Language of document : ECLI:EU:C:2012:326

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

7 de junho de 2012 (*)

«Reenvio prejudicial — Não reconhecimento, na regulamentação nacional, do direito a um recurso jurisdicional contra as decisões que aplicam uma sanção pecuniária assim como a retirada de pontos da carta de condução para certas infrações às regras da circulação rodoviária — Situação puramente interna — Inadmissibilidade do pedido»

No processo C‑27/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Administrativen sad Sofia‑grad (Bulgária), por decisão de 27 de dezembro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 17 de janeiro de 2011, no processo

Anton Vinkov

contra

Nachalnik Administrativno‑nakazatelna deynost,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, C. Toader (relatora) e E. Jarašiūnas, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação do Governo neerlandês, por C. Wissels e B. Koopman, na qualidade de agentes,

¾        em representação da Comissão Europeia, por R. Troosters e V. Savov, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 2.° do Protocolo n.° 7 à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinado em Estrasburgo, em 22 de novembro de 1984 (a seguir «Protocolo n.° 7»), 47.° e 48.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), bem como 67.° TFUE, 82.° TFUE e 91.°, n.° 1, alínea c), TFUE, da Convenção estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, relativa às decisões de inibição de conduzir cuja adoção pelos Estados‑Membros foi recomendada por ato do Conselho de 17 de junho de 1998 (JO C 216, p. 2, a seguir «convenção relativa à inibição do direito de conduzir»), do Acordo de cooperação relativo aos procedimentos em matéria de infrações rodoviárias e execução das respetivas sanções pecuniárias, aprovado por decisão do Comité Executivo de 28 de abril de 1999, instituído pela Convenção de aplicação do Acordo de Schengen (JO 2000, L 239, p. 428, a seguir «acordo de cooperação»), e da Decisão‑Quadro 2005/214/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sanções pecuniárias (JO L 76, p. 16, a seguir «decisão‑quadro»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe A. Vinkov, de nacionalidade búlgara, ao Nachalnik Administrativno‑nakazatelna deynost a propósito de uma decisão da polícia de trânsito búlgara que lhe aplica uma sanção pecuniária de 20 BGN assim como a retirada de vários pontos da sua carta de condução.

 Quadro jurídico

 Protocolo n.° 7

3        O Protocolo n.° 7 enuncia, no seu artigo 2.°, relativo ao direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal:

«1.      Qualquer pessoa declarada culpada de uma infração penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei.

2.      Este direito pode ser objeto de exceções em relação a infrações menores, definidas nos termos da lei […]»

 Direito da União

 Convenção relativa à inibição do direito de conduzir

4        O artigo 2.° da convenção relativa à inibição do direito de conduzir prevê:

«Os Estados‑Membros comprometem‑se a cooperar, de acordo com o disposto na presente convenção, com o objetivo de evitar que os condutores inibidos de conduzir num Estado‑Membro que não aquele em que habitualmente residem possam eximir‑se aos efeitos dessa inibição quando abandonam o Estado da infração.»

5        Nos termos do artigo 3.°, n.° 1, da referida convenção:

«O Estado da infração notificará sem demora o Estado de residência de qualquer decisão de inibição de conduzir imposta por uma infração consubstanciada nos comportamentos descritos no anexo.»

6        Segundo o artigo 8.°, n.° 1, da mesma convenção, esta notificação deverá ser acompanhada de uma série de informações relativas, designadamente, às disposições aplicáveis no Estado‑Membro onde ocorreu a infração e com fundamento nas quais esta foi declarada, bem como ao estado de execução da medida de inibição.

7        Nos termos do n.° 3 do referido artigo 8.°:

«Se as informações transmitidas [pelo Estado da infração ao Estado da residência] forem consideradas insuficientes para se poder tomar uma decisão [de inibição] nos termos da presente convenção, nomeadamente quando, nas circunstâncias do caso em questão, houver dúvidas sobre se a pessoa em causa teve a possibilidade suficiente de se defender, as autoridades competentes do Estado de residência pedirão às autoridades competentes do Estado da infração que forneçam, sem demora, as informações complementares necessárias.»

