Language of document : ECLI:EU:C:2013:242

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NIILO JÄÄSKINEN

apresentadas em 16 de abril de 2013 (1)

Processos apensos C‑105/12 a C‑107/12,

Staat der Nederlanden

contra

Essent NV e Essent Nederland BV (C‑105/12),

Eneco Holding NV (C‑106/12),

Delta NV (C‑107/12)

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]

«Operadores de redes de distribuição de energia — Proibição absoluta de privatização — Regime de propriedade — Proibição de formar grupos que incluam, simultaneamente, operadores das redes de distribuição de energia e sociedades que comercializem, forneçam ou produzam energia — Proibição de atividades secundárias imposta aos operadores das redes de distribuição de energia — Livre circulação de capitais — Restrições — Justificação — Proporcionalidade — Justificação dita ‘puramente económica’ — Concorrência não falseada»






I —    Introdução

1.        O Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos) pede que o Tribunal de Justiça interprete os artigos 63.° e 345.° TFUE, no âmbito de litígios que opõem o Estado neerlandês à Essent NV e à Essent Nederland BV (processo C‑105/12), bem como à Eneco Holding NV (processo C‑106/12) e à Delta NV (processo C‑107/12) (a seguir, conjuntamente, «as sociedades»), ou seja, diversas sociedades com atividade na distribuição de eletricidade e de gás nos Países Baixos, a respeito de várias disposições da legislação neerlandesa aplicável a estes setores.

2.        No âmbito destes três processos, que foram apensos pelo Tribunal de Justiça, o Hoge Raad der Nederlanden submeteu três questões prejudiciais:

¾        A primeira questão tem por objeto a «proibição de privatização» prevista pela legislação neerlandesa, que impede que operadores das redes de distribuição de eletricidade e de gás (2) sejam detidos por entidades privadas, à luz do artigo 345.° TFUE;

¾        a segunda questão diz respeito à apreciação, à luz da livre circulação de capitais, de duas outras proibições estabelecidas pela legislação neerlandesa, que se opõem, respetivamente, a que os operadores dessas redes de distribuição tenham vínculos com empresas que produzam, forneçam ou comercializem eletricidade ou gás nos Países Baixos (a seguir «sociedades de energia») (a seguir «proibição de grupo») ou que os mesmos se dediquem a outras atividades alheias à gestão de rede (a seguir «proibição de atividades secundárias»);

¾        a terceira questão é relativa à existência de «razões imperiosas de interesse geral» que justifiquem uma restrição à livre circulação de capitais, na medida em que a proibição de grupo e a proibição de atividades secundárias visadas pela segunda questão constituem uma restrição àquela.

3.        Por conseguinte, nos presentes processos, o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se, uma vez mais, sobre a interpretação do Tratado FUE e, em especial, sobre a articulação entre os artigos 345.° TFUE e 63.° TFUE, a respeito de medidas de liberalização de um setor económico estratégico. No entanto, os presentes processos apresentam certas particularidades em relação aos que deram lugar à jurisprudência relativa às «golden shares». Por um lado, não está em causa uma privatização parcial, mas sim uma proibição de privatização que se traduz numa separação clara entre o regime da propriedade dos operadores das redes de distribuição, que funciona em «circuito fechado» entre entidades públicas, e o da propriedade das empresas que produzem, fornecem ou comercializam eletricidade ou gás, que é suscetível de ser transmitida a entidades privadas. Por outro lado, as proibições em causa não assentam num mecanismo derrogatório do direito privado que confira um privilégio às entidades públicas. Por fim, as disposições controvertidas do direito neerlandês não resultam apenas de uma ação espontânea a nível nacional, mas inscrevem‑se também no âmbito de uma política de liberalização iniciada pela União Europeia, que se traduziu na adoção de diretivas que impõem uma separação entre os operadores e os utilizadores das redes de transporte e de distribuição de energia.

4.        A este respeito, é útil precisar, antes de mais, que as duas diretivas do segundo pacote da energia de 2003, a saber, as Diretivas 2003/54/CE (3) e 2003/55/CE (4), e do terceiro pacote da energia de 2009, a saber, as Diretivas 2009/72/CE (5) e 2009/73/CE (6), que não são objeto do pedido de decisão prejudicial, são, contudo, importantes. Com efeito, as mesmas definem o grau de liberalização desejado pelo legislador comunitário entre o ano de 2003 e o ano de 2009, que as sociedades defendem que os Estados‑Membros não podem ultrapassar sem violar as regras do direito da União em matéria de liberdades fundamentais. Além disso, aquelas diretivas contêm definições pertinentes para o enquadramento dos presentes processos.

II — Quadro jurídico

A —    Direito da União

1.      O Tratado FUE

5.        De acordo com o artigo 63.°, n.° 1, TFUE, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados‑Membros e entre Estados‑Membros e países terceiros.

6.        O artigo 345.° TFUE prevê que os Tratados em nada prejudicam o regime da propriedade nos Estados‑Membros.

2.      Diretivas 2003/54 e 2003/55

7.        As Diretivas 2003/54/CE, relativa à eletricidade, e 2003/55/CE, relativa ao gás, fazem parte do segundo pacote da energia adotado com vista à liberalização do setor da energia. As regras respeitantes à eletricidade são, no essencial, idênticas às respeitantes ao gás. Para evitar redundâncias, só são reproduzidas aqui as disposições relativas à eletricidade.

8.        Os sexto a oitavo e décimo considerandos da Diretiva 2003/54 preveem:

«(6)      Uma concorrência eficaz implica um acesso à rede não discriminatório, transparente e a preços justos.

(7)      Para a plena realização do mercado interno da eletricidade é da máxima importância o acesso não discriminatório à rede do operador da rede de transporte ou de distribuição. O operador de uma rede de transporte ou de distribuição pode compreender uma ou mais empresas.

(8)      Para assegurar um acesso eficiente e não discriminatório às redes é conveniente que as redes de distribuição e de transporte sejam exploradas por entidades juridicamente separadas nos casos em que existam empresas verticalmente integradas. [...]

É necessário que a independência dos operadores da rede de distribuição e dos operadores da rede de transporte possa ser garantida, especialmente, no que diz respeito aos interesses da produção e do fornecimento. Há, pois, que criar estruturas independentes de gestão entre os operadores da rede de distribuição, os operadores da rede de transporte e as empresas de produção/fornecimento.

É todavia importante distinguir entre essa separação jurídica e a separação da propriedade. A separação jurídica não implica uma mudança de propriedade dos bens e nada impede a aplicação de condições de emprego semelhantes ou iguais em toda a empresa verticalmente integrada. Contudo, deverá assegurar‑se a existência de um processo de tomada de decisões não discriminatório mediante medidas de organização em matéria de independência dos responsáveis pelas decisões.

[…]

(10)      Embora a presente diretiva não aborde questões de propriedade, recorda‑se que, no caso de uma empresa que efetue o transporte ou distribuição e que se encontre separada, no plano jurídico, das empresas que desempenham as atividades de produção e/ou fornecimento, o operador designado da rede pode ser a mesma empresa que é proprietária da infraestrutura.»

9.        Resulta do seu artigo 2.°, pontos 3 e 5, que a Diretiva 2003/54 entende por «transporte» o transporte de eletricidade, mas sem incluir o fornecimento, numa rede interligada de muito alta tensão e de alta tensão, para efeitos de fornecimento a clientes finais ou a distribuidores, ao passo que entende por «distribuição» o transporte de eletricidade em redes de distribuição de alta, média e baixa tensão, para entrega ao cliente, mas sem incluir o fornecimento.

10.      O artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva 2003/54, intitulado «Separação dos operadores das redes de distribuição», dispõe:

«No caso [de o] operador da rede de distribuição fazer parte de uma empresa verticalmente integrada, deve ser independente, pelo menos no plano jurídico, nos planos da organização e da tomada de decisões, das outras atividades não relacionadas com a distribuição. Estas normas não criam a obrigação de separar a propriedade dos ativos da rede de distribuição da empresa verticalmente integrada».

11.      O artigo 15.°, n.° 2, da referida diretiva prevê obrigações suplementares para as empresas verticalmente integradas. Em especial, as pessoas responsáveis pela gestão do operador da rede de distribuição devem apresentar garantias de independência face às estruturas responsáveis pela exploração da produção, transporte e fornecimento, o operador da rede deve dispor de poder de decisão efetivo e adotar um programa de conformidade respeitante à inexistência de comportamentos discriminatórios.

3.      Diretivas 2009/72 e 2009/73

12.      Registando as insuficiências da separação conseguida com a aplicação das diretivas anteriores e a fim de prosseguir a liberalização deste setor, o legislador da União adotou, no quadro do terceiro pacote da energia, as Diretivas 2009/72 e 2009/73, que estabelecem regras comuns para o mercado interno, respetivamente, da eletricidade e do gás natural. Ratione temporis, estas não são relevantes para os processos principais, mas as partes referem‑se‑lhes nas suas observações.

