Language of document : ECLI:EU:C:2011:695

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

27 de Outubro de 2011 (*)

«Incumprimento de Estado – Artigo 49.° CE – Segurança social – Restrição à livre prestação de serviços – Despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro – Não reembolso ou reembolso subordinado a autorização prévia»

No processo C‑255/09,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 9 de Julho de 2009,

Comissão Europeia, representada por E. Traversa e M. França, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Portuguesa, representada por L. Inez Fernandes, M. L. Duarte, A. Veiga Correia e P. Oliveira, na qualidade de agentes,

demandada,

apoiada por:

República da Finlândia, representada por A. Guimaraes‑Purokoski, na qualidade de agente,

Reino de Espanha, representado por J. M. Rodríguez Cárcamo, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

intervenientes,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, J. Malenovský, R. Silva de Lapuerta, E. Juhász e D. Šváby (relator), juízes,

advogado‑geral: V. Trstenjak,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 9 de Fevereiro de 2011,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 14 de Abril de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        Através da sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, não tendo previsto, no Decreto‑Lei n.° 177/92, de 13 de Agosto de 1992, que fixa as condições de reembolso das despesas médicas efectuadas no estrangeiro (Diário da República, I série‑A, n.° 186, p. 3926), nem em nenhuma outra medida de direito nacional, a possibilidade de reembolso das despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro, excepto nas circunstâncias previstas pelo Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na sua versão alterada e actualizada pelo Regulamento (CE) n.° 118/97 do Conselho, de 2 de Dezembro de 1996 (JO 1997, L 28, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 1992/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro de 2006 (JO L 392, p. 1, a seguir «Regulamento n.° 1408/71»), ou, caso o citado decreto‑lei admita a possibilidade de reembolso das despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro, ao subordinar o respectivo reembolso à concessão de uma autorização prévia, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE.

 Quadro jurídico

 Direito da União

2        Nos termos do artigo 22.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1408/71:

«O trabalhador assalariado ou não assalariado que preencha as condições exigidas pela legislação do Estado competente para ter direito às prestações, tendo em conta, quando necessário, o disposto no artigo 18.°, e:

a)      Cujo estado exija prestações em espécie que se tornem clinicamente necessárias durante uma estada no território de outro Estado‑Membro, tendo em conta a natureza das prestações e a duração prevista dessa estada

ou

[…]

c)      Que seja autorizado pela instituição competente a deslocar‑se ao território de outro Estado‑Membro a fim de nele receber tratamentos adequados ao seu estado,

terá direito:

i)      Às prestações em espécie concedidas, por conta da instituição competente, pela instituição do lugar de estada […], nos termos da legislação aplicada por esta instituição, como se nela estivesse inscrito, sendo, no entanto, o período de concessão das prestações regulado pela legislaç[ão] do Estado competente;

[…]»

 Direito nacional

3        O Decreto‑Lei n.° 177/92 regulamenta a assistência médica no estrangeiro aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde português (a seguir «SNS»).

4        O artigo 1.° do referido decreto‑lei prevê:

«1 – A assistência médica de grande especialização no estrangeiro que, por falta de meios técnicos ou humanos, não possa ser prestada no País é regulada pelo presente diploma.

2 – São abrangidos os beneficiários do Serviço Nacional de Saúde.

3 – Excluem‑se do âmbito do presente diploma as propostas de deslocação ao estrangeiro que provenham de instituições privadas.»

5        O artigo 2.° do Decreto‑Lei n.° 177/92, que fixa os requisitos do reembolso integral das despesas previsto no artigo 6.° do mesmo Decreto‑Lei, dispõe:

«São condições essenciais para atribuição dos benefícios previstos no artigo 6.°:

a)      A existência de um relatório médico hospitalar favorável, a elaborar circunstanciadamente pelo médico que tenha acompanhado a assistência ao doente, confirmado pelo respectivo director de serviço;

b)      A confirmação de tal relatório por parte do director clínico da unidade hospitalar onde o doente foi assistido;

c)      A decisão favorável do director‑geral dos Hospitais, mediante parecer da assessoria técnica.»

6        No que diz respeito ao poder de decisão e ao modo de intervenção, o artigo 4.°, n.° 1, do Decreto‑Lei n.° 177/92 precisa:

«É da competência do director‑geral dos Hospitais a decisão dos processos de assistência médica no estrangeiro que lhe sejam submetidos pelos interessados, atentos os requisitos previstos no artigo 2.°»

 Procedimento pré‑contencioso

7        Na sequência de um pedido de informações sobre a conformidade da legislação e das práticas nacionais com a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à aplicação das regras do mercado interno no domínio dos cuidados de saúde, dirigido pela Comissão a todos os Estados‑Membros em 12 de Julho de 2002, a República Portuguesa, por ofício de 17 de Janeiro de 2003, forneceu informações a propósito da legislação portuguesa aplicável na matéria.