 Acordo de cooperação

8        O artigo 2.°, n.° 1, do acordo de cooperação tem a seguinte redação:

«As partes contratantes comprometem‑se a cooperar mutuamente da forma mais ampla possível no que respeita aos procedimentos relativos às infrações rodoviárias e à execução das respetivas decisões, em conformidade com o disposto no presente acordo.»

9        O artigo 6.°, n.° 1, do referido acordo dispõe:

«No âmbito do presente acordo, só poderá ser solicitada a transmissão da execução das decisões se estiverem reunidas as seguintes condições:

a)      Todas as vias de impugnação da decisão foram esgotadas e a decisão é exequível no território da parte contratante requerente;

[...]

d)      A decisão diz respeito a uma pessoa que tem domicílio ou residência habitual no território da parte contratante requerida;

e)      O montante da sanção pecuniária aplicada ascende a, pelo menos, 40 euros.

[…]»

 Decisão‑quadro

10      Nos termos do artigo 1.°, alínea a), da decisão‑quadro, entende‑se por «decisão», «uma decisão transitada em julgado pela qual é imposta uma sanção pecuniária a uma pessoa singular ou coletiva, sempre que a decisão tenha sido tomada por […] um tribunal do Estado de emissão no que respeita a uma infração penal, nos termos da legislação do Estado de emissão».

11      O artigo 4.°, n.° 1, desta mesma decisão‑quadro dispõe que essas decisões de sanção «podem ser transmitidas às autoridades competentes de um Estado‑Membro em cujo território a pessoa singular ou coletiva contra a qual tenha sido proferida uma decisão possua bens ou rendimentos, tenha a sua residência habitual ou, no caso de uma pessoa coletiva, tenha a sua sede estatutária».

12      O artigo 5.°, n.° 1, da decisão‑quadro prevê que as decisões que tenham por objeto infrações às regras da circulação rodoviária, «[s]e forem puníveis no Estado de emissão e tal como definidas na sua legislação, determinam, nos termos da presente decisão‑quadro e sem verificação da dupla incriminação do ato, o reconhecimento e a execução […]».

13      Para este efeito, o artigo 20.°, n.° 3, da referida decisão‑quadro dispõe:

«Os Estados‑Membros podem opor‑se ao reconhecimento e à execução de decisões sempre que a certidão referida no artigo 4.° levante a suspeita de que os direitos fundamentais ou os princípios jurídicos fundamentais consagrados no artigo 6.° do Tratado [UE] foram violados. […]»

 Direito búlgaro

 Código de Processo Civil

14      O artigo 628.°, n.° 1, do Código de Processo Civil prevê:

«Quando a interpretação de uma disposição do direito da União ou da validade de um ato adotado pelos órgãos da União Europeia é necessária para que o litígio seja resolvido de modo adequado, os tribunais búlgaros submetem um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia.»

15      Por força do artigo 629.°, um órgão jurisdicional de última instância tem a obrigação de apresentar um pedido de decisão prejudicial de interpretação quando tal se revele necessário para a resolução do litígio que lhe for submetido. Se se tratar de um pedido de apreciação de validade, a obrigação de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça é extensiva a qualquer órgão jurisdicional.

 Lei relativa à circulação rodoviária

16      O artigo 157.°, n.° 4, da Lei relativa à circulação rodoviária prevê:

«O condutor a quem tenham sido retirados todos os seus pontos fica inibido do direito de conduzir e é obrigado a devolver a carta de condução ao competente serviço do Ministério dos Assuntos Internos.»

17      Em conformidade com o n.° 5 do referido artigo 157.°, a pessoa que ficar inibida do direito de conduzir pode, no entanto, seis meses após ter devolvido a carta de condução, propor‑se a exame a fim de voltar a adquirir o direito de conduzir.

18      O artigo 171.° da mesma lei dispõe que, de entre as medidas administrativas coercivas aplicáveis em matéria de segurança na circulação rodoviária, figura a «retirada da carta de condução a uma pessoa que não cumpra a obrigação resultante do artigo 157.°, n.° 4».