13.      De acordo com o décimo primeiro considerando da Diretiva 2009/72, «[a] separação efetiva só poderá ser assegurada mediante a supressão do incentivo que se apresenta às empresas verticalmente integradas para discriminarem os concorrentes no acesso às redes e no investimento. A separação da propriedade, que implica a nomeação do proprietário da rede como operador da rede e a sua independência em relação a quaisquer interesses de comercialização e de produção, é claramente uma forma eficaz e estável de resolver o inerente conflito de interesses e garantir a segurança do fornecimento. Por este motivo, o Parlamento Europeu, na sua Resolução de 10 de julho de 2007, sobre as perspetivas do mercado interno do gás e da eletricidade [(7)], considerou que a separação da propriedade a nível do transporte constitui o meio mais eficaz de promover o investimento nas infraestruturas de forma não discriminatória, o acesso equitativo à rede por parte dos novos operadores e a transparência do mercado. No quadro da separação da propriedade, deverá, pois, exigir‑se que os Estados‑Membros assegurem que a(s) mesma(s) pessoa(s) não seja(m) autorizada(s) a exercer controlo sobre uma empresa de produção ou de comercialização, ao mesmo tempo que exerce controlo ou direitos sobre um operador de rede de transporte ou uma rede de transporte. Reciprocamente, o controlo sobre uma rede de transporte ou operador de rede de transporte deverá vedar a possibilidade de exercício de controlo ou de direitos sobre uma empresa de produção ou de comercialização. Dentro destes limites, uma empresa de produção ou de comercialização poderá deter uma participação minoritária num operador de rede de transporte ou numa rede de transporte».

B —    Direito neerlandês

14.      As disposições do direito nacional relevantes para os processos principais constam da Lei que regula a produção, transporte e entrega de eletricidade (Wet houdende regels met betrekking tot de productie, het transport en de levering van elektriciteit (Elektriciteitswet 1998), de julho de 1998 (8) e da Lei que estabelece regras para o transporte e entrega de gás (Wet houdende regels omtrent het transport en de levering van gas), de 22 de junho de 2000 (9), conforme alteradas, nomeadamente, em 2004 e 2006 (a seguir, respetivamente, «Elektriciteitswet 1998» e «Gaswet»).

15.      Em primeiro lugar, estas leis foram alteradas pela Lei de Intervenção e de Transposição (Interventie‑ en Implementatiewet), de 1 de julho de 2004 (10), nomeadamente, para transpor as diretivas do segundo pacote da energia.

16.      Em seguida, foram alteradas pela Lei da gestão de rede independente (Wet onafhankelijk netbeheer), de 23 de novembro de 2006 (11) (a seguir «Lei Won»). A referida lei introduziu obrigações mais exigentes para o operador da rede, como a proibição de privatização, a proibição de grupo e a proibição das atividades secundárias acima referidas. São, especificamente, as alterações introduzidas pela referida Lei Won na Elektriciteitswet 1998 e na Gaswet que constituem o objeto do litígio entre as partes no órgão jurisdicional nacional.

17.      Com base nestes diplomas, nos Países Baixos, são aplicáveis as seguintes proibições, relevantes para o caso em apreço.

1.      Proibição de privatização

18.      O Decreto que regula as ações ou participações sociais dos operadores das redes (Besluit aandelen netbeheerders), de 9 de fevereiro de 2008 (12), conjugado com o artigo 93.° da Elektriciteitswet 1998 e o artigo 85.° da Gaswet, estabelece o regime da propriedade aplicável aos operadores das redes.

19.      As ações nas sociedades designadas como operadores de redes e o controlo sobre as redes devem ser detidas, na sua totalidade, por acionistas que pertençam ao «círculo da Administração Pública». Segundo o Decreto que regula as ações ou participações sociais dos operadores das redes, apenas entidades públicas, como os Municípios, as Províncias ou o Estado, ou pessoas coletivas cuja propriedade seja detida, direta ou indiretamente, na sua totalidade, pelo Estado, incluindo‑se aqui a Essent NV (13), a Eneco Holding NV e a Delta NV, podem ser, ou tornar‑se, proprietárias de ações num operador da rede.

20.      Por conseguinte, segundo o Decreto que regula as ações ou participações sociais dos operadores das redes, a autorização relativa a qualquer alteração que tenha por objeto a propriedade de uma rede ou das ações num operador da rede deve ser recusada pelo Ministro da Economia, se a transmissão for suscetível de levar à aquisição das participações sociais ou das ações por entidades não pertencentes ao círculo da Administração Pública.

2.      Proibição de grupo

21.      A proibição de grupo decorre do artigo 10.°‑B, n.° 1, da Elektriciteitswet 1998 e do artigo 2.°‑C, n.° 1, da Gaswet.

22.      Com base nestas disposições, os operadores da rede não podem pertencer a um grupo, na aceção do artigo 2:24b do Código Civil neerlandês (Burgerlijk Wetboek), ao qual também pertença uma sociedade de energia, ou seja, uma pessoa coletiva que produza, forneça ou comercialize eletricidade ou gás nos Países Baixos. No seguimento disto, a proibição de grupo opõe‑se igualmente a que um operador da rede detenha ações ou participações numa sociedade de energia ou em qualquer entidade de um grupo ao qual pertença uma sociedade de energia. Reciprocamente, uma sociedade de energia não pode deter qualquer ação ou participação num operador da rede ou numa entidade membro de um grupo ao qual pertença um operador da rede.

23.      Por força da referida proibição, as empresas do setor energético verticalmente integradas com atividade no setor da energia devem ser cindidas numa parte responsável pela exploração da rede e numa parte responsável pela produção, pelo fornecimento e pela comercialização de energia, ou seja, num ou mais operadores de rede e sociedades de energia. Com efeito, um operador da rede e as sociedades do grupo que com ele estão coligadas não podem pertencer a um grupo do qual fazem parte igualmente sociedades de energia. A obrigação de cindir‑se é designada pelo órgão jurisdicional de reenvio como «obrigação de cisão».

3.      Proibição de atividades secundárias

24.      A proibição de atividades secundárias está prevista no artigo 17.°, n.os 2 a 4, da Elektriciteitswet 1998 e no artigo 10.°‑B, n.os 2 a 4, da Gaswet (14). É composta por três elementos.

25.      Em primeiro lugar, não é permitido que um operador da rede de distribuição e as sociedades do grupo que com ele estão coligadas realizem operações ou atividades que possam ser incompatíveis com o interesse da gestão de uma rede. Em seguida, com base nesta proibição, não é permitido que uma empresa do grupo desenvolva atividades que não estejam estreitamente relacionadas com as funções de base de uma infraestrutura. Por fim, a proibição de atividades secundárias impede igualmente que o operador da rede preste, a favor das atividades da empresa de rede, garantias financeiras ou se responsabilize pelas dívidas de outros componentes do operador da rede de distribuição.

III — Litígios no processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

A —    Quadro factual

26.      Resulta das observações do Governo neerlandês que, aquando da entrada em vigor da Lei Won em 2006, tinham atividade no mercado da energia neerlandês três tipos de empresas. O primeiro tipo dizia respeito às empresas que só tinham atividade na produção, fornecimento ou comercialização de eletricidade ou de gás. O segundo tipo dizia respeito às empresas verticalmente integradas que tinham atividade tanto na produção, fornecimento ou comercialização de eletricidade ou de gás, como na gestão e exploração de redes de eletricidade e de gás para distribuição de eletricidade e de gás. O terceiro tipo dizia respeito a empresas que tinham atividade principalmente na gestão e exploração das redes de eletricidade e de gás e não desenvolviam qualquer atividade em matéria de produção, de fornecimento ou de comercialização de eletricidade ou de gás. As sociedades recorrentes no processo principal eram as empresas de energia verticalmente integradas mais importantes no mercado neerlandês. Pertenciam, portanto, ao segundo tipo de empresas.

27.      A Essent opera nos mercados da energia neerlandês, belga e de outros Estados. Para a Essent, a proibição de grupo significa que a Essent NV se cindiu em duas para formar, por um lado, a empresa de rede Enexis Holding NV, que, em conformidade com a proibição de privatização, é detida a 100% por acionistas públicos, e, por outro, a empresa de comercialização, fornecimento e produção de eletricidade e de gás Essent NV. A obrigação de cisão implicou custos consideráveis para a Essent, de modo que o juiz nacional considerou que, no âmbito do litígio no processo principal, esta tinha interesse no pedido de declaração objeto deste processo. Depois da sua aquisição pelo grupo alemão especialista em energia RWE, a Essent NV pertence a 100% à RWE Benelux Holding BV, uma filial do grupo RWE AG.