8        Em 28 de Julho de 2003, a Comissão publicou um relatório de síntese intitulado «Relatório de síntese sobre a aplicação das regras do mercado interno aos serviços de saúde – Aplicação pelos Estados‑Membros da jurisprudência do Tribunal de Justiça» [SEC (2003) 900].

9        Com base nas informações em seu poder, a Comissão enviou à República Portuguesa, em 18 de Outubro de 2006, uma notificação para cumprir, na qual alegava que a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE, ao prever, no Decreto‑Lei n.° 177/92, que o reembolso das despesas relativas a prestações não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro está subordinado a uma autorização prévia, que só é concedida em condições estritas.

10      Por ofício de 12 de Janeiro de 2007, a República Portuguesa respondeu que compreendia «dificilmente que os serviços de saúde possam ser submetidos a princípios de mercado interno», e que «a posição assumida pelo Estado português, tendo por base a interpretação sucessiva do Tribunal [de Justiça] das Comunidades [Europeias], pode ter cabimento no sentido de uma interpretação extensiva, concluindo‑se que a legislação de um Estado‑Membro sujeite a tomada a cargo de cuidados de saúde à obtenção de uma autorização prévia».

11      Tendo em conta esta resposta, a Comissão, em 29 de Junho de 2007, dirigiu à República Portuguesa um parecer fundamentado, no qual referia que a resposta desta não apresentava novos elementos que pudessem pôr em causa os princípios fundamentais e a jurisprudência confirmada do Tribunal de Justiça, e convidava‑a a tomar as medidas necessárias para dar cumprimento ao parecer fundamentado no prazo de dois meses.

12      Na sua resposta ao referido parecer fundamentado, datada de 4 de Setembro de 2007, a República Portuguesa sustentou que «o Decreto‑Lei n.° 177/92 não contrariava a aplicação da legislação comunitária em matéria de acesso aos cuidados de saúde de cidadãos portugueses no espaço da União Europeia ou direitos fundamentais dos cidadãos europeus consagrados no Tratado da União Europeia».

13      Em 12 de Fevereiro de 2008, a República Portuguesa comunicou à Comissão que tencionava «completar a reflexão interna sobre as consequências financeiras que o sistema implica», reflexão essa que necessitaria de um tempo suplementar de pelo menos um mês, devido a uma recente alteração da composição do governo.

14      Convidada novamente a pronunciar‑se pela Comissão em 18 de Junho de 2008, a República Portuguesa reiterou, por ofício de 24 de Julho de 2008, a posição defendida em resposta ao parecer fundamentado.

15      Em 15 de Abril de 2009, a Comissão dirigiu à República Portuguesa um parecer fundamentado complementar, no qual entendia precisar o alcance da violação do direito comunitário que lhe era imputada. A Comissão considera que, ao não prever, no Decreto‑Lei n.° 177/92 nem em nenhuma outra medida de direito nacional, a possibilidade de reembolso de prestações não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro, exceptuando nas situações previstas pelo direito comunitário no Regulamento n.° 1408/71, a República Portuguesa não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE, tal como interpretado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

16      Por ofício de 15 de Maio de 2009, as autoridades portuguesas responderam ao parecer fundamentado complementar, declarando que «o reembolso das despesas realizadas com tratamentos no estrangeiro de beneficiários do SNS encontra‑se previsto no Decreto‑Lei n.° 177/92» e que «a legislação portuguesa não exclui o pagamento de despesas médicas realizadas no estrangeiro por um beneficiário do SNS, mesmo sob a forma de uma consulta de especialidade, desde que observe o procedimento de referenciação prévia da necessidade clínica».

17      Não satisfeita com estas explicações, a Comissão decidiu intentar a presente acção.

 Tramitação processual no Tribunal de Justiça

18      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 17 de Novembro de 2009, o Reino de Espanha e a República da Finlândia foram autorizados a intervir em apoio dos pedidos da República Portuguesa. Todavia, a República da Finlândia não apresentou observações nem participou na audiência.

