Language of document : ECLI:EU:C:2013:204

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 21 de março de 2013 (1)

Processo C‑274/12 P

Telefónica S.A.

contra

Comissão Europeia

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Decisão 2011/5/CE — Legislação fiscal espanhola em matéria de tributação do rendimento das sociedades — Legitimidade para recorrer de pessoas singulares e coletivas nos termos do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE — Atos regulamentares que não necessitam de medidas de execução — Interesse individual do beneficiário efetivo de um regime nacional de auxílios, que não tem obrigação de reembolso»





I —    Introdução

1.        No Tratado de Lisboa, os Estados‑Membros ampliaram a legitimidade dos particulares para recorrer de atos jurídicos da União. Atualmente, o artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE permite a qualquer pessoa singular ou coletiva interpor recursos «contra os atos regulamentares que lhe digam diretamente respeito e não necessitem de medidas de execução». O presente recurso permite esclarecer, pela primeira vez, em que circunstâncias este novo direito de recurso pode ser exercido contra decisões da Comissão em matéria de auxílios.

2.        Além disso, é de novo necessário explicar mais detalhadamente a fórmula «Plaumann», elaborada pelo Tribunal de Justiça há quase 50 anos e que se refere ao requisito do interesse individual no direito de recurso tradicional, previsto no artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE. Subjacente ao presente recurso está uma situação particular: um beneficiário efetivo de um regime fiscal nacional impugna uma decisão negativa da Comissão em matéria de auxílios, embora seja protegida a sua confiança legítima e possa conservar as vantagens proporcionadas pelo regime fiscal.

II — Antecedentes do litígio

3.        O artigo 12.°, n.° 5, da Lei espanhola do imposto sobre o rendimento das sociedades na versão de 5 de março de 2004 (a seguir «regime de auxílios») permitia, em determinadas circunstâncias, amortizar durante um período de até 20 anos o chamado valor do património (financial goodwill) resultante da aquisição de participações em empresas estrangeiras. O valor aplicável correspondia à diferença entre os custos de aquisição da participação e o valor proporcional de mercado dos ativos patrimoniais da empresa, na qual tinha sido adquirida a participação. As amortizações implicaram uma redução da dívida fiscal do adquirente.

4.        Dado que a Comissão qualificou este regime como auxílio de Estado, porque não era aplicável à aquisição de participações em empresas residentes e, deste modo, era seletivo, deu início ao procedimento formal de investigação previsto no artigo 88.°, n.° 2, CE. A decisão de dar início ao procedimento foi publicada no Jornal Oficial em 21 de dezembro de 2007.

5.        Uma vez concluído o procedimento, a Comissão emitiu a Decisão 2011/5/CE (2) (a seguir «decisão controvertida»), cujo artigo 1.° é do seguinte teor:

«1.      O regime de auxílios […] é incompatível com o mercado comum no que respeita aos auxílios concedidos aos beneficiários em relação às aquisições intracomunitárias.

2.      Contudo, as reduções de impostos [de que usufruíram os beneficiários] […] que cumprissem as condições pertinentes do regime de auxílios em 21 de dezembro de 2007, […] podem continuar a ser aplicadas em relação a todo o período de amortização estabelecido pelo regime de auxílios.

[…]»

6.        O artigo 4.°, n.° 1, da decisão controvertida impõe a recuperação dos auxílios pelo Reino de Espanha na medida em que não cumpram as condições descritas no artigo 1.°, n.° 2, da decisão. Nos termos do artigo 6.°, n.° 2, da decisão, o Reino de Espanha deve manter a Comissão informada «da evolução das medidas nacionais adotadas para dar cumprimento à presente decisão».

7.        A Telefónica S.A. beneficiou do regime de auxílios para duas aquisições de participações, em ambos os casos antes da data referida no artigo 1.°, n.° 2, da decisão controvertida. Não obstante, por recurso interposto em 21 de maio de 2010 contra a Comissão, solicitou a anulação do artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida.

8.        O Tribunal Geral declarou a inadmissibilidade do recurso no processo T‑228/10, por despacho de 21 de março de 2012 (a seguir «despacho impugnado»), que foi notificado à Telefónica S.A. em 23 de março de 2012. Segundo a fundamentação do despacho, a decisão controvertida nem diz individualmente respeito à Telefónica S.A. no sentido da segunda hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, nem constitui um ato regulamentar que não necessita de medidas de execução, no sentido da terceira hipótese desta disposição.

III — Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

9.        Em 1 de junho de 2012, a Telefónica S.A. (a seguir «recorrente») recorreu do despacho do Tribunal Geral, solicitando que o Tribunal de Justiça se digne:

¾        Anular o despacho impugnado;

¾        Declarar admissível o recurso no processo T‑228/10 e devolver o processo ao Tribunal Geral, para que este decida sobre o mérito;

¾        Condenar a Comissão nas despesas efetuadas nas duas instâncias.

10.      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

¾        Negar provimento ao recurso;

¾        Condenar a recorrente na totalidade das despesas.

11.      No âmbito do recurso, foram apresentadas no Tribunal de Justiça alegações escritas e alegações orais, em 4 de fevereiro de 2013.

IV — Apreciação

12.      A recorrente alega uma violação do direito da União pelo Tribunal Geral e apresenta três fundamentos.

13.      O primeiro fundamento diz respeito ao direito à proteção jurídica efetiva, o segundo e terceiro fundamentos à legitimidade para recorrer, nos termos do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE. Ao passo que o segundo fundamento se refere à legitimidade para recorrer de atos em geral, designadamente da Comissão, o terceiro fundamento refere‑se à legitimidade para recorrer de atos regulamentares. Dado que o caso especial prevalece sobre o geral, analisarei os fundamentos na ordem inversa ao formulado.

A —    Quanto à legitimidade para recorrer em especial de atos regulamentares (terceiro fundamento)

14.      Com o seu terceiro fundamento, a recorrente sustenta que o Tribunal Geral aplicou incorretamente os requisitos jurídicos respeitantes à legitimidade para recorrer indicados na terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE. Esta hipótese permite recursos contra os atos regulamentares que digam diretamente respeito ao recorrente e que não necessitem de medidas de execução.