19      Nos termos do artigo 189.°, n.° 5, da Lei relativa à circulação rodoviária:

«Não são suscetíveis de recurso as decisões sancionatórias através das quais é aplicada uma sanção administrativa [‘nakazatelni postanovleniya’] até 50 [BGN].»

 Decreto relativo à carta de condução com pontos

20      O artigo 2.°, n.° 1, do Decreto n.° 13‑1959, de 27 de dezembro de 2007, relativo à determinação do montante inicial máximo do número de pontos da carta de condução com pontos dos condutores de veículos a motor, bem como aos requisitos, ao procedimento e à lista das infrações às regras de trânsito que dão lugar à retirada dos pontos, prevê:

«Na primeira emissão de uma carta de condução para um veículo a motor, o seu titular recebe um saldo máximo inicial de 39 pontos que permitem a contabilização das infrações definidas pela Lei relativa à circulação rodoviária de que tenha sido autor.»

21      O artigo 3.°, n.os 1 e 2, deste mesmo decreto tem a seguinte redação:

«1.      Os pontos são retirados com base numa decisão que aplique uma sanção administrativa [‘nakazatelno postanovlenie’] a título definitivo.

2.      Quando sejam aplicadas sanções pelas infrações previstas neste decreto, a decisão que aplique uma sanção administrativa indica o número de pontos retirados e o número de pontos restantes.»

22      Nos termos do artigo 4.°, n.° 2, do referido decreto:

«O facto de causar culposamente um acidente de circulação dá lugar à retirada de 4 pontos suplementares.»

 Lei relativa às infrações e às sanções administrativas

23      O artigo 63.°, n.os 1 e 2, da Lei relativa às infrações e às sanções administrativas (Zakon za administrativnite narusheniya i nakazaniya) prevê:

«1.      O Rayonen sad [tribunal regional], em formação de juiz singular, aprecia a causa quanto ao mérito e decide mediante sentença com a qual pode confirmar, alterar ou revogar a decisão que aplica uma sanção administrativa. A decisão é suscetível de recurso de cassação para o Administrativen sad [tribunal administrativo] […].

2.      Nos casos previstos na lei, o tribunal pode suspender a instância mediante despacho […] suscetível de recurso […].»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

24      Ao fazer uma manobra de marcha‑atrás num parque de estacionamento em Sófia (Bulgária), A. Vinkov embateu noutro veículo.

25      Na sequência deste acidente, foi objeto de uma decisão do Nachalnik Administrativno‑nakazatelna deynost v otdel «Patna politsiya» na Stolichna direktsiya na vatreshnite raboti (diretor das sanções administrativas ao serviço da «polícia de trânsito» na Direção dos Assuntos Internos da Região Capital), que o declarou responsável por um «acidente de circulação sem gravidade» e lhe aplicou uma multa no montante de 20 BGN assim como a retirada de quatro pontos da sua carta de condução.

26      A. Vinkov recorreu da referida decisão para o Sofiyski rayonen sad (Tribunal Regional de Sófia), que rejeitou o recurso por despacho, declarando o mesmo inadmissível. Esse tribunal considerou que, por força das disposições aplicáveis no caso vertente, designadamente o artigo 189.°, n.° 5, da Lei relativa à circulação rodoviária, uma decisão que aplica uma sanção pecuniária inferior a 50 BGN não pode ser objeto de recurso jurisdicional.

27      A. Vinkov recorreu deste despacho para o Administrativen sad Sofia‑grad, o qual, por força do artigo 63.° da Lei relativa à circulação rodoviária, julga em cassação nos processos que têm por objeto decisões que aplicam uma sanção administrativa.

28      Na sua decisão de reenvio, o referido órgão jurisdicional salienta que resulta das disposições nacionais aplicáveis, conforme interpretadas pelo Varhoven administrativen sad (Tribunal Administrativo Supremo), que os recursos de decisões que aplicam a sanção da retirada de pontos da carta de condução podem ser declarados inadmissíveis por falta de interesse em agir. Segundo a jurisprudência deste último órgão jurisdicional, a legislação búlgara define a retirada de pontos da carta de condução não como uma sanção administrativa autónoma nem como uma medida administrativa coerciva, mas como uma medida que deve ser automaticamente aplicada pelas autoridades policiais, que, neste domínio, dispõem de competência meramente vinculativa. Consequentemente, a decisão que prevê essa sanção, tomada na sequência de uma infração às regras da circulação rodoviária, é recorrível unicamente quando aplica igualmente uma sanção pecuniária superior a 50 BGN.