19      Na audiência, a Comissão, convidada pelo Tribunal a explicar as consequências que retirava do acórdão de 5 de Outubro de 2010, Comissão/França (C‑512/08, ainda não publicado na Colectânea), e do seu impacto no caso vertente, respondeu que desistia parcialmente da sua acção, ao abrigo do artigo 78.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

20      Por requerimento de 24 de Março de 2011, a Comissão confirmou essa desistência parcial e precisou que o objecto do processo é unicamente o reembolso das despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro, com exclusão do reembolso de determinadas prestações médicas que, embora dispensadas em consultório, implicam o recurso a equipamentos materiais pesados e dispendiosos, taxativamente enumerados na legislação nacional, tais como, uma câmara de cintilação munida ou não de detector de emissão de positrões em coincidência, um tomógrafo de emissões, uma câmara de positrões, aparelhos de espectroscopia ou de espectrometria por ressonância magnética nuclear para uso clínico, um scanner para uso médico, uma câmara hiperbárica e um ciclotrão para uso médico.

 Quanto à acção

 Argumentos das partes

 Quanto à regulamentação portuguesa

21      A Comissão afirma que teve algumas dificuldades em compreender a posição da República Portuguesa, devido à natureza ambígua e contraditória das informações por esta comunicadas sobre o reembolso das despesas médicas não hospitalares.

22      A Comissão concluiu da resposta da República Portuguesa ao questionário da Direcção‑Geral do Mercado Interno, relativo à conformidade da legislação nacional com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que o Decreto‑Lei n.° 177/92 era o acto legislativo nacional que continha as disposições aplicáveis ao reembolso das despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro.

23      A Comissão sublinha, todavia, que, na sua resposta ao parecer fundamentado, este Estado‑Membro afirma que, em matéria de acesso aos cuidados de saúde, não existia na ordem jurídica portuguesa nenhuma disposição que subordinasse a autorização prévia o direito ao reembolso de despesas médicas não hospitalares nas situações em que o beneficiário do SNS recorreu a um prestador privado no território nacional ou noutro Estado‑Membro e que, nessas situações, […] o SNS não procede ao reembolso de despesas médicas não hospitalares. A Comissão concluiu daí que o ordenamento jurídico português não previa a possibilidade de reembolso das despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro, a não ser nas circunstâncias previstas pelo Regulamento n.° 1408/71.

24      A Comissão observa que a República Portuguesa declarou, no entanto, na resposta ao parecer fundamentado complementar, que «o acesso aos cuidados de saúde noutro Estado‑Membro obedece a um procedimento de referenciação da necessidade clínica», o que indica que, em Portugal, existe um sistema de autorização prévia de reembolso das despesas médicas não hospitalares, quando o beneficiário se tenha dirigido a um prestador de serviços noutro Estado‑Membro.

25      Por último, a Comissão esclarece que a República Portuguesa reconheceu expressamente na sua contestação que não há possibilidade alguma de reembolso das despesas médicas não hospitalares, a não ser nas circunstâncias previstas no Regulamento n.° 1408/71.

26      A República Portuguesa contesta as alegadas ambiguidades e contradições nas explicações sobre o regime legal vigente em Portugal. Expõe que, no ordenamento jurídico português, há duas possibilidades de acesso aos cuidados de saúde prestados no estrangeiro, definidas, por um lado, no Regulamento n.° 1408/71, sobretudo no seu artigo 22.°, e, por outro, no Decreto‑Lei n.° 177/92, que regula «a assistência médica de grande especialização […] que […] não possa ser prestada no País».

27      O Decreto‑Lei n.° 177/92 deve ser interpretado na lógica do funcionamento do SNS e destina‑se a aplicar a Lei de Bases da Saúde, isto é, a Lei n.° 48/90, de 24 de Agosto de 1990, cuja base XXXV, n.° 2, prevê que «[s]ó em circunstâncias excepcionais em que seja impossível garantir em Portugal o tratamento nas condições exigíveis de segurança e em que seja possível fazê‑lo no estrangeiro, o Serviço Nacional de Saúde suporta as respectivas despesas».

28      O Decreto‑Lei n.° 177/92 foi pensado para funcionar como um instrumento de gestão hospitalar. Assim, um tratamento médico no estrangeiro é possível quando o sistema de saúde português, face aos meios existentes na rede hospitalar (rede pública ou privada), não dispõe de solução para tratar o doente inscrito nesse sistema. Esta solução visa proporcionar ao doente os cuidados de que este carece, prestados com garantia de qualidade e proficiência médica.

29      Um tratamento no estrangeiro está sujeito a determinadas condições, definidas pelo Decreto‑Lei n.° 177/92. Assim, os pedidos de assistência médica de grande especialização, no estrangeiro, devem ser formulados pelos hospitais do sistema nacional de saúde, acompanhados de um relatório circunstanciado do médico assistente, confirmado pelo director de serviço e pelo director clínico (artigo 2.°, n.os 1 e 2). A decisão final cabe ao director‑geral dos Hospitais. Além disso, o relatório médico deve conter uma série de informações sobre o estado de saúde do paciente e especificar o tratamento e os locais no estrangeiro onde este será tratado ou submetido a intervenção cirúrgica. Verificadas as condições legais, o paciente tem direito ao pagamento integral das despesas, incluindo as relativas à deslocação e ao alojamento do próprio e de um acompanhante. O pagamento é efectuado pela unidade hospitalar responsável pelo procedimento de referenciação prévia (artigo 6.°).