15.      A este respeito, o Tribunal Geral refere, nos n.os 43 a 45 do despacho impugnado, que não é preciso determinar se a decisão controvertida constitui um ato regulamentar, dado que, em qualquer caso, necessita de medidas de execução. Entende, por isso, que está desde logo excluída uma legitimidade para recorrer, nos termos da terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

16.      Dado que o Tribunal de Justiça pode também substituir os fundamentos da decisão controvertida (3), considero que é necessário examinar a seguir não apenas a questão de saber se o Tribunal Geral interpretou corretamente o requisito relativo às medidas de execução mas todos os requisitos da legitimidade para recorrer, previstos na terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

1.      Ato regulamentar

17.      Para que a recorrente possa deduzir uma legitimidade para recorrer da terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, a decisão controvertida da Comissão deveria constituir um ato regulamentar.

18.      Como já assinalei, são atos regulamentares todos os atos jurídicos de caráter geral, exceto os atos legislativos no sentido do artigo 289.°, n.° 3, TFUE (4). Uma decisão (5) no sentido do artigo 288.°, quarto parágrafo, TFUE pode também ser um ato regulamentar, em especial quando não designa os destinatários (6).

19.      A decisão controvertida, que foi adotada ainda durante a vigência do artigo 249.°, n.° 4, CE não é um ato legislativo, uma vez que não foi adotada por processo legislativo.

20.      Deste modo, resta examinar se tem caráter geral.

21.      De acordo com a definição habitualmente utilizada na jurisprudência, uma medida tem caráter geral quando é aplicável a situações determinadas objetivamente e produz efeitos jurídicos relativamente a categorias de pessoas consideradas de forma geral e abstrata (7).

22.      Contra o preenchimento dos referidos requisitos no caso da decisão controvertida aponta, antes de mais, que ela tem um único destinatário, mais concretamente, nos termos do seu artigo 7.°, o Reino de Espanha. A Comissão considera que tal decisão não pode ter caráter geral, porque só é vinculativa para esse destinatário.

23.      Importa esclarecer, em primeiro lugar, que o caráter vinculativo de um ato jurídico não pode ser equiparado ao seu caráter geral. Com efeito, quer o artigo 249.°, n.° 2, CE, quer o artigo 288.°, segundo parágrafo, TFUE distinguem, em relação aos regulamentos, entre o seu caráter geral e a questão de saber em que medida são vinculativos.

24.      Contudo, milita a favor do entendimento da Comissão que o Tribunal de Justiça tem declarado repetidamente, quanto ao artigo 173.°, n.° 2, do Tratado CEE, que para distinguir entre um ato legislativo e uma decisão no sentido do artigo 189.° CE é decisivo saber se a medida em causa tem caráter geral (8). Deste modo, o Tribunal de Justiça considerou precisamente que o elemento característico de uma decisão é que ela não tem caráter geral (9).

25.      Todavia, as decisões que — como a controvertida no caso em apreço — têm por destinatários um ou vários Estados‑Membros, apresentam uma particularidade. Com efeito, cada Estado‑Membro representa também um ordenamento jurídico nacional. As decisões que se dirigem a um Estado‑Membro vinculam também todos os órgãos do Estado‑Membro, incluindo os seus tribunais (10). Logo, as decisões dirigidas a um Estado‑Membro, embora tenham um único destinatário, podem configurar um ordenamento jurídico nacional e, deste modo, ter caráter geral. Isto é confirmado também pela jurisprudência, segundo a qual as pessoas afetadas podem invocar as disposições de uma decisão dirigida unicamente a um Estado‑Membro (11). Logo, não surpreende que o Tribunal de Justiça também tenha reconhecido, em certos casos, o caráter geral de tais decisões (12).

26.      Acresce que, segundo jurisprudência assente, uma decisão da Comissão como a controvertida no presente processo, pela qual é proibido um regime de auxílios, constitui para os beneficiários potenciais do regime de auxílios uma norma de alcance geral, aplicável a situações determinadas objetivamente e que produz efeitos jurídicos em relação a categorias de pessoas consideradas de forma geral e abstrata (13). Assim, para os beneficiários potenciais de um regime de auxílios, a decisão da Comissão é uma medida de «caráter geral» (14).

27.      Deste modo, embora a proibição de um regime de auxílios se dirija ao Estado‑Membro em causa, ela altera ao mesmo tempo o ordenamento jurídico nacional. Com efeito, a decisão da Comissão impede todos os órgãos do referido Estado de continuar a aplicar o regime de auxílios. Produz, portanto, efeitos jurídicos também para todas as pessoas abrangidas pelo âmbito de aplicação do regime de auxílios. Na medida em que o próprio regime de auxílios é aplicável a situações determinadas objetivamente e produz efeitos jurídicos em relação a categorias de pessoas consideradas de forma geral e abstrata, o mesmo é válido para a decisão da Comissão que o proíbe.

28.      A norma da legislação fiscal espanhola em matéria de tributação do rendimento das sociedades, parcialmente proibida no caso vertente pela decisão controvertida, aplicava‑se a situações determinadas objetivamente de aquisições intracomunitárias de participações e produzia efeitos relativamente aos contribuintes como categoria de pessoas consideradas de forma geral e abstrata. A decisão controvertida reveste caráter geral, pelo menos na medida em que declara o regime de auxílios parcialmente incompatível com o mercado comum.

29.      A recorrente também só impugnou a decisão nesse ponto. Assim, o seu recurso foi interposto contra um ato regulamentar na aceção da terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

2.      Ato jurídico que não necessita de medidas de execução

30.      A terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE prevê ainda como requisito da legitimidade para recorrer que o ato jurídico impugnado não necessite de medidas de execução.

