Language of document : ECLI:EU:C:2013:404

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

18 de junho de 2013 (*)

«Acordos, decisões e práticas concertadas ― Artigo 101.° TFUE ― Regulamento (CE) n.° 1/2003 ― Artigos 5.° e 23.°, n.° 2 ― Requisitos subjetivos de imposição de uma coima ― Impacto de um parecer jurídico ou de uma decisão de uma autoridade nacional da concorrência ― Faculdade de uma autoridade nacional da concorrência declarar a existência de uma infração ao direito da concorrência da União Europeia, sem aplicar uma coima»

No processo C‑681/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Oberster Gerichtshof (Áustria), por decisão de 5 de dezembro de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 27 de dezembro de 2011, no processo

Bundeswettbewerbsbehörde,

Bundeskartellanwalt

contra

Schenker & Co. AG,

ABX Logistics (Austria) GmbH,

Alpentrans Spedition und Transport GmbH,

Logwin Invest Austria GmbH,

DHL Express (Austria) GmbH,

G. Englmayer Spedition GmbH,

Express‑Interfracht Internationale Spedition GmbH,

A. Ferstl Speditionsgesellschaft mbH,

Spedition, Lagerei und Beförderung von Gütern mit Kraftfahrzeugen Alois Herbst GmbH & Co. KG,

Johann Huber Spedition und Transportgesellschaft mbH,

Kapeller Internationale Spedition GmbH,

Keimelmayr Speditions‑ u. Transport GmbH,

Koch Spedition GmbH,

Maximilian Schludermann, na qualidade de mandatário liquidatário da Kubicargo Speditions GmbH,

Kühne + Nagel GmbH,

Lagermax Internationale Spedition Gesellschaft mbH,

Morawa Transport GmbH,

Johann Ogris Internationale Transport‑ und Speditions GmbH,

Logwin Road + Rail Austria GmbH,

Internationale Spedition Schneckenreither Gesellschaft mbH,

Leopold Schöffl GmbH & Co. KG,

«Spedpack»‑Speditions‑ und Verpackungsgesellschaft mbH,

Johann Strauss GmbH,

Thomas Spedition GmbH,

Traussnig Spedition GmbH,

Treu SpeditionsgesmbH,

Spedition Anton Wagner GmbH,

Gebrüder Weiss GmbH,

Wildenhofer Spedition und Transport GmbH,

Marehard u. Wuger Internat. Speditions‑ u. Logistik GmbH,

Rail Cargo Austria AG,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, K. Lenaerts, vice‑presidente, A. Tizzano, R. Silva de Lapuerta, M. Ilešič e M. Berger, presidentes de secção, E. Juhász (relator), U. Lõhmus, E. Levits, A. Ó Caoimh, J.‑C. Bonichot, J.‑J. Kasel, M. Safjan, D. Šváby e A. Prechal, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 15 de janeiro de 2013,

vistas as observações apresentadas:

─        em representação da Bundeswettbewerbsbehörde, por T. Thanner, K. Frewein e N. Harsdorf Enderndorf, na qualidade de agentes,

─        em representação do Bundeskartellanwalt, por A. Mair, na qualidade de agente,

─        em representação da Schenker & Co. AG, por A. Reidlinger e F. Stenitzer, Rechtsanwälte,

─        em representação da ABX Logistics (Áustria) GmbH, da Logwin Invest Austria GmbH e da Logwin Road + Rail Austria GmbH, por A. Ablasser‑Neuhuber e G. Fussenegger, Rechtsanwälte,

─        em representação da Alpentrans Spedition und Transport GmbH, da Kapeller Internationale Spedition GmbH, da Johann Strauss GmbH e da Wildenhofer Spedition und Transport GmbH, por N. Gugerbauer, Rechtsanwalt,

─        em representação da DHL Express (Áustria) GmbH, por F. Urlesberger, Rechtsanwalt,