30      A República Portuguesa sustenta que não se deve proceder à distinção entre despesas hospitalares e despesas não hospitalares. Ao referir‑se ao critério relativo à natureza do estabelecimento do serviço nacional de saúde incumbido de emitir a referenciação clínica, estão em causa cuidados hospitalares, ao passo que, quando se refere ao critério do tratamento exigido, está em causa a «assistência médica de grande especialização», prestada pelo serviço hospitalar ou pela unidade estrangeira de cuidados, o que poderia cobrir quer serviços típicos de uma unidade hospitalar (como uma intervenção cirúrgica) quer eventuais actos médicos que não entram neste conceito estrito de cuidados hospitalares (consultas de especialistas).

31      Acrescenta que o procedimento de referenciação prévia da necessidade clínica de um tratamento no estrangeiro é comparável ao procedimento de encaminhamento para um médico especialista.

32      O regime de assistência médica no estrangeiro, tal como regulado pelo Decreto‑Lei n.° 177/92 corresponde às exigências ou às opções de ordem estrutural relacionadas com o funcionamento do SNS, que foi criado para dar concretização ao artigo 64.° da Constituição portuguesa, cujo n.° 2 especifica que o direito à protecção da saúde é realizado «[a]través de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito».

 Quanto ao direito da União

33      A Comissão defende que a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE, tal como interpretado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. De acordo com esta jurisprudência, o artigo 49.° CE aplica‑se à situação de um doente que recebe prestações médicas, mediante remuneração, num Estado‑Membro diferente do Estado da sua residência. Ora, o Decreto‑Lei n.° 177/92, que fixa as condições de reembolso das despesas médicas efectuadas no estrangeiro, não prevê o reembolso das despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro, a não ser nas circunstâncias previstas no Regulamento n.° 1408/71, ou subordina o reembolso dessas despesas médicas não hospitalares à concessão de uma autorização prévia, em condições estritas.

34      A Comissão entende que o regime português das prestações não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro não pode ser justificado nem por motivos de saúde pública nem pela pretensa existência de um perigo grave para o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social.

35      A República Portuguesa defende que não existe no Tratado nenhuma disposição que reconheça aos cidadãos da União o direito de exigir o reembolso das despesas médicas com tratamentos dispensados no estrangeiro ou a possibilidade de exercer plenamente esse direito, sem que isso esteja regulado por um mecanismo de autorização prévia.

36      Segundo a República Portuguesa, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à aplicabilidade do artigo 49.° CE aos cuidados de saúde transfronteiriços caracteriza‑se por falta de segurança jurídica. Além disso, foi desenvolvida no contexto de processos prejudiciais nos termos do artigo 234.° CE, o que impede a transposição das respectivas soluções para o caso vertente.

37      O artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 subordina igualmente o fornecimento de prestações de saúde transfronteiriças à concessão de uma autorização prévia e, mesmo que esta possa constituir uma restrição à livre prestação de serviços, o artigo 49.° CE não se opõe a essa autorização desde que a mesma dependa de critérios objectivos, cuja observância condiciona igualmente o reembolso das despesas com cuidados médicos dispensados no território nacional.

38      Por outro lado, a República Portuguesa sublinha a necessidade de articular e de conciliar o artigo 49.° CE com as outras disposições do Tratado e sustenta que o artigo 152.°, n.° 5, CE define uma reserva de competência a favor dos Estados‑Membros, cujo efeito útil exclui qualquer aplicação de outras disposições do Tratado que violem os poderes da instituição nacional de decisão em matéria de organização, financiamento e configuração do modelo do sistema nacional de saúde.

39      A República Portuguesa alega que a autorização prévia é justificada pela necessidade de garantir o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social.

40      O Reino de Espanha sustenta que o artigo 49.° CE não impõe aos Estados‑Membros nenhuma obrigação de adoptar actos positivos de transposição, tanto mais que a directiva europeia é o instrumento jurídico expressamente previsto pelo direito da União para impor esses actos nas ordens jurídicas nacionais. Em seu entender, o artigo 52.° CE prevê expressamente a directiva europeia como meio para liberalizar o mercado interno das prestações de serviços.

