias excecionais que justificam a implementação do programa OMT se verificassem, é fundamental, para que este conserve a sua função de medida que se enquadra na política monetária, que o BCE se abstenha em seguida de qualquer participação direta no acompanhamento do programa de assistência financeira aplicado ao Estado em causa. Nada impede que o BCE seja informado ou mesmo ouvido (76), mas em caso algum se pode admitir, na hipótese de um programa como o programa OMT estar em curso, que o BCE continue a participar no acompanhamento do programa de assistência financeira a que está sujeito o Estado‑Membro que, ao mesmo tempo, é objeto de uma intervenção significativa do BCE nos mercados secundários de obrigações soberanas. Em suma, para que o programa OMT conserve o seu caráter de medida de política monetária, que visa exclusivamente recuperar os canais de transmissão dessa política, considero necessário manter essa distância funcional entre os dois programas.

151. Por conseguinte, e sob o ângulo que acaba de ser analisado, considero que o programa OMT deve ser considerado uma medida de política monetária, desde que o BCE se abstenha, se esse programa vier a ser aplicado, de qualquer intervenção direta nos programas de assistência financeira decididos no quadro do MEE/FEEF.

¾        Seletividade

152. A segunda característica sublinhada pelo órgão jurisdicional de reenvio que poria em causa o caráter monetário do programa OMT é a chamada «seletividade», que significa uma medida aplicável a um ou a vários Estados, mas que, de qualquer forma, não se aplica à totalidade dos Estados da área do euro. Esta característica comprometeria a prática habitual do BCE, cujas medidas visam o conjunto dos Estados da área do euro e não segmentos territoriais da economia. Além disso, segundo o BVerfG, a seletividade cria uma distorção das condições de financiamento nos mercados, que poderia prejudicar a dívida pública dos outros Estados‑Membros.

153. Esta objeção não me parece conclusiva, pois não demonstra que a seletividade transforma o programa OMT numa medida de política económica. Por um lado, o BCE alegou de forma convincente que os diferenciais das taxas de juro suscetíveis de bloquear os canais de transmissão da política monetária estavam localizados nos títulos de dívida de um grupo de Estados. Esta circunstância está na base do programa OMT, uma vez que, a não ser assim, seria inútil subordinar a sua implementação a um programa de assistência financeira. Por conseguinte, a seletividade mais não é do que a consequência lógica de um programa destinado a sanar uma situação de bloqueio localizada em vários Estados‑Membros. O facto de esta circunstância alterar o mercado ou causar prejuízo à dívida pública de outros Estados não tem influência na qualificação do programa OMT enquanto medida de política monetária, uma vez que só dirigindo o referido programa para os títulos de dívida dos Estados afetados se poderia garantir a sua eficácia.

154. Consequentemente, considero que o facto de o programa OMT se aplicar seletivamente a um ou mais Estados da área do euro não põe em causa o seu caráter de política monetária na aceção dos artigos 127.°, n.° 1, TFUE e 282.°, n.° 2, TFUE.

¾        Desvio

155. Por último, o BVerfG sublinha que o programa OMT pode eludir as obrigações e as condições previstas nos programas de assistência financeira, pois os requisitos a que está sujeita a compra de dívida no mercado secundário pelo MEE, previstos nos artigos 14.° e 18.° do Tratado MEE, são mais estritos do que os impostos pelo programa OMT. Isso permitiria ao BCE realizar operações de compra da dívida pública em condições de mercado mais favoráveis para o Estado em causa, contornando as condições a que está sujeito o MEE.

156. É difícil admitir este argumento, depois de ter analisado as objeções relativas à condicionalidade e ao paralelismo acima expostas. Com efeito, uma vez que se declarou, como fiz, que a autonomia do programa OMT a respeito dos programas de assistência financeira nos termos expostos funciona como um elemento que garante o caráter de política monetária da medida em questão, seria lógico que, como consequência dessa garantia, fosse o BCE a estabelecer os seus próprios requisitos de compra de títulos de dívida pública.

157. Na minha opinião, o que pode causar problemas não é tanto o facto teórico de os requisitos serem diferentes de uma instituição para a outra, mas os requisitos específicos que o BCE estabeleça. Todavia, na perspetiva exclusivamente do órgão jurisdicional de reenvio, considero que o facto de o BCE não ficar sujeito aos mesmos requisitos a que está sujeito o MEE não transforma, por princípio, o programa OMT numa medida de política económica.

¾        Conclusão intercalar

158. À luz dos argumentos expostos, penso que o programa OMT, tal como descrito no comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012, se inclui no quadro da política monetária que o Tratado atribui ao BCE e não constitui uma medida de política económica, desde que, durante a implementação completa de um eventual programa OMT, o BCE se abstenha de qualquer intervenção direta nos programas de assistência financeira a que está sujeito o referido programa.

ii)    Fiscalização da proporcionalidade do programa OMT (artigo 5.°, n.° 4, TUE)

159. A conclusão que precede, no sentido de que o programa OMT, tal como é conhecido, se inclui na política monetária do BCE, nada diz ainda quanto à proporcionalidade da medida. A este propósito, diversos intervenientes defenderam o programa recorrendo aos elementos da fiscalização da proporcionalidade.

160. O exercício de uma competência que se reconhece não convencional deve reunir pelo menos dois requisitos. Em primeiro lugar, este exercício deve, antes de mais, não violar outras disposições do direito primário, ao que se dedicará a resposta à segunda questão submetida, que tem que ver com a proibição de financiamento monetário dos Estados‑Membros.

161. Em segundo lugar, a fiscalização do respeito do princípio da atribuição do ponto de vista do princípio da proporcionalidade (artigo 5.°, n.° 4, TFUE) é imperativo no caso de uma medida que se apresenta como não convencional e justificada devido a circunstâncias excecionais. Embora a União deva exercer sempre as suas competências decorrentes do princípio da atribuição respeitando o princípio da proporcionalidade (artigo 5.°, n.° 4, TFUE), este respeito impõe‑se especialmente quando se trata de exercer competências executadas devido a circunstâncias excecionais.

162. Dito isto, importa desde já realçar que o presente processo levanta uma dificuldade particular quando se trata de apreciar a proporcionalidade da medida impugnada. Como se explicou supra, o programa OMT é uma medida inacabada, não só porque a sua adoção formal foi relegada para data posterior e indeterminada, mas também porque, para além disso, nunca foi concretamente aplicada. É certo que conhecemos as características básicas do programa, mas é evidente que estas estão longe de apresentar o grau de exaustividade correspondente ao de uma regulamentação num ato jurídico. Ora, unicamente à luz de tal legislação eventual será possível proceder a uma completa fiscalização da proporcionalidade.

163. Nestas condições, a fiscalização efetuada a este respeito pelo Tribunal de Justiça terá de se concentrar principalmente na medida tal como foi anunciada em setembro de 2012, sem prejuízo de por vezes, a propósito das características técnicas enunciadas pelo BCE, ser necessário fazer algumas recomendações para o caso de o programa OMT vir a ser efetivamente aplicado.

164. Feita esta apreciação, começarei a minha análise salientando uma característica que considero ser fundamental e prévia à fiscalização da proporcionalidade: a indispensável fundamentação que deve caracterizar o programa OMT. Analisarei em seguida pormenorizadamente as características técnicas do programa OMT à luz dos três componentes do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

¾       Fundamentação das circunstâncias justificativas do programa OMT, premissa da proporcionalidade

165. Todas as instituições da União têm o dever de fundamentar os seus atos jurídicos (artigo 296.°, segundo parágrafo, TFUE). Este dever baseia‑se em razões de transparência, mas também de fiscalização jurisdicional: só através da explicação dos fundamentos de uma decisão pública será possível uma fiscalização judicial efetiva. O Tribunal de Justiça referiu várias vezes estes dois aspetos do dever de fundamentação (77), que também se aplicam a uma medida como a que está em causa no presente processo prejudicial.

166. Com efeito, para que o BCE aplique um programa como o programa OMT em conformidade com o princípio da proporcionalidade, deve fornecer todos os elementos necessários que justificam uma intervenção da instituição nos mercados secundários de obrigações soberanas. Por outras palavras, é imprescindível que o BCE comece por identificar as circunstâncias excecionais e extraordinárias que o levam a adotar uma medida não convencional como a que está aqui em apreço.

167. Neste sentido, e em primeiro lugar, deve fornecer indicações precisas que confirmem uma alteração significativa das circunstâncias do mercado na origem de uma perturbação externa que afeta os canais de transmissão da política monetária. Do mesmo modo, o BCE deve demonstrar em que medida os seus canais de transmissão foram bloqueados, não bastando uma simples declaração a este propósito. O BCE deve fornecer elementos demonstrativos da existência de tal bloqueio. Por último, esses motivos devem ser comunicados publicamente, garantindo a confidencialidade dos aspetos estritamente indispensáveis cuja revelação possa comprometer a eficácia do programa, mas partindo, regra geral, do pressuposto de que a fundamentação será completamente transparente.

168. Tais critérios deverão ser escrupulosamente respeitados pelo BCE, como premissa indispensável de uma posterior fiscalização jurisdicional.

169. Tendo em conta estas considerações, é claro que o comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012, que visa essencialmente descrever as características do programa OMT, não contém nenhuma referência às circunstâncias precisas que justificam a adoção de um programa desse tipo. Só através das observações introdutórias com que o presidente do BCE, M. Draghi, abriu a sua conferência de imprensa do mesmo dia se conhece o tipo de situação de emergência, suscetível de justificar a adoção do programa (78). Assim, devemos, do ponto de vista da fundamentação da medida tal como foi anunciada, proceder com as informações que foram então comunicadas. Quanto ao resto, e já no âmbito do presente processo, o BCE forneceu abundantes informações complementares sobre a emergência a que pretendia fazer face, como foi exposto nos n.os 115, 116, 117, 134, 135 e 136 das presentes conclusões.

170. Em suma, e para efeitos da fiscalização da proporcionalidade do programa OMT, procederei com as informações fornecidas no presente processo, mas com a importante advertência de que, na hipótese de uma implementação do programa, tanto o ato jurídico que lhe confira a forma como a sua aplicação deverão cumprir as exigências de fundamentação, tal como foram expostas nos n.os 166 e 167 destas conclusões.

¾       Critério da adequação

171. Passando agora aos componentes do princípio da proporcionalidade, importa, antes de mais, apreciar se uma medida não convencional como o programa OMT é um meio objetivamente adequado para realizar os objetivos de política monetária que prossegue. Por conseguinte, trata‑se de examinar se a medida é coerente atendendo à relação causal existente entre os meios e os objetivos (79).