29      No entanto, o Administrativen sad Sofia‑grad sublinha que, em conformidade com o artigo 157.°, n.° 4, da Lei relativa à circulação rodoviária, em caso de retirada da totalidade dos pontos da carta, que pode resultar do cúmulo de decisões de retirada insuscetíveis de recurso, o condutor fica automaticamente inibido do direito de conduzir e deve restituir a sua carta às autoridades nacionais competentes.

30      Tendo em conta estes elementos, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se as disposições do direito da União no domínio do espaço de liberdade, de segurança e de justiça, que consagram, designadamente, o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais (a seguir «princípio do reconhecimento mútuo»), bem como as no domínio dos transportes, se opõem a que, em direito búlgaro, não seja reconhecido um direito de recurso contra tais decisões de retirada dos pontos da carta de condução.

31      O referido órgão jurisdicional sublinha que, segundo a jurisprudência constante dos órgãos jurisdicionais nacionais e a doutrina búlgara, as decisões administrativas que aplicam uma sanção do tipo da que está em causa no litígio no processo principal são consideradas decisões jurisdicionais. Com efeito, os órgãos que adotam essas decisões exercem, mesmo que não façam parte do sistema judiciário, uma função jurisdicional.

32      No âmbito do direito da União, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o artigo 6.°, n.° 1, do acordo de cooperação e o artigo 8.°, n.° 3, da convenção relativa à inibição do direito de conduzir preveem a possibilidade de um Estado‑Membro recusar reconhecer uma decisão de outro Estado‑Membro na qual se sancionam infrações às regras da circulação rodoviária quando não estiver previsto nesse Estado nenhum direito de recurso.

33      O Administrativen sad Sofia‑grad sublinha que este acordo e esta convenção não são aplicáveis na Bulgária uma vez que o referido acordo não figura entre os atos do acervo de Schengen que são vinculativos para a República da Bulgária e que a referida convenção ainda não entrou em vigor. No entanto, as disposições acima mencionadas deveriam ser consideradas como a expressão de uma norma de direito internacional consuetudinário e deveriam, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, ser assim aplicáveis em relação a uma decisão como a que está em causa no processo principal. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio faz referência ao acórdão do Tribunal de Justiça de 24 de novembro de 1992, Poulsen e Diva Navigation (C‑286/90, Colet., p. I‑6019).

34      O Administrativen sad Sofia‑grad recorda, além disso, que a decisão‑quadro prevê, designadamente no artigo 20.°, n.° 1, a possibilidade de não reconhecer decisões que aplicam sanções para as quais não esteja previsto um direito de recurso para um órgão jurisdicional que disponha, designadamente, de competência em matéria penal. Consequentemente, dado que a regulamentação búlgara em causa derroga, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, as disposições nacionais que garantem a transposição desta decisão‑quadro, esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre se essa derrogação é admissível e, em caso de resposta afirmativa, se a mesma deve ser interpretada restritivamente.

35      Quanto à sua competência para submeter uma questão prejudicial relativa à interpretação da decisão‑quadro, o Administrativen sad Sofia‑grad sublinha que, no litígio no processo principal, é o juiz de última instância. Considera que, ainda que a República da Bulgária não tenha apresentado uma declaração expressa de aceitação da competência do Tribunal de Justiça em matéria prejudicial, na aceção do artigo 35.°, n.° 2, TUE, o artigo 628.° do Código de Processo Civil, que entrou em vigor em 24 de julho de 2007, que prevê a competência dos órgãos jurisdicionais nacionais que decidem em última instância para apresentarem um pedido de decisão prejudicial, deve ser interpretado como uma aceitação implícita da competência do Tribunal de Justiça na aceção do referido artigo 35.° TUE.