31.      Nos n.os 43 a 45 do despacho impugnado, o Tribunal Geral declarou que este requisito não está preenchido. Com efeito, resulta logo do artigo 6.°, n.° 2, da decisão controvertida que para a recuperação dos auxílios são necessárias medidas de execução. Além disso, a própria declaração da incompatibilidade do regime de auxílios com o mercado comum tem de ser executada, em especial negando a possibilidade de beneficiar das vantagens fiscais proporcionadas pelo referido regime.

32.      A recorrente objeta que a declaração da incompatibilidade de um regime de auxílios com o mercado comum tem eficácia direta e não necessita de medidas de execução. Afirma que o Tribunal Geral incorreu em erro de direito ao entender que a decisão necessita de medidas de execução, só porque tais medidas são necessárias para recuperar os auxílios. Com efeito, a recuperação é uma questão secundária face à proibição do regime de auxílios decorrente da declaração da sua incompatibilidade com o mercado comum, que constitui o objeto principal da decisão.

33.      Com base nestas considerações, importa constatar, antes de mais, que embora seja preciso examinar se o ato jurídico impugnado necessita de medidas de execução atendendo ao objeto do recurso, este consiste unicamente na declaração da incompatibilidade parcial do regime de auxílios com o mercado comum nos termos do artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida e não na recuperação dos auxílios, ordenada no artigo 4.°, n.° 1, da mesma decisão. Assim, importa esclarecer a seguir apenas se a declaração da incompatibilidade parcial do regime de auxílios com o mercado comum necessita de medidas de execução, no sentido da terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

34.      No entanto, não é de excluir à partida que a recuperação de um auxílio constitua uma medida de execução da declaração da sua incompatibilidade com o mercado comum. Isto depende da interpretação do requisito da legitimidade para recorrer, que será analisado a seguir.

a)      Teor literal

35.      Esta interpretação não é fácil, atendendo ao teor literal da terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

36.      Num primeiro momento, pode concordar‑se com as partes no presente processo, em que as medidas de execução no sentido do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE só se referem à aplicação do ato jurídico ao caso concreto. No entanto, milita em sentido contrário o facto de o conceito de «medida de execução» ser utilizado também no artigo 311.°, quarto parágrafo, primeiro período, TFUE para designar um regulamento que, nos termos do artigo 288.°, segundo parágrafo, primeiro período, TFUE, tem precisamente caráter geral. A versão francesa do TFUE inclui ainda uma outra aceção, ao utilizar o conceito de «mésures d’exécution» adicionalmente no artigo 299.°, quarto parágrafo, segundo período, TFUE, no sentido de medidas de execução coerciva, ou seja de aplicação efetiva de um ato jurídico.

37.      A imagem é ainda mais difusa ao tentar responder à questão de saber quando é que um ato regulamentar «necessita de» tais medida de execução. As versões alemã e inglesa (15) do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE descrevem uma consequência lógica ou temporal: o ato jurídico dá lugar a medidas de execução (posteriores). Ora, um ato jurídico, ao ser aplicado a casos concretos, dá sempre lugar a medidas de execução, de caráter jurídico ou factual, por exemplo no caso da sua aplicação coerciva. Só não necessitaria de medidas de execução um ato jurídico sem âmbito de aplicação.

38.      Acresce que o teor da versão francesa (16) do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE também pode ser interpretado no sentido de que o ato jurídico não pode conter medidas de execução. Uma formulação semelhante em língua alemã encontra‑se nos trabalhos preparatórios (17). Mas seria difícil de entender que não fosse impugnável precisamente um ato jurídico que já contém medidas de execução e que, por conseguinte, não necessita de outras.

b)      Trabalhos preparatórios

39.      Neste contexto, a relevância do requisito relativo às medidas de execução só pode ser determinada através do exame dos trabalhos preparatórios da terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

40.      Como já expliquei detalhadamente noutro contexto, a terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE remonta ao Projeto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, elaborado pela Convenção Europeia (18). O aditamento de «medidas de execução» visava garantir que a extensão do direito de recurso só se aplicasse aos casos em que o particular «tenha primeiro de infringir a lei para poder ter acesso a um tribunal»(19). Esta ideia já tinha sido formulada pelo advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Unión de Pequeños Agricultores/Conselho. Entendeu que o facto de o particular só poder impugnar a validade de um ato da União nos tribunais nacionais violando as normas constantes do referido ato e alegando a invalidade de tais normas como meio de defesa em processos civis e penais instaurados contra ele não constitui um meio adequado de tutela judicial (20).

41.      Tendo em conta este objetivo reconhecido (21) da terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, o requisito relativo às medidas de execução de um ato regulamentar deve ser entendido no sentido de que o ato jurídico — como também é defendido pelas partes no presente processo — produz efeitos diretamente face aos particulares, sem que sejam necessárias medidas de execução (22). Ao tomar‑se como critério determinante a necessidade de medidas de execução tem‑se em conta o sentido e a finalidade da legitimidade para recorrer: só é necessária uma proteção jurídica direta quando o próprio ato regulamentar produz efeitos jurídicos definitivos sobre o particular.

42.      A este respeito, há que distinguir entre efeitos jurídicos abstratos e concretos de um ato jurídico. Como já se viu, um elemento da definição de ato jurídico com caráter geral é que este produz efeitos jurídicos relativamente a categorias de pessoas consideradas de forma geral e abstrata (23). Não obstante, tais efeitos jurídicos abstratos, que surgem da aplicação de uma norma, não permitem por si só afirmar que um ato jurídico já não precisa de medidas de execução. Caso contrário, o requisito adicional de que um ato regulamentar não necessite de medidas de execução deixaria de ter qualquer significado. Por esse motivo, os efeitos jurídicos a constatar devem ser tão concretos que já não tenham de ser individualizados para cada pessoa. Por outras palavras, o próprio ato regulamentar deve determinar de maneira definitiva os seus efeitos jurídicos para cada particular.

c)      Necessidade de medidas de execução para a decisão controvertida

43.      As partes parecem estar de acordo a nível abstrato, mas não sobre a questão de saber se a decisão controvertida no caso em apreço ainda necessita de medidas de execução.