172. Nenhum dos intervenientes no presente processo negou que o anúncio do programa OMT teve por efeito uma considerável redução das taxas de juro exigidas aos títulos de dívida de alguns Estados‑Membros. Essa consequência seria suficiente para confirmar a idoneidade do programa, uma vez que, se o simples anúncio da sua existência produziu um efeito quase imediato nos mercados, seria de esperar que a aplicação do programa OMT a um ou mais Estados‑Membros teria, no mínimo, um impacto semelhante. É evidente que esta afirmação fica sujeita a todo o tipo de condicionantes que de momento é impossível prever, mas, como ponto de partida, o efeito do anúncio do programa OMT é um indício da eficácia da medida.

173. Todavia, é manifesto que os efeitos do anúncio do programa OMT não podem servir como único critério de referência na análise da adequação da medida, visto que são apenas simples indícios, embora de certo relevo. Assim, há que analisar com mais pormenor, mas reconhecendo um amplo poder de apreciação ao BCE, se os componentes do programa OMT são objetivamente adequados para alcançar os objetivos pretendidos.

174. Se o objetivo direto do programa OMT é reduzir as taxas de juro pagas em relação aos títulos de dívida pública de certos Estados‑Membros, o meio empregue reside na compra de dívida pública desses Estados da área do euro nas condições enunciadas no comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012. Trata‑se de uma compra sujeita à existência prévia de um programa de assistência financeira, quer seja definitivo ou preventivo, através do qual o BCE se limita a comprar títulos nos prazos mais curtos da curva de rendimentos, em particular os de maturidade entre um e três anos.

175. No plano objetivo, considero que um programa como o OMT, centrado na compra de títulos de dívida pública, é adequado para obter uma redução das taxas de juro desses títulos dos Estados em causa. Nenhum interveniente no presente processo negou esta conclusão. Esta redução traduz‑se na recuperação de uma certa normalidade financeira por parte dos Estados afetados, com a consequência de que o BCE poderá realizar a sua política monetária em condições de maior certeza e estabilidade. Esta constatação não significa que essa normalidade financeira não contenha riscos, como se verá a seguir. Todavia, o que importa analisar na apreciação do critério de adequação é a coerência lógica entre o meio e o objetivo, o que me parece ter sido alcançado no presente caso.

176. Consequentemente, considero que o programa OMT, tal como foi anunciado em 6 de setembro de 2012, é uma medida adequada para alcançar os objetivos prosseguidos pelo BCE.

¾       Critério da necessidade

177. Embora a medida que é aqui apreciada possa ser adequada, também é verdade que o meio empregue pode ser excessivo se comparado com as alternativas de que dispôs a instituição autora do ato (80). Deste ponto de vista, importa analisar se o BCE adotou uma medida estritamente necessária para alcançar os objetivos propostos pelo programa OMT.

178. Em primeiro lugar, o facto de o programa OMT ficar unicamente circunscrito aos casos em que um Estado‑Membro tenha recorrido a um programa de assistência financeira milita a favor da tese segundo a qual se trata de uma medida limitada e restringida a casos específicos. O programa OMT não é um meio para intervir de forma geral e em quaisquer circunstâncias nos mercados secundários de obrigações soberanas. Mesmo que os canais de transmissão da política monetária tenham sido bloqueados, só quando um Estado‑Membro for objeto de um programa de ajustamento macroeconómico ou de um programa cautelar do FEEF/MEE será possível ativar o programa OMT. Esta circunstância limita por si só consideravelmente o número de situações em que o BCE intervirá nos mercados secundários de obrigações soberanas, o que é coerente com o facto de se tratar de uma medida não convencional de política monetária, excecional em si mesma e limitada a casos específicos. O facto de o BCE ter subordinado a ativação do programa OMT à adoção prévia de um programa de assistência financeira confirma o caráter excecional da medida, além de, em meu entender corretamente, a sujeitar a uma hipótese também excecional.

179. Do mesmo modo, resulta dos autos que a implementação do programa OMT terá, pela sua própria natureza, um caráter limitado no tempo. Como expôs a República Francesa de forma acertada, um programa como o OMT só pode ser conjuntural (81). Tanto o comunicado de imprensa como as observações do BCE revelam que o programa se aplica, eventualmente, durante o período necessário para que as taxas de juro do Estado ou Estados em causa recuperem os níveis considerados normais no mercado (82). A missão do programa OMT não consiste simplesmente em reduzir os custos de financiamento de um Estado, mas em recolocar esses custos em níveis correspondentes à realidade macroeconómica desse Estado. Uma vez alcançado esse objetivo, e após o desbloqueio dos canais de transmissão, a implementação do programa chega ao fim, em coerência com o caráter estritamente necessário da medida.

180.  Além disso, numa situação tão delicada como a que está aqui em apreço, qualquer variação das circunstâncias, e, portanto, do seu caráter excecional, se torna relevante para o critério da necessidade. Neste sentido, considero que o comportamento do BCE em setembro de 2012, limitando‑se a anunciar as características técnicas do programa, corresponde a uma apreciação da evolução da situação nos mercados financeiros consequente com as exigências do critério da necessidade.

181. Para terminar, há que fazer referência à possibilidade enunciada pelo BVerfG de que o programa OMT, se interpretado de modo conforme ao direito da União, poder ser sujeito a características técnicas diferentes das enunciadas no comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012, que permitiriam dissipar as suas dúvidas quanto à validade da medida. Há que apreciar esta possibilidade neste momento, ao abordar o critério da necessidade, uma vez que se existissem medidas alternativas menos gravosas, como as que sugere o órgão jurisdicional de reenvio no n.° 100 da sua decisão de reenvio, confirmar‑se‑ia que o programa OMT era incompatível com o referido critério.

182. Considero, contudo, que as alternativas propostas pelo órgão jurisdicional de reenvio comportam o risco de pôr gravemente em causa a eficácia do programa OMT. Como expôs o BCE e a Comissão, há que admitir que uma limitação quantitativa ex ante das operações de compra de títulos de dívida pública desvirtua a eficácia que a intervenção visa no mercado secundário, com o risco de desencadear operações especulativas.

183. Da mesma maneira, parece admissível que o reconhecimento da qualidade de credor privilegiado ao BCE comprometeria a posição dos outros credores e, indiretamente, o impacto final no valor dos títulos no mercado secundário. Como salientou a Comissão, o facto de os investidores serem atraídos para os títulos de dívida do Estado em causa, em vez do contrário, contribuiria também para aumentar a procura de títulos, com a consequente redução da taxa de juro. Reconhecer ao BCE a qualidade de credor não privilegiado contribui para garantir uma normalização mais eficaz dos preços do mercado dos títulos da dívida, o que, consequentemente, contribui para garantir a sua solvabilidade a médio e longo prazo, com a concomitante redução dos riscos que isso implica.

184. Assim, considero que as precauções instituídas pelo BCE são suficientes para que se possa concluir que o programa OMT, tal como descrito no comunicado de imprensa acima referido, respeita o critério da necessidade, independentemente de que tal seja confirmado no ato jurídico que eventualmente aprove o programa.

¾       Critério da proporcionalidade em sentido estrito

185. Por último, importa analisar se a medida em causa pondera de forma equilibrada todos os elementos que a compõem, de modo a que não seja desproporcionada.

186. Na análise do critério da proporcionalidade em sentido estrito, esta terceira fase exige uma ponderação que, nas circunstâncias do presente processo, implica analisar se as «vantagens» da medida em causa são superiores aos «custos» (83). Trata‑se manifestamente de um exame que exige uma apreciação do conjunto das vantagens e dos custos, que podem ser representados do seguinte modo: por um lado, o programa OMT permite ao BCE intervir num contexto excecional para recuperar os seus instrumentos de política monetária e, assim, assegurar a eficácia do seu mandato; por outro, trata‑se de uma medida que expõe o BCE a um risco financeiro, ao qual acresce o risco moral provocado pela alteração fictícia do valor dos títulos de dívida do Estado em causa.

187. Permita‑se‑me recordar novamente que a fiscalização da proporcionalidade que há que efetuar neste processo deve reconhecer um amplo poder de apreciação ao BCE. Tal pressupõe, particularmente quando se chega à terceira fase da fiscalização da proporcionalidade, que a ponderação exigida ao BCE numa hipótese como a colocada pelo programa OMT admite uma ampla margem de apreciação, desde que não se verifique qualquer desequilíbrio cuja desproporção seja evidente.

188. Do mesmo modo, há que sublinhar que a proporcionalidade em sentido estrito de um programa como o OMT só poderá ser apreciado de forma definitiva perante uma eventual aplicação do mesmo e, em particular, perante as dimensões que possa atingir. As considerações expostas em seguida baseiam‑se nos dados do programa que foram fornecidos pelo comunicado de imprensa.

189. Os recorrentes no processo principal, bem como o BVerfG, salientaram que a aplicação do programa OMT expõe o BCE e, em última instância, os contribuintes dos Estados‑Membros, a um risco excessivo, que poderia, eventualmente, conduzir mesmo à insolvência da instituição. Trata‑se manifestamente de um custo elevado e imperioso, capaz de contrariar as vantagens do programa OMT.

190. Como sublinhou, de forma pormenorizada, o representante de P. Gauweiler, a aplicação do programa OMT implicaria que o BCE inscrevesse no seu balanço valores de solvabilidade duvidosa e em quantidades muito elevadas, que, em caso de incumprimento, conduziriam à insolvência do BCE. Assim, o facto de o programa OMT não conter qualquer limite à compra de títulos transforma esta hipótese num cenário real, cuja concretização confirmaria o caráter desproporcionado da medida.

191. A este respeito, o BCE salientou, nas suas observações tanto escritas como orais, que as suas intervenções nos mercados secundários de obrigações soberanas estão sujeitas a limites quantitativos, mas que não são previamente fixados nem juridicamente predeterminados. Segundo o BCE, o programa OMT não pode ser anunciado como um canal de compras limitadas, pois de contrário contribuiria para provocar um ataque especulativo que desvirtuaria a finalidade do programa. Do mesmo modo, se o BCE anunciasse ex ante o volume de compras exato, a medida também perderia a sua potencial eficácia. Assim, a solução defendida pelo BCE consiste em anunciar que não estabelecerá limites quantitativos ex ante para os volumes de compras, sem prejuízo dos seus próprios limites quantitativos a nível interno, cujo montante não se pode revelar por razões estratégicas, que, em substância, visam garantir a eficácia do programa OMT.

192. Do ponto de vista da proporcionalidade em sentido estrito, considero que a inexistência de limites quantitativos ex ante não constitui um elemento suficiente, per se, para considerar que se trata de uma medida desproporcionada.