28.      A Eneco Holding NV é uma empresa cuja atividade consiste em produzir, comprar, vender, transportar e fornecer eletricidade e gás, nomeadamente, a utilizadores de energia, através das suas filiais. O capital da Eneco Holding NV é detido por 60 municípios. A sua atividade de fornecimento abrange todo o país, enquanto a sua empresa de rede cobre uma área que engloba seis províncias neerlandesas.

29.      A Delta NV opera, também, nos mercados da produção, do transporte, da comercialização e do fornecimento de eletricidade. Também distribui e fornece gás. Além disso, a Delta NV opera noutros mercados. As redes de energia desempenham um papel importante no quadro da sua estratégia pluridiversificada, que inclui uma participação maioritária numa empresa belga especializada no tratamento de resíduos. O valor que estas redes representam reforça a base financeira da Delta NV. A província da Zelândia é o seu acionista principal, sendo as restantes ações detidas por municípios neerlandeses.

30.      As sociedades deviam — tendo em conta a presença da rede de eletricidade ou de gás — ser detidas, direta ou indiretamente, a 100% por acionistas (públicos) pertencentes ao setor da Administração Pública. Era proibido que estas empresas e os seus acionistas vendessem a rede ou o operador da rede, no todo ou em parte, a investidores privados. Como já salientei, a Essent NV foi depois cindida em operador da rede e sociedade de energia e as outras duas sociedades mantêm‑se como sociedades verticalmente integradas.

B —    Processo nacional

31.      As sociedades intentaram três ações separadas no Rechtbank Den Haag (Países Baixos) a fim de obterem a declaração de que a proibição de grupo e a proibição de atividades secundárias são contrárias às liberdades fundamentais consagradas nos artigos 49.° TFUE e 63.° TFUE e, por conseguinte, ineficazes. O Rechtbank Den Haag julgou improcedentes as referidas ações.

32.      As sociedades interpuseram recurso dessas decisões no Gerechtshof Den Haag. O Gerechtshof Den Haag anulou as decisões do Rechtbank com o fundamento de que as disposições impugnadas eram contrárias ao artigo 63.° TFUE e, por conseguinte, ineficazes.

33.      Em consequência, o Staat der Nederlanden interpôs recurso de cassação dos acórdãos do Gerechtshof Den Haag, alegando que o direito da União não se opunha às disposições impugnadas.

34.      Foi no âmbito do referido processo que o Hoge Raad der Nederlanden, por três decisões de 24 de fevereiro de 2012, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça, no quadro dos três processos em causa, as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 345.° TFUE ser interpretado no sentido de que no ‘regime da propriedade nos Estados‑Membros’ também se inclui o regime da proibição absoluta de privatização em causa no presente processo, prevista no Decreto que regula as ações ou participações sociais dos operadores das redes, em conjugação com o artigo 93.° da [Elektriciteitswet 1998] e com o artigo 85.° da [Gaswet], que consiste no facto de as partes sociais ou ações de um operador da rede só poderem ser transmitidas dentro do setor da Administração Pública?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, resulta desse facto que as regras relativas à livre circulação de capitais não se aplicam à proibição de grupo e à proibição de atividades secundárias (15), ou, pelo menos, que não há lugar à apreciação das referidas proibições à luz dessas regras?

3)      Os objetivos, indicados como fundamento da [Lei] Won, de garantir a transparência no mercado da energia e de evitar distorções da concorrência, por meio do combate às subvenções cruzadas em sentido lato (incluindo o intercâmbio de informações estratégicas), são interesses puramente económicos, ou também podem ser considerados como interesses de natureza não económica, no sentido de que podem, em determinadas circunstâncias, enquanto razões imperiosas de interesse geral, justificar uma restrição à livre circulação de capitais?»

C —    Tramitação processual no Tribunal de Justiça

35.      Por despacho de 26 de março de 2012, o Presidente do Tribunal de Justiça decidiu apensar os processos C‑105/12, C‑106/12 e C‑107/12.

36.      Foram apresentadas observações escritas ao Tribunal de Justiça pelas sociedades em causa, pelos Governos neerlandês, checo e polaco, e pela Comissão Europeia, os quais, excetuando a República Checa e a República da Polónia, estiveram igualmente representados na audiência que se realizou em 14 de janeiro de 2013.

IV — Análise

A —    Quanto à primeira questão prejudicial, relativa à proibição de privatização à luz do artigo 345.° TFUE

37.      Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 345.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que também está incluído no conceito de «regime da propriedade nos Estados‑Membros» o regime da proibição absoluta de privatização em causa no presente processo, que consiste no facto de as participações sociais ou ações de um operador da rede só poderem ser transmitidas dentro do setor da Administração Pública.

38.      Observo, desde já, que a proibição de privatização prevista pela legislação neerlandesa significa, no que diz respeito às redes, que só a «Administração Pública», na aceção do Decreto que regula as ações ou participações sociais dos operadores das redes, acima referido (16), pode ser proprietária dessas redes, seja de forma direta ou indireta.

39.      Todavia, os bens ligados à exploração da rede, tal como as ações ou as participações diretas ou indiretas nas redes, não são «res extra commercium», dado tratar‑se de direitos de propriedade do domínio do direito privado perfeitamente comuns que podem ser vendidos, comprados e utilizados, nomeadamente, como garantia de um crédito. No entanto, a transmissão de participações só pode ter lugar no seio de uma categoria particular de proprietários, a saber, a referida «Administração Pública».

40.      O Hoge Raad der Nederlanden considera que, à luz da legislação nacional aplicável ratione temporis, se trata de uma proibição de privatização absoluta. Partilho desta opinião. O facto de o conteúdo desta limitação só se concretizar num ato de natureza regulamentar não afeta esta conclusão, ao contrário do que defendem as sociedades.

41.      Como o advogado‑geral Ruiz‑Jarabo Colomer recordou, o artigo 345 TFUE é a única disposição dos Tratados que é diretamente inspirada na Declaração Schuman, de 9 de maio de 1950 e estava inicialmente prevista no artigo 83.° do Tratado CECA (17). O seu objetivo original era o de assegurar que a instituição da nova comunidade não teria interferência numa delicada questão política da época relativa à natureza jurídica e social da propriedade das minas alemãs e das empresas que operavam no setor do aço «descartelizadas» (18). Assim, o artigo 345.° TFUE consagra o princípio da neutralidade relativamente à propriedade, quer pública, quer privada, dos «meios de produção» e das empresas (19).

42.      Em meu entender, isto significa, por um lado, que, na medida em que este sistema não é discriminatório ou desproporcionado, uma consequência inerente ao sistema de propriedade em causa não pode ser considerada um entrave abrangido pelo âmbito de aplicação das proibições previsto pelo Tratado. Por outro lado, as consequências restritivas que não sejam as que decorrem diretamente e de forma inevitável do regime de propriedade pública ou privada, estão, pelo contrário, sujeitas às liberdades fundamentais do Tratado (20).

43.      Por exemplo, decorre do facto de o setor da indústria siderúrgica estar nacionalizado num Estado‑Membro que os estabelecimentos, ou seja os investimentos diretos por investidores de outros Estados‑Membros, estão aí excluídos. Como a Comissão salienta, o Tribunal de Justiça, a partir do acórdão Costa, confirmou a compatibilidade das nacionalizações com o direito da União (21).

44.      Por outro lado, em minha opinião, é necessário referir o acórdão proferido pelo Tribunal da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA) (22) no processo que opôs a autoridade de fiscalização da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA) à Noruega a respeito de concessões para a aquisição de cascatas. O Tribunal da EFTA interpretou o artigo 125.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (23), de 2 de maio de 1992, que corresponde ao artigo 345.° TFUE, no sentido de que o direito de um Estado do Espaço Económico Europeu (EEE) decidir se a propriedade dos recursos hidroelétricos e das instalações com eles relacionadas é detida por autoridades públicas ou por entidades privadas não é, em si mesmo, afetado pelo Acordo sobre o Espaço Económico Europeu. Segundo este Tribunal, daí resultava que o Reino da Noruega podia, legitimamente, prosseguir o objetivo que consiste em estabelecer um regime da propriedade pública relativamente a esses bens, desde que o fizesse de forma proporcionada e não discriminatória.

45.      De acordo com esta lógica, o facto de nenhum investidor privado poder comprar ações ou participações de uma sociedade reservada aos acionistas públicos não pode ser considerado uma restrição proibida pelo Tratado, na medida em que se trata precisamente de um elemento do regime de propriedade que o Tratado não pretende modificar.

46.      Em contrapartida, como a jurisprudência relativa às «golden shares» demonstra, o tratamento privilegiado dos interesses públicos no âmbito de um regime de propriedade em princípio privado, como o das sociedades anónimas previsto pelo direito das sociedades, não escapa às disposições do Tratado relativas às liberdades fundamentais (24).