─        em representação da G. Englmayer Spedition GmbH, da Internationale Spedition Schneckenreither Gesellschaft mbH e da Leopold Schöffl GmbH & Co. KG, por M. Stempkowski e M. Oder, Rechtsanwälte,

─        em representação da Express‑Interfracht Internationale Spedition GmbH, por D. Thalhammer, Rechtsanwalt,

─        em representação da Kühne + Nagel GmbH, por M. Fellner, Rechtsanwalt,

─        em representação da Lagermax Internationale Spedition Gesellschaft mbH, por K. Wessely, Rechtsanwältin,

─        em representação da Johann Ogris Internationale Transport‑ und Speditions GmbH e Traussnig Spedition GmbH, por M. Eckel, Rechtsanwalt,

─        em representação da Gebrüder Weiss GmbH, por I. Hartung, Rechtsanwältin,

─        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por L. D’Ascia, avvocato dello Stato,

─        em representação do Governo polaco, por M. Szpunar e B. Majczyna, na qualidade de agentes,

─        em representação da Comissão Europeia, por N. von Lingen, M. Kellerbauer e L. Malferrari, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 28 de fevereiro de 2013,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 101.° TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Bundeswettbewerbsbehörde (autoridade federal da concorrência) e o Bundeskartellanwalt (agente federal em matéria de cartéis) a 31 empresas, entre as quais a Schenker & Co. AG (a seguir «Schenker»), a respeito da declaração da existência de uma violação do artigo 101.° TFUE e das disposições do direito nacional relativas aos cartéis, bem como da condenação numa coima ao abrigo das disposições de direito nacional.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O considerando 1 do Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.° TFUE] e [102.° TFUE] (JO 2003, L 1, p. 1), enuncia:

«A fim de estabelecer um regime que assegure a não distorção da concorrência no mercado comum, há que proceder à aplicação eficaz e uniforme dos artigos [101.° TFUE] e [102.° TFUE] na Comunidade. [...]»

4        O artigo 5.° do referido regulamento, sob a epígrafe «Competência das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência», estabelece:

«As autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência têm competência para aplicar, em processos individuais, os artigos [101.° TFUE] e [102.° TFUE]. Para o efeito, podem, atuando oficiosamente ou na sequência de denúncia, tomar as seguintes decisões:

─        exigir que seja posto termo à infração,

─        ordenar medidas provisórias,

─        aceitar compromissos,

─        aplicar coimas, sanções pecuniárias compulsórias ou qualquer outra sanção prevista pelo respetivo direito nacional.

Sempre que, com base nas informações de que dispõem, não estejam preenchidas as condições de proibição, podem igualmente decidir que não se justifica a sua intervenção.»

5        O artigo 7.° do Regulamento n.° 1/2003, sob a epígrafe «Verificação e cessação da infração», dispõe, no seu n.° 1:

«Se, na sequência de uma denúncia ou oficiosamente, a Comissão verificar uma infração ao disposto nos artigos [101.° TFUE] ou [102.° TFUE], pode, mediante decisão, obrigar as empresas e associações de empresas em causa a porem termo a essa infração. […] Quando exista um interesse legítimo, a Comissão pode também declarar verificada a existência de uma infração que já tenha cessado.»

6        O artigo 10.° do referido regulamento, sob a epígrafe «Declaração de não aplicabilidade», prevê, no seu primeiro parágrafo:

«Sempre que o interesse público comunitário relacionado com a aplicação dos artigos [101.° TFUE] e [102.° TFUE] assim o exija, a Comissão, pode, através de decisão, declarar oficiosamente que o artigo [101.° TFUE] não se aplica a um acordo, decisão de associação de empresas ou prática concertada, quer por não estarem preenchidas as condições do n.° 1 do artigo [101.° TFUE] do Tratado, quer por estarem preenchidas as condições do n.° 3 do artigo [101.° TFUE].»

