Language of document : ECLI:EU:C:2007:86

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 8 de Fevereiro de 2007 1(1)

Processo C‑321/05

Hans Markus Kofoed

contra

Skatteministeriet

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Østre Landsret (Dinamarca)]

«Directiva 90/434/CEE – Regime fiscal comum aplicável às fusões, cisões, entradas de activos e permutas de acções entre sociedades de Estados‑Membros diferentes – Permuta de acções – Tratamento de uma distribuição de lucros que tem uma estreita ligação com a permuta de acções como atribuição de uma quantia em dinheiro – Evasão fiscal como principal objectivo»





I –    Introdução

1.        O presente processo levanta um interessante problema de direito fiscal no contexto de uma reestruturação de empresas (2).

2.        Pede‑se ao Tribunal de Justiça que aprecie as disposições do direito comunitário em relação ao tratamento fiscal de uma distribuição de lucros, a qual, por sua vez, tem uma estreita ligação com uma permuta de acções transfronteiriça efectuada pouco tempo antes. Uma distribuição de lucros deste tipo pode ser considerada pela administração fiscal competente como parte da retribuição e, por conseguinte, como atribuição de uma quantia em dinheiro por parte da sociedade adquirente pelas acções que adquiriu para o seu património, o que implicaria desvantagens na tributação para os sujeitos passivos em causa?

3.        O presente caso diz respeito a uma transacção através da qual dois sujeitos passivos dinamarqueses cederam as suas acções detidas numa sociedade de capitais dinamarquesa a uma sociedade de capitais irlandesa, adquirindo, como contrapartida, acções desta última. Alguns dias depois, tal como tinha sido previsto, a sociedade irlandesa procedeu à distribuição de lucros aos dois sujeitos passivos dinamarqueses.

4.        Tanto a permuta de acções como a decisão de distribuição de lucros foram realizadas pouco tempo antes da entrada em vigor de uma nova convenção sobre dupla tributação entre a Dinamarca e a Irlanda, através da qual iria ser introduzido um regime menos favorável no que respeita à tributação de dividendos, do que o aplicável aos sujeitos passivos dinamarqueses nos termos da convenção em vigor nessa altura.

II – Enquadramento jurídico

A –    Direito comunitário

5.        O enquadramento jurídico deste caso é definido pela Directiva 90/434/CEE do Conselho, de 23 de Julho de 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às fusões, cisões, entradas de activos e permutas de acções entre sociedades de Estados‑Membros diferentes (3).

6.        Entre as disposições gerais constantes do título I da Directiva 90/434 é possível encontrar no artigo 2.° as seguintes definições, entre outras:

«Para efeitos da presente directiva, entende‑se por

[...]

d)      ‘Permuta de acções’: a operação pela qual uma sociedade adquire uma participação no capital social de outra sociedade, que tem por efeito conferir‑lhe a maioria dos direitos de voto desta sociedade, mediante a atribuição aos sócios da outra sociedade, em troca dos seus títulos, de títulos representativos do capital social da primeira sociedade, e, eventualmente, de uma quantia em dinheiro não superior a 10% do valor nominal ou, na ausência de valor nominal, do valor contabilístico dos títulos entregues em troca;

[...]

g)      ‘Sociedade adquirida’: a sociedade na qual outra sociedade adquire uma participação mediante permuta de títulos;

h)      ‘Sociedade adquirente’: a sociedade que adquire uma participação mediante permuta de títulos;

[...]»

7.        No título II da Directiva 90/434, o artigo 8.° dispõe, em especial, o seguinte:

«1.      Em caso de fusão, cisão ou permuta de acções, a atribuição de títulos representativos do capital social da sociedade beneficiária ou adquirente a um sócio da sociedade contribuidora ou adquirida, em troca de títulos representativos do capital social desta última, não deve, por si mesma, implicar qualquer tributação sobre o rendimento, os lucros ou as mais‑valias do referido sócio.

[...]

4.      O disposto nos n.os 1, 2 e 3 não obsta a que o montante em dinheiro eventualmente atribuído ao sócio aquando de uma fusão, de uma cisão ou de uma permuta de acções seja considerado para efeitos da tributação do mesmo.»

8.        Entre as disposições finais da Directiva 90/434, constantes do título V, encontra‑se a seguinte disposição do artigo 11.°, entre outras:

«1.      Qualquer Estado‑Membro poderá recusar aplicar, no todo ou em parte, o disposto nos títulos II, III e IV ou retirar o benefício de tais disposições sempre que a operação de fusão, de cisão, de entrada de activos ou de permuta de acções:

a)      Tenha como principal objectivo ou como um dos principais objectivos a fraude ou a evasão fiscais; o facto de uma das operações referidas no artigo 1.° não ser realizada por razões económicas válidas, tais como a reestruturação ou a racionalização das actividades das sociedades que participam na operação, pode constituir presunção de que essa operação tem como principal objectivo ou como um dos principais objectivos a fraude ou a evasão fiscais;

[...]»

9.        Através da Directiva 2005/19 (4) foram alterados o título e diversas disposições da Directiva 90/434. No entanto, estas alterações apenas entraram em vigor em 24 de Março de 2005 (5) e parte delas teriam que ser transpostas pelos Estados‑Membros até 1 de Janeiro de 2006 e a outra parte até 1 de Janeiro de 2007 (6), de modo que não são relevantes no presente processo.

B –    Direito nacional

1.      O tratamento fiscal da permuta de acções

10.      No que diz respeito ao tratamento fiscal da permuta de acções, nos termos do direito dinamarquês eram aplicáveis no período pertinente para o presente caso as disposições da lei relativa à tributação dos dividendos de acções bem como da lei relativa ao imposto sobre as fusões (7).

11.      No âmbito da transposição da Directiva 90/434 para o direito dinamarquês, o § 13 da lei relativa à tributação dos dividendos de acções (8) passou a ter a seguinte redacção, nos seus primeiros dois números (9):

«1.      Em caso de permuta de acções, é admitida a tributação dos accionistas da sociedade adquirida segundo as normas dos §§ 9 e 11 da lei relativa ao imposto sobre as fusões, quando tanto a sociedade adquirente como a adquirida estão abrangidas pelo conceito de ‘sociedade de um Estado‑Membro’ na acepção do artigo 3.° da Directiva 90/434/CEE. Neste contexto considera‑se data da fusão a data da permuta de acções. É condição para tal que a permuta de acções seja concluída num período não superior a 6 meses a contar do dia da primeira permuta.