193. Com efeito, qualquer operação num mercado financeiro comporta um risco, que é assumido por todos os atores que nele participam. Os rendimentos oferecidos pelos mercados financeiros aos investidores são proporcionais aos riscos assumidos, que estão geralmente relacionados com a magnitude provável do êxito ou fracasso do investimento. O mercado da dívida pública, como qualquer outro mercado financeiro, está sujeito à mesma lógica. Todos os investidores que nele participam fazem‑no sabendo que o êxito do seu investimento pode depender de fatores aleatórios e imprevisíveis.

194. Como se sabe, os bancos centrais intervêm no mercado da dívida pública, pois as operações de compra ou os pactos de recompra sobre títulos de dívida pública fazem parte dos instrumentos de política monetária, enquanto formas de controlo da base monetária. Ao intervir nesse mercado, os bancos centrais assumem sempre um certo risco, risco que foi também assumido pelos Estados‑Membros quando decidiram criar o BCE.

195. Tendo em conta esta premissa, as objeções relativas ao risco excessivo assumido pelo BCE teriam fundamento se a instituição incorresse num volume de compras que o conduzisse inevitavelmente a um cenário de insolvência. No entanto, e pelas razões que passo a expor, não parece que o programa OMT leve a tal cenário.

196. Tal como o programa OMT está concebido, é certo que o BCE fica exposto a um risco, mas não necessariamente a um risco de insolvência. Não há qualquer dúvida de que exista o risco, uma vez que se procede à compra de títulos de um Estado em dificuldades financeiras, cuja capacidade para cumprir as suas obrigações em matéria de endividamento está comprometida. É evidente que o BCE assume um risco ao comprar títulos de um Estado nessa situação, mas considero que não são riscos qualitativamente distintos de outros que poderia assumir noutros momentos da sua atividade ordinária.

197. É amplamente admitido que o facto de um Estado ter dificuldades de liquidez não implica necessariamente que esteja condenado ao não pagamento da sua dívida. Um Estado pode sofrer problemas temporários de liquidez e, ao mesmo tempo, ser um Estado solvente. As sucessivas crises que se viveram nos anos 80 e 90 confirmam esta realidade (84). Assim, o facto de o programa OMT se concentrar em títulos emitidos por um ou vários Estados sujeitos a um programa de assistência financeira não pressupõe automaticamente que esse Estado ou esses Estados vão incorrer no não pagamento total ou parcial da sua dívida. O facto de esse Estado ou esses Estados estarem sujeitos a uma condicionalidade destinada a melhorar os seus fundamentos macroeconómicos, somado à circunstância de serem Estados integrados num mercado interno, no âmbito de uma união baseada na cooperação e lealdade entre os seus membros, pode antes confirmar que um programa de assistência financeira presta ao Estado em causa um auxílio suficiente para fazer frente aos seus compromissos no futuro.

198. Além disso, o objetivo indireto do programa OMT, o desbloqueio dos mecanismos de transmissão da política monetária, é obtido através de uma redução das taxas de juro dos títulos de dívida até que estes atinjam níveis considerados coerentes com o mercado e a situação macroeconómica do Estado em causa. O BCE declarou por várias vezes que o objetivo do programa OMT não é reduzir as taxas dos títulos de dívida a níveis equivalentes aos de outros Estados‑Membros, mas a níveis considerados coerentes com o mercado e a situação macroeconómica, que, por sua vez, permitam à instituição utilizar eficazmente os seus instrumentos de política monetária. Isso significa que precisamente devido à aplicação do programa OMT, é de admitir que o Estado em causa poderá emitir dívida em condições sustentáveis para as suas finanças e, portanto, que aumentem as suas hipóteses de fazer face às suas obrigações. Por outras palavras, a intervenção do BCE deveria, objetivamente, contribuir para que o Estado possa assumir os seus compromissos financeiros no futuro, reduzindo assim o risco que corre a instituição ao aplicar o programa OMT.

199. Por último, a existência de limites quantitativos objetivos ao volume de compras confirma a dimensão limitada do risco. Como o próprio BCE reconheceu, esses limites existem, não são tornados públicos por razões estratégicas, mas servem para circunscrever a exposição da instituição. Do mesmo modo, o BCE admitiu que, caso detete um aumento excessivo do volume de títulos de dívida emitido por um Estado‑Membro que beneficia do programa OMT, interrompe a implementação do mesmo. Dito de outra forma, se um Estado decidir aproveitar a oportunidade que lhe proporcionam as compras de dívida pelo BCE no mercado secundário para se endividar de forma excessiva, mesmo que em condições mais vantajosas do que as que existiam antes da intervenção do BCE, este não assumirá esse risco. Resulta de todas estas considerações que perante um cenário de insolvência do próprio BCE, a aplicação do programa OMT seria suspensa. Por outras palavras, o BCE não assumiria riscos que o expusessem a um cenário de insolvência.

200. Trata‑se, evidentemente, de uma apreciação correspondente à eventualidade de uma implementação do programa OMT, mas considero indispensável, caso haja que confirmar a estrita proporcionalidade desse programa, que a limitação dos riscos exposta pelo BCE seja efetivamente respeitada na aplicação do referido programa.

201. Dito isto, e atendendo aos argumentos que acabam de ser expostos, considero que, ao anunciar o programa OMT, o BCE ponderou adequadamente as vantagens e os custos.

¾       Conclusão intercalar

202. Em resumo, e à luz de todas as considerações acima expostas, o programa OMT adotado pelo BCE, como decorre das características técnicas indicadas no comunicado de imprensa, não viola o princípio da proporcionalidade. Nestas condições, o programa OMT pode ser considerado lícito desde que, se vier a ser aplicado, as exigências de fundamentação e de proporcionalidade sejam estritamente respeitadas.

c)      Resposta à primeira questão prejudicial

203. Em suma, e em resposta à primeira questão prejudicial do BVerfG, considero o programa OMT compatível com os artigos 119.° TFUE e 127.°, n.os 1 e 2, TFUE, desde que, no caso de esse acordo ser implementado, o BCE

¾        se abstenha de qualquer intervenção direta nos programas de assistência financeira a que está sujeito o programa OMT,

¾        respeite estritamente o dever de fundamentação, bem como os requisitos decorrentes do princípio da proporcionalidade.

B ―    Segunda questão prejudicial: compatibilidade do programa OMT com o artigo 123.°, n.° 1, TFUE (proibição do financiamento monetário dos Estados da área do euro)

204. Com a segunda das suas questões, o BVerfG pergunta se, ao autorizar a compra pelo BCE de dívida dos Estados‑Membros da área do euro no mercado secundário, o programa OMT viola a proibição prevista no artigo 123.°, n.° 1, TFUE, que proíbe a compra direta aos Estados‑Membros de instrumentos de dívida, pelo BCE ou pelos bancos centrais nacionais.

205. Segundo o BVerfG, ainda que o programa OMT satisfaça formalmente a condição expressamente enunciada no referido artigo 123.°, n.° 1, TFUE, que tem que ver unicamente com as compras de dívida no mercado primário, considera, não obstante, que com o referido programa se poderia contornar essa proibição, uma vez que as intervenções do BCE no mercado secundário, à semelhança das compras no mercado primário, se traduziriam numa medida de auxílio financeiro através da política monetária. Em apoio desta abordagem, o BVerfG refere‑se a diversas características técnicas do programa OMT: a renúncia a direitos, o risco de incumprimento, a conservação dos títulos até ao vencimento, a data possível de compra e o incentivo à compra no mercado primário. Todas são indícios claros do efeito de desvio da proibição que figura no artigo 123.°, n.° 1, TFUE.

1.      Posição dos intervenientes

206. Os recorrentes nos processos principais consideram, com argumentos coincidentes em larga medida, que o programa OMT viola o artigo 123.°, n.° 1, TFUE. Neste sentido, associam‑se às dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio quanto aos aspetos concretos do programa que confirmariam que este contornaria a proibição prevista no artigo 123.°, n.° 1, TFUE.

207. R. Huber sublinha em particular que através das compras de dívida pública no mercado secundário se contornaria a proibição do artigo 123.°, n.° 1, TFUE, concretamente a prevista na parte final dessa disposição. Por seu turno, B. Bandulet aponta para o risco excessivo que o BCE assume, ao realizar compras como as previstas no programa OMT, ao mesmo tempo que também critica a coletivização dos prejuízos que pressuponham tais compras, com um resultado contrário aos Tratados e ao princípio da não co‑responsabilidade financeira.

208. J. von Stein defende igualmente a ideia de que existe um efeito de contorno da proibição, sublinhando também o impacto de uma medida como o programa OMT no mercado da União. Em sua opinião, uma compra massiva de dívida falsearia a concorrência no mercado interno, e violaria as disposições do artigo 51.° TFUE e do Protocolo (n.° 27) relativo ao mercado interno e à concorrência.

209. Todos os Estados que intervieram no presente processo, assim como a Comissão e o BCE, defendem a compatibilidade do programa OMT com o artigo 123.°, n.° 1, TFUE, considerando que as compras de dívida pública no mercado secundário estão expressamente previstas nos Tratados. Sublinham que o artigo 123.°, n.° 1, TFUE proíbe apenas as compras diretas de dívida pública de um Estado‑Membro, ao passo que o artigo 18.°, n.° 1, do Protocolo (n.° 4) relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE habilita expressamente este último e os bancos centrais dos Estados‑Membros para realizar esse tipo de operações.

210. Ao mesmo tempo, no entanto, a República Francesa, a República Italiana, o Reino dos Países Baixos, a República da Polónia e a República Portuguesa, bem como a Comissão e o BCE, reconhecem que a última passagem do artigo 123.°, n.° 1, TFUE contém igualmente uma proibição de desvio, isto é, uma proibição de proceder a operações com os mesmos efeitos que uma compra direta de dívida pública. Esta interpretação é confirmada pelo Regulamento n.° 3603/93, em particular pelo seu sétimo considerando.

211. A este propósito, diversos Estados, como a República da Polónia, a República Francesa ou o Reino dos Países Baixos, bem como a Comissão, consideram que o BCE não cometia um desvio à proibição enunciada no artigo 123.°, n.° 1, TFUE, se se garantisse que as obrigações emitidas pelo Estado em questão atingiam um preço correspondente às condições de mercado. Nestas circunstâncias, e na condição de a medida prosseguir um objetivo de política monetária, não existe violação do artigo 123.°, n.° 1, TFUE.

212. Neste sentido, os Estados intervenientes, a Comissão e o BCE negam que as características enunciadas pressuponham que o programa OMT seja incompatível com o artigo 123.°, n.° 1, TFUE. Os termos em que são previstas as referidas características técnicas no comunicado de imprensa, bem como os projetos de decisão a respeito do programa OMT redigidos pelo BCE mas ainda pendentes de aprovação confirmam a particular preocupação do BCE em evitar uma alteração do mercado contrária ao artigo 123.°, n.° 1, TFUE. Concretamente, salientam, a título de prova das precauções adotadas pelo BCE, a sujeição da compra de dívida às exigências da política monetária, a falta de anúncio prévio indicando a data ou o volume de compras, a possibilidade de suspender ou limitar as compras em função do volume de emissão do Estado em causa, a recusa do BCE em aceitar reestruturações da dívida, bem como a existência de um «período de embargo» entre a data de emissão e a data da compra pelo BCE no mercado secundário.