7        O artigo 15.°, n.° 3, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1/2003 tem a seguinte redação:

«As autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência podem, por sua própria iniciativa, apresentar observações escritas aos tribunais do respetivo Estado‑Membro sobre questões relacionadas com a aplicação dos artigos [101.° TFUE] ou [102.° TFUE]. Com o consentimento do tribunal em causa, podem igualmente apresentar observações orais aos tribunais do respetivo Estado‑Membro. A Comissão pode igualmente, por sua própria iniciativa, apresentar observações escritas aos tribunais dos Estados‑Membros nos casos em que tal seja exigido por forma a assegurar a aplicação coerente dos artigos [101.° TFUE] ou [102.° TFUE] do Tratado. Com o consentimento do tribunal em causa, pode igualmente apresentar observações orais.»

8        Nos termos do artigo 23.°, n.° 2, do referido regulamento, a Comissão pode, mediante decisão, aplicar coimas às empresas e associações de empresas, sempre que, deliberadamente ou por negligência, cometam uma infração ao disposto nos artigos 101.° TFUE ou 102.° TFUE.

9        Nos termos do artigo 23.°, n.° 5, do mesmo regulamento, «[a]s decisões aprovadas nos termos dos n.os 1 e 2 não têm caráter penal».

 Direito austríaco

10      O § 16 da Lei de 1988 sobre os cartéis (Kartellgesetz 1988, BGBl. 600/1988), em vigor no período compreendido entre 1 de janeiro de 1989 e 31 de dezembro de 2005, dispunha:

«Os cartéis de reduzida importância são cartéis cuja quota no abastecimento, no momento em que surgem,

1.      é inferior a 5% da totalidade do mercado nacional e

2.      é inferior a 25% de um eventual submercado local que exista no mercado nacional.»

11      O § 18, n.° 1, ponto 1, da Lei de 1988 sobre os cartéis previa:

«São proibidos os cartéis, ainda que parciais, nas seguintes condições:

1)      antes da sua autorização definitiva (artigos 23.° e 26.°); as práticas concertadas, os cartéis não intencionais e os cartéis de reduzida importância não são abrangidos por esta regra, a menos que os limiares definidos no artigo 16.° já não estejam preenchidos na sequência da adesão de uma empresa.»

12      O § 1, n.° 1, da Lei de 2005 sobre os cartéis (Kartellgesetz 2005, BGBl. I, 61/2005), em vigor desde 1 de janeiro de 2006, prevê:

«São proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que tenham por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência (cartéis).»

13      O § 2, n.° 2, ponto 1, da Lei de 2005 sobre as cartéis dispõe que:

«Os seguintes cartéis são sempre excluídos da proibição prevista no n.° 1:

1)      os cartéis nos quais participem empresas que, em conjunto, tenham uma quota inferior a 5% da totalidade do mercado nacional e a 25% de um eventual submercado local que exista no mercado nacional (cartéis de reduzida importância).»

14      O § 29, n.° 1, alíneas a) e d), da Lei de 2005 sobre os cartéis tem a seguinte redação:

«O Kartellgericht [órgão jurisdicional competente em matéria de cartéis] deve aplicar coimas

1)      a uma empresa ou associação de empresas, até 10% do volume de negócios total realizado durante o exercício social anterior, quando, deliberadamente ou por negligência,

a)      a referida empresa viole a proibição dos cartéis (§ 1), a proibição de práticas abusivas (§ 5), [...]

[...]

ou

d)      a empresa cometa uma infração ao disposto nos artigos [101.° TFUE] ou [102.° TFUE].»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15      Decorre da decisão de reenvio que as recorridas no processo principal eram membros da Spediteur‑Sammelladungs‑Konferenz (associação de transportadores de encomendas a granel, a seguir «SSK»). A SSK era um agrupamento de interesses, composto por uma parte dos membros ordinários da Zentralverband der Spediteure (federação das associações de transportadores, a seguir «Zentralverband»). A Zentralverband, constituída em associação, representa os interesses coletivos dos transportadores e dos prestadores de serviços de logística com uma licença de transporte.