2.      Por permuta de acções, nos termos do n.° 1, entende‑se a operação pela qual uma sociedade adquire uma participação no capital social de outra sociedade, que tem por efeito conferir‑lhe a maioria dos direitos de voto desta sociedade, mediante a atribuição aos sócios da outra sociedade, e em troca dos seus títulos, de títulos representativos do capital social da primeira sociedade e, eventualmente, de uma quantia em dinheiro não superior a 10% do valor nominal ou, na ausência de valor nominal, do valor contabilístico dos títulos entregues em troca.»

12.      Dos trabalhos preparatórios da referida lei, resulta que o conceito de permuta de acções, na acepção do § 13 da lei relativa à tributação dos dividendos de acções, deve corresponder à definição constante do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434 (10).

13.      Os §§ 9 e 11 da lei dinamarquesa relativa ao imposto sobre as fusões (11), para os quais remete o § 13, n.° 1, da lei relativa à tributação dos lucros provenientes de acções, dispõe o seguinte, entre outros pontos:

«§ 9

1.      As acções da sociedade contribuidora consideram‑se alienadas pelo sócio a um terceiro, se a contrapartida da alienação não for constituída por acções da sociedade beneficiária. A alienação é considerada realizada de acordo com a cotação à data de fusão referida no § 5.

[...]

§ 11

1.      No processo de apuramento do rendimento tributável, global ou parcelar, as acções da sociedade beneficiária que os sócios recebem como remuneração pelas acções da sociedade contribuidora, são tratadas como se tivessem sido adquiridas no mesmo período e ao mesmo preço que as acções cedidas na permuta. [...]»

14.      De acordo com as informações coincidentes fornecidas por todas as partes no processo, o direito dinamarquês começou por não incluir uma disposição específica para a transposição do artigo 11.° da Directiva 90/434 no que diz respeito à permuta de acções. Apenas em finais de 1994 se começou a preparar uma lei correspondente que introduziria a partir de então a exigência de uma autorização pelo Ligningsråd, tendo sido aprovada em 1995 (12).

2.      A tributação de dividendos

a)      O direito interno dinamarquês

15.      Os dividendos distribuídos a pessoas singulares residentes na Dinamarca estão sujeitos neste país a uma tributação nos termos do § 16a, n.° 1, da lei relativa à liquidação do imposto (13) e do § 4a da lei relativa ao imposto sobre o rendimento (14). Esta regulamentação também se aplica a uma quantia em dinheiro eventualmente atribuída no âmbito de uma permuta de acções (15).

16.      O § 16a, n.° 1, da lei relativa à liquidação do imposto dispõe o seguinte:

«No processo de apuramento do rendimento global tributável são tidos em consideração os dividendos ou outros rendimentos de acções, participações sociais e títulos equiparáveis. Os rendimentos abrangem todos os montantes distribuídos pela sociedade aos accionistas ou sócios – com excepção das acções ou participações gratuitas e do produto da liquidação – que são distribuídos no ano civil em que a sociedade foi definitivamente dissolvida.»

17.      O § 4a da lei relativa ao imposto sobre o rendimento dispõe, resumidamente, o seguinte:

«(1)      Os rendimentos obtidos consistem no valor total dos

1.      dividendos de acções de acordo com o disposto no § 16a da lei relativa à liquidação do imposto, pagos por sociedades sujeitas a imposto, na acepção do […]

[...]

(2)      Os lucros obtidos não são considerados para efeitos do rendimento tributável.»

18.      Adicionalmente, deve ainda referir‑se o § 8a da lei relativa ao imposto sobre o rendimento, que prevê, designadamente, o seguinte:

«1.      O imposto sobre dividendos que não ultrapassem um montante base de 26 400 DKK é fixado, como imposto liberatório definitivo, à taxa de 30%. O imposto sobre dividendos, retido nos termos do § 65 da lei relativa à retenção do imposto na fonte, aplicado a dividendos que não ultrapassem o montante base, constitui o pagamento definitivo do imposto, não devendo ser imputado no imposto definitivo nos termos do § 67 da lei relativa à retenção do imposto na fonte.

2.      O imposto sobre dividendos que ultrapassem um montante base de 26 400 DKK é fixado em 45%. O imposto sobre dividendos que ultrapassem o referido montante é incluído no imposto definitivo, e o imposto sobre dividendos que é retido dessa parte dos dividendos nos termos do § 65 da lei relativa à retenção do imposto na fonte é levado em conta no imposto definitivo, nos termos do § 67 da lei relativa à retenção do imposto na fonte.

[...]»

b)      Convenção sobre dupla tributação entre a Dinamarca e a Irlanda

19.      A convenção sobre dupla tributação entre a Dinamarca e a Irlanda (16), aplicável à matéria de facto do processo principal, foi ratificada na Dinamarca em 15 de Abril de 1964.

20.      Resulta do artigo 6.°, n.° 1, alínea a), da convenção sobre dupla tributação que a Irlanda tem o direito de tributar os dividendos distribuídos por uma sociedade irlandesa a uma pessoa residente na Dinamarca, mas não pode cobrar impostos adicionais.

21.      O artigo 23.°, n.° 2, da convenção sobre dupla tributação dispunha o seguinte:

«Nos casos em que uma pessoa considerada residente ou domiciliada na Dinamarca para efeitos de tributação (independentemente de a pessoa em causa também ser considerada, para efeitos de tributação, residente ou domiciliada na Irlanda), obtenha rendimentos na Irlanda ou aí possua bens e tais rendimentos e bens, em conformidade com as disposições da presente convenção, possam ser tributados na Irlanda, a Dinamarca, no que se refere aos impostos sobre o rendimento ou sobre o património dinamarqueses, permitirá a dedução de um montante correspondente à parte do imposto sobre o rendimento ou sobre o património que proporcionalmente incide sobre o rendimento proveniente da Irlanda ou sobre os bens que a pessoa aí possui.»

22.      De acordo com as informações fornecidas pelo Østre Landsret (a seguir também «órgão jurisdicional de reenvio»), as referidas disposições foram interpretadas pelos órgãos jurisdicionais dinamarqueses, em conformidade com jurisprudência dinamarquesa assente, no sentido de que os dividendos distribuídos por uma sociedade irlandesa a um residente na Dinamarca beneficiam do princípio da isenção (novo método).

23.      A convenção sobre dupla tributação foi renegociada no decurso dos anos 1992/93, daqui resultando que os dividendos distribuídos por uma sociedade irlandesa a um residente na Dinamarca podem a partir de então ser tributados tanto na Irlanda como na Dinamarca e que, portanto, a Dinamarca leva devidamente em conta o imposto pago na Irlanda. De acordo com as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, a nova convenção sobre dupla tributação entrou em vigor na Dinamarca, no que se refere aos dividendos, com efeitos a partir de 7 de Novembro de 1993.