213. Por último, a República Federal da Alemanha pede ao Tribunal de Justiça uma interpretação do artigo 123.°, n.° 1, TFUE, que seja conciliável com a identidade constitucional dos Estados‑Membros. Após ter sublinhado o contexto em que o presente pedido de decisão prejudicial foi apresentado, a República Federal da Alemanha considera que a interpretação desta disposição deve igualmente satisfazer os requisitos constitucionais dos Estados‑Membros.

2.      Análise

214. À semelhança do que fiz na minha resposta à questão anterior, começarei por situar a proibição que figura no artigo 123.°, n.° 1, TFUE no contexto mais amplo da posição que ocupa na conceção da União Económica e Monetária. Abordarei seguidamente o problema da compatibilidade do programa OMT com essa disposição, mas tendo em conta individualmente cada uma das características técnicas assinaladas pelo órgão de reenvio.

a)      Proibição do financiamento monetário dos Estados‑Membros (artigo 123.°, n.° 1, TFUE) e compra de dívida pública pelo BCE

215. A União Económica e Monetária que constitui atualmente a União é regulada por uma série de princípios que dizem respeito tanto aos seus objetivos como aos seus limites, que, no seu conjunto, aparecem como o «quadro constitucional» da mesma. Em razão da sua importância, os Tratados consagram expressamente esses princípios, considerando‑os elementos rígidos e indisponíveis pelas instituições e os Estados‑Membros, que só podem ser alterados através de um processo ordinário de revisão dos Tratados. Embora, de entre esses objetivos, haja que realçar o mandato para a manutenção da estabilidade dos preços e a realização da estabilidade financeira (artigos 127.°, n.° 1, TFUE e 282.° TFUE), os limites mais emblemáticos são a proibição de resgate dos Estados‑Membros (artigo 125.° TFUE) e a proibição do financiamento monetário dos Estados‑Membros (artigo 123.° TFUE).

216. A segunda destas proibições é a que nos ocupa aqui, mas é evidente que só é possível compreendê‑la de forma precisa tendo em conta a sua origem, o sistema em que se inscreve e os objetivos que lhe estão subjacentes. É sobre o que me debruçarei brevemente a seguir, embora apoiando‑me nas apreciações que o Tribunal de Justiça, bem como a sua advogada‑geral (EU:C:2012:675), já tiveram ocasião de formular sobre o artigo 123.° TFUE no processo Pringle (EU:C:2012:756).

217. Os trabalhos preparatórios que conduziram ao Tratado de Maastricht, texto no qual surge pela primeira vez o atual artigo 123.° TFUE (anteriormente artigo 104.° do Tratado da União Europeia), revelam que uma das principais preocupações dos negociadores responsáveis pela conceção institucional da União Económica e Monetária era a manutenção de uma sã disciplina orçamental que não comprometesse o funcionamento eficaz da moeda única (85). A eventualidade de Estados‑Membros com contas públicas em situação crítica é um cenário dificilmente compatível tanto com um crescimento estável situado na área do euro como com os limitados instrumentos de política monetária de que o BCE dispõe. Uma vez que os Estados transferiam as suas competências de política monetária para uma instituição comum, mas conservavam ao mesmo tempo as suas competências em matéria económica, era indispensável assegurar os meios necessários para garantir uma gestão rigorosa das contas dos Estados da área do euro (86). Esta preocupação traduziu‑se nas disposições relativas à disciplina orçamental previstas no artigo 126.° TFUE, nos termos das quais os Estados‑Membros submetem‑se a certos objetivos em matéria de défice orçamental, bem como nas proibições contempladas nos artigos 125.° TFUE e 123.° TFUE, que proíbem, respetivamente, o financiamento dos Estados‑Membros por outros Estados ou pelo BCE ou bancos centrais dos Estados‑Membros.

218. Por conseguinte, o artigo 123.° TFUE é o reflexo de uma inquietação muito presente nos projetistas da arquitetura institucional da União Económica e Monetária, razão pela qual foi decidido instituir no direito primário uma proibição categórica de qualquer fórmula de financiamento dos Estados suscetível de comprometer os objetivos de disciplina fiscal consagrados nos Tratados. Uma dessas fórmulas proibidas é o chamado «financiamento monetário», através do qual um banco central, isto é, uma instituição com capacidade para emitir dinheiro, compra títulos de dívida de um Estado. É evidente que esta forma de financiamento pode comprometer a capacidade desse Estado de fazer face aos seus compromissos financeiros a médio e longo prazo, sendo também suscetível de constituir uma fonte significativa de inflação dos preços. Na medida em que uma política económica e monetária comum pressupõe a existência de Estados com contas públicas saudáveis e uma política cuja prioridade é a manutenção da estabilidade dos preços, é evidente que, em tais circunstâncias, o mecanismo do financiamento monetário compromete gravemente esses objetivos.

219. O que acima foi dito leva‑me a considerar que a proibição do financiamento monetário contribui, a nível da União, e como salientou o Tribunal de Justiça no seu acórdão Pringle, referindo‑se ao artigo 125.° TFUE, para «a realização de um objetivo superior, ou seja, a manutenção da estabilidade financeira da União Monetária» (87). Resumindo, esta proibição adquire o nível de regra fundamental do «quadro constitucional» que regula a União Económica e Monetária, cujas exceções devem ser objeto de uma interpretação estrita.

220. Do mesmo modo, uma leitura sistemática do artigo 123.° TFUE confirma não apenas a importância do princípio da proibição, mas também o seu caráter restritivo. Ao contrário do artigo 125.° TFUE, que proíbe os Estados‑Membros de «assumir» ou «responder» pelos compromissos de outro Estados‑Membro, o artigo 123.° TFUE é redigido em termos mais estritos. Este contraste entre as duas disposições foi posto em evidência pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão Pringle (88), que confirmou a compatibilidade com o artigo 125.° TFUE de medidas conducentes à concessão de créditos entre Estados‑Membros, o que o artigo 123.° TFUE, pelo contrário, proíbe expressamente, ao excluir qualquer «concessão de créditos sob a forma de descobertos ou sob qualquer outra forma».

221. Não obstante, a interpretação sistemática do artigo 123.° TFUE fornece também um matiz importante quanto ao alcance da proibição. Como se expõe a seguir, está em causa o tratamento específico previsto para as operações de compra de dívida pública dos Estados‑Membros pelo BCE e pelos bancos centrais desses Estados.

222. A emissão de dívida pública é uma das principais fontes de financiamento de que um Estado dispõe. A pessoa que adquire os títulos de dívida pública emitido por um Estado está, por definição, a financiá‑lo, direta ou indiretamente, e fá‑lo em contrapartida de uma prestação que transforma o negócio jurídico numa espécie de empréstimo. O proprietário do título de dívida pública é detentor de um direito de crédito contra o Estado‑Membro emitente, o que faz dele um credor do referido Estado. O Estado emite o título a uma taxa de juro fixada inicialmente no momento da emissão, e determinada em função da oferta e da procura. Por conseguinte, a operação que realizam as duas partes, o Estado emitente e o comprador do título de dívida pública, apresenta a mesma estrutura da concessão de um crédito. Todos estes elementos explicam suficientemente as razões pelas quais o artigo 123.°, n.° 1, TFUE contém uma passagem final que proíbe também «a compra direta de títulos de dívida a[os Estados‑Membros], pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais».

223. Na origem, essa passagem é um aditamento introduzido na fase final de elaboração do Tratado de Maastricht (89), e a sua inclusão só se compreende se se tiver em conta o artigo 18.°1 dos Estatutos do SEBC e do BCE. Como já se referiu supra, esta disposição do Estatuto autoriza o BCE e os bancos centrais a intervir nos mercados financeiros, quer comprando e vendendo firme ou ao abrigo de acordos de recompra, quer emprestando ou tomando de empréstimo ativos e instrumentos negociáveis. As operações deste tipo são fundamentais e servem essencialmente o objetivo destinado a que o SEBC controle a base monetária da área do euro, e incluem as relativas à compra de títulos de dívida pública no mercado secundário (90).

224. Por conseguinte, e como confirmou o BCE na sua resposta às questões formuladas na audiência, a passagem final do artigo 123.°, n.° 1, TFUE deve ser interpretada em conjugação com o artigo 18.°, n.° 1 dos Estatutos do SEBC e do BCE, pois é a única forma de fornecerem cobertura legal a uma medida de política monetária tradicional, que consiste na compra de títulos de dívida pública no mercado secundário. Se esta passagem final do artigo 123.°, n.° 1, TFUE não existisse, o artigo 18.°, n.° 1 dos Estatutos do SEBC e do BCE deveria ser interpretado no sentido de que exclui as operações relativas a títulos de dívida pública no mercado secundário, o que privaria o Eurosistema de um instrumento crucial para a condução ordinária da política monetária.

225. Dito isto, e tendo em conta a importância do artigo 123.° TFUE, parece claro que não basta que o BCE se limite a comprar títulos de dívida pública no mercado secundário para evitar que se viole a proibição que figura nessa disposição. Pelo contrário, considero que a interpretação do artigo 123.° TFUE exige uma abordagem que preste uma atenção particular ao conteúdo material da medida. Trata‑se de uma abordagem frequentemente utilizada pelo Tribunal de Justiça na interpretação de disposições dos Tratados, e que se deve também aplicar ao artigo 123.° TFUE, como, aliás, reconheceram todos os Estados‑Membros intervenientes, a Comissão e o próprio BCE.

226. Esta preocupação é também refletida no direito derivado, concretamente no Regulamento n.° 3603/93, adotado antes da criação do BCE, que contém uma menção expressa à proibição de desvio ao mandato da referida disposição. No seu sétimo considerando, o Regulamento n.° 3603/93 sublinha que os Estados‑Membros devem adotar medidas adequadas para que, nomeadamente, «as aquisições efetuadas no mercado secundário não [sirvam] para iludir o objetivo visado nesse artigo» (91).

227. Em conclusão, considero que o artigo 123.°, n.° 1, TFUE não apenas proíbe as compras diretas no mercado primário, mas impede igualmente que o BCE e os bancos centrais nacionais realizem operações no mercado secundário que tenham por efeito contornar a referida proibição. Dito de outra forma, o Tratado não proíbe as operações no mercado secundário, mas exige que, quando o BCE nele intervier, o faça com garantias suficientes que permitam conciliar a sua intervenção com a proibição do financiamento monetário.