47.      O sistema neerlandês em causa assenta numa escolha fundamental, em virtude da qual a propriedade da rede de distribuição de energia foi reservada a acionistas públicos (res publica), mas não a um único proprietário. Prosseguindo este objetivo, os direitos de propriedade sobre a rede são detidos por diferentes entidades, que correspondem à definição de Administração Pública na aceção do Decreto que regula as ações ou participações sociais dos operadores das redes. Daí decorre, inevitavelmente, a necessidade de proibir uma detenção privada indireta.

48.      Portanto, são necessárias restrições à transmissão das partes na sociedade para que as participações no bem possam ser compradas e vendidas entre as diferentes entidades que a tal são autorizadas, sem retirar a esse bem a sua natureza pública. A proibição de privatização é, pois, uma consequência inevitável da escolha da propriedade pública e da ideia de manter a propriedade nas mãos do poder público. Daí concluo que, nos processos principais, se trata efetivamente de um regime de propriedade referido no artigo 345.° TFUE.

49.      Proponho, pois, que o Tribunal de Justiça responda à primeira questão no sentido de que um regime de um Estado‑Membro, como o que está em causa nos processos principais, nos termos do qual as ações de um operador da rede de distribuição só podem ser transmitidas a entidades públicas e a determinadas sociedades detidas a 100% pela Administração Pública (proibição de privatização), constitui um regime da propriedade na aceção do artigo 345.° TFUE e, nessa qualidade, é compatível com o direito da União Europeia.

B — Quanto à segunda questão prejudicial, relativa à «proibição de grupo» e à «proibição de atividades secundárias» à luz da livre circulação de capitais

50.      A segunda questão prejudicial diz respeito à livre circulação de capitais. O Hoge Raad der Nederlanden pretende saber se uma resposta positiva à primeira questão teria como consequência que as regras relativas à livre circulação de capitais não se aplicariam à proibição de grupo e à proibição de atividades secundárias (25) ou se, pelo menos, não haveria lugar à apreciação das referidas proibições à luz das regras relativas a essa liberdade.

51.      Antes de mais, importa determinar se, de acordo com a distinção que acima propus (26), estas duas proibições são consequências inerentes à escolha de princípio feita pelo Staat der Nederlanden, discutida no âmbito da primeira questão, de reservar a propriedade dos operadores de redes à Administração Pública, que não são suscetíveis de constituir entraves. Em meu entender, a resposta é negativa.

52.      A proibição de grupo e a proibição de atividades secundárias não são consequências diretas e inevitáveis da proibição de privatização, que, por seu lado, é do domínio do regime de propriedade na aceção do artigo 345.° TFUE, mas sim medidas legislativas que visam impedir que a gestão das redes de distribuição seja utilizada para promover interesses dissociados das necessidades dessas redes, nomeadamente, os interesses ligados ao fornecimento ou à produção de energia. Na realidade, trata‑se de impedir que seja contornado o princípio da separação da propriedade das redes, por um lado, e dos serviços de fornecimento e de produção que as exploram, por outro, independentemente da natureza pública ou privada de uma e de outra dessas estruturas. Além disso, a proibição de atividades secundárias é suscetível de isolar a gestão das redes dos riscos associados a atividades não conexas e, reciprocamente, de evitar que a gestão das redes seja utilizada como base de financiamento das atividades não conexas.

53.      Por outras palavras, não se trata de medidas que visam, através do controlo das cadeias de propriedade intermédias, reservar a propriedade das redes à Administração Pública, mas sim de medidas que pretendem manter «puro» o sistema, tendo por objetivo a dissociação das estruturas da propriedade, de modo que os interesses da rede e os da venda de energia não se misturem. Em meu entender, uma regulamentação análoga seria igualmente necessária na hipótese de a separação de propriedade ser implementada sem proibição de privatização. Mesmo que a legislação nacional autorizasse que um operador da rede fosse detido por entidades privadas, seria igualmente necessário introduzir proibições análogas para assegurar o respeito pela separação da propriedade (27), para evitar os conflitos de interesses.

54.      Sendo a proibição de grupo e a proibição de atividades secundárias dissociáveis da proibição de privatização, importa apreciar se as mesmas constituem uma restrição à livre circulação de capitais.

55.      Não havendo no Tratado definição dos movimentos de capitais, o Tribunal de Justiça reconheceu valor indicativo à nomenclatura dos movimentos de capitais constante do anexo I da Diretiva 88/361/CEE (28), nomeadamente no acórdão Comissão/Portugal (29). De acordo com esta nomenclatura, constituem movimentos de capitais, nomeadamente, os investimentos ditos «diretos», sob a forma de participação numa empresa mediante a detenção de ações que confere a possibilidade de participar efetivamente na sua gestão e no seu controlo, e os investimentos ditos «de carteira», com o único objetivo de realizar uma aplicação financeira, sem intenção de influir na gestão e no controlo da empresa (30). A referida nomenclatura inclui também as cauções, as outras garantias e os direitos de garantia.

56.      O Tribunal de Justiça esclareceu que devem ser qualificadas de restrições, na aceção do artigo 63.°, n.° 1, TFUE, as medidas nacionais suscetíveis de impedir ou de limitar a aquisição de ações nas empresas em causa ou que são suscetíveis de dissuadir os investidores dos outros Estados‑Membros de investir no capital destas (31).

57.      Parece‑me que a proibição de grupo e a proibição de atividades secundárias estão claramente abrangidas pelos movimentos de capitais na aceção do artigo 63.°, n.° 1, TFUE e que constituem restrições aos mesmos. Acresce que, dado tratar‑se de proibições absolutas que impedem, por hipótese, todas as transações abrangidas pelo seu âmbito de aplicação, não é necessário provar separadamente a sua natureza de obstáculos à livre circulação de capitais.

58.      Ao obstarem a qualquer estratégia de diversificação financeira ou operacional das entidades em causa, baseada na complementaridade dos dois setores, as proibições em questão impedem tanto os investimentos diretos como os investimentos de carteira. Com efeito, as mesmas limitam os investimentos por sociedades estrangeiras nos operadores com atividade no setor da energia nos Países Baixos e os investimentos por estes últimos nos operadores estrangeiros que dispõem de participações nos outros grupos energéticos dos Países Baixos. A proibição de atividades secundárias também é suscetível de alterar as condições de financiamento das sociedades em causa. Por conseguinte, a proibição de grupo e a proibição de atividades secundárias constituem restrições aos movimentos de capitais na aceção do artigo 63.°, n.° 1, TFUE, que são proibidas, salvo se existir uma justificação.

59.      É útil precisar que estas duas proibições também poderiam ser analisadas da perspetiva da liberdade de estabelecimento. Com efeito, a proibição de grupo constitui um obstáculo às tomadas de participações tanto minoritárias como maioritárias nos operadores de rede e nas sociedades de energia, bem como nas entidades membros de grupos aos quais pertencem tais sociedades. A proibição de atividades secundárias limita, por sua vez, o campo de atividade dos operadores de redes e das sociedades que com eles estão coligadas no quadro de um grupo, o que constitui potencialmente uma restrição à liberdade de estabelecimento do ponto de vista da empresa em causa. A este respeito, basta salientar que, segundo jurisprudência assente, na medida em que as medidas nacionais em causa comportam restrições à liberdade de estabelecimento, essas restrições são a consequência direta dos obstáculos à livre circulação de capitais, de que são indissociáveis. Por conseguinte, não será necessário examinar as medidas em causa à luz da liberdade de estabelecimento (32).

60.      Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça responda à segunda questão prejudicial no sentido de que, embora a proibição de privatização dos operadores de redes de distribuição, como a que está em causa no processo principal, constitua um regime da propriedade, na aceção do artigo 345.° TFUE, compatível com o direito da União, outros regimes nacionais como o da proibição de grupo, que inclui quer os operadores de redes de distribuição de energia quer pessoas coletivas que comercializem, forneçam ou produzam eletricidade ou gás nos Países Baixos, e como o da proibição de atividades secundárias aplicável aos operadores de redes de distribuição, estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais, à luz da qual a respetiva compatibilidade deve ser verificada.

B —    Quanto à terceira questão prejudicial, relativa à existência de «razões imperiosas de interesse geral» que justifiquem uma restrição à livre circulação de capitais

61.      Com a sua terceira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se os objetivos da Lei Won, ou seja, garantir a transparência no mercado da energia e evitar distorções da concorrência, por meio do combate às subvenções cruzadas em sentido lato (incluindo o intercâmbio de informações estratégicas), são interesses puramente económicos, ou também podem ser considerados interesses de natureza não económica, no sentido de que podem, consoante as circunstâncias e enquanto razões imperiosas de interesse geral, justificar uma restrição à livre circulação de capitais.

1.      Quanto às características das redes de distribuição de eletricidade e de gás

62.      Antes de analisar a existência de uma eventual justificação e a sua proporcionalidade, parece‑me necessário recordar as características das redes de distribuição de eletricidade e de gás sob os pontos de vista concorrencial e estratégico.