III – Matéria de facto e processo principal

24.      Hans Markus Kofoed detinha inicialmente 50% da Cosmopolit Holding ApS, uma sociedade dinamarquesa de responsabilidade limitada. Os restantes 50% do capital da referida sociedade eram detidos por Niels Toft.

25.      Em 26 de Outubro de 1993, cada um dos sócios adquiriu uma acção no valor de 1,00 IEP da Dooralong Ltd., uma «sociedade‑ecrã» («shell company») irlandesa com um capital realizado de 2 IEP.

26.      Em 29 de Outubro de 1993, Hans Markus Kofoed e Niels Toft procederam a uma permuta de acções, tendo trocado as suas respectivas quotas da Cosmopolit Holding ApS, no valor de 120 000 DKK, por acções recém‑emitidas da Dooralong Ltd. no valor nominal de 10 500 IEP. Na sequência da referida permuta, Hans Markus Kofoed e Niels Toft passaram a deter cada um uma participação social no valor nominal de 10 501 IEP, ou 50%, na Dooralong Ltd., a qual detinha a partir de então a totalidade do capital social da Cosmopolit Holding ApS. Por conseguinte, Hans Markus Kofoed e Niels Toft já não controlavam a Cosmopolit Holding ApS de forma directa, mas sim por intermédio da sociedade Dooralong Ltd.

27.      Na assembleia geral anual da Dooralong Ltd., realizada em 3 de Novembro de 1993, foram apresentadas e aprovadas as contas da sociedade, de acordo com a situação existente em 2 de Novembro de 1993. Da contabilidade da Dooralong Ltd. resulta que a sociedade obtivera lucros no montante total de 2 742 616 IEP (cerca de 26 milhões de DKK) provenientes da actividade da recém‑adquirida sociedade filial Cosmopolit Holding ApS, que apresentara as suas contas anuais em 31 de Outubro de 1993. Os activos da Dooralong Ltd. passaram a ser constituídos por todo o capital social da Cosmopolit Holding ApS, que, de acordo com as contas apresentadas em 31 de Outubro de 1993, tinha capitais próprios de 1 709 806,00 DKK, após terem sido pagos os lucros à Dooralong Ltd. Anteriormente, este capital tinha sido de cerca de 28 milhões de DKK.

28.      Na assembleia geral da Dooralong Ltd. de 3 de Novembro de 1993, foi igualmente decidido distribuir lucros no montante de 2 742 116 IEP (17). A Hans Markus Kofoed foram distribuídos lucros no valor de 1 371 058 IEP, ou seja 50% daquele montante.

29.      De acordo com os factos estabelecidos no processo principal em que o órgão jurisdicional de reenvio se baseia, não existia qualquer finalidade comercial para as referidas transacções, tendo as mesmas sido realizadas, pelo contrário, com o objectivo de obter uma economia do imposto. Assim, à data da permuta, Hans Markus Kofoed e Niels Toft tinham apenas vagos planos de exercer uma actividade económica por intermédio da Dooralong Ltd.

30.      Apesar de a distribuição de dividendos realizada pela Dooralong Ltd. nunca ter sido objecto de um acordo vinculativo, Hans Markus Kofoed e Niels Toft tiveram desde o início a intenção comum de distribuir uma parte significativa do lucro da Dooralong Ltd. na primeira assembleia geral a seguir à permuta. Os intervenientes agiram tendo conhecimento da convenção sobre dupla tributação aplicável no período em causa, estando ainda conscientes de que a mesma iria ser alterada.

31.      Na sua declaração de impostos relativa a 1993, Hans Markus Kofoed invocou a convenção sobre dupla tributação então vigente, de acordo com a qual os dividendos que lhe foram distribuídos pela Dooralong Ltd. não seriam tributados na Dinamarca. Nos termos do regime dinamarquês então vigente também a permuta das suas acções na Cosmopolit Holding ApS pelas acções na Dooralong Ltd. estaria isenta de imposto.

32.      As autoridades fiscais dinamarquesas trataram, no entanto, a permuta de acções de Hans Markus Kofoed na Cosmopolit Holding ApS por acções da Dooralong Ltd., bem com a consequente distribuição de lucros realizada pela Dooralong Ltd. como parte de uma operação cumulativa. Assim, a distribuição de lucros realizada representava, na verdade, uma parte da retribuição pela alienação, constituindo, por conseguinte, uma quantia em dinheiro atribuída no âmbito da permuta de acções. Na medida em que a referida quantia em dinheiro excede 10% do valor nominal das acções transmitidas, o regime relativo à permuta de acções isenta de imposto não se aplica a Hans Markus Kofoed.

33.      Os entendimentos divergentes, acima expostos, no que diz respeito à apreciação fiscal da distribuição de lucros e da permuta de acções, constituem a base do processo principal, actualmente pendente no Østre Landsret.

IV – Pedido de decisão prejudicial e processo no Tribunal de Justiça

34.      Por decisão de 3 de Agosto de 2005, que deu entrada na secretaria do Tribunal de Justiça em 23 de Agosto de 2005, o Østre Landsret suspendeu o processo e submeteu a seguinte questão prejudicial ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias:

O artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434/CEE deve ser interpretado no sentido de que não se verifica uma permuta de acções na acepção dessa directiva, se os participantes nessa permuta, a par do acordo de permuta e sem contraírem uma obrigação jurídica, derem a entender a sua intenção comum de, na primeira assembleia geral da sociedade adquirente a seguir à permuta, votarem uma distribuição de lucros superior a 10% do valor nominal dos títulos que foram entregues no âmbito dessa permuta, e se esses lucros forem efectivamente distribuídos?

35.      No processo no Tribunal de Justiça, para além de Hans Markus Kofoed, apresentaram observações escritas e fizeram alegações o Governo dinamarquês, o Governo do Reino Unido e a Comissão das Comunidades Europeias.

V –    Apreciação

A –    Observações preliminares

36.      A Directiva 90/434 visa eliminar eventuais desvantagens fiscais que incidam sobre reestruturações transfronteiriças de empresas, ao adoptar um regime fiscal comum na Comunidade para determinadas operações, como, por exemplo, fusões ou permutas de acções (18). Este regime inclui benefícios fiscais. O artigo 8.°, n.° 1, da Directiva 90/434, em particular, prevê que, em caso de permuta de acções, a atribuição de títulos representativos da sociedade adquirente não deve, por si mesma, implicar qualquer tributação sobre o rendimento, os lucros ou as mais‑valias do referido sócio. Deste modo pretende‑se garantir a neutralidade fiscal de uma operação de reestruturação deste tipo e evitar que as reservas ocultas ou outro tipo de aumentos do valor das participações sociais sejam tributados ainda antes da sua realização efectiva.