44.      A Comissão defende que a decisão controvertida necessita de medidas de execução, por só ser vinculativa para o seu destinatário, o Reino de Espanha. Isto é válido em especial quanto à recuperação dos auxílios, que exige outros atos jurídicos da Espanha.

45.      Ao invés, a recorrente alega que a decisão controvertida produz efeitos jurídicos diretos sob múltiplas perspetivas. Estes efeitos não se referem apenas ao Reino de Espanha. A proibição do regime de auxílios, constante do artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida e que é diretamente aplicável, também impede diretamente os beneficiários efetivos e potenciais de continuarem a ter acesso ao regime de auxílios.

46.      Note‑se, antes de mais, que, contrariamente à fundamentação da decisão controvertida e ao entendimento da Comissão, a recuperação dos auxílios não constitui uma medida de execução necessária para a declaração da incompatibilidade parcial do regime de auxílios com o mercado comum, constante do artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida. É certo que esta declaração constitui um requisito necessário — ou «lógico» (24) — para recuperar os auxílios. Contudo, o artigo 14.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 659/1999 (25) e a situação da recorrente mostram que a recuperação não é uma consequência necessária da declaração de incompatibilidade, mas decorre de uma decisão separada da Comissão. Logo, a obrigação de recuperar determinados auxílios, imposta à Espanha no artigo 4.°, n.° 1, da decisão controvertida, é uma parte autónoma da decisão, cuja necessidade de execução é irrelevante para o objeto do presente recurso, uma vez que não foi impugnada.

47.      Assim, para determinar a legitimidade da recorrente para interpor recurso, é decisivo apenas se a declaração da incompatibilidade parcial do regime de auxílios com o mercado comum necessita, como tal, de medidas de execução.

48.      A recorrente tem razão ao afirmar que esta declaração produz efeitos jurídicos concretos diretos, na medida em que isto se refere apenas ao Estado‑Membro destinatário da decisão. Por isso, a Comissão indica acertadamente que, nos termos do artigo 249.°, quarto parágrafo, CE, essa decisão não vincula outras pessoas.

49.      Mas, como já se viu, a decisão dirigida unicamente ao Estado‑Membro também tem como consequência uma transformação do ordenamento jurídico nacional (26). Nessa medida, a inaplicabilidade do regime de auxílios também produz efeitos jurídicos para as pessoas abrangidas pelo âmbito de aplicação do referido regime. Por conseguinte, é necessário analisar a necessidade de medidas de execução atendendo também a esses efeitos.

50.      A este respeito, importa assinalar que o necessário efeito jurídico concreto e definitivo não existe para os beneficiários do regime de auxílios. Na verdade, o artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida não regula quais as repercussões da inaplicabilidade do regime de auxílios aos respetivos contribuintes. Estas repercussões só decorrem de um aviso de liquidação, dado que para os contribuintes não resulta da própria inaplicabilidade do regime de auxílios nem uma proibição nem uma obrigação. Acresce que as consequências da inaplicabilidade do regime de auxílios para o resultado do aviso de liquidação não são iguais para todas as pessoas abrangidas pelo âmbito de aplicação do referido regime. Em primeiro lugar, é necessário que tenha ocorrido durante um exercício fiscal uma aquisição de participações. Além disso, as suas repercussões concretas são distintas para cada pessoa afetada em abstrato, consoante o valor do património (financial goodwill) resultante nos termos do regime de auxílios e o montante das perdas ou ganhos a determinar quanto ao resto.

51.      Deste modo, para os contribuintes é necessário que os efeitos jurídicos da inaplicabilidade do regime de auxílios sejam individualizados através de um aviso de liquidação. O aviso de liquidação é, portanto, uma medida de execução da qual o artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida «necessit[a]» na aceção do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

52.      Neste contexto, também não é relevante se se trata de uma medida de execução da União ou — como no caso vertente — de um Estado‑Membro. Na verdade, o sistema judicial e o sistema administrativo da União baseiam‑se na cooperação entre os organismos da União e dos Estados‑Membros.

53.      A inaplicabilidade parcial do regime de auxílios previsto na legislação fiscal espanhola em matéria de tributação do rendimento das sociedades também não é uma proibição que os contribuintes poderiam violar, ficando por isso sujeitos à aplicação de sanções. Do ponto de vista da técnica jurídica, decorre da inaplicabilidade a eliminação da possibilidade de beneficiar de uma vantagem fiscal. Não se descortina por que motivo não seria possível exigir dos contribuintes que invoquem na sua declaração fiscal uma amortização, nos termos do regime de auxílios, e impugnem seguidamente junto de um órgão jurisdicional nacional um aviso de liquidação que rejeite essa amortização. O órgão jurisdicional nacional pode assim controlar, de maneira incidental, a legalidade do artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida e, se necessário, submeter ao Tribunal de Justiça a questão da sua validade à luz do artigo 267.° TFUE.

54.      A este respeito, também não é relevante o facto de a recorrente ter renunciado à invocação do regime de auxílios por falta de segurança na planificação. A recorrente afirma que, por precaução, após a data referida no artigo 1.°, n.° 2, da decisão controvertida, determinante para efeitos de proteção da confiança, estruturou duas aquisições de participações de modo a não incluir a aplicação do regime de auxílios, pelo que nem seria possível realizar uma apreciação incidental. Contudo, esta consequência resulta apenas de ela ter previsto a probabilidade de a decisão controvertida ser válida, e da forma de atuar que daí decorre, mas não da impossibilidade de recorrer diretamente para o Tribunal Geral. Mesmo que tivesse esta possibilidade de recurso, a recorrente ainda não teria podido adquirir as participações beneficiando de segurança jurídica.

55.      Em suma, o Tribunal Geral declarou a justo título, no n.° 44 do despacho impugnado, que a recusa de concessão da vantagem fiscal prevista no regime de auxílios constitui uma medida de execução da decisão controvertida.

56.      Assim, o artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida necessita de medidas de execução na aceção do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE. Portanto, o recurso da recorrente não se dirige contra um ato regulamentar que não necessita de medidas de execução.