16      Em 30 de maio de 1994, a SSK foi constituída em sociedade civil, sujeita à condição suspensiva de aprovação pelo Kartellgericht. A SSK, nos termos dos pontos 1 e 7.1 do seu acordo‑quadro, tinha por objetivo «oferecer aos expedidores e ao consumidor final tarifas mais vantajosas (em relação aos tarifários das empresas de caminhos de ferro para o transporte de encomendas avulsas) no âmbito do transporte rodoviário e ferroviário de encomendas a granel e, mediante a criação de condições de concorrência idênticas, promover a concorrência leal entre os seus membros, sendo este objetivo […] prosseguido tendo em especial consideração a conformidade com o direito da concorrência austríaco, da [União Europeia e do Espaço Económico Europeu (EEE)]».

17      Em 28 de junho de 1994, foi apresentado um pedido de autorização da SSK sob forma de cartel convencionado («Vereinbarungskartell») ao Kartellgericht. Este pedido expunha as disposições essenciais do referido acordo‑quadro e analisava a situação à luz do direito da União e do EEE. No referido pedido explicava‑se que a SSK apenas cobria operações de transporte de encomendas a granel no interior da Áustria, não sendo afetado o transporte entre a Áustria e os outros Estados. Além disso, referia‑se que, devido à muito reduzida quota de mercado em causa, concretamente, menos de 2% do mercado austríaco do transporte de mercadorias, não se verificavam restrições sensíveis da concorrência, o mercado não estava fechado e, além disso, o mercado estava aberto a prestadores de serviços estrangeiros. O paritätischer Ausschuss für Kartellangelegenheiten (comité paritário para os cartéis) considerou que a existência da SSK não se justificava economicamente, o que conduziu à retirada do pedido de autorização.

18      Por petição de 6 de fevereiro de 1995, a Zentralverband pediu ao Kartellgericht que declarasse que a SSK era um cartel de reduzida importância («Bagatellkartell») na aceção do artigo 16.° da Lei de 1988 sobre os cartéis e que, por conseguinte, podia ser executado sem autorização. Nessa petição, foram comunicados na íntegra a constituição da SSK, a conclusão do respetivo acordo‑quadro, o modelo das futuras tarifas comuns e o sistema aplicável aos clientes excecionais. Por despacho de 2 de fevereiro de 1996, o Kartellgericht constatou que a SSK era um cartel de reduzida importância na aceção do artigo 16.° da referida lei. Não tendo sido interposto recurso do despacho, este adquiriu força de caso julgado.

19      O escritório de advogados consultado pelo Kartellbevollmächtigte (representante em matéria de cartéis) da SSK também considerou que a SSK era um cartel de reduzida importância. Numa carta de 11 de março de 1996, o referido escritório descreveu os aspetos que deviam ser respeitados na execução da SSK, enquanto cartel de reduzida importância. Em contrapartida, a carta não abordava a questão da compatibilidade deste cartel de reduzida importância com o direito da União relativo aos cartéis.

20      Na perspetiva da entrada em vigor, em 1 de janeiro de 2006, da Lei de 2005 sobre os cartéis, a Zentralverband pediu ao referido escritório de advogados que analisasse as repercussões desta nova lei na SSK. Na sua resposta de 15 de julho de 2005, este escritório de advogados considerou que havia que verificar se a quota de mercado da SSK ultrapassava o limiar de 5% do mercado nacional e, caso esse limiar fosse ultrapassado, se os acordos celebrados no âmbito da SSK não eram afetados pela proibição de cartéis. Esta resposta não abordou a questão da compatibilidade da SSK com o direito da União relativo aos cartéis.

