Language of document : ECLI:EU:C:2006:201

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PHILIPPE LÉGER

apresentadas em 23 de Março de 2006 1(1)

Processo C‑519/04 P

David Meca‑Medina,

Igor Majcen

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância – Regras aprovadas pelo Comité Olímpico Internacional (COI) em matéria de controlo da dopagem – Incompatibilidade com os artigos 49.° CE, 81.° CE e 82.° CE – Denúncia – Rejeição»





1.        O presente processo tem por objecto o recurso interposto por D. Meca‑Medina e I. Majcen (2) do acórdão do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias de 30 de Setembro de 2004, Meca‑Medina e Majcen/Comissão (3), pelo qual este órgão jurisdicional negou provimento ao seu recurso de anulação da decisão da Comissão das Comunidades Europeias, de 1 de Agosto de 2002 (4), que rejeitou a denúncia apresentada pelos recorrentes, nos termos do artigo 3.° do Regulamento n.° 17 (5), contra o Comité Olímpico Internacional (6).

2.        Na sua denúncia, os recorrentes punham em causa a compatibilidade de certas disposições regulamentares aprovadas pelo COI e aplicadas pela Federação Internacional de Natação Amadora (7), bem como de determinadas práticas referentes ao controlo da dopagem, com as regras comunitárias sobre a concorrência (artigos 81.° CE e 82.° CE) e a livre prestação de serviços (artigo 49.° CE).

I –    Antecedentes do litígio (8)

3.        Na sequência de um controlo antidopagem de resultado positivo no teste da nandrolona (9), os recorrentes foram suspensos por um período de quatro anos por uma decisão, de 8 de Agosto de 1999, do Doping Panel (Comité da Dopagem) da FINA. Em 29 de Fevereiro de 2000, no âmbito de um recurso interposto pelos recorrentes desta decisão, o Tribunal Arbitral do Desporto, confirmou esta suspensão, tendo‑a mais tarde reexaminado e reduzido para dois anos, por decisão arbitral de 23 de Maio de 2001.

4.        Por carta de 30 de Maio de 2001, os recorrentes apresentaram uma queixa à Comissão, ao abrigo do artigo 3.° do Regulamento n.° 17, denunciando uma infracção aos artigos 81.° CE e/ou 82.° CE. Alegaram, designadamente, que a fixação do limite de tolerância da nandrolona em 2 nanogramas por mililitro de urina (a seguir «regulamentação controvertida») constituía uma prática concertada entre o COI e os 27 laboratórios que este homologou. Na sua opinião, o carácter anticoncorrencial desta prática era, além disso, reforçado pela falta de independência, relativamente ao COI, das instâncias competentes para a resolução arbitral dos litígios em matéria de desporto.

5.        Pela decisão impugnada, a Comissão rejeitou a denúncia dos recorrentes, ao considerar que a regulamentação controvertida não estava abrangida pela proibição dos artigos 81.° CE e 82.° CE (10).

II – O recurso no Tribunal de Primeira Instância e o acórdão recorrido

6.        Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 11 de Outubro de 2002, os recorrentes interpuseram, nos termos do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, um recurso de anulação da decisão impugnada.

7.        Em apoio do seu recurso, os recorrentes invocaram três fundamentos relativos a erros manifestos de apreciação cometidos pela Comissão, em primeiro lugar, na qualificação do COI, em segundo lugar, no exame da regulamentação controvertida à luz dos critérios enunciados pelo Tribunal de Justiça no acórdão Wouters e o. (11) e, em terceiro lugar, na aplicação do artigo 49.° CE.

8.        O Tribunal de Primeira Instância negou provimento ao recurso declarando que os três fundamentos invocados não eram pertinentes e condenou os recorrentes a suportar as suas despesas, bem como as efectuadas pela Comissão.

III – A tramitação do processo no Tribunal de Justiça e os pedidos do presente recurso

9.        Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 22 de Dezembro de 2004, os recorrentes interpuseram o presente recurso.

10.      Concluem pedindo a anulação do acórdão recorrido e a condenação da Comissão nas despesas nas duas instâncias. Por outro lado, requerem que o Tribunal de Justiça julgue procedente os pedidos que apresentaram ao Tribunal de Primeira Instância.