37.      Do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434 resulta, no entanto, que uma operação apenas pode ser considerada uma permuta de acções na acepção da referida directiva quando uma eventual atribuição, por parte da sociedade adquirente, de uma quantia em dinheiro não ultrapasse os 10% do valor nominal ou, na ausência de valor nominal, do valor contabilístico dos títulos entregues em troca. Pretende‑se, deste modo, evitar que sejam realizadas mais‑valias de maior alcance no âmbito de um reestruturação, recorrendo aos benefícios fiscais aplicáveis, como se as acções da sociedade adquirida tivessem sido alienadas no mercado. Não é admissível que os lucros, que estariam sujeitos à tributação em caso de alienação no mercado, sejam subtraídos à tributação de forma arbitrária apenas porque foram obtidos no contexto de uma reestruturação. O limite dos 10% permite aos intervenientes na reestruturação manter uma certa margem de manobra em relação à atribuição de quantias em dinheiro, que podem ser necessárias para a compensação do valor em caso de permuta de acções.

38.      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende afinal que se aprecie o conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro, constante do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434. Pretende essencialmente saber se uma distribuição de lucros efectuada pela sociedade adquirente, que tem uma relação estreita em termos temporais com a operação de aquisição por ela de participações sociais na sociedade adquirida, e que, mesmo que não tenha sido objecto de um acordo vinculativo, tenha sido pretendida desde o início, também pode ser considerada uma atribuição de uma quantia em dinheiro na acepção da referida disposição.

39.      No processo principal, esta questão é decisiva para saber se a transacção realizada em 29 de Outubro de 1993, na qual Hans Markus Kofoed e Niels Toft transmitiram à Dooralong Ltd., como sociedade adquirente, as suas acções na Cosmopolit Holding ApS (sociedade adquirida) e, em contrapartida, adquiriram eles próprios acções da Dooralong Ltd., ainda pode ser considerada uma permuta de acções na acepção da Directiva 90/434, de forma que os intervenientes possam gozar da isenção de imposto prevista na mesma.

40.      Neste sentido, caso a distribuição de lucros efectuada pela Dooralong Ltd. ainda fosse qualificada – por via de uma apreciação global das operações realizadas entre 29 de Outubro de 1993 e 3 de Novembro de 1993 – como atribuição de uma quantia em dinheiro na acepção do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434, daqui resultaria que não estaríamos perante uma permuta de acções na acepção da referida disposição, na medida em que foi excedido o limite de 10% aí previsto, e, por conseguinte, a proibição de tributação dos lucros, resultante do artigo 8.°, n.° 1, da Directiva 90/434, não seria desde logo aplicável ao presente caso. Isto porque o valor da distribuição de lucros, efectuada em 3 de Novembro de 1993, correspondeu a mais de 10% do valor nominal das partes sociais na Dooralong Ltd. que tinham sido atribuídos a Hans Markus Kofoed e Niels Toft em 29 de Outubro de 1993.

41.      Nos seus efeitos práticos, o presente caso vai, no entanto, além da simples clarificação do conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro, na medida em que na base do referido problema de interpretação se coloca a questão de saber de que forma o direito comunitário aplicável permite às autoridades nacionais ter em conta uma evasão fiscal eventualmente deliberada conexa com a reestruturação de sociedades de capitais.

42.      Para reagir de forma adequada a eventuais evasões fiscais num caso como o presente, são possíveis essencialmente duas vias no âmbito da Directiva 90/434, que a seguir serão apreciadas. Por um lado, pode considerar‑se uma interpretação comparativamente extensiva do conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro na acepção do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434 (19); por outro, o recurso à possibilidade prevista no artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da referida directiva de recusar aplicar, no todo ou em parte, ou retirar os benefícios fiscais aplicáveis no caso concreto (20). A preferência das autoridades dinamarquesas pela primeira opção parece estar sobretudo relacionada com o facto de o direito dinamarquês não dispor, no período pertinente para o presente caso, de disposições específicas para a transposição do artigo 11.° da Directiva 90/434.

B –    O conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro

43.      Os intervenientes no processo perante o Tribunal de Justiça estão em litígio em relação à questão de saber se o conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro, na acepção do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434, abrange igualmente uma distribuição de lucros pela sociedade adquirente, tal como realizada no presente caso. O Governo dinamarquês e o Governo do Reino Unido respondem afirmativamente à referida questão, enquanto Hans Markus Kofoed e a Comissão defendem a posição oposta.

44.      O conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro não é definido de forma precisa pelo legislador comunitário. O seu significado e alcance devem, por conseguinte, ser definidos tendo em consideração o contexto regulamentar bem como os objectivos prosseguidos com a Directiva 90/434 (21).

45.      No que diz respeito ao contexto regulamentar, deve ter‑se em consideração que a atribuição de uma quantia em dinheiro e a aquisição de uma participação que confira a maioria dos direitos de voto na sociedade adquirida (22), de acordo com o disposto no artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434, são partes da mesma operação. Apesar de a atribuição de uma quantia em dinheiro e a aquisição da participação maioritária não serem necessariamente objecto do mesmo negócio jurídico (23), existe uma ligação estreita entre ambas: a atribuição de uma quantia em dinheiro é parte integrante da contrapartida que a sociedade adquirente realiza para obter a participação maioritária na sociedade adquirida (24).

46.      Por conseguinte, nem toda a prestação pecuniária que a sociedade adquirente atribui aos accionistas da sociedade adquirida pode ser qualificada como atribuição de uma quantia em dinheiro, mesmo que tenha sido planeada previamente pelos intervenientes e exista uma proximidade no tempo entre aquela e a aquisição da participação maioritária, sendo, pelo contrário, decisivo saber se uma prestação pecuniária deste tipo tem, desde logo, o carácter de uma contrapartida pela aquisição da participação maioritária e se, por conseguinte, foi objecto de um acordo vinculativo, como complemento da contrapartida efectiva, que consiste em participações na sociedade adquirente. Para tal, é necessário proceder a uma apreciação global e objectiva de todas as circunstâncias do caso concreto (25).