228. Assim, há que apreciar se o programa OMT, através do qual o BCE intervém nos mercados secundários de obrigações soberanas, apesar de respeitar a letra da última passagem do artigo 123.°, n.° 1, TFUE, pode consubstanciar uma medida destinada a contornar a proibição enunciada nessa disposição.

b)      Programa OMT e sua compatibilidade com a proibição prevista no artigo 123.°, n.° 1, TFUE

229. A título preliminar, antes de abordar a apreciação do programa OMT do ponto de vista específico da proibição do financiamento monetário dos Estados prevista no artigo 123.°, n.° 1, TFUE, importa sublinhar que essa resposta parte da premissa de que a eventual implementação do programa OMT realizar‑se‑á no estrito respeito do princípio da proporcionalidade, que referi na resposta proposta à primeira questão. É nesta base que devem ser interpretadas diversas teses que passo a enunciar.

230. Como já indiquei, o BVerfG, como os recorrentes nos processos principais, considera que o programa OMT viola o artigo 123.°, n.° 1, TFUE, na medida em que contornaria a proibição enunciada nessa disposição. Para o efeito, o órgão de reenvio apresenta uma série de características técnicas que, em seu entender, confirmam esta conclusão. Por seu turno, os Estados intervenientes, a Comissão e o BCE refutaram esta apreciação do BVerfG, precisamente com base nessas mesmas características técnicas.

231. Como se verá, infra, as dúvidas do BVerfG baseiam‑se numa determinada interpretação do comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012. O BCE contestou esta interpretação e forneceu elementos de prova em apoio dos seus argumentos. Em seu entender, as características técnicas teriam mesmo a intenção de agir como um conjunto de garantias para evitar o desvio ao artigo 123.° TFUE.

232. Atendendo às considerações que precedem, passo a analisar individualmente as características assinaladas pelo órgão de reenvio.

i)      Renúncia a direitos e estatuto pari passu

233. A renúncia total ou parcial a exigir o cumprimento dos direitos de crédito inerente aos títulos de dívida pública do Estado afetado pelo programa OMT é a primeira característica que, segundo o BVerfG, poderia fazer do referido programa uma medida contrária ao artigo 123.°, n.° 1, TFUE. Na opinião do órgão de reenvio, bem como segundo vários recorrentes nos processos principais, o facto de o BCE e os bancos centrais não beneficiarem do grau de credor privilegiado (pari passu) e poderem ser obrigados a aceitar uma renúncia total ou parcial no âmbito de um acordo de reestruturação (92) transforma a medida numa via indireta de financiamento do Estado devedor.

234. Este argumento não me parece nada convincente. Em primeiro lugar, não se pode esquecer que o risco de renúncia total ou parcial só existe na eventualidade futura e hipotética de reestruturação da dívida do Estado devedor e não é, por assim dizer, um elemento consubstancial ao programa OMT. Tal como já tive ocasião de dizer, nos n.os 193 e 194 das presentes conclusões, a assunção de riscos é inerente à atividade de um banco central, de tal forma que a ocorrência de um evento como o que o órgão de reenvio refere não pode transformar‑se, a partir da sua mera possibilidade, numa consequência necessária da implementação do programa.

235. Por outro lado, o BCE declarou nas suas observações escritas que votará sempre contra uma renúncia total ou parcial no âmbito de uma reestruturação sujeita às «CAC». Dito de outra forma, o BCE não vai contribuir ativamente para que se proceda à reestruturação, agirá sim no sentido de obter o reembolso integral do direito de crédito inerente ao título. O facto de o BCE agir com o objetivo de garantir a integralidade do seu direito confirma que o seu comportamento não visa conceder um benefício financeiro ao Estado devedor, mas garantir o respeito da obrigação por ele contraída.

236. Por último, parece‑me que há também que sublinhar que a compra pelo BCE de dívida de um Estado‑Membro na qualidade de credor não privilegiado implica inevitavelmente uma certa perturbação do mercado, que me parece no entanto suportável do ponto de vista da proibição que figura no artigo 123.°, n.° 1, TFUE. Em contrapartida, como se expôs no n.° 183 das presentes conclusões, as compras na qualidade de credor privilegiado têm um efeito dissuasor junto de outros investidores, pois lançam a mensagem de que um credor importante, neste caso um banco central, tem prioridade em matéria de cobrança em relação aos outros credores, com o consequente impacto na procura de títulos. Em conclusão, considero que as cláusulas pari passu podem ser utilizadas como um meio destinado a que o BCE perturbe o menos possível o funcionamento normal do mercado, o que, a final, constitui uma garantia suplementar do cumprimento do artigo 123.°, n.° 1, TFUE.

237. Por conseguinte, considero que o facto de o BCE poder ser obrigado, no caso hipotético de se realizar uma reestruturação da dívida de um Estado‑Membro, a renunciar, total ou parcialmente, aos direitos de crédito inerente aos títulos de dívida pública, como consequência de uma eventual aplicação do programa OMT, não o equipara a uma medida de financiamento monetário contrária ao artigo 123.°, n.° 1, TFUE.

ii)    Risco de incumprimento

238. O BVerfG sublinha igualmente que uma compra de títulos de dívida pública cuja notação financeira é baixa, como é em certa medida previsível, expõe o BCE a um risco excessivo de incumprimento, pelo que é incompatível com o artigo 123.°, n.° 1, TFUE. Embora o próprio órgão de reenvio reconheça que a assunção de riscos é inerente à atividade dos bancos centrais, considera que os Tratados não autorizam a exposição a perdas de montante significativo.

239. Uma vez mais, remeto para os argumentos expostos nos n.os 193 a 199 das presentes conclusões, onde examinei com algum pormenor a assunção de riscos pelo BCE. Na minha opinião, este raciocínio é perfeitamente transponível para o aspeto aqui em causa, uma vez que, como se observou então, a eventualidade, que não se pode afastar no estrito plano dos princípios, de uma situação de insolvência do BCE, ou de incumprimento de um Estado‑Membro, não transforma o risco, por si só, numa certeza. O facto de um programa de compra de dívida pública expor o BCE a um risco é, supõe‑se, inerente a este tipo de operações, pelo que só se deve suscitar dúvidas quanto à sua legalidade se as condições técnicas do programa, ou a sua posterior aplicação concreta, confirmarem que o BCE está claramente perante um cenário de incumprimento.

240. Com efeito, não resulta das características técnicas do programa OMT que o BCE se expõe, com um certo grau de previsibilidade, à situação que indica o BVerfG. Recorde‑se que o objetivo central do programa OMT é estabilizar as taxas de juro aplicáveis a certos títulos de dívida pública, com o objetivo último de recuperar os instrumentos de política monetária. Contudo, o objetivo direto, isto é, à redução do preço do financiamento do Estado em causa, contribui precisamente para que este recupere a sua capacidade para fazer face às suas obrigações a médio e longo prazo. O contexto em que é aprovado o programa OMT tem por objetivo eliminar ou, pelo menos, reduzir consideravelmente esse risco. Também aqui, e como salientei no n.° 198 das presentes conclusões, o facto de, no seu conjunto, as operações anunciadas no programa OMT serem suscetíveis de confirmar a vontade do BCE de prevenir ou impedir processos mais ou menos irracionais que geram ou aumentam significativamente os riscos confirma que uma medida como a que está em causa não implica um desvio à proibição prevista no artigo 123.° TFUE.

241. Na minha opinião, em suma, esta vontade do BCE foi suficientemente demonstrada para se concluir que uma compra de títulos de dívida pública, ainda que com baixa notação financeira, suscetível de expor o BCE a um risco relativo de incumprimento, não é, enquanto tal, contrária, nas circunstâncias expostas, à proibição do financiamento monetário previsto no artigo 123.°, n.° 1, TFUE.

iii) Conservação até à maturidade

242. O BVerfG afirma igualmente que a conservação da dívida pública até à sua maturidade pode entrar em conflito com o artigo 123.°, n.° 1, TFUE, na medida em que contribui para baixar a oferta de obrigações que circulam no mercado secundário, alterando, assim, a evolução normal das cotações.

243.  É certo, como alega o BVerfG, que se o BCE comprasse dívida pública com a obrigação de a conservar até à sua maturidade efetuaria uma alteração importante nos mercados secundários de obrigações. Este mercado teria um investidor, o BCE, com uma significativa carteira de dívida pública que não circularia no referido mercado, independentemente da evolução das cotações.

244. Por seu turno, o BCE respondeu salientando que em nenhuma passagem do comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012 se diz que os títulos de dívida pública comprada no âmbito do programa OMT serão conservados até à sua maturidade (93).

245. Os argumentos apresentados pelo BCE parecem‑me concludentes. E isto não apenas porque a instituição declarou que a sua intenção não era a de conservar até à sua maturidade os títulos de dívida, mas também porque foi esta a prática em programas anteriores em que o BCE operou nos mercados secundários de obrigações soberanas (94). É razoável que assim seja, uma vez que o BCE explicou que as intervenções no mercado secundário devem ser caracterizadas por um grau considerável de flexibilidade que permita à instituição implementar o programa OMT e, ao mesmo tempo, realizar operações que não lhe causem prejuízo, nem distorçam excessivamente o mercado. Na minha opinião, a flexibilidade que o BCE alega observar, como descrita no projeto de decisão, é compatível com as necessidades acima expostas. Do mesmo modo, o facto de o programa OMT se centrar exclusivamente em operações relativas a obrigações com um grau de maturidade entre um e três anos confirma que o BCE tomou precauções para evitar quer o risco de perdas quer a distorção do mercado.

246. Por último, parece claro que o programa OMT não inclui, de acordo com o que dele se conhece, nenhum elemento conducente a pensar num compromisso expresso, quer no comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012, quer na eventualidade de uma implementação do programa, de conservar os títulos de dívida pública até à sua maturidade. Deste modo, há que afastar as dúvidas manifestadas pelo BVerfG a este respeito.

iv)    Momento da compra

247. O órgão jurisdicional de reenvio sublinha igualmente que a compra pelo BCE de um volume importante de dívida pública no mercado secundário, sem que esteja previsto o intervalo de tempo relativamente à data de emissão tem um efeito semelhante ao de uma compra direta no mercado primário, contrariando as disposições do artigo 123.°, n.° 1, TFUE.

248. Impõe‑se, sem dúvida, admitir que uma compra no mercado secundário realizada segundos depois do momento da emissão das obrigações no mercado primário poderia fazer desaparecer a distinção entre os dois mercados, mesmo que a compra tenha sido formalmente realizada no mercado secundário. De facto, não se trata de modo nenhum de uma hipótese improvável, porque, como foi exposto em diversas observações escritas e orais apresentadas neste processo, uma operação no mercado secundário pode ocorrer alguns instantes apenas após a compra direta ao Estado emitente.