21      A Zentralverband realizou um inquérito por correio eletrónico, para determinar as quotas de mercado dos membros da SSK no domínio do transporte a granel de encomendas avulsas na Áustria, para os anos de 2004, 2005 e 2006. Para calcular as diferentes quotas de mercado, cingiu‑se aos princípios relativos à delimitação do mercado e ao cálculo das quotas de mercado que tinham sido utilizados no pedido de declaração apresentado pela Zentralverband e no subsequente despacho proferido nesta base pelo Kartellgericht. Deste inquérito decorre que a SSK detinha uma quota de mercado de 3,82%, em 2005, e de 3,23%, em 2006. O facto de a SSK continuar a não ultrapassar o limite de 5% nesses dois anos foi comunicado aos seus membros mais importantes. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, é de excluir que, até 2004, inclusive, se tenha ultrapassado o limite de 5% através de novas adesões.

22      Em 11 de outubro de 2007, a Comissão anunciou que, na véspera, alguns dos seus agentes tinham realizado inspeções‑surpresa nas instalações comerciais de várias empresas de transporte internacional e que tinha razões para suspeitar que as empresas em causa podiam ter violado disposições do Tratado CE que proíbem as práticas comerciais restritivas da concorrência.

23      Em 29 de novembro de 2007, a direção da SSK, a presidência da Zentralverband e um representante do escritório de advogados cujo aconselhamento jurídico tinha sido solicitado pela SSK discutiram a aplicação do direito da concorrência austríaco e europeu à colaboração existente na SSK e na Zentralverband. Pela primeira vez, foram expressas reservas quanto à legalidade do estatuto da SSK enquanto cartel de importância reduzida. Foi evocado o risco de aplicabilidade do direito da União relativo aos cartéis, dadas as dificuldades em determinar se as convenções ou os acordos eram efetivamente de natureza a afetar o comércio entre os Estados. A direção da SSK decidiu então dissolver a SSK por unanimidade.

24      Em 18 de fevereiro de 2010, a Bundeswettbewerbsbehörde pediu ao Oberlandesgericht Wien, na qualidade de órgão jurisdicional competente em matéria de cartéis, que declarasse que a Schenker tinha violado, nomeadamente, o artigo 101.° TFUE, sem, contudo, a condenar no pagamento de uma coima, tendo, em contrapartida, pedido a condenação das outras recorridas no pagamento de uma coima por infração ao artigo 101.° TFUE. Defendeu que, entre o ano de 1994 e 29 de novembro de 2007, ao terem‑se concertado sobre as tarifas do transporte nacional de encomendas a granel na Áustria, as recorridas participaram numa infração única, complexa e multiforme ao direito nacional e da União relativo aos cartéis.

25      As recorridas concluíram pela improcedência do pedido da Bundeswettbewerbsbehörde e, com exceção da Schenker, contestaram, nomeadamente, a sua culpa, alegando que o Kartellgericht tinha declarado que a SSK era um cartel de importância reduzida, que o referido cartel era publicamente conhecido e que tinham recorrido ao aconselhamento de um escritório de advogados de confiança e com experiência no direito da concorrência. Sustentaram que o direito da União não era aplicável pelo facto de a restrição da concorrência não ter tido efeitos no comércio entre os Estados‑Membros.

26      Por despacho de 22 de fevereiro de 2011, o Oberlandesgericht Wien julgou improcedente este pedido da Bundeswettbewerbsbehörde.

27      O Oberlandesgericht Wien fundamentou a improcedência do referido pedido, considerando, nomeadamente, que às empresas em causa não podia ser imputada culpa por se terem concertado sobre os preços, na medida em que podiam invocar o despacho de 2 de fevereiro de 1996, no qual o Kartellgericht declarou que o seu acordo era um cartel de reduzida importância. Segundo o Oberlandesgericht Wien, este despacho implicava que a SSK não tinha tido efeitos no comércio entre os Estados‑Membros e que, por conseguinte, não havia infração ao artigo 101.° TFUE. O Oberlandesgericht Wien considera, além disso, que a inexistência de culpa das empresas em causa também podia ser explicada pelo facto de as empresas que participavam no cartel terem previamente solicitado um parecer jurídico sobre a legalidade do seu comportamento a um escritório de advogados especializado em direito dos cartéis.