11.      A Comissão, recorrida, conclui pedindo a título principal que seja negado provimento ao recurso e, a título subsidiário, que seja negado provimento ao recurso de anulação da decisão impugnada. Por outro lado, a Comissão requer a condenação dos recorrentes nas despesas relativas às duas instâncias.

12.      A República da Finlândia, interveniente na primeira instância, conclui pedindo que seja negado provimento ao recurso.

IV – Quanto ao recurso

13.      Apesar das referências precisas aos números do acórdão recorrido, o recurso é particularmente confuso. Da sua leitura, creio ter percebido que os recorrentes invocam quatro fundamentos.

14.      Em primeiro lugar, censuram o Tribunal de Primeira Instância por ter interpretado de modo incorrecto a jurisprudência do Tribunal de Justiça decorrente dos acórdãos Walrave e Koch (12), Bosman (13) e Deliège (14) relativa à aplicação dos artigos 39.° CE e 49.° CE às regulamentações desportivas. Em segundo lugar, contestam a interpretação feita pelo Tribunal de Primeira Instância, segundo a qual uma regulamentação antidopagem constitui uma regra puramente desportiva não cabendo, assim, no âmbito de aplicação do Tratado CE. Em terceiro lugar, os recorrentes alegam que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro ao decidir que a regulamentação em causa é estranha a toda e qualquer consideração económica, e não é abrangida no âmbito de aplicação dos artigos 49.° CE, 81.° CE e 82.° CE. Em quarto lugar, criticam o Tribunal de Primeira Instância por ter considerado que o exame feito pela Comissão à regulamentação controvertida segundo o método de análise enunciado no acórdão Wouters e o., já referido, não era necessário.

A –    Quanto ao primeiro fundamento

15.      No âmbito deste primeiro fundamento (15), os recorrentes criticam a interpretação feita pelo Tribunal de Primeira Instância, nos n.os 40 e 41 do acórdão recorrido, da jurisprudência do Tribunal de Justiça resultante dos acórdãos Walrave e Koch, Bosman e Deliège, já referidos, relativa à aplicação dos artigos 39.° CE e 49.° CE às regulamentações desportivas.

16.      Os recorrentes contestam, desde logo, a apreciação do Tribunal de Primeira Instância segundo a qual as proibições impostas pelos artigos 39.° CE e 49.° CE não se aplicam às regras puramente desportivas que, por natureza, são estranhas a toda e qualquer consideração económica. Na sua opinião, o Tribunal de Justiça nunca enunciou esta exclusão geral no acórdão Walrave e Koch, já referido. Pelo contrário, o Tribunal de Justiça limitou esta excepção à composição e à formação das equipas desportivas. Seguidamente, os recorrentes sustentam que só podem ser consideradas como puramente desportivas as regras relativas ao carácter e ao âmbito específico dos encontros desportivos e que são, portanto, inerentes à organização e ao bom desenrolar da competição desportiva.

17.      Como a Comissão e a República da Finlândia, entendo que o Tribunal de Primeira Instância aplicou correctamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça (16).

18.      Com efeito, o Tribunal de Justiça considera de forma constante que, atendendo aos objectivos da Comunidade Europeia, a prática de desportos só é abrangida pelo direito comunitário na medida em que constitua uma actividade económica na acepção do artigo 2.° CE. Assim, sempre que uma tal actividade tenha o carácter de prestação de trabalho assalariado ou de prestação de serviços remunerados (como é, por exemplo, o caso da actividade dos jogadores profissionais ou semiprofissionais de futebol), insere‑se em especial, no âmbito de aplicação dos artigos 39.° CE a 42.° CE ou 49.° a 55.° CE (17).

19.      Em contrapartida, o Tribunal de Justiça admitiu reiteradamente uma restrição do âmbito de aplicação das referidas disposições quando a regulamentação desportiva em causa se justificava por «razões que não sejam económicas, mas inerentes à natureza e ao contexto específicos [dos] encontros [desportivos] e que têm [...] uma natureza unicamente desportiva, enquanto tal» (18). Nestes processos, penso que o Tribunal de Justiça enunciou uma excepção de alcance geral que não pode ser limitada, como defendem os recorrentes, à composição e à formação das equipas desportivas.