3.      Conclusão provisória

57.      A recorrente não tinha assim legitimidade para recorrer, nos termos da terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, dado que o artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida, embora constitua um ato regulamentar, necessita de medidas de execução. O terceiro fundamento é, por isso, infundado.

4.      Afetação direta

58.      Se o Tribunal de Justiça chegar a uma conclusão diferente, para determinar a legitimidade da recorrente para interpor recurso nos termos da terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, importa ainda verificar se ela é diretamente afetada pelo artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida.

59.      Como não há nenhuma razão para interpretar o requisito da afetação direta de modo diferente do que foi feito a propósito da segunda hipótese (27), há que considerar, segundo jurisprudência assente, que um recorrente é diretamente afetado quando, em primeiro lugar, a medida da União impugnada produz diretamente efeitos na sua situação jurídica e, em segundo lugar, não deixa qualquer margem de apreciação aos destinatários que estão encarregados da sua aplicação, por esta ter caráter puramente automático e decorrer apenas da regulamentação da União, sem aplicação de outras regras intermédias (28).

60.      A segunda condição pressupõe que o ato impugnado tenha ainda de ser executado. Ora isto é precisamente o que não sucede quando um ato jurídico não necessita de medidas de execução. Tais atos produzem sempre automaticamente os seus efeitos jurídicos, que decorrem apenas da regulamentação da União.

61.      Assim, no âmbito da terceira hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, é relevante apenas saber se o ato impugnado produz diretamente efeitos na situação jurídica do recorrente. Desta maneira, é estabelecida a relação com o recorrente concreto. Com efeito, os dois primeiros requisitos referem‑se apenas ao ato jurídico impugnado, sem ter em conta a situação do recorrente. Se nada mais fosse exigido, qualquer pessoa poderia impugnar um ato regulamentar que não necessita de medidas de execução, independentemente de estar abrangida pelo âmbito de aplicação deste ato jurídico. A exigência da afetação direta do recorrente visa assim excluir a ação popular, tal como a segunda hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

62.      Mas se o recorrente estiver abrangido pelo âmbito de aplicação de um ato jurídico desse tipo, este produz necessariamente também um efeito direto sobre ele. É o que acontece com a recorrente se ela estiver abrangida pelo âmbito de aplicação do regime de auxílios, que não pode ser aplicado por força do artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida. Como a recorrente está sujeita ao imposto sobre o rendimento das sociedades no Reino de Espanha, ela seria também diretamente afetada — caso o Tribunal de Justiça considerar a decisão um ato regulamentar, que não necessita de medidas de execução.

B —    Quanto à legitimidade para recorrer de qualquer ato em geral (segundo fundamento)

63.      Com o segundo fundamento, a recorrente critica o Tribunal Geral por ter aplicado incorretamente a jurisprudência relativa à admissibilidade de recursos de decisões em matéria de auxílios, nos termos da segunda hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE. Nessa hipótese, qualquer pessoa pode interpor recurso contra qualquer ato da Comissão que lhe diga direta e individualmente respeito, ainda que não seja destinatária do ato.

64.      No despacho impugnado, o Tribunal Geral entendeu que a decisão controvertida não dizia individualmente respeito à recorrente. Nos n.os 23 a 26, explicou que uma decisão da Comissão, que proíbe um regime de auxílios, só diz individualmente respeito a uma empresa quando esta beneficia efetivamente do regime de auxílios e a Comissão ordenou a recuperação do auxílio. É certo que a recorrente beneficia efetivamente do regime de auxílios. Contudo, nos termos do artigo 1.°, n.° 2, da decisão controvertida, ela beneficia da proteção da confiança legítima e não é precisamente afetada pelo dever de recuperar o auxílio.

65.      Segundo jurisprudência assente, os sujeitos que não sejam destinatários de uma decisão só podem alegar que a mesma lhes diz individualmente respeito se essa decisão os prejudicar por determinadas qualidades que lhes são específicas ou por circunstâncias especiais que os caracterizam relativamente a qualquer outra pessoa, individualizando‑os, por isso, de forma idêntica à do destinatário dessa decisão (29). Como já expliquei, esta jurisprudência deve também ser tida em conta ao examinar a legitimidade para recorrer, nos termos da nova versão do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE (30).

66.      O Tribunal de Justiça reconheceu essa individualização de uma pessoa no caso dos beneficiários efetivos de auxílios concretos concedidos ao abrigo de um regime de auxílios cuja recuperação foi ordenada pela Comissão (31). A este respeito, declarou que a ordem de recuperação expõe os beneficiários do regime de auxílios ao risco de serem recuperadas as vantagens que obtiveram, afetando assim a sua posição jurídica. Além disso, a eventualidade de, ulteriormente, os auxílios declarados ilegais não virem a ser recuperados junto dos seus beneficiários não significa que estes não sejam individualmente afetados (32).

67.      A recorrente considera que esta jurisprudência é aplicável à sua situação. Afirma que, embora o artigo 1.°, n.° 2, da decisão controvertida não a obrigue a restituir os auxílios recebidos, ela corre o risco de ter de proceder a essa restituição. Este risco resulta, por um lado, do facto de um concorrente já ter recorrido dessa disposição para o Tribunal Geral (33). Por outro, devido à declaração da incompatibilidade parcial do regime de auxílios com o mercado comum, é possível que sejam interpostos recursos por terceiros a nível nacional.

68.      A Comissão entende que, ao apreciar se um recorrente é individualmente afetado, é irrelevante o que se passa após ter sido adotada a decisão controvertida. Isto aplica‑se em especial a eventuais decisões judiciais relativas à decisão controvertida.

69.      Antes de mais, importa considerar também o objeto do presente recurso ao examinar a segunda hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE. Com o seu recurso, a recorrente impugnou apenas o artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida, que declara a incompatibilidade parcial do regime de auxílios com o mercado comum. Assim, esta disposição deveria dizer individualmente respeito à recorrente.