28      Em relação à Schenker, que tinha apresentado um pedido de clemência e cooperado com a Administração no inquérito sobre o direito dos cartéis, a Bundeswettbewerbsbehörde pediu que fosse declarada uma infração ao artigo 101.° TFUE e ao direito austríaco dos cartéis, sem condenação numa coima. Este pedido foi julgado improcedente pelo Oberlandesgericht Wien, com fundamento em que, ao abrigo dos artigos 5.°, 7.° e 10.° do Regulamento n.° 1/2003, cabe apenas à Comissão declarar infrações sem aplicação de coima.

29      A Bundeswettbewerbsbehörde e o Bundeskartellanwalt recorreram do despacho do Oberlandesgericht Wien. Por articulado de 12 de setembro de 2011, a Comissão apresentou observações escritas no processo pendente no Oberster Gerichtshof, ao abrigo do artigo 15.° do Regulamento n.° 1/2003.

30      Neste contexto, o Oberster Gerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A violação do artigo 101.° TFUE por parte de uma empresa poderá ser objeto de uma coima quando a empresa se equivocou quanto à legalidade do seu comportamento, não lhe sendo este erro imputável?

Em caso de resposta negativa à primeira questão:

a)      Poder‑se‑á considerar que não lhe é imputável um erro sobre a legalidade [do seu] comportamento quando a empresa agiu de acordo com os conselhos de um consultor jurídico com experiência no domínio do direito da concorrência e a inexatidão do conselho não era manifesta nem passível de ser reconhecida através de uma análise razoavelmente exigível à empresa?

b)      Poder‑se‑á considerar que não lhe é imputável um erro sobre a legalidade do [seu] comportamento quando a empresa confiou na exatidão da decisão de uma autoridade nacional responsável em matéria de concorrência que analisou o comportamento em causa unicamente à luz do direito da concorrência nacional e confirmou a sua legalidade?

2)      As autoridades nacionais responsáveis em matéria de concorrência têm competência para declarar que uma empresa participou num cartel que viola o direito da concorrência da União caso não seja aplicada uma coima à empresa pelo facto de esta ter apresentado um pedido de clemência?»

 Quanto às questões prejudiciais

31      Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende ser esclarecido sobre os requisitos subjetivos relativos à aplicação de uma coima ao autor de uma infração às regras de concorrência da União, em particular sobre as repercussões que um parecer jurídico ou uma decisão de uma autoridade nacional da concorrência podem ter nesses requisitos. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio procura saber se uma autoridade nacional da concorrência pode declarar uma infração às regras de concorrência da União, sem aplicar uma coima ao autor da infração, caso a empresa em causa participe num programa de clemência.

32      Estas questões são submetidas no âmbito de um processo nacional de concorrência relativo à aplicação do artigo 101.° TFUE pelas autoridades nacionais da concorrência e pelos órgãos jurisdicionais nacionais, durante o período compreendido entre o ano de 1994 e 29 de novembro de 2007, concretamente, em parte, depois de 1 de maio de 2004, data a partir da qual o Regulamento n.° 1/2003 é aplicável. Além disso, na explicação das suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio faz referência à disposição pertinente do Tratado e a este regulamento como fundamentos jurídicos das suas questões.

 Quanto à primeira questão

33      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 101.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que uma empresa que violou esta disposição pode escapar à aplicação de uma coima, caso a referida infração tenha origem num erro dessa empresa quanto à legalidade do seu comportamento devido ao teor de um parecer jurídico de um advogado ou de uma decisão de uma autoridade nacional da concorrência.

34      Nos termos do artigo 23.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003, a Comissão pode, mediante decisão, aplicar coimas às empresas e às associações de empresas, sempre que, «deliberadamente ou por negligência», cometam uma infração ao disposto nos artigos 101.° TFUE ou 102.° TFUE.