47.      Mesmo no caso de uma distribuição de lucros posterior, tal como a que está em causa no presente processo, deve, por conseguinte, apreciar‑se se existem indícios concretos que permitam ainda considerar um pagamento deste tipo como parte da contrapartida, acordada de forma vinculativa, pela aquisição da participação maioritária. Este tipo de indícios podem resultar em especial das convenções por escrito dos intervenientes, mas também das restantes circunstâncias do caso concreto. No entanto, caso não seja possível provar de forma suficiente que a prestação pecuniária posteriormente atribuída ainda constitui uma parte da contrapartida acordada de forma vinculativa – tal como o órgão jurisdicional de reenvio parece pressupor no presente caso – deve considerar‑se que a qualificação efectuada pelos próprios intervenientes está correcta. Neste caso, uma prestação pecuniária como a que está em causa no presente processo deve ser considerada uma distribuição de lucros e não pode ser convertida numa atribuição de uma quantia em dinheiro.

48.      Também o objectivo prosseguido pela Directiva 90/434 vai no sentido de uma limitação do conceito da atribuição de uma quantia em dinheiro a contrapartidas efectivas pela aquisição de uma participação maioritária, na medida em que através desta directiva pretende‑se evitar desvantagens fiscais para reestruturações transfronteiriças de empresas – por exemplo por via de uma fusão ou da permuta de acções –, a fim de permitir que as empresas se adaptem às exigências do mercado comum, aumentem a sua produtividade e reforcem a sua posição concorrencial (26). Para concretizar de forma eficaz este objectivo da directiva, é fundamental não apenas que as reestruturações transfronteiriças sejam sujeitas a um regime fiscal comum (27), mas também que o referido regime seja previsível para os operadores económicos em causa.

49.      A previsibilidade do regime fiscal aplicável é imposta, para além disso, pelo princípio da segurança jurídica (28), que constitui um princípio fundamental do direito comunitário e, por conseguinte, deve ser respeitado, como tal, pelas instituições comunitárias e igualmente pelos Estados‑Membros no exercício dos respectivos poderes no âmbito de aplicação do direito comunitário (29). Nos termos da jurisprudência constante, este imperativo de segurança jurídica impõe‑se com especial vigor quando se trata de uma regulamentação susceptível de comportar consequências financeiras (30), o que se aplica, designadamente, à Directiva 90/434, cujas disposições são determinantes para o tratamento fiscal das reestruturações transfronteiriças de empresas.

50.      Por conseguinte, caso se pretenda realizar uma permuta de acções, os intervenientes devem poder prever com suficiente segurança os efeitos fiscais desta transacção. Apenas então podem avaliar de forma razoável se uma medida deste tipo faz sentido para eles em termos económicos. Os efeitos fiscais seriam incalculáveis caso existisse o risco de serem igualmente incluídas a posteriori na apreciação fiscal de uma permuta de acções prestações pecuniárias cuja realização apresentava uma proximidade temporal com a permuta, mas que não tinham sido acordadas de forma vinculativa pelos intervenientes como contrapartida pela atribuição de acções.

51.      Por um lado, os intervenientes teriam neste caso que temer que a permuta das suas acções não pudesse vir a beneficiar da isenção da tributação dos lucros resultantes da alienação, de acordo com o disposto no artigo 8.°, n.° 1, da Directiva 90/434. Por outro, deve‑se ter em consideração que, nos termos do direito nacional, a carga fiscal sobre a distribuição de lucros realizados pouco tempo depois pode ter variações, consoante esta é sujeita à tributação de dividendos ou ainda é qualificada como atribuição de uma quantia em dinheiro e, por conseguinte, tributada segundo as possibilidades previstas no artigo 8.°, n.° 4, da directiva.

52.      Uma interpretação mais ampla do conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro também não pode ser justificada com o objectivo, visado pela Directiva 90/434, de salvaguardar os interesses financeiros do Estados‑Membros atingidos e possibilitar‑lhes o combate à fraude ou evasão fiscais (31). Por um lado, o legislador comunitário incluiu uma disposição especial na Directiva 90/434 com essa mesma finalidade, como é possível depreender da leitura do seu artigo 11.°, n.° 1, alínea a). Por outro, uma extensão geral do conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro iria além daquilo que é necessário para a salvaguarda dos interesses financeiros dos Estados‑Membros e para o combate à fraude ou evasão fiscais sem colocar simultaneamente em risco a necessária previsibilidade do regime fiscal comum para as empresas em causa.

53.      No acórdão Leur‑Bloem, o Tribunal de Justiça também concluiu, em sentido semelhante, ao decidir que o regime fiscal comum instituído pela Directiva 90/434 se aplica independentemente de os motivos que levaram à permuta de acções serem financeiros, económicos ou puramente fiscais (32). Daqui é possível concluir que, na interpretação do conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro, os possíveis motivos que levaram à respectiva transacção ainda não devem ser relevantes, podendo apenas ser tidos em consideração no âmbito do controlo destinado a apurar a existência de abusos no caso concreto, de acordo com o artigo 11.° da Directiva 90/434 (33).

54.      Considerações tanto de ordem sistemática como teleológica opõem‑se, por conseguinte, a uma interpretação extensiva do conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro na acepção do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434 e apoiam a sua restrição a contrapartidas efectivas pela aquisição de uma participação maioritária. Tendo em consideração o acima exposto, é possível estabelecer a seguinte conclusão provisória:

As prestações pecuniárias da sociedade adquirente, como por exemplo distribuições de lucros, que não são acordadas de forma vinculativa como contrapartidas pela aquisição da participação na sociedade adquirida que lhe confere a maioria dos direitos de voto, não são abrangidas pelo conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro na acepção do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434, mesmo que tenham sido previamente planeadas pelos intervenientes e realizadas em conexão temporal com a aquisição da referida participação (34).

C –    Possibilidades de actuação em caso de evasão fiscal deliberada

55.      Fica ainda por apreciar em que medida as autoridades nacionais podem actuar, num caso como o presente, contra uma evasão fiscal, eventualmente deliberada, através do recurso a uma permuta de acções.

56.      Tal como já foi referido, a Directiva 90/434 visa, entre outros objectivos, salvaguardar os interesses financeiros do Estados‑Membros atingidos e possibilitar‑lhes um combate efectivo à fraude ou evasão fiscais (35). A interpretação restritiva do conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro proposta (36) não se opõe de forma alguma a este objectivo.