70.      Abstraindo da ordem de recuperar os auxílios, que não é objeto do recurso, o artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida só afeta a recorrente na medida em que a impede de beneficiar, no futuro, do regime de auxílios. Ora, segundo jurisprudência assente, uma empresa não pode, em princípio, impugnar uma decisão da Comissão que proíbe um regime de auxílios setorial, se essa decisão apenas lhe disser respeito em virtude de pertencer ao setor em questão e da sua qualidade de potencial beneficiária do referido regime (34). A recorrente não pode, portanto, ser individualmente afetada em virtude da sua qualidade de beneficiária potencial do regime de auxílios. O benefício efetivo obtido no passado também não a distingue das pessoas que, no futuro, já não podem desfrutar desse benefício.

71.      Mas, na medida em que a recorrente alega, na qualidade de beneficiária efetiva, o risco de ter de restituir os auxílios já recebidos, há que notar que esse risco deve, em qualquer caso, decorrer da própria decisão controvertida. Também a jurisprudência referida pela recorrente, que atende ao mero risco de uma recuperação, dizia respeito a um risco desse tipo. Com efeito, não resultava claramente da decisão da Comissão se existia nesse caso concreto um auxílio inadmissível e se o auxílio devia ser recuperado por essa razão (35).

72.      No entanto, nos termos da decisão controvertida no presente processo, não há dúvida de que a recorrente nada tem a reembolsar. Não existe, portanto, um risco decorrente da decisão controvertida, mas apenas do caso de a decisão controvertida ter de ser alterada por iniciativa de um terceiro. A recorrente pode impugnar essa nova decisão, sem que isso possa ser impedido pelos efeitos de caso julgado noutros processos.

73.      A declaração da incompatibilidade parcial do regime de auxílios com o mercado comum, constante da decisão controvertida, também não implica um risco de perda das vantagens recebidas devido a recursos eventualmente interpostos por terceiros a nível nacional. A este respeito, a Comissão indicou, a justo título, que os tribunais nacionais estão vinculados pela decisão controvertida e pela proteção da confiança legítima que ela concede. A proteção da confiança legítima conferida pelo artigo 1.°, n.° 2, da decisão controvertida vale também face a outras pretensões a que a recorrente teme ser exposta.

74.      No despacho impugnado, o Tribunal Geral declarou portanto, a justo título, que a recorrente não é individualmente afetada pelo artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida no sentido da segunda hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE. Por conseguinte, o segundo fundamento é igualmente infundado.

C —    Quanto à violação do direito a proteção jurídica efetiva (primeiro fundamento)

75.      Por último, com o seu primeiro fundamento, a recorrente alega ainda que o despacho impugnado viola o seu direito a proteção jurídica efetiva. Este direito resulta dos artigos 6.° e 13.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH»), e do artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

76.      A este respeito, o Tribunal Geral indicou, no n.° 38 do despacho recorrido, que nada impede o recorrente de propor, num processo perante um tribunal nacional, que seja apresentado um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, a fim de questionar a validade da decisão controvertida, na medida em que isso seja necessário.

77.      A recorrente entende, ao invés, que esta possibilidade não é efetiva, dado que desta maneira não lhe é garantido o acesso ao juiz da União. Por um lado, não é certo que venha a surgir um litígio a nível nacional (36). Por outro, a via do processo prejudicial não é equiparável à do recurso nos termos do artigo 263.° TFUE, face às incertezas quanto à apresentação de um pedido de decisão prejudicial, à duração e às modalidades desse tipo de processo.

78.      Nas conclusões que apresentei no processo C‑583/11 P, já expliquei detalhadamente que o direito à ação consagrado no artigo 47.° da Carta, tendo em conta os artigos 6.° e 13.° da CEDH, não exige a faculdade de impugnar diretamente os atos legislativos (37). O mesmo é válido para a decisão controvertida, que tem caráter geral. Com efeito, o sistema de proteção jurisdicional dos Tratados, que se baseia nos órgãos jurisdicionais nacionais e da União, também garante neste caso proteção jurídica efetiva pela via da impugnação incidental (38).

79.      É certo que, atendendo ao direito à ação, não seria suficiente que um particular se visse obrigado a comportar‑se ilicitamente e a correr o risco de lhe ser aplicada uma sanção, para solicitar o controlo da legalidade de um ato jurídico no âmbito da impugnação da sanção (39). Contudo, isto não parece suceder no caso vertente (40).

80.      Logo, como o despacho impugnado não viola nem o artigo 47.° da Carta, nem os artigos 6.° e 13.° da CEDH, o primeiro fundamento é também infundado.

D —    Quanto ao interesse em agir

81.      Dado que todos os três fundamentos do recurso da recorrente são infundados, o recurso deve ser julgado improcedente. Não obstante, se o Tribunal de Justiça considerar que a recorrente tem legitimidade para interpor recurso nos termos da segunda ou da terceira hipóteses do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, será ainda necessário examinar o interesse em agir da recorrente.

82.      No processo no Tribunal Geral, a Comissão tinha fundamentado a sua exceção da inadmissibilidade também com a falta de um interesse em agir da recorrente. No n.° 46 do despacho impugnado, o Tribunal Geral deixou esta questão em aberto.

83.      No âmbito do presente processo, a Comissão alega de novo a falta de um interesse em agir quanto ao recurso e solicita ao Tribunal de Justiça que confirme o despacho, se necessário substituindo os fundamentos.

84.      A recorrente contrapõe que tem um interesse jurídico na anulação do artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida. Sustenta, por um lado, que isto eliminaria o risco de ser lesada pela declaração da incompatibilidade do regime de auxílios com o mercado comum, ao ser‑lhe eventualmente negada a proteção da sua confiança legítima. Por outro, a recorrente poderia, no futuro, voltar a beneficiar do regime de auxílios. É verdade que este regime foi entretanto suprimido pelo Reino de Espanha, devido à decisão controvertida. Contudo, a anulação do artigo 1.°, n.° 1, desta decisão permitiria voltar a estabelecer esse regime ou apresentar um pedido de indemnização contra o Estado espanhol.