35      O artigo 5.° do Regulamento n.° 1/2003 define a competência das autoridades da concorrência dos Estados‑Membros para a aplicação dos artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE e prevê que essas autoridades podem, nomeadamente, aplicar coimas, sanções pecuniárias compulsórias ou qualquer outra sanção prevista pelo respetivo direito nacional. Ora, não decorre da redação do referido artigo que a adoção das medidas de aplicação previstas no regulamento exija o preenchimento de requisitos de natureza subjetiva.

36      Contudo, ainda que, no interesse geral de uma aplicação uniforme dos artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE na União, os Estados‑Membros prevejam requisitos de natureza subjetiva no âmbito da aplicação do artigo 5.° do Regulamento n.° 1/2003, importa, a fim de não pôr em causa a eficácia do direito da União, que esses requisitos sejam, pelo menos, tão estritos como o previsto no artigo 23.° do Regulamento n.° 1/2003.

37      Quanto à questão de saber se uma infração foi cometida deliberadamente ou por negligência e se, por isso, é punível com coima nos termos do artigo 23.°, n.° 2, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1/2003, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que este requisito está preenchido quando a empresa em causa não possa ignorar o caráter anticoncorrencial do seu comportamento, quer tenha tido ou não consciência de violar as regras de concorrência do Tratado (v. acórdãos de 8 de novembro de 1983, IAZ International Belgium e o./Comissão, 96/82 a 102/82, 104/82, 105/82, 108/82 e 110/82, Recueil, p. 3369, n.° 45; de 9 de novembro de 1983, Nederlandsche Banden‑Industrie‑Michelin/Comissão, 322/81, Recueil, p. 3461, n.° 107; e de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, C‑280/08 P, Colet., p. I‑9555, n.° 124).

38      Por conseguinte, o facto de a empresa em causa ter qualificado de modo juridicamente errado o seu comportamento, no qual se baseia a declaração da existência de uma infração, não pode ter por efeito isentá‑la da aplicação de uma coima na medida em que a empresa em causa não podia ignorar o caráter anticoncorrencial do referido comportamento.

39      Decorre da decisão de reenvio que os membros da SSK se concertaram sobre as suas tarifas de transporte nacional de encomendas a granel, para todo o território austríaco. Ora, empresas que se concertam diretamente sobre os seus preços de venda não podem, manifestamente, ignorar o caráter anticoncorrencial do seu comportamento. Daqui decorre que, numa situação como a que está em causa no processo principal, está preenchido o requisito do artigo 23.°, n.° 2, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 1/2003.

40      Por fim, há que recordar que as autoridades nacionais da concorrência podem excecionalmente decidir não aplicar uma coima, apesar de uma empresa ter violado deliberadamente ou por negligência o artigo 101.° TFUE. Pode, nomeadamente, ser o que acontece quando um princípio geral de direito da União, como o princípio da proteção da confiança legítima, se opõe à aplicação de uma coima.

41      No entanto, ninguém pode invocar uma violação do princípio da proteção da confiança legítima, na falta de garantias precisas que lhe tenham sido fornecidas pela Administração competente (v. acórdãos de 17 de março de 2011, AJD Tuna, C‑221/09, Colet., p. I‑1655, n.° 72, e de 14 de março de 2013, Agrargenossenschaft Neuzelle, C‑545/11, n.° 25). Daqui decorre que um parecer jurídico de um advogado não pode, de qualquer modo, fundar a confiança legítima de uma empresa em que o seu comportamento não viola o artigo 101.° TFUE ou não dá lugar à aplicação de uma coima.

42      Uma vez que as autoridades nacionais da concorrência não são competentes para tomar uma decisão negativa, concretamente, uma decisão no sentido da inexistência de uma violação do artigo 101.° TFUE (acórdão de 3 de maio de 2011, Tele2 Polska, C‑375/09, Colet., p. I‑3055, n.os 19 a 30), não podem criar nas empresas uma confiança legítima em que o seu comportamento não viola a referida disposição. Além disso, decorre da formulação da primeira questão que a autoridade nacional da concorrência analisou o comportamento das empresas em causa no processo principal, unicamente, à luz do direito nacional da concorrência.