249. O BCE tem insistido na falta de fundamento desta preocupação do BVerfG, uma vez que as operações realizadas no âmbito do programa OMT estão sujeitas a um denominado «período de embargo», nos termos do qual o Eurosistema não realiza qualquer operação entre o momento da emissão e o decurso de um certo número de dias, ainda que essa duração não seja comunicada ex ante. Este período de tempo permitiria a formação de um preço de mercado para os respetivos títulos. O BCE não interviria no momento da emissão, mas dias depois, quando já estivesse formado um preço no mercado.

250. Na minha opinião, a objeção formulada pelo BVerfGt não é desprovida de fundamento na hipótese que B. Bandulet qualifica de quase simultaneidade. Esta prática contornaria na prática a proibição prevista no artigo 123.°, n.° 1, TFUE, o que a próprio BCE parece admitir ao afirmar reiteradamente que não procedeu a compras deste tipo no passado e que não as efetuará no quadro do programa OMT (95).

251. No entanto, de nenhuma passagem do comunicado de imprensa se retira a conclusão de que será respeitado um certo «período de embargo».

252. Na minha opinião, para que um eventual programa OMT respeite substantivamente o artigo 123.°, n.° 1, TFUE, é necessário que, mesmo nas circunstâncias particulares que nos ocupam, este permita que os títulos de dívida pública em causa tenham uma oportunidade real de originar a formação de um preço de mercado, de tal forma que a diferença entre a compra de títulos no mercado primário e no mercado secundário continue efetivamente a existir, até determinado ponto.

253. Importa, contudo, e por último, salientar que não é indispensável que o «período de embargo» em causa seja explícito e publicamente determinado previamente. Por outro lado, como explicou acertadamente o BCE, é necessário evitar tanto um período demasiado curto, que viole o artigo 123.°, n.° 1, TFUE, como um período demasiado longo, que provoque uma sobreposição com outras operações em curso, que acabem por anular a eficácia do programa OMT. Parece admissível que o BCE dispõe de um amplo poder discricionário na definição precisa dos prazos, desde que estes deixem espaço para uma possibilidade real de o preço dos títulos estarem essencialmente de acordo com os valores de mercado.

254. Por conseguinte, considero que, para ser conforme com o artigo 123.°, n.° 1, TFUE, o programa OMT deve, sendo caso disso, ser aplicado de forma a tornar possível a formação de um preço de mercado para os títulos de dívida pública em causa.

v)      Estímulo à compra no mercado primário

255. Por último, o BVerfG sublinha que o anúncio da aplicação do programa OMT num caso concreto terá por efeito estimular as compras no mercado primário, criando assim um fator de atração que transformaria o BCE num «mutuante de último recurso», com a consequente assunção dos riscos que tal implicaria.

256. O BCE e a Comissão alegam, por sua vez, que essa apreciação se baseia numa premissa errada, na medida em que pressupõe a existência de um anúncio público e anterior à implementação pelo BCE das operações de compra. Não resulta do comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012 que o BCE adotará um comportamento desse tipo, bem pelo contrário, uma vez que um anúncio prévio e pormenorizado que explicitasse o momento exato em que essas compras seriam efetuadas inutilizaria os objetivos do programa OMT.

257. Partilho da tese do BCE e da Comissão. O comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012 não contém nenhum elemento que indique que o BCE fornecerá prévia e circunstanciadamente as características do programa concreto a aplicar, nem que informará do momento exato em que iniciará as suas operações. Pelo contrário, a prática anterior do BCE no âmbito de programas similares e o projeto de decisão relativo ao programa OMT, no seu ponto relativo aos períodos de embargo, demonstram que a instituição será especialmente cautelosa no momento de intervir no mercado secundário, a fim de evitar comportamentos especulativos que anulem a eficácia do programa OMT.

258. A objeção do órgão de reenvio faria sentido se o BCE adotasse efetivamente uma política de comunicação pública detalhada que provocasse uma distorção imediata do mercado num momento preciso, como consequência de um anúncio prévio do BCE. Considero que este tipo de comportamento não é suscetível de ocorrer, como confirma a prática anterior do BCE.

259. Tudo visto, há que reconhecer novamente que o facto de a aplicação do programa OMT incluir um certo grau de incentivo para os investidores comprarem dívida no mercado primário é uma consequência praticamente inevitável, tendo em conta as características próprias do referido programa. Se o objetivo direto do programa OMT é o de reduzir, até as normalizar, as taxas de juro exigidas a certos Estados‑Membros, com o objetivo indireto, naturalmente, de desbloquear os canais de transmissão da política monetária, é evidente que essa normalização tem como premissa uma maior procura no mercado primário. Razão pela qual o incentivo à compra é praticamente inerente ao referido programa.

260. O que importa fundamentalmente é que estes efeitos sobre os operadores económicos sejam conformes ao objetivo que o programa OMT é, eventualmente, chamado a realizar, o que nos remete novamente para a importância do respeito do princípio da proporcionalidade, incluindo do ponto de vista da presente proibição.

261. Dito isto, considero que, como resulta do comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012, não existem elementos suficientes que indiquem que a implementação do programa OMT criaria, em consequência da sua ativação e do seu anúncio, um estímulo desproporcionado à compra de dívida pública no mercado primário.

3.      Resposta à segunda questão prejudicial

262. Em conclusão, e em resposta à segunda questão prejudicial do BVerfG, considero que o programa OMT é compatível com o artigo 123.°, n.° 1, TFUE, desde que, na hipótese de ser aplicado, seja implementado em circunstâncias temporais que permitiam efetivamente a formação de um preço de mercado dos títulos de dívida pública.

VII ― Conclusão

263. Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Bundesverfassungsgericht nos seguintes termos:

«1)      O programa Outright Monetary Transactions (OMT) do Banco Central Europeu, anunciado em 6 de setembro de 2012, é compatível com os artigos 119.° e 127.°, n.os 1 e 2, [TFUE], desde que, no caso de vir a ser implementado, o Banco Central Europeu

¾        se abstenha de qualquer intervenção direta nos programas de assistência financeira a que está sujeito o programa OMT,

¾        e cumpra rigorosamente o dever de fundamentação e as exigências do princípio da proporcionalidade.

2)      O programa OMT é compatível com o artigo 123.°, n.° 1, TFUE, desde que, na hipótese de vir a ser implementado, o seja em circunstâncias temporais que permitam efetivamente a formação de um preço de mercado dos títulos de dívida pública.»


1 ―      Língua original: espanhol.


2 ―      Acórdão 126, 286, pp. 303 e 304.


3 ―      A reprodução ipsis verbis do discurso de M. Draghi é o seguinte: «Quando se fala da fragilidade do euro e da crescente fragilidade do euro, e inclusivamente da crise do euro, muito frequentemente os Estados ou dirigentes dos países que não pertencem ao euro subestimam a quantidade de capital político nele investido.


      E por isso acreditamos, e não nos consideramos observadores imparciais, que o euro é irreversível […].


      Mas há outra mensagem que vos quero transmitir.


      No nosso mandato, o BCE está preparado para fazer tudo o que for necessário para preservar o euro. E acreditem, será suficiente.»


      V. texto original e completo da intervenção de M. Draghi em: http://www.ecb.europa.eu/press/key/date/2012/html/sp120726.en.html


4 ―      N.os 17 a 32.


5 ―      BVerfGE, 89, 155 (1992).


6 ―      123 BVerfGE 267 (2009).


7 ―      2 BvR 2661/06.


8 ―      Basta referir, a título de exemplo, a argumentação no sentido de justificar as razões pelas quais o conceito de «identidade constitucional», nos termos do direito nacional, não pode coincidir com a «identidade nacional» a que se refere o artigo 4.°, n.° 2, TUE (n.° 29 da decisão de reenvio).


9 ―      V. votos de vencido dos juízes Lübbe‑Wolff e Gerhardt no que se refere à decisão de submeter o presente pedido de decisão prejudicial. V., em especial, argumentos da juíza Lübbe‑Wolff (n.° 28) e do juiz Gerhardt (n.os 14 a 18).


10 ―      N.° 25 da decisão de reenvio.


11 ―      N.os 26 e 27 da decisão de reenvio.


12 ―      V. também, neste sentido, considerações contidas no n.° 11 do voto de vencido da juíza Lübbe‑Wollff, já referido.


13 ―      O Tribunal de Justiça declarou por várias vezes que o pedido prejudicial não pode servir de procedimento para emitir opiniões consultivas. De acordo com a jurisprudência, a razão de ser do reenvio prejudicial não é emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas a necessidade inerente à efetiva solução de um litígio relativo ao direito da União (v., designadamente, acórdãos Djabali, C‑314/96, EU:C:1998:104, n.° 19; Alabaster, C‑147/02, EU:C:2004:192, n.° 54, e Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.° 42).


14 ―      V., entre outros, Craig, P., «The ECJ and «ultra vires» action: A conceptual analysis», Common Market Law Review (2011), 48; Kumm, M., «Who Is the Final Arbiter of Constitutionality in Europe?», Common Market Law Review (1999), 36; Millet, F.‑X., «L ’ Union européenne et l'identité constitutionnelle des États membres», LGDJ, Paris, 2013; Payandeh, M., «Constitutional review of EU law after Honeywell: Contextualizing the relationship between the German Constitutional Court and the EU Court of Justice», Common Market Law Review (2011), 48.


15 ―      V., entre outros, para além dos acórdãos do BVerfG referidos supra nas notas 5 a 7, acórdãos do Conseil constitutionnel francês de 27 de julho de 2006 e 9 de junho de 2011 (decisões n.° 2006‑540 DC e n.° 2011/631); declaração do Tribunal Constitucional espanhol de 13 de dezembro de 2004, 1/2004; acórdãos da Corte costituzionale italiana 183/1973 e 168/1991; acórdão do Hojesteret dinamarquês de 6 de abril de 1998 (I 361/1997); acórdão de 11 de maio de 2005 do Trybunal Konstytucyjny polaco (K 18/04) ou acórdão da Supreme Court do Reino Unido de 22 de janeiro de 2014 [(2014) UKSC 3].


16 ―      Sunstein, C., One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court, Ed., Harvard University Press, Cambridge, 2001.