85.      Um recurso só é admissível se o recorrente tem interesse em agir, atendendo ao objeto do recurso. Isto pressupõe que o recurso possa produzir um resultado suscetível de beneficiar a parte que o interpõe (41).

86.      Penso que a constatação desse benefício não deve estar sujeita a exigências excessivas. Isto é válido, em particular, quando as condições estritas da segunda ou da terceira hipóteses do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE já estão preenchidas, o que deve ser presumido no âmbito deste exame a título subsidiário. A exigência de um interesse em agir destina‑se a proteger todas as partes num processo, evitando que sejam envolvidas num litígio que não tenha qualquer utilidade para o recorrente. Contudo, isto não sucede no caso vertente.

87.      É certo que não descortino qualquer benefício quanto às aquisições de participações já realizadas, para as quais o artigo 1.°, n.° 2, da decisão controvertida confere à recorrente a proteção da confiança legítima. Nessa medida, a anulação do artigo 1.°, n.° 1, que é impugnado, não alteraria a sua posição jurídica (42). Contudo, a situação seria diferente se o Tribunal de Justiça só admitisse uma legitimidade para recorrer nos termos da segunda hipótese do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, por entender que a decisão controvertida expõe a recorrente a um risco de recuperação dos auxílios.

88.      De qualquer modo, o recurso poderá proporcionar à recorrente um benefício, na medida em que, no caso de ser anulado o artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida, a ordem jurídica espanhola já não estabeleceria a proibição de aplicar o regime de auxílios favorável à recorrente.

89.      Logo, haveria que reconhecer que a recorrente tem interesse em agir. Se o Tribunal de Justiça reconhecer, assim, a legitimidade da recorrente para interpor recurso, nos termos do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, o recurso seria admissível. O despacho impugnado não poderia, portanto, ser mantido através da substituição dos fundamentos, declarando que a recorrente não tinha interesse em agir. Pelo contrário, o recurso seria procedente e caberia anular o despacho impugnado.

E —    Resumo

90.      Dado que, em minha opinião, todos os fundamentos do recurso da recorrente são infundados, há que negar provimento ao recurso, tal como foi solicitado pela Comissão.

V —    Despesas

91.      Por força do artigo 184.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça decidirá sobre as despesas se o recurso for julgado improcedente. Por conseguinte, como foi solicitado pela Comissão, a recorrente, como parte vencida, deverá ser condenada nas despesas nos termos do artigo 138.°, n.° 1, em conjugação com o artigo 184.°, n.° 1, do Regulamento de Processo.

VI — Conclusão

92.      À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça decida do seguinte modo:

1)         Negar provimento ao recurso.

2)         Condenar a recorrente nas despesas.


1 —      Língua original: alemão.


2 —      Decisão da Comissão, de 28 de outubro de 2009, relativa à amortização para efeitos fiscais da diferença relativamente ao valor do património (financial goodwill), em caso de aquisição de participações em empresas estrangeiras [p]rocesso C‑45/07 (ex NN 51/07, ex CP 9/07) aplicada pela Espanha (2011/5/CE) (JO 2011, L 7, p. 48).


3 —      Acórdão de 9 de junho de 2011, Comitato «Venezia vuole vivere»/Comissão (C‑71/09 P, C‑73/09 P e C‑76/09 P, Colet., p. I‑4727, n.° 118 e jurisprudência referida).


4 —      V. as minhas conclusões de 17 de janeiro de 2013, apresentadas no processo Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho (C‑583/11 P, pendente no Tribunal de Justiça, n.os 30 e segs.).


5 —      Com o Tratado de Lisboa, foi substituído, nas correspondentes versões alemãs, o conceito de «Entscheidung» (decisão) utilizado no artigo 249.°, quarto parágrafo, CE, pelo conceito de «Beschluss» (despacho), no artigo 288.°, quarto parágrafo, TFUE, que utilizarei como sinónimos.


6 —      V. as minhas conclusões apresentadas no processo Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, já referidas na nota 4 (n.os 50 a 52).


7 —      V. acórdãos de 11 de julho de 1968, Zuckerfabrik Watenstedt/Conselho (6/68, Colet. 1965‑1968, p. 873); de 5 de maio de 1977, Koninklijke Scholten Honig/Conselho e Comissão (101/76, Recueil, p. 797, n.os 20 a 22, Colet., p. 303); e de 17 de junho de 1980, Calpak e Società Emiliana Lavorazione Frutta/Comissão (789/79 e 790/79, Recueil, p. 1949, n.° 9); bem como despachos de 28 de junho de 2001, Eridania e o./Conselho (C‑352/99 P, Colet., p. I‑5037, n.° 42); e de 8 de abril de 2008, Saint‑Gobain Glass Deutschland/Comissão (C‑503/07 P, Colet., p. I‑2217, n.° 71); v., no mesmo sentido, também acórdãos de 1 de abril de 2004, Comissão/Jégo‑Quéré (C‑263/02 P, Colet., p. I‑3425, n.° 43); e de 17 de março de 2011, AJD Tuna (C‑221/09, Colet., p. I‑1655, n.° 51).


8 —      V. acórdão de 14 de dezembro de 1962, Confédération nationale des producteurs de fruits et légumes e o./Conselho (16/62 e 17/62, Colet. 1962‑1964, p. 175); bem como despachos de 5 de novembro de 1986, UFADE/Conselho e Comissão (117/86, Colet., p. 3255, n.° 9); e de 12 de julho de 1993, Gibraltar e Gibraltar Development/Conselho (C‑168/93, Colet., p. I‑4009, n.° 11); v., também, acórdão AJD Tuna, já referido na nota 7 (n.os 50 e segs.).


9 —      V. acórdão Koninklijke Scholten Honig/Conselho e Comissão, já referido na nota 7 (n.os 8 a 11).


10 —      Acórdão de 21 de maio de 1987, Albako Margarinefabrik (249/85, Colet., p. 2345, n.° 17).