36      No que diz respeito às regras do Tratado FUE sobre o espaço de liberdade, de segurança e de justiça, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que decorre dos artigos 67.°, n.° 1, TFUE e 82.°, n.° 1, TFUE que a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no qual a cooperação judiciária em matéria penal assenta só pode ser feita com observância dos direitos fundamentais e, portanto, do direito a um recurso efetivo, consagrado pelos artigos 47.° e 48.° da Carta, bem como pelo artigo 6.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).

37      A este propósito, o Administrativen sad Sofia‑grad recorda que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no seu acórdão Öztürk de 21 de fevereiro de 1984 (série A, n.° 73), declarou que o artigo 6.° da CEDH não se opõe à despenalização das infrações leves, como a que está em causa no processo principal, mas que as sanções relativas a tais infrações, quando as mesmas conservam o seu caráter penalizador, entram no âmbito de aplicação deste artigo. Neste caso concreto, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que poderia, na verdade, ser aplicada a exceção ao direito a recurso, prevista no artigo 2.°, n.° 2, do Protocolo n.° 7, no que diz respeito às sanções aplicáveis às infrações leves às regras da circulação rodoviária, mas que, em direito búlgaro, nenhum critério permite caracterizar uma infração como a que está em causa no processo principal como sendo de natureza «menor». Com efeito, em conformidade com o artigo 189.°, n.° 5, da Lei relativa à circulação rodoviária, o único critério para determinar se uma decisão que aplica uma sanção administrativa pode ser considerada como respeitando a uma infracção grave e ser objeto de recurso seria o montante da sanção pecuniária aplicada. No entanto, este critério não teria em conta as consequências jurídicas da retirada dos pontos da carta de condução, o qual é suscetível de conduzir à inibição do direito de conduzir.

38      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio faz referência a certas disposições do direito da União no domínio da política comum dos transportes. Salienta que, mesmo que este seja um domínio de competências partilhadas entre a União e os Estados‑Membros e que as regras do processo penal, como as relativas às sanções das infrações às regras da circulação rodoviária, estejam, em princípio, abrangidas pela competência dos Estados‑Membros, o direito da União proíbe, na medida que constitua um entrave à livre circulação, a adoção de sanções desproporcionadas em relação à gravidade das infrações cometidas.

39      Tendo em conta estas considerações, o Administrativen sad Sofia‑grad decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      As disposições aplicáveis do direito nacional, como as do processo principal, relativas aos efeitos jurídicos de uma decisão proferida por uma autoridade administrativa sobre a aplicação de uma sanção pecuniária pela prática de uma infração administrativa [que consiste] num acidente de [circulação rodoviária], devem ser interpretadas no sentido de que são compatíveis com o disposto nos Tratados e nas medidas de direito da União adotadas com base nestes no domínio do ‘espaço de liberdade, segurança e justiça’ e/ou, sendo caso disso, no domínio dos transportes?

2)      Resulta do disposto nos Tratados e nas medidas de direito da União adotadas com base nestes no domínio do ‘espaço de liberdade, segurança e justiça’, em conexão com a cooperação judiciária em matéria penal nos termos do artigo 82.°, n.° 1, segundo [parágrafo], alínea a), TFUE, e no domínio dos transportes nos termos do artigo 91.°, n.° 1, alínea c), [TFUE], que infrações administrativas às regras do trânsito, que podem ser qualificadas como ‘menores’, na aceção do artigo 2.° do Protocolo n.° 7 […], e em relação a este artigo, são abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União?

3)      Em caso de resposta afirmativa à segunda questão, solicita‑se também uma resposta às seguintes questões:

a)       Uma infração administrativa às regras [da circulação rodoviária], nas circunstâncias do processo principal, constitui uma ‘infração menor’ na aceção do direito da União, quando concorrem simultaneamente as seguintes circunstâncias?