17 ―      V., a este propósito, Martinico, G., «Preliminary Reference and Constitutional Courts: are You in the Mood for Dialogue?», in Fontanelli, F., Martinico, G., e Carrozza, P., Shaping Rule of Law through Dialogue: International and Supranational Experiences, Ed. Europa Law Publishing, Groninga, 2010; Alonso García, R., Justicia Constitucional y Unión Europea, 2.ª ed., Ed. Thomson‑Civitas, Madrid, 2014; Ukrow, J., «Von Luxemburg lernen heißt Integrationsgrenzen bestimmen. Anmerkungen zur Vorlage‑Entscheidung des Bundesverfassungsgerichts vom 14. Januar 2014»; Zeitschrift für Europarechtliche Studien, 2014, p. 122, Mayer, F., «Multilevel Constitutional Jurisdiction», in Bogdandy, A. e Bast, J. (ed.), Principles of European Constitutional Law, 2.ª ed., Ed. Hart‑Beck‑Nomos, 2010 e Komárek, J., «The Place of Constitutional Courts in the EU», European Constitutional Law Review (2013) 9.


18 ―      V. jurisprudência do BVerfG referida no n.° 24 do pedido de decisão prejudicial.


19 ―      N.° 33 da decisão de reenvio.


20 ―      V. n.° 28 da decisão de reenvio e referências aí mencionadas a respeito da «identidade constitucional».


21 ―      São os termos do acórdão Honeywell, já referido, como recorda o órgão jurisdicional de reenvio no n.° 24 da sua decisão de reenvio.


22 ―      Acórdão Honeywell, já referido, n.° 61.


23 ―      Quanto ao reenvio prejudicial e ao seu papel no sistema jurisdicional da União, v. Lecourt, R., L’Europe des juges, Ed. Bruylant, Bruxelas, 2008, e Ruiz‑Jarabo Colomer, La Justicia de la Unión Europea, Ed. Thomson‑Civitas, Madrid, 2011.


24 ―      N.os 5 a 12 das observações escritas do Governo italiano.


25 ―      V. formulação de Funke, A., «Virtuelle verfassungsgerichtliche Kontrolle von EU‑Rechtsakten: der Schlussstein?: Anmerkung zu BVerfGE 126, 286 (Honeywell bzw. Mangold‑Urteil EuGH)», Zeitschrift für Gesetzgebung, 26, n.° 2, 2011, p. 172. V., igualmente, Hobe, S., «Abkehr von Solange? ― Die Bundesverfassungsgerichts zur Vorratsdatenspeicherung und zu Honeywell», in Sachs, M. e Siekmann, H., Der grundrechtsgeprägte Verfassungsstaat Festschrift für Klaus Stern zum 80. Geburtstag, Ed. Duncker & Humblot, Berlim, 2012, p. 753.


26 ―      N.° 26 da decisão de reenvio.


27 ―      Segundo o BVerfG, nos «casos limite» de abuso de poder por parte da União, as perspetivas de um e outro tribunal poderiam não coincidir «inteiramente», dado que, por um lado, os Estados‑Membros continuam a ser os «senhores dos Tratados» e, por outro, o direito da União não goza de uma posição (primado ou prioridade de aplicação) igual à do direito da Federação relativamente ao dos Länder (supremacia).


28 ―      N.° 27 da decisão de reenvio.


29 ―      V. Pizzorusso, Il patrimonio costituzionale europeo, Ed. Il Mulino, Bolonha, 2012, capítulos IV e V.


30 ―      V., citando Vosskuhle, A., «Der Europäische Papers TranState Verfassungsgerichtsverbund», TranState Working Papers n.° 16, Staatlichkeit im Wandel ― Transformations of the State, Bremen, 2009, p. 22, Häberle, P., Europäische Verfassungslehre, 6.ª Ed., Ed. Nomos, Baden Baden, 2009, pp. 478 e segs.


31 ―      V. iniciativa de um grupo de 35 juristas que propunha a adoção de uma disposição na Lei do BVerfG, como reação à ausência de referência à relação de cooperação no acórdão de 30 de junho de 2009. Iniciativa disponível em: www.europa‑union‑de‑/fileadmin/files_eud/Appell_Vorlagepflicht_BVerfG.pdf


32 ―      V., neste sentido, Streinz, R., «Der Kontrollvorbehalt des BVerfG gegenüber dem EuGH nach dem Lissabon‑Urteil und dem Honeywell‑Beschluss», in Sachs, M. e Siekmann, H., Der grundrechtsgeprägte[…], op. cit., p. 978.


33 ―      Assim se expressou o Governo da República Federal da Alemanha nas suas observações escritas e orais neste processo, sublinhando a necessidade de que o Tribunal de Justiça interprete os Tratados no presente processo de forma a evitar um conflito entre os componentes fundamentais da ordem constitucional dos Estados‑Membros e o direito da União.


34 ―      Os efeitos da cláusula do respeito da identidade nacional (artigo 4.°, n.° 2, TFUE) no contexto de um eventual pedido prejudicial por parte do BVerfG é uma questão que está longe de ser encerrada (v. Dederer, H.‑G., «Die Grenzen des Vorrangs des Unionsrechts», Juristen Zeitung, 7/2014). V., neste sentido, sugestão da Comissão quanto a um alargamento prévio do parâmetro europeu de fiscalização, eventualmente pela via de um novo pedido de decisão prejudicial, na hipótese pouco provável de o BVerfG decidir declarar o caráter ultra vires do ato da União, apesar da resposta do Tribunal de Justiça confirmando sua legalidade (n.° 37 das observações da Comissão).


35 ―      Neste sentido, o BVerfG considera (n.° 66 do acórdão Honeywell) que a salvaguarda do princípio da integração devia conduzir a um exercício da fiscalização ultra vires que o próprio qualifica de «discreta» («zurückhaltend»). Para além das considerações que precedem, o caráter específico dos métodos de interpretação do Tribunal de Justiça deveria conduzir o próprio tribunal nacional a não substituir pelos seus próprios métodos de interpretação os do Tribunal de Justiça. É neste sentido que o tribunal nacional declara que se justificaria uma «expetativa» do Tribunal de Justiça de um certo grau de tolerância face a eventuais falhas («Anspruch auf Fehlertoleranz»).


36 ―      V., designadamente, acórdãos Cimenteries e o./Comissão (8/66 a 11/66, EU:C:1967:7, n.° 91); Sucrimex/Comissão, 133/79, EU:C:1980:104, n.os 12 a 19) e Gauff/Comissão (182/80, EU:C:1982:78, n.° 18).


37 ―      Acórdão Friesland Coberco Dairy Foods (C‑11/05, EU:C:2006:312, n.os 38 a 41).


38 ―      V. jurisprudência já referida na nota 36.


39 ―      V. acórdãos Grimaldi (C‑322/88, EU:C:1989:646, n.os 8 e 9) e Deutsche Shell (C‑188/91, EU:C:1993:24, n.° 18).


40 ―      22/70, EU:C:1971:32.


41 ―      Ibidem, n.° 42.


42 ―      Ibidem, n.° 53.


43 ―      Ibidem, n.° 54.


44 ―      C‑366/88, EU:C:1990:348.


45 ―      Ibidem, n.° 10.


46 ―      V. Binder, Alan S.; Ehrmann, M., Fratzscher, M., de Hann, J.; Jansen, D.‑J., «Central Bank Communication and Monetary Policy. A Survey of Theory and Evidence» e Woodford, Michael, «Fedspeak: Does It Matter How Central Bankers Explain Themselves?», Universidade de Columbia, abril de 2013.


47 ―      Na opinião da atual presidente da Reserva federal americana, J. Yellen, «os efeitos da política monetária dependem essencialmente da boa receção pelo público da mensagem quanto ao tipo de política que será levada a cabo nos meses ou anos seguintes». Discurso na Society of American Business Editors and Writers 50th Anniversary Conference, Washington D. C., disponível em: http://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/yellen20130404a.htm.


48 ―      Banco Central Europeu, A política monetária do BCE, Frankfurt, 2011, p. 94 e segs.


49 ―      C‑370/12, EU:C:2012:756.


50 ―      Artigos 119, n.° 2, 127, n.° 1 e 282.°, n.° 2, TFUE, bem como artigos 2.° e 3.°, n.° 3.3, dos Estatutos do SEBC e do BCE.


51 ―      V., designadamente, relatório sobre a União Económica e Monetária na Comunidade Europeia, mais conhecido por Relatório Delors, de 17 de abril de 1989, em especial n.° 32.


52 ―      V., entre outros, Dyson, K., e Featherstone, K., The Road to Maastricht. Negotiating Economic and Monetary Union, Ed. Oxford University Press, Oxford, 1999, pp. 378 e segs.; Ungerer, H., A Concise History of European Monetary Integration. From EPU to EMU, Ed. Quorum Books, Westport‑Londres, 1997, pp. 209 e segs., e Viebig, J., Der Vertrag von Maastricht. Die Positionen Deutschlands und Frankreichs zur Europäischen Wirtschafts‑ und Währungsunion, Ed. Schäffer Poeschel, 1999, pp. 150 e segs.


53 ―      Artigo 282.°, n.° 3, TFUE: «O Banco Central Europeu tem personalidade jurídica. Só ele tem o direito de autorizar a emissão do euro. É independente no exercício dos seus poderes e na gestão das suas finanças. As instituições, órgãos e organismos da União, bem como os Governos dos Estados‑Membros, respeitam esta independência.»


54 ―      De Grauwe, P., Economics of MonetaryUnion, 10.ª ed., Ed. Oxford University Press, Oxford, 2014, pp. 156 a 159.


55 ―      V. Sparve, R., «Central Bank Independence under European Union and other International Standards», in Legal Aspects of the European System of Central Banks. Liber Amicorum Paolo Zamboni Garavelli, Ed. ECB, Frankfurt am Main, 2005.


56 ―      Ibidem.


57 ―      Quanto à autonomia do BCE e os seus limites, v., em especial, Zilioli, C. e Selmayr, M., «The European Central Bank: An Independent Specialized Organization of Community Law», Common Market Law Review, n.° 37, 3, 2000, pp. 591 e segs.; Dernedde, I., Autonomie der Europäische Zentralbank. Im Spannungsfeld zwischen demokratischer Legitimation der Europäischen Union und Währungsstabilität, Ed. Dr. Kovac, Hamburgo, 2002, e, de um ponto de vista comparativo, Amtenbrink, F., The Democratic Accountability of Central Banks. A Comparative Study of the European Central Bank, Ed. Hart, Oxford‑Portland, 1999.


58 ―      V., embora em domínios diferentes da política monetária, acórdãos Sison/Conselho (C‑266/05 P, EU:C:2007:75, n.os 32 a 34); Arcelor Atlantique e Lorraine e o. (C‑127/07, EU:C:2008:728, n.° 57), e Vodafone e o. (C‑58/08, EU:C:2010:321, n.° 52).


59 ―      Neste sentido, v. Louis, J.‑V., L'Union européenne et sa monnaie, Commentaire J.Mégret, 3.ª ed., Ed. Université de l'Université de Bruxelles, Bruxelas, 2009, p. 211; Craig, P., «EMU, the European Central Bank and Judicial Review» em Beaumont, P., e Walker, N. (eds.), Legal Framework of the Single European Currency, Ed. Hart, Oxford‑Portland, 1999, pp. 97‑114, e Malatesta, A., La Banca Centrale Europea, Ed. Giuffrè, Milão, 2003, pp. 183 e segs.