20.      Nestas condições, entendo que o Tribunal de Primeira Instância considerou com razão, nos n.os 40 e 41 do acórdão recorrido, que as proibições impostas pelos artigos 39.° CE e 49.° CE se aplicam às regras relativas aos aspectos económicos que a actividade desportiva pode revestir, mas «não se aplicam às regras puramente desportivas, isto é, às regras que dizem apenas respeito a questões de desporto e que, enquanto tais, são estranhas à actividade económica» (19).

21.      Consequentemente, considero que o primeiro fundamento deve ser julgado improcedente.

B –    Quanto ao segundo fundamento

22.      Pelo segundo fundamento, os recorrentes, contestam a argumentação do Tribunal de Primeira Instância segundo a qual uma regulamentação antidopagem constitui uma regra estranha, por natureza, à actividade económica e, consequentemente, não cabe no âmbito de aplicação do Tratado. Invocam dois argumentos em apoio deste fundamento.

23.      Por um lado, a argumentação do Tribunal de Primeira Instância é contraditória ou enferma de uma fundamentação insuficiente. Com efeito, este referiu nos n.os 44 e 47 do acórdão recorrido que as regulamentações antidopagem não prosseguem qualquer objectivo económico. Em contrapartida, admitiu no n.° 57 deste acórdão que, ao adoptar essa regulamentação, o COI podia ter tido em mente a preocupação de preservar o potencial económico dos Jogos Olímpicos. Além disso, o Tribunal de Primeira Instância procedeu no n.° 45 do referido acórdão a uma distinção artificial entre as dimensões económica e não económica do acto desportivo.

24.      Por outro lado, o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro ao basear‑se na jurisprudência resultante dos acórdãos Walrave e Koch, Donà e Deliège por considerar que uma regulamentação antidopagem não cabe no âmbito de aplicação dos artigos 49.° CE, 81.° CE e 82.° CE. Os recorrentes consideram, com efeito, que as regras antidopagem se distinguem das regulamentações relativas à composição das equipas nacionais de futebol (acórdãos já referidos Walrave e Koch e Donà) e das relativas à selecção dos atletas para competições de alto nível (acórdão Deliège, já referido).

25.      Considero, como a Comissão e a República da Finlândia, que este fundamento deve também ser julgado improcedente (20).

26.      Quanto ao argumento dos recorrentes, segundo o qual o Tribunal de Primeira Instância se contradisse, por um lado, nos n.os 44 e 47 do acórdão recorrido e, por outro, no n.° 57 deste acórdão, entendo que o mesmo é improcedente.

27.      O Tribunal de Primeira Instância, depois de ter afirmado no n.° 44 do acórdão recorrido que «o desporto de alto nível se tornou, em larga medida, uma actividade económica», referiu que a luta antidopagem se destina, antes de mais, a preservar os valores éticos do desporto, bem como a saúde dos atletas. A referência no n.° 57 do acórdão recorrido, aos objectivos de natureza económica que o COI pudesse eventualmente prosseguir, não é suficiente, em minha opinião, para demonstrar uma contradição no raciocínio do Tribunal de Primeira Instância.

28.      Com efeito, tendo em conta os interesses comerciais e financeiros que envolvem o desporto de alto nível, entendo que uma regulamentação puramente desportiva, como a regulamentação antidopagem, pode não ser desprovida de qualquer interesse económico. Contudo, em minha opinião, este interesse é meramente acessório e não pode privar as regulamentações antidopagem da sua natureza puramente desportiva. Como afirmou correctamente a Comissão, a tese dos recorrentes leva na realidade a privilegiar, a coberto da indivisibilidade da actividade desportiva, um aspecto acessório, a dimensão económica, a fim de garantir uma aplicabilidade integral das regras do tratado à prática desportiva profissional ou semiprofissional (21).

29.      Quanto ao argumento dos recorrentes segundo o qual o Tribunal de Primeira Instância não se podia referir validamente aos acórdãos Walrave e Koch, Donà e Deliège, já referidos, considero que é também improcedente. Com efeito, parece que os recorrentes fazem uma leitura particularmente restritiva destes acórdãos na medida em que, em minha opinião, o Tribunal de Justiça excluiu, nesses processos e com carácter geral, as regras puramente desportivas do campo de aplicação dos artigos 39.° CE e 49.° CE. Os recorrentes tentam assim estabelecer uma distinção artificial entre as regras examinadas nos referidos processos e a regulamentação controvertida.