41      O Reino de Espanha alega ainda que a Comissão não demonstrou que a República Portuguesa aplica a sua legislação em violação das obrigações que resultam do artigo 49.° CE, designadamente, negando sistematicamente a autorização de tratamento no estrangeiro prevista pelo sistema.

42      Quanto à compatibilidade da regulamentação portuguesa com o artigo 49.° CE, o Reino de Espanha salienta que o regime de autorização prévia não constitui necessariamente uma restrição injustificada à livre prestação de serviços. Há razões imperiosas de interesse geral que justificam esse regime, em particular no âmbito das prestações hospitalares.

43      Quanto à proporcionalidade da regulamentação controvertida, o Reino de Espanha observa que há que examinar se o procedimento de autorização administrativa instaurado pelo sistema português se baseia em critérios objectivos e não discriminatórios, que são conhecidos antecipadamente pelos interessados e que permitem conhecer os limites da margem de apreciação das autoridades nacionais.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

44      A Comissão, após a sua desistência, conforme precisado no n.° 20 do presente acórdão, censura à República Portuguesa o facto de não ter cumprido as obrigações decorrentes do artigo 49.° CE, por não ter previsto, no Decreto‑Lei n.° 177/92 nem em nenhuma outra medida do direito nacional, a possibilidade de reembolso das despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro, excepto nas circunstâncias previstas pelo Regulamento n.° 1408/71, ou, caso o citado decreto‑lei admita a possibilidade de reembolso das despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro, ao subordinar o reembolso à concessão de uma autorização prévia.

45      A República Portuguesa, referindo‑se, designadamente, ao artigo 152.°, n.° 5, CE, contesta, a título principal, a aplicabilidade do artigo 49.° CE ao domínio dos cuidados de saúde transfronteiriços.

46      Recorde‑se, a este respeito, que, segundo jurisprudência assente, as prestações médicas fornecidas mediante remuneração estão abrangidas pelo âmbito de aplicação das disposições relativas à livre prestação de serviços (v., designadamente, acórdãos de 28 de Abril de 1998, Kohll, C‑158/96, Colect., p. I‑1931, n.° 29, e de 5 de Outubro de 2010, Elchinov, C‑173/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 36), sem que seja necessário distinguir consoante os cuidados sejam dispensados num quadro hospitalar ou fora desse quadro (acórdãos de 12 de Julho de 2001, Vanbraekel e o., C‑368/98, Colect., p. I‑5363, n.° 41; de 13 de Maio de 2003, Müller‑Fauré e van Riet, C‑385/99, Colect., p. I‑4509, n.° 38; de 16 de Maio de 2006, Watts, C‑372/04, Colect., p. I‑4325, n.° 86; e acórdão Comissão/França, já referido, n.° 30).

47      É pacífico que o direito da União não prejudica a competência dos Estados‑Membros para organizarem os seus sistemas de segurança social e que, na falta de harmonização a nível da União, compete à legislação de cada Estado‑Membro determinar os requisitos a que obedece a concessão das prestações em matéria de segurança social (v. acórdão de 27 de Janeiro de 2011, Comissão/Luxemburgo, C‑490/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 32 e jurisprudência referida). Cabe igualmente salientar que, nos termos do artigo 152.°, n.° 5, CE, a acção da União no domínio da saúde pública respeitará plenamente as responsabilidades dos Estados‑Membros em matéria de organização e prestação de serviços de saúde e de cuidados médicos (v. acórdão Watts, já referido, n.° 146).

48      Verifica‑se, no entanto, que, no exercício dessa competência, os Estados‑Membros devem respeitar o direito da União, designadamente as disposições relativas à livre prestação de serviços (v., designadamente, acórdão de 12 de Julho de 2001, Smits e Peerbooms, C‑157/99, Colect., p. I‑5473, n.os 44 a 46; acórdãos, já referidos, Müller‑Fauré e van Riet, n.° 100, Watts, n.° 92, Elchinov, n.° 40; acórdão de 15 de Junho de 2010, Comissão/Espanha, C‑211/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 53; e acórdão Comissão/Luxemburgo, já referido, n.° 32).

49      Deste modo, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 152.°, n.° 5, CE não exclui que os Estados‑Membros sejam obrigados, por força de outras disposições do Tratado, tais como o artigo 49.° CE, a proceder a adaptações do seu sistema de segurança social, sem que se possa, no entanto, considerar que isso constitui um atentado à sua soberania nessa matéria (v. acórdãos, já referidos, Watts, n.° 147, e Comissão/Luxemburgo, n.° 45).