63.      Estas redes ligam a rede de transporte nacional ao consumidor a nível regional ou local. Constituem monopólios chamados «naturais», dado que não podem razoavelmente ser divididas, tendo em conta as economias de escala muito importantes que estão ligadas às mesmas. Do ponto de vista da concorrência, o proprietário da rede de distribuição controla, portanto, uma infraestrutura essencial («essential facility») entre o fornecimento e o consumo, que lhe confere um poder de mercado tanto a jusante como a montante.

64.      As redes de distribuição de eletricidade e de gás são importantes para os consumidores em dois aspetos. Em primeiro lugar, é indispensável que o proprietário da rede não utilize a sua posição monopolista para exigir uma remuneração desproporcionada do seu serviço, ou seja, do acesso ao fornecimento de energia pela rede de distribuição. É por isso que a tarifa de encaminhamento para a distribuição da energia é suscetível de ser controlada pelas autoridades nacionais, o que parece ser o caso nos Países Baixos (33). Em segundo lugar, é necessário que a qualidade da gestão da rede seja satisfatória em termos, nomeadamente, de reparação de deficiências que afetem a receção da energia e a fiabilidade de faturação do consumo.

65.      Do ponto de vista da segurança do fornecimento de energia, as redes de distribuição são essenciais, uma vez que é inútil dispor de um abastecimento suficiente de energia se esta não pode ser distribuída aos consumidores. É por isso que os operadores de redes também assumem importância do ponto de vista da segurança nacional, dado que aquele que controla a distribuição de eletricidade controla também a sociedade moderna em todo o seu funcionamento. O mesmo raciocínio é válido para o gás, nos Estados‑Membros em que o mesmo constitui uma fonte de energia importante.

66.      Tendo em conta as especificidades dos setores que exploram redes não «divisíveis» para o fornecimento de serviços ou de energia, a importância de assegurar uma estrutura concorrencial adaptada revela‑se mais claramente. Nesta perspetiva, é necessário garantir um acesso não discriminatório de terceiros a essas redes para concretizar o processo de liberalização, ou seja, a realização de um mercado concorrencial no qual seja assegurada a livre prestação de serviços, na exploração de redes como, nomeadamente, as redes de distribuição de eletricidade, de gás, ou os transportes ferroviários. O legislador da União, como os de vários Estados‑Membros, adotou, para isso, a estratégia da separação, ou seja, a dissociação da gestão e da exploração da rede para o fornecimento dos serviços. O grau de separação visado ou conseguido variou segundo os setores e os Estados‑Membros envolvidos, indo da separação contabilística ou funcional à separação jurídica e mesmo até à separação da propriedade.

2.      Influência do direito derivado da União na apreciação de uma legislação nacional à luz das liberdades de circulação

67.      Os processos principais levantam o problema da influência de medidas do direito derivado da União na apreciação da justificação de uma medida nacional de transposição que constitui uma restrição a uma das liberdades de circulação e que vai para além das exigências da diretiva que transpõe.

68.      Tendo em conta a jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça, parece‑me efetivamente importante determinar se a fiscalização da medida de transposição em causa nos processos principais implica a fiscalização da compatibilidade da diretiva transposta com o direito primário da União.

69.      Nos processos principais, a proibição de grupo e das atividades secundárias resulta da Lei Won, adotada, nomeadamente, para transpor as Diretivas 2003/54 e 2003/55 do segundo pacote da energia, as quais não exigem qualquer separação entre a propriedade das ações do operador da rede de transporte ou de distribuição e a dos outros operadores e não fazem da mesma uma norma expressa de transposição (34). À semelhança de outros legisladores nacionais que optaram pela separação da propriedade entre os operadores de redes de transporte, por um lado, e as empresas de produção e de fornecimento de energia, por outro (35), o legislador neerlandês parece‑me ter ido, em 2006, com a Lei Won, por sua própria iniciativa, para além das exigências do direito derivado da União em vigor, ao optar pela separação entre a propriedade dos operadores de redes de distribuição, por um lado, e das empresas de produção e de fornecimento de energia, por outro. Sublinho que as diretivas em causa são disposições de harmonização mínima.

70.      No quadro jurídico aplicável ratione temporis nestes processos principais, a Lei Won, embora tenha sido adotada com vista à respetiva transposição, surge assim como uma medida nacional separável das diretivas de 2003. Portanto, é suscetível de ser fiscalizada de forma autónoma à luz das liberdades de circulação.

71.      No entanto, apesar de não serem aplicáveis ratione temporis no presente processo, não me parece possível deixar de tomar em consideração a adoção posterior das Diretivas 2009/72 e 2009/73, que, por sua vez, fazem da separação da propriedade uma das normas expressas de transposição. Com efeito, recordo que o décimo primeiro considerando da Diretiva 2009/72 qualifica essa separação como forma estável e eficaz de resolver o inerente conflito de interesses e que o seu vigésimo primeiro considerando consagra o direito de optar pela plena separação da propriedade (36).

72.      É certo que uma interpretação literal e restritiva dos referidos considerandos poderia levar a pensar que os mesmos só dizem respeito aos operadores de redes de transporte de energia. Contudo, à semelhança do Governo neerlandês e da Comissão, entendo que estes considerandos são igualmente pertinentes no tocante às redes de distribuição, tendo em conta as suas características, que já descrevi, e a necessidade de eliminar os conflitos de interesses entre os operadores e os utilizadores das redes, que me parece tão aguda em matéria de distribuição como de transporte, embora só estas últimas redes sejam determinantes do ponto de vista da livre prestação de serviços a nível transfronteiriço.

73.      Por conseguinte, no quadro jurídico atual, parece‑me que a proibição de grupo e a proibição de atividades secundárias já não podem ser postas em causa, pelo menos no seu princípio, sem implicar diretamente uma fiscalização da compatibilidade das Diretivas de 2009 com a livre circulação de capitais. No entanto, observo que a separação da propriedade concebida no décimo primeiro considerando destas diretivas não vai tão longe como a que resulta da proibição de grupo do direito neerlandês, na medida em que esse considerando salvaguarda expressamente a possibilidade de investimentos minoritários recíprocos entre o operador de rede e uma empresa de produção ou de comercialização.

74.      Nas suas observações, a Comissão salienta que a compatibilidade da proibição de grupo com a livre circulação de capitais deve ser apreciada no quadro das regras pertinentes do direito derivado da União e parece alegar que a simples compatibilidade da proibição de grupo com os objetivos das diretivas pode ser considerada como justificação dessa medida.

75.      Em meu entender, a verdadeira questão é antes a seguinte, a saber: a separação da propriedade posteriormente prevista pelas diretivas de 2009 é compatível com o Tratado e, em especial, com as liberdades de circulação a que a mesma é suscetível de causar entraves?

76.      É jurisprudência assente que o legislador da União é, em princípio, obrigado a respeitar as liberdades de circulação instituídas pelo Tratado, à semelhança do legislador nacional (37). Desenvolveu‑se um debate doutrinário (38), para determinar se a legislação derivada está sujeita a uma fiscalização da mesma natureza e da mesma intensidade no quadro da apreciação da sua conformidade com o direito primário da União, em especial com as liberdades de circulação (39), ou se a referida fiscalização deve ser adaptada às especificidades e às finalidades próprias do direito da União.

77.      No processo Bauhuis, o Tribunal de Justiça decidiu que medidas tomadas pelo Conselho no interesse geral da Comunidade, e não unilateralmente pelos Estados‑Membros com vista à proteção dos seus interesses próprios, não podem ser consideradas como medidas que causam entraves às trocas comerciais (40). Por outras palavras, a legislação derivada da União parece beneficiar de uma presunção de conformidade com as liberdades de circulação garantidas pelo Tratado. Um exemplo mais recente da especificidade da fiscalização das medidas de direito derivado à luz das liberdades de circulação resulta do acórdão Alemanha/Parlamento e Conselho (41), no qual foi declarado que o objetivo da luta contra qualquer perturbação do mercado podia justificar um entrave à liberdade de estabelecimento decorrente da diretiva relativa aos sistemas de garantia de depósitos. Sem dúvida que tal objetivo não permitiria justificar uma medida nacional similar que fosse considerada de natureza puramente económica.

78.      Por conseguinte, a jurisprudência do Tribunal de Justiça admitiu que as finalidades económicas do Tratado podem justificar entraves às liberdades fundamentais decorrentes da legislação da União. Portanto, no âmbito dos processos principais, importa esclarecer a questão de saber se, e em que medida, também o podem fazer os objetivos de uma legislação nacional que visa as finalidades do Tratado. Este problema poderá colocar‑se em termos idênticos fora da liberalização dos setores das redes de distribuição de eletricidade e de gás, nomeadamente no quadro da análise de uma legislação nacional em matéria de concorrência que, no seu próprio âmbito de aplicação, se revele mais severa do que a da União e, portanto, seja suscetível de constituir uma restrição à liberdade de estabelecimento.