30.      Proponho, portanto, que o Tribunal de Justiça julgue improcedente o segundo fundamento.

C –    Quanto ao terceiro fundamento

31.      No âmbito do terceiro fundamento (22), os recorrentes sustentam, em substância, que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro ao concluir no n.° 48 do acórdão recorrido que a regulamentação controvertida era estranha a toda e qualquer consideração económica e que, por conseguinte, não era abrangida pelo âmbito de aplicação dos artigos 49.° CE, 81.° CE e 82.° CE.

32.      Parece‑me que os recorrentes invocam dois argumentos em apoio deste fundamento.

33.      Primeiramente, põem em causa a análise feita pelo Tribunal de Primeira Instância nos n.os 49 e 55 do acórdão recorrido, segundo a qual o carácter excessivo da regulamentação controvertida, ainda que seja demonstrado, não implica que esta regra perca a sua natureza puramente desportiva. Segundo os recorrentes, esta análise não só está baseada numa fundamentação contraditória e insuficiente mas é também contrária à jurisprudência do Tribunal de Justiça resultante dos acórdãos Deliège e Wouters e o., já referidos (23).

34.      Seguidamente, os recorrentes alegam que o Tribunal de Primeira Instância procedeu a considerações de facto materialmente inexactas ao considerar, no segundo parágrafo do n.° 55 do acórdão recorrido, que a regulamentação controvertida é uma disposição antidopagem, enquanto que, na sua opinião, a taxa fixada por esta regulamentação pode também resultar de um esforço físico e/ou do consumo de produtos não dopantes, tais como a carne de porco de macho não castrado.

35.      Como a Comissão, entendo que este fundamento deve ser julgado improcedente (24).

36.      Basta verificar que os concorrentes contestam, na realidade, o limite de tolerância de 2 nanogramas por mililitro de urina fixado pela regulamentação controvertida e tentam que o Tribunal de Justiça reexamine a apreciação dos factos levada a cabo pelo Tribunal de Primeira Instância.

37.      Ora, por força dos artigos 225.°, n.° 1 CE e 58.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, o recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância apenas se pode basear em fundamentos relativos à violação de normas jurídicas, com exclusão de qualquer apreciação dos factos. Decorre de jurisprudência constante que não cabe ao Tribunal de Justiça, no âmbito de um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância, pronunciar‑se sobre a apreciação dos factos e dos elementos de prova efectuada pelo Tribunal de Primeira Instância, excepto em caso de desvirtuação manifesta dos referidos elementos por este órgão jurisdicional (25).

38.      Por outro lado, considero que não incumbe ao Tribunal de Justiça, no quadro de um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância, pronunciar‑se sobre o carácter cientificamente justificado ou não de uma regra adoptada pelo COI no âmbito da luta contra a dopagem.

39.      Nestas condições, e dado que os recorrentes não demonstraram nem, na realidade, defenderam uma desvirtuação dos factos, proponho ao Tribunal de Justiça que declare este terceiro fundamento manifestamente inadmissível e, consequentemente, que o julgue improcedente.

D –    Quanto ao quarto fundamento

40.      No âmbito deste quarto fundamento (26), os recorrentes contestam os n.os 61, 62 e 64 do acórdão recorrido, nos quais o Tribunal de Primeira Instância considerou que não era necessário o exame da regulamentação controvertida efectuado pela Comissão segundo o método de análise enunciado no acórdão Wouters e o., já referido.

41.      Em apoio deste fundamento, os recorrentes formulam três acusações decorrentes, em primeiro lugar, de uma apreciação errada da pertinência da aplicação do método de análise enunciado no acórdão Wouters e o., já referido, em segundo lugar, da desvirtuação da decisão impugnada e, em terceiro lugar, da violação dos direitos de defesa.

1.      Quanto à apreciação errada do Tribunal de Primeira Instância da pertinência da aplicação do método de análise enunciado pelo Tribunal de Justiça no acórdão Wouters e o., já referido

42.      No essencial, os recorrentes censuram ao Tribunal de Primeira Instância ter considerado, nos n.os 65 e 66 do acórdão recorrido, que o presente caso se distingue do processo que conduziu ao acórdão Wouters e o., já referido, na medida em que a regulamentação controvertida diz respeito a um comportamento, a dopagem, que não se pode equiparar a um comportamento de mercado e se aplica a uma actividade, a prática desportiva, que, na sua essência, é estranha a qualquer consideração económica. Com efeito, segundo os recorrentes, os critérios enunciados pelo Tribunal de Justiça no referido acórdão podiam perfeitamente ser transpostos para o caso em apreço.