57.      A referida disposição reflecte, no fundo, aquilo que também está reconhecido na jurisprudência constante: o facto de não ser possível prevalecer‑se, abusiva ou fraudulentamente, das normas comunitárias. A aplicação de uma regulamentação comunitária não pode estender‑se ao ponto de abranger as práticas abusivas de operadores económicos, isto é, operações que não sejam realizadas no âmbito de transacções comerciais normais, mas apenas com o objectivo de beneficiar abusivamente das vantagens previstas pelo direito comunitário (37).

58.      Evidentemente, o mero recurso às possibilidades de configuração permitidas pelo direito comunitário – no presente caso, pela Directiva 90/434 – não pode fundamentar a suspeita de abuso (38). De acordo com o disposto no artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 90/434, os Estados‑Membros têm a liberdade de recusar aplicar, no todo ou em parte, ou retirar os benefícios fiscais previstos na directiva para a permuta de acções, sempre que uma transacção deste tipo tenha como principal objectivo ou como um dos principais objectivos a fraude ou a evasão fiscais.

59.      A segunda frase do artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 90/434 indica como exemplo da existência de um objectivo deste tipo a falta de razões económicas válidas para a respectiva transacção. Num caso como o presente, em que, nos termos das constatações de facto do órgão jurisdicional de reenvio, não existia qualquer finalidade comercial concreta, visando‑se, pelo contrário, obter a economia integral do imposto (39), é possível considerar a recusa da isenção fiscal prevista no artigo 8.°, n.° 1, da Directiva 90/434, na medida em que uma permuta de acções, através da qual se procura apenas obter benefícios meramente fiscais, não visa uma finalidade económica razoável na acepção da directiva (40). Para além disso, a proximidade temporal entre a distribuição de lucros e a realização da permuta também pode sugerir um possível abuso das possibilidades de configuração previstas pela Directiva 90/434. O mesmo se aplica à circunstância de os intervenientes terem agido tendo conhecimento de que a convenção de dupla tributação entre a Dinamarca e a Irlanda seria alterada dentro de pouco tempo.

60.      A questão de saber se no caso concreto é justificado que se recuse a concessão, no todo ou em parte, ou se retirem os benefícios fiscais aplicáveis à permuta de acções, previstos na Directiva 90/434, depende da apreciação global de todas as circunstâncias do respectivo caso, que compete às autoridades nacionais competentes e deve poder ser objecto de uma fiscalização jurisdicional (41).

61.      O presente caso distingue‑se pela particularidade de, à época dos factos pertinentes, o direito dinamarquês não dispor de uma disposição específica para a transposição do artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 90/434. Neste sentido, Hans Markus Kofoed, em particular, entende que foi privado sem razão dos benefícios fiscais constantes da Directiva 90/434.

62.      No entanto, nem sempre é exigida a reprodução formal das disposições de uma directiva em normas legais específicas, podendo o contexto jurídico geral – incluindo princípios gerais de direito constitucional ou administrativo – ser, desde logo, suficiente para a execução de uma directiva, em função do conteúdo desta, desde que assegure a plena aplicação da directiva de um modo suficientemente claro e preciso (42).

63.      Por isso, o órgão jurisdicional de reenvio deve apreciar se poderão aplicar‑se ao presente caso disposições gerais ou princípios do direito interno dos quais pudesse resultar, por exemplo, a falta de pertinência para efeitos fiscais de negócios simulados ou uma proibição do recurso abusivo a determinados benefícios fiscais; do mesmo modo, também parece possível a hipótese de recorrer às disposições gerais do direito interno relativas à fraude ou evasão fiscais (43). Na audiência no Tribunal de Justiça, os representantes de Hans Markus Kofoed e do Governo dinamarquês discordaram no que diz respeito às possibilidades que o direito dinamarquês permite neste âmbito.

64.      Evidentemente, todas estas regulamentações, independentemente de terem sido adoptadas para a transposição da Directiva 90/434 ou não, teriam que ser interpretadas e aplicadas em conformidade com o direito comunitário e, particularmente, com o texto e a finalidade da Directiva 90/434, bem como do seu artigo 11.°, n.° 1, alínea a) (44).

65.      O facto de a interpretação do direito nacional conforme à directiva poder possivelmente ser desvantajosa para os particulares não se opõe a este tipo de interpretação, na medida em que é admissível uma aplicação através de disposições do direito nacional, ou seja, uma aplicação indirecta do direito comunitário em detrimento dos particulares (45).

66.      Às autoridades dinamarquesas apenas seria proibida uma aplicação directa do artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 90/434 em detrimento de Hans Markus Kofoed e Niels Toft. Assim, um Estado‑Membro não pode opor aos particulares uma disposição de uma directiva que ele próprio não transpôs (46), na medida em que, nos termos da jurisprudência constante, uma directiva não pode, por si só, criar obrigações para um particular e não pode, portanto, ser invocada, enquanto tal, contra ele (47).

67.      Da mesma forma, também as autoridades competentes não podem opor directamente a um particular um princípio geral de direito comunitário eventualmente existente, de acordo com o qual um abuso de direito não é admissível, dado que em relação a casos que se incluem no âmbito de aplicação da Directiva 90/434, um princípio deste tipo foi especificamente expresso e concretizado no artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da directiva (48). Caso se permitisse, para além disso, o recurso directo a um princípio geral de direito com um conteúdo bem menos claro e preciso, correr‑se‑ia o risco de o objectivo de harmonização da Directiva 90/434 ser eludido e a segurança jurídica por esta visada na reestruturação de sociedades de capitais (49) estaria ameaçada. Para além disso, desta forma seria contornada a proibição, já referida, de aplicar directamente disposições da directiva não transpostas em detrimento dos particulares (50).

68.      Por conseguinte, conclui‑se o seguinte:

Para recusar a aplicação, no todo ou em parte, ou retirar o benefício da aplicação do título II da Directiva 90/434 num caso concreto, não é obrigatoriamente necessária a existência de uma disposição específica para a transposição do artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 90/434. Pelo contrário, é também possível recorrer a disposições gerais ou do direito interno – incluindo princípios gerais de direito constitucional ou administrativo – para concretizar este objectivo, desde que sejam interpretadas e aplicadas em conformidade com o direito comunitário e, particularmente, com o texto e a finalidade da Directiva 90/434, bem como do seu artigo 11.°, n.° 1, alínea a). Não é admissível, pelo contrário, a aplicação directa do artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 90/434 em detrimento do particular ou o recurso directo a uma proibição geral comunitária de abuso de direito.