i)      O ato é um acidente de [circulação rodoviária] que causou danos patrimoniais, deve ser qualificado como tendo sido cometido com culpa e é passível de sanção enquanto infração administrativa;

ii)      Devido ao montante da sanção pecuniária prevista, a decisão relativa à sua aplicação não é suscetível de recurso judicial e a pessoa em causa não tem a possibilidade de provar que não praticou culposamente o ato cuja prática lhe é imputada;

iii)      O número de pontos de controlo indicados na decisão é retirado como efeito jurídico automático do facto de a decisão se ter tornado definitiva;

iv)      No âmbito do sistema de cartas de condução introduzido, é atribuído um certo número de pontos de controlo no momento da emissão que serão retirados em caso de infrações; a retirada de pontos de controlo também é tomada em consideração como efeito jurídico automático de decisões sancionatórias não suscetíveis de recurso;

v)      Se se impugnar judicialmente a medida coerciva da apreensão da carta de condução por inibição do direito de conduzir, que ocorre como efeito jurídico automático da retirada do número inicial de pontos de controlo concedidos, não é efetuada uma fiscalização judicial incidental da legalidade das decisões sancionatórias não recorríveis pelas quais foram retirados pontos de controlo.

b)      O artigo 82.° […] TFUE e, sendo caso disso, o artigo 91.°, n.° 1, alínea c), [TFUE], e as medidas adotadas com base nas referidas disposições, bem como a decisão‑quadro […], permitem que o princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais ou as medidas destinadas a aumentar a segurança dos transportes não sejam aplicados, nas circunstâncias do caso em apreço, a uma decisão sobre a aplicação de uma sanção pecuniária pela prática de uma infração às regras do trânsito, que, em conformidade com o direito da União, pode ser qualificada de ‘menor’, por o Estado‑Membro ter previsto que os requisitos relativos à [possibilidade] de impugnação perante um tribunal que também seja competente em matéria penal e a aplicabilidade das normas processuais do direito nacional em matéria de recursos em caso de imputação da prática de um ilícito penal não terão de ser observados?

4)      Em caso de resposta negativa à segunda questão, solicita‑se uma resposta à seguinte questão:

O artigo 82.° [TFUE] e, sendo caso disso, o artigo 91.°, n.° 1, alínea c), [TFUE], e as medidas adotadas com base nas referidas disposições, bem como a decisão‑quadro […], permitem que o princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais ou as medidas de direito da União destinadas a aumentar a segurança dos transportes não sejam aplicados, de acordo com a discricionariedade do Estado‑Membro – por o Estado‑Membro ter previsto num ato normativo que os requisitos relativos à [possibilidade] de impugnação perante um tribunal que também seja competente em matéria penal e a aplicabilidade das normas processuais do direito nacional em matéria de recursos em caso de imputação da prática de um ilícito penal não terão de ser observados –, a uma decisão sobre a aplicação de uma sanção pecuniária pela prática de uma infração às regras do trânsito, se, nas circunstâncias do caso em apreço, se verificar simultaneamente o seguinte quanto à decisão?

a)      O ato é um acidente de [circulação rodoviária] que causou danos patrimoniais, deve ser qualificado como tendo sido cometido com culpa e é passível de sanção enquanto infração administrativa;

b)      Devido ao montante da sanção pecuniária prevista, a decisão relativa à sua aplicação não é suscetível de recurso judicial e a pessoa em causa não tem a possibilidade de provar que não praticou culposamente o ato cuja prática lhe é imputada;

c)      O número de pontos de controlo indicados na decisão é retirado como efeito jurídico automático do facto de a decisão se ter tornado definitiva;

d)      No âmbito do sistema de cartas de condução introduzido, é atribuído um certo número de pontos de controlo no momento da emissão que serão retirados em caso de infrações; a retirada de pontos de controlo também é tomada em consideração como efeito jurídico automático de decisões sancionatórias não suscetíveis de recurso;

e)      Se se impugnar judicialmente a medida coerciva da apreensão da carta de condução por inibição do direito de conduzir, que ocorre como efeito jurídico automático da retirada do número inicial de pontos de controlo concedidos, não é efetuada uma fiscalização judicial incidental da legalidade das decisões sancionatórias não recorríveis pelas quais foram retirados pontos de controlo.»