43.      Considero que esta acusação não tem fundamento.

44.      Com efeito, basta recordar que a regulamentação em causa no acórdão Wouters e o., já referido, respeitava a um comportamento de mercado, designadamente o estabelecimento de colaborações integradas entre advogados e revisores oficiais de contas e que se aplicava a uma actividade económica por definição, a de advogado. Ora, uma vez que a regulamentação controvertida é de natureza puramente desportiva, alheia a qualquer consideração de ordem económica, o Tribunal de Primeira Instância considerou, em minha opinião, correctamente, que não era necessário examinar esta regulamentação com base nos critérios enunciados neste acórdão.

2.      Quanto à desvirtuação da decisão impugnada pelo Tribunal de Primeira Instância

45.      Os recorrentes censuram ao Tribunal de Primeira Instância ter decidido que o exame da regulamentação controvertida efectuado pela Comissão à luz das regras da concorrência apenas tinha sido feito a título «subsidiário» ou «superabundante». Deste modo, o Tribunal de Primeira Instância desvirtuou a decisão impugnada.

46.      Recorde‑se que, embora só o Tribunal de Primeira Instância seja competente para apreciar os factos que lhe são apresentados, a questão da desvirtuação desses elementos ou a da desvirtuação do acto impugnado pode ser sujeita à fiscalização do Tribunal de Justiça no âmbito de um recurso de uma decisão do Tribunal de Primeira Instância (27). Um fundamento assente na desvirtuação do acto impugnado destina‑se a obter a declaração de que o Tribunal de Primeira Instância alterou o sentido, o conteúdo ou o alcance do acto contestado. A desvirtuação pode assim resultar de uma alteração do conteúdo do acto (28), da não tomada em consideração dos seus aspectos essenciais (29) ou de não ter sido tido em conta o seu contexto (30).

47.      Dado que assenta numa desvirtuação da decisão impugnada, a presente acusação é admissível à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

48.      No entanto, entendo que esta acusação é improcedente.

49.      Importa recordar que esta desvirtuação deve decorrer de forma manifesta dos elementos do processo sem que seja necessário proceder a uma nova apreciação dos factos e das provas (31). Ora, a apreciação feita pelo Tribunal de Primeira Instância, nos n.os 61, 62 e 64 do acórdão recorrido, relativamente à decisão impugnada, não constitui, em minha opinião, uma desvirtuação manifesta desta última.

50.      Com efeito, uma simples leitura desta decisão permite perceber que a Comissão considerou claramente, a título principal, que a adopção da regulamentação controvertida não caía na esfera das actividades económicas do COI (32). Em minha opinião e tal como sustenta a Comissão (33), foi apenas a título subsidiário que examinou se as eventuais restrições causadas por esta regulamentação podiam ser justificadas à luz dos critérios enunciados no acórdão Wouters e o., já referido (34).

51.      Por outro lado, verifico que os recorrentes se limitam a contestar a apreciação feita pelo Tribunal de Primeira Instância e não fornecem nenhum elemento susceptível de demonstrar a existência de um erro manifesto.

3.      Quanto à violação dos direitos de defesa dos recorrentes pelo Tribunal de Primeira Instância

52.      Os recorrentes alegam que o Tribunal de Primeira Instância, ao considerar que não era necessário examinar a regulamentação controvertida à luz das regras da concorrência, impediu‑os de se pronunciarem sobre a questão de saber se esta regulamentação constituía uma regra puramente desportiva, estando por isso excluída do âmbito de aplicação dos artigos 49.° CE, 81.° CE e 82.° CE.

53.      Entendo que esta acusação também não tem fundamento e deve ser julgada improcedente. Com efeito, como a Comissão, considero que os recorrentes tiveram oportunidade de apresentar os seus argumentos, não só durante o procedimento iniciado pela Comissão, mas também nas fases escrita e oral do processo perante o Tribunal de Primeira Instância (35).

54.      Face ao exposto, proponho então que o Tribunal de Justiça julgue o quarto fundamento improcedente.

V –    Conclusão

55.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça negue provimento ao recurso e condene, nos termos dos artigos 69.° e 118.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, David Meca‑Medina e Igor Majcen nas despesas, com excepção das apresentadas pela interveniente.