50      Do mesmo modo, no que diz respeito ao argumento relativo à natureza do sistema nacional de saúde português, recorde‑se que a circunstância de uma regulamentação nacional pertencer ao domínio da segurança social e, mais especialmente, prever, em matéria de seguros de doença, uma intervenção em espécie, em vez de um reembolso, não pode subtrair os tratamentos médicos ao campo de aplicação desta liberdade fundamental (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Müller‑Fauré e van Riet, n.° 103, Watts, n.° 89, Comissão/Espanha, n.° 47, e Comissão/Luxemburgo, n.° 36).

51      De resto, uma prestação médica não deixa de ser qualificada de prestação de serviços, na acepção do artigo 49.° CE, pelo facto de o paciente, após ter pago ao prestador estrangeiro o tratamento recebido, solicitar ulteriormente que os respectivos custos sejam suportados por um serviço nacional de saúde (acórdão Comissão/Espanha, já referido, n.° 47).

52      Daí resulta que o artigo 49.° CE se aplica no domínio dos cuidados transfronteiriços.

53      Nestas condições, importa examinar se a regulamentação portuguesa controvertida constitui um incumprimento do artigo 49.° CE.

54      Segundo jurisprudência assente, o artigo 49.° CE opõe‑se à aplicação de qualquer legislação nacional que tenha por efeito tornar a prestação de serviços entre os Estados‑Membros mais difícil do que a prestação de serviços puramente interna a um Estado‑Membro (v., designadamente, acórdão de 19 de Abril de 2007, Stamatelaki, C‑444/05, Colect., p. I‑3185, n.° 25 e jurisprudência referida).

55      Para que esse exame possa ser feito, importa clarificar previamente o regime previsto pela regulamentação portuguesa para o reembolso das despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro.

56      É pacífico que, a não ser nas circunstâncias previstas pelo Regulamento n.° 1408/71 não visadas pela presente acção, o Decreto‑Lei n.° 177/92 constitui a única regulamentação portuguesa aplicável em matéria de reembolso das despesas com cuidados médicos dispensados no estrangeiro.

57      A este respeito, saliente‑se, por um lado, que o artigo 1.° do Decreto‑Lei n.° 177/92 prevê que este diploma regula a «assistência médica de grande especialização no estrangeiro que, por falta de meios técnicos ou humanos, não possa ser prestada no País».

58      Por outro lado, o artigo 2.° do Decreto‑Lei n.° 177/92 prevê o reembolso, nas condições por ele instituídas, das despesas médicas não hospitalares com tratamentos médicos «de grande especialização» no estrangeiro, que não podem ser dispensados em Portugal. Não há, em contrapartida, excepto nas circunstâncias previstas pelo Regulamento n.° 1408/71, nenhuma possibilidade de reembolso das despesas médicas para cuidados não hospitalares no estrangeiro, não visados pelo Decreto‑Lei n.° 177/92, como o Governo português acabou por admitir na audiência.

59      Nestas condições, tendo em conta a desistência parcial da Comissão, há que examinar sucessivamente a situação dos cuidados médicos «de grande especialização» que não implicam o recurso a equipamentos materiais pesados e dispendiosos, taxativamente enumerados na legislação nacional, cujo reembolso de despesas está subordinado, por força do Decreto‑Lei n.° 177/92, à concessão de uma autorização prévia (cuidados não hospitalares que não sejam «pesados», visados pelo Decreto‑Lei n.° 177/92), e a situação dos cuidados não hospitalares, não visados pelo Decreto‑Lei n.° 177/92, para os quais o direito português não prevê possibilidade de reembolso de despesas (cuidados não hospitalares que não sejam «pesados», não visados pelo Decreto‑Lei n.° 177/92), uma vez que estas duas situações correspondem às duas acusações alternativas formuladas pela Comissão.

 Quanto aos cuidados não hospitalares que não sejam «pesados», visados pelo Decreto‑Lei n.° 177/92

60      Recorde‑se, a este respeito, que o Tribunal de Justiça já declarou que a mera exigência da autorização prévia à qual está subordinada a tomada cargo, pela instituição competente, segundo o regime de cobertura em vigor no Estado‑Membro a que pertence, dos cuidados programados noutro Estado‑Membro constitui um entrave à livre prestação de serviços, tanto para os pacientes como para os prestadores, visto que esse sistema demove os ditos pacientes ou até os impede de se dirigirem a prestadores de serviços médicos estabelecidos noutro Estado‑Membro, para receber os cuidados em causa (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Kohll, n.° 35, Smits e Peerbooms, n.° 69, Müller‑Fauré e van Riet, n.os 41, 44 e 103, Watts, n.° 98, e Comissão/França, n.° 32).