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

40      Através das suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 67.° TFUE, 82.° TFUE e 91.°, n.° 1, alínea c), TFUE, bem como atos de direito derivado no domínio do espaço de liberdade, de segurança e de justiça, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional, como a que é aplicável na Bulgária, que não reconhece o direito de recurso das decisões que aplicam sanções por infrações às regras da circulação rodoviária, qualificadas de «menores», mesmo quando essas decisões impõem não só uma sanção pecuniária de pequeno montante mas igualmente a retirada de pontos da carta de condução.

41      Quanto às disposições do Tratado FUE cuja interpretação é pedida pelo órgão jurisdicional de reenvio, saliente‑se que, uma vez que todas estas disposições se dirigem unicamente às instituições da União e que nenhuma de entre elas diz respeito ao regime das sanções aplicáveis às infrações às regras da circulação rodoviária, não são aplicáveis no litígio no processo principal.

42      Com efeito, o artigo 67.° TFUE abre o capítulo 1, intitulado «Disposições gerais», do título V do referido Tratado, relativo ao espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Este artigo estabelece o objeto, a finalidade e as regras de base da ação das instituições da União com vista à plena realização do referido espaço. O artigo 82.° TFUE, que figura sob o mesmo título, capítulo 4, relativo à cooperação judiciária em matéria penal, enuncia igualmente as medidas que o legislador da União deve adotar a fim de realizar por completo uma cooperação entre os Estados‑Membros no domínio penal e consagra a regra segundo a qual essa cooperação deve assentar no princípio do reconhecimento mútuo.

43      Quanto ao artigo 91.° TFUE, que figura sob o título VI do Tratado FUE, consagrado aos transportes, enuncia, no n.° 1, as medidas que as instituições da União devem adotar para implementar uma política comum dos transportes. Não fixa nenhuma regra em matéria de sanção das infrações às regras da circulação rodoviária.

44      Ora, como resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, este não tem competência para responder a uma questão prejudicial quando a interpretação das normas do direito da União, pedida pelo órgão jurisdicional nacional, não tem relação alguma com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal e as referidas normas não podem ser aplicadas ao litígio no processo principal (v., designadamente, acórdãos de 1 de outubro de 2009, Woningstichting Sint Servatius, C‑567/07, Colet., p. I‑9021, n.° 43, e de 22 de dezembro de 2010, Omalet, C‑245/09, Colet., p. I‑13771, n.° 11).

45      Consequentemente, as questões prejudiciais, na parte em que dizem respeito aos artigos 67.° TFUE, 82.° TFUE e 91.°, n.° 1, alínea c), TFUE devem ser declaradas inadmissíveis.

46      Quanto aos atos de direito derivado, o órgão jurisdicional de reenvio, na fundamentação da sua decisão, faz referência ao acordo de cooperação, à convenção relativa à inibição do direito de conduzir e à decisão‑quadro.

47      A este propósito, deve, no entanto, recordar‑se que estes atos encontram base jurídica nas disposições do título VI do Tratado UE, na sua versão anterior ao Tratado de Lisboa.

48      Ora, como resulta do artigo 35.°, n.os 1 e 2, UE, o Tribunal de Justiça só era competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretação de decisões‑quadro, de decisões e de convenções estabelecidas ao abrigo do referido título VI na condição de o Estado‑Membro em causa ter feito uma declaração mediante a qual aceita a referida competência.

49      Está assente que, a este respeito, a República da Bulgária não fez essa declaração. Além disso, uma disposição interna como o artigo 628.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, à qual faz referência o órgão jurisdicional de reenvio e que, de resto, se limita a retomar, no essencial, os termos do artigo 267.° TFUE, não pode, em caso algum, ser considerada equivalente a tal declaração.

50      Por outro lado, resulta do artigo 10.° do Protocolo n.° 36 relativo às disposições transitórias, em anexo ao Tratado FUE, que, no que diz respeito a atos da União no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal que tenham sido adotados antes da data da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, as atribuições do Tribunal de Justiça por força do referido título VI do Tratado UE, na sua versão anterior à referida data, permanecem inalteradas por um período de cinco anos após essa mesma data, incluindo quando tiverem sido aceites em conformidade com o artigo 35.°, n.° 2, deste último Tratado.