3.      Quanto às justificações ditas «puramente económicas»

79.      No quadro da segunda questão prejudicial, demonstrei que tanto a proibição de grupo como a proibição de atividades secundárias, aplicáveis aos operadores de redes de distribuição, são abrangidas pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais, a que constituem restrições.

80.      O Tribunal de Justiça tem repetidamente decidido que a livre circulação de capitais só pode ser limitada por uma regulamentação nacional se esta se justificar por uma das razões referidas no artigo 58.° CE ou por razões imperiosas de interesse geral, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça. Além disso, essas restrições devem ser adequadas ao objetivo prosseguido e não ir além do necessário para o atingir (42).

81.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que os objetivos de transparência no mercado da energia e de prevenção das distorções da concorrência com vista à criação de condições de concorrência equitativas («level playing field»), invocados pelo Estado para justificação da proibição de grupo e da proibição de atividades secundárias, foram igualmente utilizados pelo Parlamento e pelo Conselho para fundamentar as Diretivas 2009/72 e 2009/73. Conforme resulta dos respetivos preâmbulos, estas diretivas pretendem promover o acesso equitativo à rede e a transparência do mercado, para que possam ser utilizadas tarifas transparentes e não discriminatórias (43). Embora estas diretivas não imponham a obrigação de separação da propriedade do operador da rede de distribuição e das atividades de comercialização, o órgão jurisdicional de reenvio observa que medidas como a separação jurídica e funcional foram impostas com caráter de obrigatoriedade, com vista a alcançar os objetivos ora referidos.

82.      Em contrapartida, as sociedades consideram que a transparência e a prevenção das subvenções cruzadas visam, principalmente, reforçar a estrutura da concorrência do mercado neerlandês da energia. Invocando jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, as mesmas alegam que esses objetivos são de natureza puramente económica e, como tal, não poderiam constituir uma razão imperiosa de interesse geral (44).

83.      Por seu lado, a Comissão considera ser verdade que a proibição de grupo e a proibição de atividades secundárias resultam numa separação dos operadores de redes de distribuição que vai além da que é imposta pelas Diretivas 2003/54 e 2003/55, mas que esta é conforme com a sistemática e com os objetivos destas diretivas.

84.      Em meu entender, decorre claramente, tanto do preâmbulo das diretivas de 2009 como dos debates parlamentares nos Países Baixos, que os principais objetivos da separação da propriedade e da proibição de grupo são, respetivamente, na União, o incremento dos investimentos e da concorrência no mercado da energia e a redução dos preços a nível europeu (45) e, nos Países Baixos, a luta contra os comportamentos anticoncorrenciais através de uma maior transparência (46). Basta assinalar que estes objetivos constituem prima facie razões de natureza económica na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

85.      Concretamente, apesar das razões económicas criticadas no caso em apreço, parece‑me que as proibições de grupo e das atividades secundárias podem ser justificadas de três formas. Em primeiro lugar, considerando que os objetivos económicos não são «puros», mas sim meios ao serviço de fins não económicos. Em segundo lugar, precisando o conceito de objetivo económico de forma a nele incluir um elemento relativo à finalidade protecionista, ou mesmo «egoísta», da medida fiscalizada. Ou, em terceiro lugar, justificando as proibições controvertidas por referência a um dos objetivos do Tratado, abstraindo do caráter económico ou não da razão apresentada.

86.      O primeiro raciocínio inscrever‑se‑ia na linha das adaptações, já admitidas pelo Tribunal de Justiça, à proibição das razões económicas (47). Em especial, o Governo neerlandês invoca uma corrente jurisprudencial que admite a legalidade de medidas que, embora tendo uma razão económica, prossigam uma outra finalidade de natureza não económica (48).

87.      Contudo, seguir este raciocínio colocaria, nos processos principais, duas dificuldades. Uma está relacionada com a formulação da terceira questão prejudicial do Hoge Raad der Nederlanden, que apenas incide sobre os objetivos da transparência no mercado da energia e as distorções da concorrência, e não permite que o Tribunal de Justiça tome em consideração os objetivos não económicos apresentados pelo Governo neerlandês, a saber, nomeadamente, a proteção dos clientes, a garantia da segurança do fornecimento e o interesse em que os operadores de redes se concentrem nessa tarefa.

88.      A outra está relacionada com o facto de o vínculo entre a proibição de grupo e a proibição de atividades secundárias e a segurança pública e a proteção do consumidor não se revelar claramente, nem do ponto de vista da adequação destas medidas, nem do da sua proporcionalidade relativamente a estes objetivos (49), como as sociedades assinalam com razão. Com efeito, parece‑me que a proibição de privatização já responde suficientemente às exigências relativas à preocupação de proteção da segurança pública, uma vez que exclui, nomeadamente, a gestão das redes de distribuição de eletricidade por sociedades controladas por Estados terceiros. Em contrapartida, as exigências decorrentes da preocupação com a proteção dos consumidores deviam ser objeto de uma atenção específica, mesmo que o legislador tenha admitido a manutenção de sociedades verticalmente integradas.

89.      O segundo raciocínio assenta na ideia de que a razão pela qual as medidas provenientes do direito da União não são objeto de uma fiscalização tão rigorosa à luz das liberdades de circulação como aquela a que são sujeitas medidas puramente nacionais é a de que aquilo que o Tribunal de Justiça visa, ao distinguir os fundamentos suscetíveis de justificar uma medida restritiva dos outros fundamentos, não é tanto a natureza económica, em si, do objetivo prosseguido, mas sim a finalidade protecionista implícita nessa justificação explícita (50). Assim, tendo em consideração o sistema e os objetivos do Tratado, a classificação estática da expressão legislativa de uma política pública é menos importante do que a sua finalidade dinâmica.

90.      Esta análise é confirmada pelo estudo das medidas em causa em determinados processos em que o Tribunal de Justiça rejeitou a justificação de uma restrição à liberdade de estabelecimento ou à livre circulação de capitais, por ser de natureza puramente económica.

91.      Por exemplo, no processo Comissão/Portugal (51), já referido, o Tribunal de Justiça não admitiu que o regime nacional em causa, que se destinava a limitar o número de investidores nacionais de outro Estado e a sujeitar a autorização prévia da República Portuguesa a aquisição de ações para além de um determinado limite, fosse justificado pelo reforço da estrutura concorrencial do mercado em causa, bem como pela modernização e reforço da eficácia dos meios de produção, com fundamento no seu caráter económico. Parece‑me que a fundamentação implícita deste acórdão consiste na suspeita de motivações protecionistas no exercício do poder de apreciação reservado da autoridade nacional responsável pela emissão dessa autorização.

92.      Além disso, a importância do risco de desvio protecionista quanto à natureza do fundamento apresentado transparece a fortiori na jurisprudência do Tribunal de Justiça que não se refere às justificações económicas. Assim, no recente processo Comissão/Grécia (52), o Tribunal de Justiça recusou a justificação de uma medida de autorização prévia para a aquisição de ações de sociedades estratégicas, devido ao poder de apreciação discricionário das autoridades nacionais no exercício dessa faculdade, apesar da existência de um motivo de segurança pública — relativo à segurança do abastecimento energético — suscetível de justificar esse dispositivo. Por outras palavras, a finalidade do dispositivo nacional fiscalizado prevalece sobre a sua qualificação económica.

93.      O processo Comissão/Itália (53) também dizia respeito a uma lei de privatização que, a título de medida transitória com vista à liberalização completa do setor da energia, privava de direito de voto todas as ações que excedessem um limite consolidado de 2%. A República Italiana tentou justificar esta medida com a salvaguarda de condições de concorrência sãs e equitativas nos mercados da energia, objetivo este que foi rejeitado pelo Tribunal de Justiça. Parece‑me, aqui novamente, que era menos a natureza económica da medida que impedia que o Tribunal de Justiça a admitisse do que o facto de essa medida contribuir para manter o statu quo, ou seja, nesse caso, o controlo das autoridades públicas italianas sobre sociedades em processo de privatização, objetivo essencialmente protecionista.

94.      O mesmo se pode dizer no que respeita à jurisprudência relativa às «golden shares»: não é tanto a natureza económica da justificação apresentada como o caráter exorbitante do direito que esse governo se reserva, que conduz, também aqui, a um protecionismo público, que me parece ter justificado que o Tribunal de Justiça tenha sistematicamente considerado que tais dispositivos eram incompatíveis com a liberdade de circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento (54).