VI – Conclusão

69.      Com base nas considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo à questão prejudicial submetida pelo Østre Landsret:

1)      As prestações pecuniárias da sociedade adquirente, como por exemplo distribuições de lucros, que não são acordadas de forma vinculativa como contrapartidas pela aquisição da participação na sociedade adquirida que lhe confere a maioria dos direitos de voto, não são abrangidas pelo conceito de atribuição de uma quantia em dinheiro na acepção do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434, mesmo que tenham sido previamente planeadas pelos intervenientes e realizadas em conexão temporal com a aquisição da referida participação.

2)      Para recusar a aplicação, no todo ou em parte, ou retirar o benefício da aplicação do título II da Directiva 90/434/CEE num caso concreto, não é obrigatoriamente necessária a existência de uma disposição específica para a transposição do artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 90/434/CEE. Pelo contrário, é também possível recorrer a disposições gerais ou do direito interno – incluindo princípios gerais de direito constitucional ou administrativo – para concretizar este objectivo, desde que sejam interpretadas e aplicadas em conformidade com o direito comunitário e, particularmente, com o texto e a finalidade da Directiva 90/434/CEE, bem como do seu artigo 11.°, n.° 1, alínea a). Não é admissível, pelo contrário, a aplicação directa do artigo 11.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 90/434/CEE em detrimento do particular ou o recurso directo a uma proibição geral comunitária de abuso de direito.


1 – Língua original: alemão.


2 – Por razões de simplificação, o conceito de reestruturação será a seguir utilizado como termo genérico para fusões e cisões de sociedades de capitais, as entradas de activos e as permutas de acções entre as mesmas.


3 – JO L 225, p. 1.


4 – Directiva 2005/19/CE do Conselho, de 17 de Fevereiro de 2005, que altera a Directiva 90/434/CEE relativa ao regime fiscal comum aplicável às fusões, cisões, entradas de activos e permutas de acções entre sociedades de Estados‑Membros diferentes (JO L 58, p. 19).


5 – O dia 24 de Março de 2005 é o vigésimo dia seguinte à publicação da Directiva 2005/19 no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, v. o artigo 254.°, primeiro parágrafo, CE.


6 – Artigo 2.° da Directiva 2005/19.


7 – As seguintes disposições legais baseiam‑se nos dados fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio no pedido de decisão prejudicial bem como em informações complementares fornecidas pelo Governo dinamarquês a pedido do Tribunal de Justiça.


8 – Aktieavancebeskatningsloven (Lovtidende 1993, p. 4171).


9 – O § 13, n.° 3, em conjugação com o § 4 da lei relativa à tributação dos dividendos de acções prevê uma regulamentação especial relativa à permuta de acções de sociedades cotadas em bolsa, que não é relevante para o presente processo.


10 – De acordo com as indicações do Østre Landsret, remetendo para os esclarecimentos relativos à proposta de lei (Folketingstidende, Anexo A, 1991/92, Coluna 517).


11 – Fusionsskatteloven (Lovtidende 1992, p. 3374).


12 – De acordo com os dados fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio, completadas pelas informações fornecidas por Hans Markus Kofoed, trata‑se de uma proposta de lei de 2 de Novembro de 1994, aprovada em 25 de Abril de 1995.


13 – Ligningsloven (Lovtidende 1992, p. 5478).


14 – Personskatteloven (Lovtidende 1992, p. 3914).


15 – De acordo com os dados não contestados fornecidos por Hans Markus Kofoed.


16 – Assinada em Copenhaga em 4 de Fevereiro de 1964.


17 – De acordo com as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, as partes no processo principal estão de acordo em relação ao facto de a referida distribuição de lucros ter sido realizada em conformidade com a legislação irlandesa aplicável.


18 – Primeiro, segundo e terceiro considerandos da Directiva 90/434.


19 – V. infra, a este respeito, os n.os 43 a 54 das presentes conclusões.


20 – V. infra, a este respeito, os n.os 55 a 67 das presentes conclusões.


21 – V., neste sentido, os acórdãos de 7 de Junho de 2005, VEMW e o. (C‑17/03, Colect., p. I‑4983, n.° 41); de 4 de Julho de 2006, Adeneler (C‑212/04, Colect., p. I‑0000, n.° 60); e de 26 de Outubro de 2006, Comissão/Espanha (C‑36/05, Colect., p. I‑0000, n.° 25).


22 – Por razões de simplificação, a seguir apenas será referida a (aquisição de) participação maioritária.


23 – Entre as diferentes versões linguísticas do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434, apenas a versão neerlandesa parece utilizar a noção relativamente estrita de «rechtshandeling», enquanto que as versões checa («operace»), dinamarquesa («transaktion»), grega («πράξη»), inglesa («operation»), espanhola («operación»), estónia («tehing»), finlandesa («liiketoimi»), francesa («opération»), húngara («művelet»), italiana («operazione»), lituana («operacija»), letã («operācija»), maltesa («ħidma»), polaca («operacja»), portuguesa («operação»), eslovaca («operácia»), eslovena («operacija») e a sueca («förfarande») recorrem a conceitos consideravelmente amplos que são equiparáveis ao termo utilizado na versão alemã («Vorgang»).


24 – Desde a entrada em vigor da Directiva 2005/19, uma quantia em dinheiro, na acepção do artigo 2.°, alínea d), da Directiva 90/434, também pode ser atribuída como contrapartida pela aquisição de outras participações, através das quais é consolidado um controlo já existente da sociedade adquirida. As seguintes considerações também podem ser aplicadas a um caso deste tipo.


25 – A necessidade de uma apreciação global de todas as circunstâncias do caso concreto é igualmente realçada no acórdão de 15 de Janeiro de 2002, Andersen og Jensen (C‑43/00, Colect., p. I‑379, n.os 25, 26 e 37), que diz igualmente respeito à interpretação da Directiva 90/434, mesmo que esta seja relativa ao seu artigo 2.°, alíneas c) e i).


26 – V. o primeiro e o segundo considerandos da Directiva 90/434.


27 – V. o quarto considerando da Directiva 90/434.


28 – Neste sentido, a jurisprudência constante, v. apenas os acórdãos de 14 de Abril de 2005, Bélgica/Comissão (C‑110/03, Colect., p. I‑2801, n.° 30); de 26 de Outubro de 2006, Koninklijke Coöperatie Cosun (C‑248/04, Colect., p. I‑0000, n.° 79); e de 21 de Fevereiro de 2006, Halifax e o. (C‑255/02, Colect., p. I‑1609, n.° 72).