61      Neste caso, o Decreto‑Lei n.° 177/92 subordina o reembolso de despesas médicas efectuadas no estrangeiro à obtenção de uma tripla autorização prévia. Em conformidade com o artigo 2.° deste decreto‑lei, o reembolso exige, com efeito, um relatório médico favorável, elaborado circunstanciadamente pelo médico assistente do doente, a confirmação desse relatório pelo director do serviço hospitalar e a decisão favorável do director‑geral dos Hospitais.

62      Embora a regulamentação controvertida não impeça directamente os doentes em questão de se dirigirem a um prestador de serviços médicos estabelecido noutro Estado‑Membro, a perspectiva de um prejuízo financeiro, caso as despesas médicas não sejam cobertas pelo sistema nacional de saúde, devido a uma decisão administrativa desfavorável, é, em si, manifestamente susceptível de os levar a desistir (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Kohll, n.° 35, Smits e Peerbooms, n.° 69, e Müller‑Fauré e van Riet, n.° 44). A complexidade deste procedimento de autorização, que se articula, em especial, em três fases, constitui um factor dissuasivo suplementar para se recorrer a prestações de saúde transfronteiriças.

63      Além disso, o Decreto‑Lei n.° 177/92 só prevê a tomada a cargo dos cuidados médicos no estrangeiro unicamente no caso excepcional de o sistema de saúde português não dispor de solução de tratamento para o doente inscrito neste sistema. Esta condição é, pela sua própria natureza, susceptível de limitar fortemente as hipóteses em que pode ser obtida uma autorização (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Smits e Peerbooms, n.° 64, e Müller‑Fauré e van Riet, n.° 42).

64      Não pode vingar a argumentação do Governo português segundo a qual o procedimento de «referenciação prévia da necessidade clínica» de um tratamento no estrangeiro, imposto pelo Decreto‑Lei n.° 177/92, é comparável ao encaminhamento para um médico especialista no território nacional.

65      Com efeito, por um lado, segundo as indicações fornecidas pelo Governo português nos seus articulados no Tribunal de Justiça, o acesso, no território nacional, aos cuidados especializados, garantidos pelo SNS, depende simplesmente da obtenção de uma referenciação da sua necessidade clínica, emitida pelo médico assistente, e não de uma autorização tripla equivalente à prevista pelo Decreto‑Lei n.° 177/92 para o reembolso das despesas médicas efectuadas noutro Estado‑Membro.

66      Por outro lado, a condição muito restrita mencionada no n.° 63 do presente acórdão, não é, por definição, de aplicação no caso dos cuidados dispensados em Portugal.

67      Do mesmo modo, o carácter restritivo do procedimento de autorização previsto pelo Decreto‑Lei n.° 177/92 não é posto em causa pela afirmação segundo a qual os beneficiários do sistema nacional de saúde que recorram aos cuidados de saúde dispensados fora do quadro do SNS, por prestadores situados no território nacional, pagam integralmente esses cuidados.

68      Com efeito, para aplicar a jurisprudência evocada no n.° 54 do presente acórdão, não é com o destino reservado pelo direito nacional às prestações de cuidados hospitalares recebidas por doentes em estabelecimentos locais privados que devem ser comparadas as condições de tomada a cargo, pelo referido serviço, de cuidados hospitalares projectados noutro Estado‑Membro. Pelo contrário, a comparação deve ser efectuada com as condições em que este serviço fornece tais prestações no âmbito das suas infra‑estruturas hospitalares (acórdão Watts, já referido, n.° 100).

69      Por outro lado, a República Portuguesa considera, sem razão, que o artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 estabelece o princípio da exigência de uma autorização prévia para qualquer tratamento noutro Estado‑Membro.

70      Como o Tribunal de Justiça declarou, o facto de uma medida nacional poder ser eventualmente conforme com uma disposição de direito derivado, neste caso o artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, não tem por efeito fazer com que essa medida escape ao disposto no Tratado. Além disso, o artigo 22.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1408/71 visa permitir ao segurado, que está autorizado pela instituição competente a deslocar‑se a outro Estado‑Membro para aí receber cuidados adequados ao seu estado, beneficiar das prestações de doença em espécie, por conta da instituição competente, mas segundo as disposições da legislação do Estado onde as prestações são efectuadas, designadamente no caso de a transferência ser necessária tendo em conta o estado de saúde do interessado, e isto sem incorrer em despesas adicionais. Em contrapartida, há que constatar que o artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, interpretado à luz da sua finalidade, não tem como objectivo regulamentar – e, portanto, não impede de modo nenhum – o reembolso pelo Estado‑Membro de inscrição, segundo as tarifas em vigor no dito Estado‑Membro, das despesas motivadas por tratamentos efectuados noutro Estado‑Membro, mesmo sem autorização prévia (acórdão Kohll, já referido, n.os 25 a 27).