95.      Um objetivo que é, a priori, incompatível com a jurisprudência clássica do Tribunal de Justiça, poderá, pelo contrário, vir a ser julgado compatível com o Tratado na sequência de um teste de finalidade, no quadro de uma abordagem renovada do fundamento económico. Esta pressuporá, nomeadamente, o estabelecimento de uma distinção entre as razões económicas que têm o efeito de proteger, de uma forma ou de outra, interesses económicos dos Estados‑Membros, por um lado, e as que têm o efeito de organizar um setor em conformidade com os objetivos económicos do Tratado, por outro.

96.      No caso em apreço, no quadro da situação de partida existente nos Países Baixos, ou seja, que os operadores de redes, como as sociedades de energia verticalmente integradas, são detidos por entidades públicas, não me parece que a proibição de grupo ou a proibição de atividades secundárias favoreçam direta ou indiretamente os operadores nacionais. Pelo contrário, a Essent NV, porque foi forçada a cindir‑se antes de poder ser privatizada, considera que, ao ter sido obrigada a ceder participações no operador da rede de distribuição Enexis Holding NV, foi colocada numa situação de desvantagem concorrencial em relação aos concorrentes de outros Estados‑Membros nos quais o modelo verticalmente integrado continua a ser autorizado. Por conseguinte, parece‑me que a proibição de grupo não prossegue uma finalidade protecionista, ao contrário das medidas julgadas incompatíveis com as liberdades de circulação nos processos acima referidos.

97.      De resto, a proibição de grupo ou a proibição de atividades secundárias não prosseguem de todo uma finalidade protecionista a favor da Administração Pública, à qual de facto é reservada a propriedade dos operadores de redes, mas também é vedada a propriedade das sociedades de energia, quando estas sejam operadoras de redes.

98.      O terceiro raciocínio consiste em reconhecer um novo fundamento para a justificação de uma restrição às liberdades de circulação, baseado na disposição do Tratado segundo a qual o mercado interno inclui, em qualquer caso, um sistema que assegura que a concorrência não seja falseada. Esta disposição, que figurava já no artigo 3.°, alínea f), do Tratado CEE original, encontra‑se atualmente no Protocolo 27 do Tratado FUE (55).

99.      Ora, a regulamentação nacional que visa substituir, a nível regional ou mesmo local, os monopólios históricos das sociedades de energia verticalmente integradas por uma estrutura que, ao separar a propriedade da gestão da rede de distribuição da dos serviços que a exploram, permite o estabelecimento de um mercado concorrencial da comercialização, do fornecimento e da produção da energia, constitui verdadeiramente uma medida capaz de assegurar que a concorrência não seja falseada.

100. Em meu entender, as limitações à liberdade de ação, tanto do operador da rede de distribuição, como das sociedades de energia, são suscetíveis de garantir um acesso não discriminatório ao mercado da energia e de assegurar que a concorrência não seja falseada no que diz respeito à comercialização, ao fornecimento e à produção de energia. Na minha opinião, este objetivo deve ser considerado como uma importante justificação de interesse geral para as restrições nacionais não discriminatórias que se mostram necessárias para poder liberalizar um mercado caracterizado por um monopólio natural. É pouco importante que essa justificação seja qualificada como justificação não puramente económica ou não protecionista.

101. Mais particularmente, a proibição de grupo reforça a separação entre o fornecimento e a produção, por um lado, e a distribuição de energia, por outro, o que, de acordo com o décimo primeiro considerando das Diretivas 2009/72 e 2009/73, constitui o meio mais eficaz de promover o investimento nas infraestruturas de forma não discriminatória, o acesso equitativo à rede por parte dos novos operadores e a transparência do mercado.

102. Por seu lado, a proibição de atividades secundárias separa simultaneamente os outros setores, como por exemplo a gestão dos resíduos de um «spill over», dos recursos acumulados no quadro de uma atividade com caráter de monopólio natural, ao mesmo tempo que protege a gestão das redes contra os riscos ligados às atividades não conexas. Daí decorre que uma proibição deste tipo é suscetível de assegurar que os potenciais excedentes de exploração acumulados no quadro da gestão das redes sejam investidos na manutenção e melhoramento da rede e não em atividades externas.

103. Quanto à proporcionalidade, no quadro da decisão de princípio adotada pelo legislador nacional, ou seja, a separação estrutural entre a gestão das redes de distribuição e a comercialização, o fornecimento e a produção de eletricidade e de gás, esta proibição não vai mais além do que é necessário para atingir os objetivos de transparência no mercado da energia e de evitar distorções de concorrência.

104. Por conseguinte, proponho que o Tribunal de Justiça responda à terceira questão prejudicial no sentido de que os regimes nacionais em causa, como o da proibição de grupo, que inclui quer os operadores de rede de distribuição de energia quer pessoas coletivas que comercializem, forneçam ou produzam eletricidade ou gás nos Países Baixos, e como o da proibição de atividades secundárias, aplicáveis aos operadores de rede de distribuição, podem ser considerados restrições justificadas à livre circulação de capitais, dado que são suscetíveis de assegurar que a concorrência não é falseada pela exploração de uma posição monopolista de operador de redes de distribuição na comercialização, no fornecimento ou na produção, ou noutros setores dissociados da gestão de rede.

V —    Conclusão

105. Atendendo às considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Hoge Raad der Nederlanden, do seguinte modo:

«1)      Um regime de um Estado‑Membro, como o que está em causa nos processos principais, nos termos do qual as ações de um operador da rede de distribuição só podem ser transmitidas a entidades públicas e a determinadas sociedades detidas a 100% pela Administração Pública (proibição de privatização), constitui um regime da propriedade na aceção do artigo 345.° TFUE e, nessa qualidade, é compatível com o direito da União Europeia.

2)      Embora a proibição de privatização dos operadores de redes de distribuição, como a que está em causa no processo principal, constitua um regime da propriedade, na aceção do artigo 345.° TFUE, compatível com o direito da União, outros regimes nacionais, como o da proibição de grupos, que inclui quer os operadores de redes de distribuição de energia quer pessoas coletivas que comercializem, forneçam ou produzam eletricidade ou gás nos Países Baixos, e como o da proibição de atividades secundárias aplicável aos operadores de redes de distribuição, estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da livre circulação de capitais, à luz da qual a respetiva compatibilidade deve ser verificada.

3)       Os regimes nacionais em causa, como o da proibição de grupo, que inclui quer os operadores de rede de distribuição de energia quer pessoas coletivas que comercializem, forneçam ou produzam eletricidade ou gás nos Países Baixos, e como o da proibição de atividades secundárias, aplicáveis aos operadores de rede de distribuição, podem ser considerados restrições justificadas à livre circulação de capitais, dado que são suscetíveis de assegurar que a concorrência não é falseada pela exploração de uma posição monopolista de operador de redes de distribuição na comercialização, no fornecimento ou na produção, ou noutros setores dissociados da gestão de rede.»


1 —      Língua original: francês.


2 —      Nas presentes conclusões, os termos «rede» e «operador da rede» remetem sempre para as redes de distribuição de eletricidade ou de gás dos Países Baixos. Nos casos em que se trata de redes de transporte, isso é expressamente mencionado.


3 —      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 96/92/CE (JO L 176, p. 37).


4 —      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno de gás natural e que revoga a Diretiva 98/30/CE (JO L 176, p. 57).


5 —      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 2003/54/CE (JO L 211, p. 55).


6 —      Diretiva 2009/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 2003/55/CE (JO L 211, p. 94).


7 —      JO 2008, C 175 E, p. 206.


8 —      Stb. 1998, n.° 427.


9 —      Stb. 2000, n.° 305.


10 —      Stb. 2004, n.° 328.


11 —      Stb. 2006, n.° 614.


12 —      Stb. 2008, n.º 62.


13 —      V. n.° 27 das presentes conclusões.


14 —      Nas presentes conclusões, a terminologia «interdiction des activités tierces» [proibição de atividades secundárias] substitui a de «interdiction des activités auxiliaires» [proibição de atividades auxiliares], utilizada na versão francesa das decisões de reenvio, para evitar qualquer confusão com o conceito de «serviços auxiliares» na aceção dos artigos 2.°, alínea 17, da Diretiva 2003/54/CE, e 2.°, alínea 14, da Diretiva 2003/55/CE, fazendo‑se notar que a definição deste conceito é diferente em cada uma das diretivas referidas.


15 —      A terminologia utilizada nas presentes conclusões para a análise das segunda e terceira questões retoma a convenção explicada na nota 14 das presentes conclusões («atividades secundárias»).


16 —      Importa precisar que a definição de Administração Pública inclui também as pessoas coletivas que sejam sociedades filiais a 100% de uma sociedade de energia visada pelo Decreto que regula as ações ou participações sociais dos operadores das redes, incluindo a Essent NV (antes da sua cisão), a Eneco Holding NV e a Delta NV. Estas sociedades filiais podem ser pessoas coletivas estrangeiras.