1 – Língua original: francês.


2 – A seguir «recorrentes».


3 – T‑313/02, Colect., p. II‑3291, a seguir «acórdão recorrido».


4 – Processo COMP/38158 Meca‑Medina e Majcen/COI, a seguir «decisão impugnada», disponível no sítio Internet:


http://europa.eu.int/comm/competition/antitrust/cases/decisions/38158/fr.pdf.


5 – Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, Primeiro Regulamento de execução dos artigos [81.°] e [82.°] do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22).


6 – A seguir «COI».


7 – A seguir «FINA».


8 – Para mais elementos relativos aos antecedentes do litígio, remeto para a descrição feita pelo Tribunal de Primeira Instância nos n.os 1 a 34 do acórdão recorrido.


9 – A nandrolona é uma substância anabolizante proibida pelo Código Antidopagem do Movimento Olímpico.


10 – N.os 72 e 73.


11 – Acórdão de 19 de Fevereiro de 2002 (C‑309/99, Colect., p. I‑1577).


12 – Acórdão de 12 de Dezembro de 1974 (36/74, Colect., p. 595).


13 – Acórdão de 15 de Dezembro de 1995 (C‑415/93, Colect., p. I‑4921).


14 – Acórdão de 11 de Abril de 2000 (C‑51/96 e C‑191/97, Colect., p. I‑2549).


15 – Petição de recurso (n.os 21 a 32).


16 – V. resposta da Comissão (n.os 16 a 28) bem como as alegações da República Finlândia (n.° 8).


17 – V., designadamente, acórdãos Walrave e Koch (n.os 4 e 5) e Bosman (n.° 73), já referidos, e de 14 de Julho de 1976, Donà (13/76, Colect., p. 545, n.os 12 e 13).


18 – V., designadamente, acórdãos Donà (n.os 14 e 15) e Bosman (n.° 76 e 127), já referidos, e de 13 de Abril de 2000, Lehtonen e Castors Braine (C‑176/96, Colect., p. I‑2681, n.° 34).


19 – N.° 41, primeiro período, do acórdão recorrido.


20 – V., resposta da Comissão (n.os 29 a 41) e alegações da República da Finlândia (n.os 11 a 13).


21 – Resposta (n.° 35).


22 – Petição de recurso (n.os 40 a 53).


23 – Os recorrentes referem‑se, designadamente ao n.° 69 do acórdão Deliège, já referido, bem como aos n.os 97 a 109 e 123 do acórdão Wouters e. o., já referido.


24 – Resposta (n.os 42 a 56).


25 – V., nesta acepção, nomeadamente, acórdão de 29 de Abril de 2004, Parlamento/Ripa di Meana e o. (C‑470/00 P, Colect., p. I‑4167, n.° 40, bem como jurisprudência aí referida).


26 – Petição de recurso (n.os 54 a 64).


27 – V., designadamente, acórdãos de 28 de Maio de 1998, New Holland Ford/Comissão (C‑8/95 P, Colect., p. I‑3175, n.° 26), de 9 de Setembro de 1999, Lucaccioni/Comissão (C‑257/98 P, Colect., p. I‑5251, n.os 45 a 47) bem como despachos de 27 de Janeiro de 2000, Proderec/Comissão (C‑341/98 P, não publicado na Colectânea, n.° 28) e de 9 de Julho de 2004, Fichtner/Comissão (C‑116/03 P, não publicado na Colectânea, n.° 33).


28 – V., nesta acepção, designadamente, acórdão de 11 de Setembro de 2003, Bélgica/Comissão (C‑197/99 P, Colect., p. I‑8461, n.° 67).


29 – V., nesta acepção, designadamente, despacho de 11 de Abril de 2001, Comissão/Trenker [C‑459/00 P(R), Colect., p. I‑2823, n.° 71].


30 – V., nesta acepção, designadamente, acórdão de 3 de Abril de 2003, Parlamento/Samper (C‑277/01 P, Colect., p. I‑3019, n.° 40).


31 – V., designadamente, acórdão New Holland Ford/Comissão, já referido (n.os 72 e 73).


32 – Decisão impugnada (n.° 38).


33 – Resposta (n.° 62).


34 – Decisão impugnada (n.os 42 a 55).


35 – Resposta (n.os 65 a 72).