29 – Acórdãos de 26 de Abril de 2005, «Goed Wonen» (C‑376/02, Colect., p. I‑3445, n.° 32), e de 14 de Setembro de 2006, Elmeka (C‑181/04 a C‑183/04, Colect., p. I‑0000, n.° 31); em sentido idêntico, os acórdãos de 3 de Maio de 2005, Berlusconi e o. (C‑387/02, C‑391/02 e C‑403/02, Colect., p. I‑3565, n.° 69); e de 11 de Julho de 2006, Chacón Navas (C‑13/05, Colect., p. I‑0000, n.° 56).


30 – Acórdão Koninklijke Coöperatie Consun (já referido na nota 28, n.° 79); v. igualmente os acórdãos de 15 de Dezembro de 1987, Países Baixos/Comissão (326/85, Colect., p. 5091, n.° 24); de 12 de Fevereiro de 2004, Slob (C‑236/02, Colect., p. I‑1861, n.° 37); e de 16 de Março de 2006, Emsland‑Stärke (C‑94/05, Colect., p. I‑2619, n.° 43).


31 – Quarto e nono considerandos da Directiva 90/434.


32 – Acórdão de 17 de Julho de 1997, Leur‑Bloem (C‑28/95, Colect., p. I‑4161, n.° 36).


33 – O facto de a apreciação dos motivos que levaram à permuta de acções estar reservada a uma análise exaustiva do caso concreto também é sublinhado pelo acórdão Leur‑Bloem (já referido na nota 32, n.os 41 e 44).


34 –      Apenas para completar o exposto, deve referir‑se que, desde a entrada em vigor da Directiva 2005/19, a situação correspondente também se aplica à aquisição de outras participações através das quais é consolidado um controlo já existente por parte da sociedade adquirente na sociedade adquirida.


35 – V. supra, o n.° 52 e a nota 31 das presentes conclusões.


36 – V., a este respeito, os n.os 43 a 54 das presentes conclusões.


37 – Acórdãos de 9 de Março de 1999, Centros (C‑212/97, Colect., p. I‑1459, n.° 24, com outras referências); de 6 de Abril de 2006, Agip Petroli (C‑456/04, Colect., p. I‑3395, n.° 20); de 12 de Setembro de 2006, Cadbury Schweppes (C‑196/04, Colect., p. I‑0000, n.° 35); e Halifax (já referido na nota 28, n.os 68 e 69).


38 – No mesmo sentido, mas relativo ao exercício da liberdade de estabelecimento (artigo 43.° CE), os acórdãos Centros (n.° 27) e Cadbury Schweppes (n.os 36 a 38), já referidos na nota 37.


39 – Aparentemente, os intervenientes estavam conscientes de que iria entrar em vigor uma nova convenção sobre dupla tributação entre a Dinamarca e a Irlanda que lhes seria menos favorável, pelo que no período em causa teriam um motivo para economizar impostos recorrendo à permuta de acções com a subsequente distribuição de lucros através da sociedade irlandesa (v. n.os 29 e 30 das presentes conclusões).


40 – Acórdão Leur‑Bloem (já referido na nota 32, n.° 47).


41 – Acórdão Leur‑Bloem (já referido na nota 32, n.° 41).


42 – Neste sentido, a jurisprudência constante, v., por exemplo, os acórdãos de 16 de Junho de 2005, Comissão/Itália (C‑456/03, Colect., p. I‑5335, n.° 51), e de 6 de Abril de 2006, Comissão/Áustria (C‑428/04, Colect., p. I‑3325, n.° 99).


43 – No mesmo sentido, por exemplo, o acórdão de 19 de Janeiro de 1982, Becker (8/81, Recueil, p. 53, n.° 34).


44 – Em relação ao dever imposto aos órgãos jurisdicionais nacionais de interpretarem o direito nacional em conformidade com a directiva, v. a jurisprudência constante e particularmente os acórdãos de 10 de Abril de 1984, Von Colson e Kamann (C‑14/83, Recueil, p. 1891, n.° 26); de 5 de Outubro de 2004, Pfeiffer e o. (C‑397/01 a C‑403/01, Colect., p. I‑8835, n.os 113 a 119, com outras referências), bem como Adeneler (já referido na nota 21, n.os 108, 109 e 111).


45 – Assim, o dever de interpretação do direito nacional em conformidade com a directiva também se aplica reconhecidamente em relações jurídicas em que obrigatoriamente um particular é indirectamente onerado: por um lado, nas relações jurídicas entre particulares [v. apenas os acórdãos de 13 de Novembro de 1990, Marleasing (C‑106/98, Colect., p. I‑4135, n.os 6 e 8) e de 14 de Julho de 1994, Faccini Dori (C‑91/92, Colect., p. I‑3325, n.os 20, 25 e 26)] e, por outro, nas denominadas relações triangulares [v. acórdão de 7 de Janeiro de 2004, Wells (C‑201/02, Colect., p. I‑723, n.° 57, com outras referências). No mesmo sentido, igualmente as minhas conclusões de 14 de Outubro de 2004, Berlusconi e o. (C‑387/02, C‑391/02 e C‑403/02, Colect., p. I‑3565, n.° 153).


46 – Acórdãos de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, Colect., p. I‑5357, n.° 21); de 26 de Setembro de 1996, Arcaro (C‑168/95, Colect., p. I‑4705, n.° 42); de 29 de Abril de 2004, Beuttenmüller (C‑102/02, Colect., p. I‑5405, n.° 63); e de 30 de Março de 2006, Uudenkaupungin kaupunki (C‑184/04, Colect., p. I‑3039, n.° 28).


47 – V., entre outros, os acórdãos Pfeiffer (já referido na nota 44, n.° 108, com outras referências), e Berlusconi (já referido na nota 29, n.° 73); Sublinhado nosso.


48 – Também em outras situações, as medidas nacionais numa área objecto de harmonização exaustiva a nível comunitário devem ser apreciadas à luz das disposições dessa medida de harmonização e não à do direito primário [acórdãos de 13 de Dezembro de 2001, DaimlerChrysler (C‑324/99, Colect., p. I‑9897, n.° 32) e de 14 de Dezembro de 2004, Swedish Match (C‑210/03, Colect., p. I‑11893, n.° 81). Evidentemente, mantém‑se a possibilidade de apreciar a legalidade do direito derivado no âmbito dos artigos 220.° e segs. CE de acordo com os critérios do direito primário de grau superior.


49 – V., a este respeito, em particular os n.os 48 a 51 das presentes conclusões.


50 – Neste sentido, não é claro o acórdão de 22 de Novembro de 2005, Mangold (C‑144/04, Colect., p. I‑9981, n.os 74 a 77).