43      Importa, por conseguinte, responder à primeira questão que o artigo 101.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que uma empresa que tenha violado esta disposição não pode escapar à aplicação de uma coima, quando a referida infração tenha origem num erro desta empresa quanto à legalidade do seu comportamento devido ao teor de um parecer jurídico de um advogado ou de uma decisão de uma autoridade nacional da concorrência.

 Quanto à segunda questão

44      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se as autoridades nacionais da concorrência e os órgãos jurisdicionais nacionais responsáveis pela aplicação do artigo 101.° TFUE podem declarar a existência de uma infração a esta disposição, sem aplicar uma coima, quando a empresa em causa tenha participado num programa nacional de clemência.

45      É certo que o artigo 5.° do Regulamento n.° 1/2003 não prevê expressamente a competência das autoridades nacionais da concorrência para declarar a existência de uma infração ao artigo 101.° TFUE, sem aplicar uma coima, mas também não a exclui.

46      Contudo, para assegurar a aplicação efetiva do artigo 101.° TFUE no interesse geral (v. acórdão de 7 de dezembro de 2010, VEBIC, C‑439/08, Colet., p. I‑12471, n.° 56), importa que as autoridades nacionais da concorrência só excecionalmente deixem de aplicar uma coima quando uma empresa tenha violado deliberadamente ou por negligência a referida disposição.

47      Além disso, há que observar que essa não aplicação de uma coima pode ser concedida ao abrigo de um programa nacional de clemência apenas na medida em que este seja executado de forma a não prejudicar a exigência de aplicação eficaz e uniforme do artigo 101.° TFUE.

48      Assim, no que respeita ao poder da Comissão para reduzir coimas ao abrigo do seu próprio programa de clemência, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a redução de uma coima só se justifica, em caso de cooperação das empresas que participam em infrações ao direito da concorrência da União, se essa cooperação facilitar a tarefa da Comissão destinada a declarar a existência de uma infração e, sendo caso disso, a pôr‑lhe termo, devendo igualmente o comportamento da empresa demonstrar um verdadeiro espírito de cooperação (v., neste sentido, acórdão de 28 de junho de 2005, Dansk Rørindustri e o./Comissão, C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, Colet., p. I‑5425, n.os 393, 395 e 396).

49      Quanto à imunidade ou à não imposição de uma coima, tal tratamento, aliás em causa no processo principal, para não prejudicar a aplicação efetiva e uniforme do artigo 101.° TFUE, só pode ser concedido em situações estritamente excecionais, como aquelas em que a cooperação de uma empresa foi determinante para a deteção e a repressão efetiva do cartel.

50      Importa, pois, responder à segunda questão que o artigo 101.° TFUE e os artigos 5.° e 23.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003 devem ser interpretados no sentido de que, caso esteja demonstrada a existência de uma infração ao artigo 101.° TFUE, as autoridades nacionais da concorrência podem, excecionalmente, limitar‑se a declarar a existência dessa infração, sem aplicar uma coima, quando a empresa em causa tenha participado num programa nacional de clemência.

 Quanto às despesas

51      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 101.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que uma empresa que tenha violado esta disposição não pode escapar à aplicação de uma coima, quando a referida infração tenha origem num erro desta empresa quanto à legalidade do seu comportamento devido ao teor de um parecer jurídico de um advogado ou de uma decisão de uma autoridade nacional da concorrência.

2)      O artigo 101.° TFUE e os artigos 5.° e 23.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.° TFUE] e [102.° TFUE], devem ser interpretados no sentido de que, caso esteja demonstrada a existência de uma infração ao artigo 101.° TFUE, as autoridades nacionais da concorrência podem, excecionalmente, limitar‑se a declarar a existência dessa infração, sem aplicar uma coima, quando a empresa em causa tenha participado num programa nacional de clemência.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.