11 —      Acórdão de 10 de novembro de 1992, Hansa Fleisch Ernst Mundt (C‑156/91, Colet., p. I‑5567, n.os 12 e segs.).


12 —      V. acórdão de 7 de junho de 2007, Carp (C‑80/06, Colet., p. I‑4473, n.° 21); bem como despacho Saint‑Gobain Glass Deutschland/Comissão, já referido na nota 7 (n.° 71); v., também, acórdão do Tribunal Geral de 25 de outubro de 2011, Microban International e Microban (Europe)/Comissão (T‑262/10, Colet., p. II‑7697, n.os 23 e segs.); e despacho do Tribunal Geral de 4 de junho de 2012, Eurofer/Comissão (T‑381/11, n.° 43).


13 —      V. acórdãos de 2 de fevereiro de 1988, Kwekerij van der Kooy e o./Comissão (67/85, 68/85 e 70/85, Colet., p. 219, n.° 15); de 19 de outubro de 2000, Itália e Sardegna Lines/Comissão (C‑15/98 e C‑105/99, Colet., p. I‑8855, n.° 33); de 29 de abril de 2004, Itália/Comissão (C‑298/00 P, Colet., p. I‑4087, n.° 37); e de 17 de setembro de 2009, Comissão/Koninklijke FrieslandCampina (C‑519/07 P, Colet., p. I‑8495, n.° 53); v., no mesmo sentido, também, acórdão Comitato «Venezia vuole vivere»/Comissão, já referido na nota 3 (n.° 64).


14 —      V., neste sentido, acórdão Itália/Comissão, já referido na nota 13 (n.° 39).


15 —      A versão inglesa do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE tem o seguinte teor: «[…] against a regulatory act which […] does not entail implementing measures».


16 —      A versão francesa do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE tem o seguinte teor: «[…] contre les actes réglementaires […] qui ne comportent pas de mésures d’exécution».


17 —      Secretariado da Convenção Europeia, Relatório final do Círculo de Discussão sobre o Funcionamento do Tribunal de Justiça, de 25 de março de 2003 (documento CONV 636/03, n.° 21).


18 —      V. as minhas conclusões apresentadas no processo Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, já referidas na nota 4 (n.os 39 e segs. e 44).


19 —      Secretariado da Convenção Europeia, Relatório final do Círculo de Discussão sobre o Funcionamento do Tribunal de Justiça, já referido na nota 17 (n.° 21).


20 —      Conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs de 21 de março de 2002, Unión de Pequeños Agricultores/Conselho (C‑50/00 P, Colet., p. I‑6677, n.° 43).


21 —      V. despachos do Tribunal Geral de 4 de junho de 2012, Hüttenwerke Krupp Mannesmann e o./Comissão (T‑379/11, n.° 52), e Eurofer/Comissão, já referido na nota 12 (n.° 60).


22 —      V., igualmente, acórdão do Tribunal Geral Microban International e Microban (Europe)/Comissão, já referido na nota 12 (n.° 34), limitado porém às medidas de execução dos Estados‑Membros.


23 —      V. n.° 21, supra.


24 —      V. acórdão de 14 de abril de 2011, Comissão/Polónia (C‑331/09, Colet., p. I‑2933, n.° 54 e jurisprudência referida).


25 —      Regulamento (CE) n.° 659/1999 do Conselho, de 22 de março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo 93.° do Tratado CE (JO L 83, p. 1).


26 —      V. supra, n.os 25 e 27.


27 —      V. as minhas conclusões apresentadas no processo Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, já referidas na nota 4 (n.os 68 e segs.).


28 —      V. acórdão de 13 de outubro de 2011, Deutsche Post/Comissão (C‑463/10 P e C‑475/10 P, Colet., p. I‑9639, n.° 66 e jurisprudência referida).


29 —      V., designadamente, acórdãos de 15 de julho de 1963, Plaumann/Comissão (25/62, Colet. 1962‑1964, p. 279); de 13 de dezembro de 2005, Comissão/Aktionsgemeinschaft Recht und Eigentum (C‑78/03 P, Colet., p. I‑10737, n.° 33); e Deutsche Post/Comissão, já referido na nota 28 (n.° 71).


30 —      V. as minhas conclusões apresentadas no processo Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, já referidas na nota 4 (n.os 89 e segs.).


31 —      Acórdão Comitato «Venezia vuole vivere»/Comissão, já referido na nota 3 (n.° 53); v., também, acórdãos Itália e Sardegna Lines/Comissão, já referido na nota 13 (n.° 34); e Itália/Comissão, já referido na nota 13 (n.° 39).


32 —      Acórdão Comitato «Venezia vuole vivere»/Comissão, já referido na nota 3 (n.° 56).


33 —      V. processo Deutsche Telekom/Comissão (T‑207/10).


34 —      V., por exemplo, acórdão Itália e Sardegna Lines/Comissão, já referido na nota 13 (n.° 33 e jurisprudência referida).


35 —      V. conclusões da advogada‑geral V. Trstenjak de 16 de dezembro de 2010, Comitato «Venezia vuole vivere»/Comissão (C‑71/09 P, C‑73/09 P e C‑76/09 P, Colet., p. I‑4727, n.os 71 a 78).


36 —      V., para mais detalhes, supra, n.° 54.


37 —      V. as minhas conclusões apresentadas no processo Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, já referidas na nota 4 (n.os 106 e segs.).


38 —      Ibidem, n.os 115 e segs.


39 —      Ibidem, n.os 118 e segs.


40 —      V., para mais detalhes, supra, n.° 53.


41 —      V. acórdão de 7 de junho de 2007, Wunenburger/Comissão (C‑362/05 P, Colet., p. I‑4333, n.° 42), e despacho de 5 de março de 2009, Comissão/Provincia di Imperia (C‑183/08 P, Colet., p. I‑27*, n.° 19).


42 —      V., em sentido diferente, acórdão do Tribunal Geral de 21 de maio de 2010, França/Comissão (T‑425/04, T‑444/04, T‑450/04 e T‑456/04, Colet., p. II‑2099, n.os 122 e segs.).