60 ―      «O processo pelo qual as decisões de política monetária afetam a economia, em geral, e o nível dos preços, em particular, é conhecida como mecanismo de transmissão da política monetária», A Política Monetária do BCE, Ed. BCE, Frankfurt am Main, 2011, p. 62. V., a este respeito, Angeloni, I., Kashyap, A. e Mojon, B. (eds.), Monetary Policy Transmission in the Euro Area, Ed. Cambridge University Press, Cambridge, 2003, e Suardi, M., «Monetary Policy Transmission in EMU», in Buti, M. e Sapir, A., EMU and Economic Policy in Europe. The Challenge of the Early Years, Ed. E. Elgar, Cheltenham‑Northampton, 2002.


61 ―      «A transmissão dos impulsos da política monetária no setor real da economia está associada a diferentes mecanismos e ações dos agentes económicos em diversas fases do processo. Por conseguinte, as medidas de política monetária costumam demorar um período considerável a influenciar a evolução dos preços. Além disso, a amplitude e a intensidade dos diferentes efeitos podem variar em função do estado da economia, pelo que é difícil avaliar o seu impacto preciso. No seu conjunto, os bancos centrais são frequentemente confrontados com atrasos prolongados, variáveis e incertos na execução da política monetária», A Política Monetária do BCE, Ed. BCE, Frankfurt am Main, 2011, pp. 62 e 63. V. também Angeloni, I., Kashyap, A. e Mojon, B. (eds.), op. cit.


62 ―      A este respeito, v. Cour‑Thimann, P. e Winkler, B., «The ECB’s Non Standard Monetary Policy Measures. The Role of Institutional Factors and Financial Structure», Oxford Review of Economic Policy, 2012, 28, pp.  72 e segs.


63 ―      V. exposição comparativa efetuada por Lenza, M., Pill, H e Reichlin, L., «Monetary Policy in Exceptional Times», Economic Policy, 2010, p. 62 e García‑Andrade, J., «El Sistema Monetario en una Unión Europea de Derecho», Salvador Armendáriz, M. A. (ed.), Regulación bancaria: transformaciones y Estado de Derecho, Ed. Aranzadi, Cizur Menor, 2014.


64 ―      O BCE recorreu a diferentes métodos não convencionais no passado, como a injeção de liquidez a taxa fixa sem limitação do montante, a extensão da lista dos ativos elegíveis, a injeção de liquidez a mais longo prazo, ou a compra de títulos de crédito específicos. Quanto a estas medidas, v. Hinarejos, A., «The Euro Area Crisis in Constitutional Perspective», Ed. Oxford University Press, Oxford, 2014, capítulo 3, ponto 3.1.


65 ―      Acórdão Pringle (EU:C:2012:756, n.° 55).


66 ―      Acórdão Pringle (EU:C:2012:756, n.° 56) e tomada de posição da advogada‑geral J. Kokott (EU:C:2012:675, n.° 85).


67 ―      Tomada de posição da advogada‑geral J. Kokott apresentada no processo Pringle (EU:C:2012:675, n.os 142 e 143).


68 ―      Acórdão Pringle (EU:C:2012:756, n.° 135), onde se declara que «[a]o nível da União, o respeito pela disciplina orçamental contribui para a realização de um objetivo superior, ou seja, a manutenção da estabilidade financeira da União Monetária».


69 ―      Como salienta a Comissão nas suas observações escritas, os boletins mensais do BCE dos meses de setembro e outubro de 2012 confirmam reiteradamente que o objetivo último do programa OMT é a recuperação dos canais de transmissão da política monetária.


70 ―      Na medida em que os requisitos a que está sujeita a compra de títulos de dívida pública podem não coincidir com os fixados pelo FEEF/MEE, o programa atua como uma espécie de «resgate paralelo». Por conseguinte, considero que se trata de duas dúvidas que podem ser objeto de uma análise conjunta.


71 ―      Segundo Krugman e Wells, a expressão «risco moral» refere‑se à forma como os indivíduos correm riscos maiores nas suas decisões quando as eventuais consequências negativas dos seus atos não são assumidas por eles próprios, mas por um terceiro. A este respeito, e para mais detalhes, v. Krugman, P., e Wells, R., Microeconomics, 3.ª ed., Ed. Worth Publishers, 2012.


72 ―      V., concretamente, os artigos 4.°, n.° 4, 5.°, n.os 3 e 5, alínea g), 6.°, n.° 2, 13.°, n.os 1, 3 e 7, e 14.°, n.° 6, do Tratado que cria o MEE.


73 ―      Quanto ao papel institucional do BCE nos programas de resgate, v. Beukers, T., «The new ECB and its relationship with the eurozone Member States: Between central bank independence and central bank intervention» (2013) 50 CommonMarket Law Review, Issue 6, pp. 1588 e segs.


74 ―      V., concretamente, o artigo 13.°, n.os 3 e 7, do Tratado MEE.


75 ―      V., a título de exemplo, condições gerais dos contratos de assistência financeira, adotadas pelo Conselho de Administração do MEE em 22 de novembro de 2012 (disponíveis na página www.esm.europa.eu), que confirmam o papel do BCE na supervisão dos programas de assistência financeira (v., concretamente, artigos 3.3.2, 3.4.2, 5.3.4, 5.12.1, 6.2.6, 9.6, 9.8.2 e 12.2).


76 ―      De facto, o texto do Tratado MEE permite uma intervenção deste tipo. A expressão «em articulação com», utilizada pelo Tratado MEE nos seus artigos 13.° e 14.°, permite um amplo leque de ações do BCE no decurso de um programa de assistência financeira, incluindo as ações «passivas» que aqui se propõem.


77 ―      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o dever de fundamentação previsto no Tratado «não responde apenas a uma preocupação formal, mas visa conferir às partes a possibilidade de defenderem os seus direitos, ao Tribunal de Justiça a de exercer a sua fiscalização e aos Estados‑Membros, como a qualquer cidadão interessado, a de conhecer as razões em que a [Instituição] aplicou o Tratado». V., entre outros, acórdãos Alemanha/Comissão (T‑471/93, Colet., EU:C:1963:14, n.° 143) e DIR International Film e o./Comissão (C‑164/98 P, EU:C:2000:48, n.° 33).


78 ―      Declaração do Presidente do BCE, M. Draghi, na conferência de imprensa de 6 de setembro de 2012, disponível em http://www.ecb.europa.eu/press/pressconf/2012/html/is120906.en.html.


79 ―      V. neste sentido, acórdãos National Panasonic/Comissão (136/79, EU:C:1980:169, n.os 28 a 30) e Roquette Frères (C‑94/00, EU:C:2002:603, n.° 77).


80 ―      V., designadamente, acórdão Fedesa e o. (C‑331/88, EU:C:1990:391, n.° 13) e Países Baixos/Comissão (C‑180/00, EU:C:2005:451, n.° 103).


81 ―      Observações escritas da República Francesa, fazendo referência à natureza «ciblée et provisoire» do programa OMT (n.° 40).


82 ―      O comunicado de imprensa de 6 de setembro de 2012, para além de se referir à condicionalidade dos programas de assistência financeira enquanto «condição necessária», sublinha que a suspensão do programa OMT será decidida pelo poder «discricionário» do Conselho do BCE, porém «em conformidade com o mandato de política monetária que lhe foi atribuído».


83 ―      V. Tridimas, T., The General Principles of EU Law, 2.ª ed., Ed. Oxford University Press, Oxford, 2010, capítulo 3.


84 ―      A este propósito, v. Sunkel, O., e Griffith‑Jones, S., Debt and Development Crises in Latin America: The End of an Illusion, Ed. Oxford University Press, Oxford, 1989.


85 ―      V. relatório Delors, já referido na nota 51, em especial n.° 30.


86 ―      V. Siekmann, H., «Law and Economics of Monetary Union», em Eger, T. e Schäfer, H. B., Research Handbook, on the Economics of European Union Law, Ed. E. Elgar, Cheltenham‑Northampton, 2012, pp. 370 e segs.


87 ―      Acórdão Pringle (EU:C:2012:756,n.° 135).


88 ―      Ibidem, n.° 132.


89 ―      Compare‑se a redação proposta do antigo artigo 104.°‑A, n.° 1, alínea a), no projeto de Tratado que altera o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, com vista à criação da União Económica e Monetária, Boletim das Comunidades Europeias, suplemento 2/91, com a redação final desse artigo, que corresponde à do artigo 123.° TFUE atualmente em vigor. Quanto às negociações que conduziram à redação do atual artigo 123.° TFUE, v., Conthe, M., «El Tratado de la Unión Europea: la Unión Económica y Monetaria», em VVAA, España y el Tratado de la Unión Europea. Una aproximación al Tratado elaborada por el equipo negociador en las Conferencias Intergubernamentales sobre la Unión Política y la Unión Económica y Monetaria, Ed. Colex, 1994, pp. 295 a 297.


90 ―      Quanto às operações de «open market» autorizadas pelo artigo 18.°, n.° 1 dos Estatutos, v. Orientação do BCE de 20 de setembro de 2011, relativa aos instrumentos e procedimentos de política monetária do Eurosistema, na sua versão consolidada (BCE/2011/14).


91 ―      O artigo 1.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 3603/93 acrescenta, na alínea ii), que também são «créditos sob qualquer outra forma» «qua[is]quer financiamento[s] de obrigações do setor público relativamente a terceiros».


92 ―      Por força das cláusulas contratuais previstas para os casos de reestruturação (Collective Action Clauses, «CAC»), a reestruturação está subordinada a uma regra de maioria entre credores. Sobre as cláusulas CAC e o papel do BCE, v. Hofmann, C., «Enfranchisement and Disenfranchisement in Collective Action Clauses», em Bauer, K‑A., Cahn, A. e Kenadjian, S (eds.), Collective Action Clauses and the Reestructuring of Sovereign Debt, Institute for Law and Finance Series, Ed., De Gruyter, 2013, pp. 56 e segs.


93 ―      Não só não se estabelece qualquer obrigação de conservar os títulos até à sua maturidade, como, segundo o BCE, o projeto de decisão relativa às OMT prevê expressamente a possibilidade de que o BCE venda os títulos numa data anterior.


94 ―      Este seria o caso, segundo observa o BCE, do Securities Market Programme (a seguir «SMP»), no qual os títulos não eram necessariamente conservados até à sua maturidade.


95 ―      Segundo declara o BCE nas suas observações escritas, o programa SMP, anterior ao programa OMT, previa também um período de embargo.