51      Decorre do exposto que o Tribunal de Justiça não tem qualquer competência para se pronunciar sobre um pedido prejudicial que emane do órgão jurisdicional de reenvio na parte em que este tem por objeto o acordo de cooperação, a convenção relativa à inibição do direito de conduzir e a decisão‑quadro.

52      Nos fundamentos da sua decisão, o órgão jurisdicional de reenvio visa igualmente o princípio do reconhecimento mútuo das decisões proferidas noutro Estado‑Membro relativas às infrações às regras da circulação rodoviária para concluir que, em seu entender, o direito da União se opõe a uma regulamentação nacional que não reconhece o direito de recurso das decisões mediante as quais são retirados pontos da carta de condução.

53      A este propósito, basta, no entanto, salientar que esse princípio só pode, ainda que de modo meramente hipotético, dizer respeito aos processos de caráter transfronteiriço relativos ao reconhecimento e à execução de uma decisão num Estado‑Membro diferente daquele que proferiu a decisão.

54      Neste caso concreto, o litígio no processo principal é meramente interno. Com efeito, diz respeito a uma pessoa singular que reside no território da República da Bulgária e que impugnou a decisão através da qual as autoridades desse Estado‑Membro lhe aplicaram uma sanção na sequência de um acidente de circulação rodoviária que ocorreu nesse mesmo Estado‑Membro. Consequentemente, uma interpretação do referido princípio do reconhecimento mútuo não tem pertinência alguma para a resolução deste litígio.

55      Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se o direito da União se opõe às normas do direito búlgaro em causa no processo principal na medida em que estas contenham uma violação do direito ao recurso efetivo consagrado pelos artigos 6.° da CEDH e 47.° e 48.° da Carta.

56      A este propósito, recorde‑se que é jurisprudência constante que as exigências que decorrem da proteção dos direitos fundamentais vinculam os Estados‑Membros em todos os casos em que estes são chamados a aplicar o direito da União (v. despachos de 12 de novembro de 2010, Asparuhov Estov e o., C‑339/10, Colet., p. I‑11465, n.° 13; de 1 de março de 2011, Chartry, C‑457/09, Colet., p. I‑819, n.° 25; e de 14 de dezembro de 2011, Boncea e o., C‑483/11 e C‑484/11, n.° 29).

57      Além disso, o artigo 51.°, n.° 1, da Carta enuncia que as disposições desta se dirigem aos Estados‑Membros unicamente quando aplicam o direito da União e, por força do artigo 6.°, n.° 1, TUE, que atribui à Carta valor jurídico igual ao dos Tratados, esta não cria nenhuma competência nova para a União.

58      Consequentemente, no âmbito de um reenvio prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, quando uma regulamentação nacional entra no âmbito de aplicação do direito da União, o Tribunal de Justiça deve fornecer todos os elementos de interpretação necessários à apreciação, pelo órgão jurisdicional nacional, da conformidade desta regulamentação com os direitos fundamentais, tal como estes resultam em especial da Carta (v., neste sentido, acórdãos de 29 de maio de 1997, Kremzow, C‑299/95, Colet., p. I‑2629, n.° 15, e de 15 de novembro de 2011, Dereci e o., C‑256/11, Colet., p. I‑11315, n.° 72).

59      Neste caso, não resulta da decisão de reenvio que a regulamentação nacional constitui uma medida de aplicação do direito da União ou apresenta outros elementos de ligação a este último. Por conseguinte, não está demonstrada a competência do Tribunal de Justiça para responder ao pedido de decisão prejudicial na parte em que diz respeito ao direito fundamental a um recurso efetivo (v. despachos, já referidos, Asparuhov Estov e o., n.° 14; Chartry, n.os 25 e 26; e Boncea e o., n.° 34).

60      Decorre do exposto que o pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administrativen sad Sofia‑grad deve ser declarado inadmissível.

 Quanto às despesas

61      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

O pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administrativen sad Sofia‑grad (Bulgária), por decisão de 27 de dezembro de 2010 (processo C‑27/11), é inadmissível.

Assinaturas


* Língua do processo: búlgaro.