17 —      V. n.º 45 das conclusões apensas do advogado‑geral Ruiz‑Jarabo Colomer nos processos que deram lugar aos acórdãos de 4 de junho de 2002, Comissão/Portugal (C‑367/98, Colet., p. I‑4731); Comissão/França (C‑483/99, Colet., p. I‑4781), e Comissão/Bélgica (C‑503/99, Colet., p. I‑4809).


18 —      Nas suas observações, a Delta NV faz referência à descrição da génese da referida disposição feita pelo professor Reuter, P., no seu livro La Communauté européenne du charbon et acier, Paris, 1953.


19 —      Segundo o advogado‑geral Ruiz‑Jarabo Colomer, o artigo 345.° TFUE não diz respeito aos regimes de propriedade na aceção do ordenamento civil das relações patrimoniais (v. n.° 54 das suas conclusões apensas nos processos já referidos Comissão/Portugal [C‑367/98]; Comissão/França [C‑483/99] e Comissão/Bélgica [C‑503/99]).


20 —      O Tribunal de Justiça recordou recentemente, no acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Grécia (C‑244/11, n.os 15 e 16), que «[...] o [...] artigo [295.° CE] não tem por efeito [subtrair] os regimes de propriedade existentes nos Estados‑Membros às regras fundamentais do Tratado [...]. Mais concretamente, o Tribunal de Justiça já declarou que, embora o artigo 295.° CE não ponha em causa a faculdade de os Estados‑Membros instituírem um regime de aquisição da propriedade fundiária, esse regime não escapa às regras fundamentais do direito da União, designadamente, às regras da não discriminação, da liberdade de estabelecimento e da liberdade de movimentos de capitais (acórdão de 23 de setembro de 2003, Ospelt e Schlössle Weissenberg, C‑452/01, Colet., p. I‑9743, n.° 24 e jurisprudência referida)».


21 —      Acórdão de 15 de julho de 1964, Costa (6/64, Colet. 1962‑1964, p. 549).


22 —      Acórdão do Tribunal da EFTA de 26 de junho de 2007, ESA/Noruega, dito «cascatas na Noruega» (E‑2/06, EFTA Court Report, p. 163, n.° 72).


23 —      JO 1994, L 1, p. 3.


24 —      V., nomeadamente, os acórdãos já referidos Comissão/Portugal (C‑367/98), Comissão/França (C‑483/99), e Comissão/Bélgica (C‑503/99).


25 —      V. n.os 21 a 25 das presentes conclusões.


26 —      No n.° 42 das presentes conclusões.


27 —      Segundo a Comissão, à época da adoção destas duas proibições, o Governo neerlandês ainda não tinha excluído a possibilidade de uma privatização dos operadores da rede. Recordo que, com efeito, os regimes que limitam a formação de grupos e/ou o exercício de atividades secundárias são bastante correntes nas regulamentações aplicáveis aos setores sujeitos a um controlo estatal reforçado, tais como as aplicáveis ao setor financeiro ou ao da saúde.


28 —      Diretiva do Conselho, de 24 de junho de 1988, para a execução do artigo [67.° CE] (JO L 178, p. 5).


29 —      Acórdão de 8 de julho de 2010 (C‑171/08, Colet., p. I‑6817, n.° 49). V., igualmente, acórdão de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation (C‑446/04, Colet., p. I‑11753, n.° 179).


30 —      V., nomeadamente, acórdãos de 1 de outubro de 2009, Woningstichting Sint Servatius (C‑567/07, Colet., p. I‑9021, n.° 19), e de 8 de julho de 2010, Comissão/Portugal (C‑171/08), já referido (n.os 49 a 50).


31 —      Acórdão de 8 de julho de 2010, Comissão/Portugal (C‑171/08), já referido (n.° 50).


32 —      Acórdãos de 28 de setembro de 2006, Comissão/Países Baixos (C‑282/04 e C‑283/04, Colet., p. I‑9141, n.° 43), e de 8 de julho de 2010, Comissão/Portugal (C‑171/08), já referido (n.° 80).


33 —      Segundo as indicações fornecidas, na audiência, pelo Governo neerlandês.


34 —      V. oitavo considerando e artigo 15.° da Diretiva 2003/54, já referidos supra.


35 —      Antes da adoção do terceiro pacote da energia, treze Estados‑Membros tinham optado pela separação da propriedade dos operadores das redes de transporte de eletricidade, seis para o transporte de gás, segundo Hunt, M., «Ownership Unbundling: The Main Legal Issues in a Controversial Debate», EU Energy Law and Policy Issues, Ed. Delvaux, B., e o., Rixensart: Euroconfidentiel, 2008.


36 —      Contudo, não se trata de uma obrigação. A este respeito, o artigo 26.° da Diretiva 2009/72, intitulado «Separação dos operadores das redes de distribuição», dispõe, à semelhança do artigo 15.° da Diretiva 2003/54, que «[e]stas normas não criam a obrigação de separar da empresa verticalmente integrada a propriedade dos ativos da rede de distribuição».


37 —      V., em matéria de livre circulação de mercadorias, acórdão de 20 de abril de 1978, Les Commissionnaires Réunis e Les Fils de Henri Ramel (80/77 e 81/77, Recueil, p. 927, Colet., p. 341), em que se indica que, «[c]omo o Tribunal de Justiça reiteradamente declarou, a proibição das restrições quantitativas, bem como das medidas de efeito equivalente, é válida não só para medidas nacionais, mas igualmente para medidas que emanem das instituições comunitárias». V., igualmente, acórdão de 17 de maio de 1984, Denkavit Nederland (15/83, Recueil, p. 2171, n.° 15). Parece‑me que não deve ser adotado um raciocínio diferente em matéria de livre circulação de capitais.


38 —      A propósito dele, Mortelmans, K., «The relationship between the Treaty rules and Community measures for the establishment and functioning of the internal market», Common Market Law Review 39(2002), p. 1303.


39 —      A favor desta tese, Petersmann, E.—U., Constitutional Functions and Constitutional Problems of International Economic Law, Fribourg, 1991.


40 —      Acórdão de 25 de janeiro de 1977, Bauhuis (46/76, Colet., p. 1, n.os 27 a 30).


41 —      Acórdão de 13 de maio de 1997 (C‑233/94, Colet., p. I‑2405, n.° 57).


42 —      V. acórdão de 21 de dezembro de 2011, Comissão/Polónia (C‑271/09, Colet., p. I‑13613, n.os 55 e 58).


43 —      V., nomeadamente, quarto, sétimo, vigésimo sexto e trigésimo segundo considerandos da Diretiva 2009/72 e quarto, quinto, vigésimo quinto e trigésimo primeiro considerandos da Diretiva 2009/73.


44 —      Acórdãos de 10 de julho de 1984, Campus Oil e o. (72/83, Recueil, p. 2727, n.os 35 e 36); de 17 de março de 2005, Kranemann (C‑109/04, Colet., p. I‑2421, n.° 34), e de 15 de abril de 2010, CIBA (C‑96/08, Colet., p. I‑2911, n.° 48).


45 —      V., sobre este ponto, a exposição de motivos da Proposta de Diretiva COM(2007)528 final, p. 5.


46 —      As observações da Essent NV e da Essent Nederland BV retomam os fundamentos apresentados pelo legislador neerlandês em diversas etapas do processo.


47 —      Para uma tentativa de racionalização destas adaptações, v. Snell, J., «Economic Aims as Justification for Restrictions on Free Movement», Rule of reason: rethinking another classic of European legal doctrine, Ed. Schrauwen, A., Groningen: Europa Law Publishing, 2005.


48 —      Acórdão Campus Oil e o., já referido.


49 —      Dado que o Tribunal de Justiça considera que a exceção da segurança pública constante do atual artigo 65.°, n.° 1, TFUE deve ser entendida estritamente e só pode abranger os casos nos quais o interesse público é ameaçado de forma real e suficientemente grave, v. acórdãos de 13 de maio de 2003, Comissão/Espanha (C‑463/00, Colet., p. I‑4581, n.° 72), e de 8 de julho de 2010, Comissão/Portugal (C‑171/08), já referido (n.° 73).


50 —      Conforme a Comissão alegou na audiência.


51 —      C‑367/98 (n.° 52).


52 —      Já referido (n.° 79).


53 —      Acórdão de 2 de junho de 2005, Comissão/Itália (C‑174/04, Colet., p. I‑4933, n.° 37).


54 —      V., nomeadamente, acórdão de 8 de julho de 2010, Comissão/Portugal (C‑171/08), já referido, no qual estavam em causa ações a que correspondiam direitos especiais (direito de veto), que deviam ser obrigatoriamente detidas, em maioria, pelo Estado ou por outros entes públicos.


55 —      Sobre a jurisprudência relativa ao artigo 3.°, alínea f), do Tratado CEE, v. acórdão de 10 de janeiro de 1985, Association des Centres distributeurs Leclerc e Thouars Distribuição (229/83, Recueil, p. 1, n.os 20 e segs.).