71      Nestas condições, a autorização prévia em causa deve ser considerada uma restrição à livre prestação de serviços prevista no artigo 49.° CE.

72      Estando demonstrada a existência de uma restrição à livre prestação de serviços, importa, portanto, verificar se a regulamentação portuguesa controvertida pode ser justificada por razões imperiosas e averiguar se, nesse caso, em conformidade com jurisprudência assente, não excede o que é objectivamente necessário para esse fim e se esse resultado não pode ser obtido por regras menos restritivas (v. acórdãos de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha, 205/84, Colect., p. 3755, n.os 27 e 29; de 26 de Fevereiro de 1991, Comissão/Itália, C‑180/89, Colect., p. I‑709, n.os 17 e 18, e de 20 de Maio de 1992, Ramrath, C‑106/91, Colect., p. I‑3351, n.os 30 e 31).

–       Manutenção do equilíbrio financeiro do sistema de segurança social

73      A este propósito, o Tribunal de Justiça reconheceu que não se pode excluir que um risco de infracção grave ao equilíbrio financeiro do sistema de segurança social possa constituir uma razão imperiosa de interesse geral, susceptível de justificar um entrave ao princípio da livre prestação de serviços (acórdão Comissão/Luxemburgo, já referido, n.° 43 e jurisprudência referida).

74      Deste modo, admitiu que uma exigência de autorização prévia possa, em certas condições, ser justificada por essa consideração, no contexto de cuidados hospitalares (v., designadamente, acórdãos, já referidos, Smits e Peerbooms, n.os 76 a 81, Müller‑Fauré e van Riet, n.os 76 a 81, e Watts, n.os 108 a 110), bem como no de cuidados médicos que, embora possam ser dispensados fora do quadro hospitalar, implicam o recurso a equipamentos materiais pesados e dispendiosos, taxativamente enumerados na legislação nacional (v., neste sentido, acórdão Comissão/França, já referido, n.os 34 a 42).

75      Porém, quanto aos cuidados não hospitalares que não sejam «pesados», visados pelo Decreto‑Lei n.° 177/92, impõe‑se reconhecer que o Governo português não adiantou nenhum elemento preciso para fundamentar a afirmação segundo a qual a liberdade concedida aos segurados, de se deslocarem, sem autorização prévia, a um Estado‑Membro que não seja o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertencem, para aí receberem os referidos cuidados, é susceptível de infringir gravemente o equilíbrio financeiro do SNS.

76      Não resulta dos autos no Tribunal de Justiça que a supressão da exigência de autorização prévia para esse tipo de cuidados provocaria, não obstante as barreiras linguísticas, a distância geográfica e as despesas de estada no estrangeiro, deslocações transfronteiriças de pacientes de tal modo importantes que o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social português seria gravemente perturbado e, por este motivo, o nível global de protecção da saúde pública ficaria ameaçado, o que poderia validamente justificar um entrave ao princípio fundamental da livre prestação de serviços.

77      Além disso, os cuidados são geralmente dispensados próximo do local de residência do paciente, num ambiente cultural que lhe é familiar e lhe permite estabelecer uma relação de confiança com o médico assistente. Abstraindo dos casos de urgência, as deslocações transfronteiriças de pacientes manifestam‑se, sobretudo, nas regiões fronteiriças ou para o tratamento de patologias específicas (acórdão Müller‑Fauré e van Riet, já referido, n.° 96).

78      Estas várias circunstâncias são susceptíveis de limitar o eventual impacto financeiro no SNS, resultante da supressão da exigência de autorização prévia no que respeita aos cuidados dispensados no consultório do médico estrangeiro.

79      De qualquer modo, deve recordar‑se que cabe exclusivamente aos Estados‑Membros determinar o alcance da cobertura dos riscos de doença de que beneficiam os segurados, de modo a que, quando estes se deslocam, sem autorização prévia, a um Estado‑Membro que não seja o de estabelecimento da caixa de seguro de doença a que pertencem, para aí receberem tratamento, só podem exigir a tomada a cargo dos custos dos tratamentos que lhes foram dispensados, dentro dos limites da cobertura garantida pelo regime de seguro de doença do Estado‑Membro de inscrição (acórdão Müller‑Fauré e van Riet, já referido, n.° 98).

–       Controlo da qualidade das prestações de saúde fornecidas no estrangeiro

80      Quanto ao argumento da República Portuguesa segundo o qual a exigência de uma autorização prévia é necessária para garantir a qualidade das prestações fornecidas, recorde‑se que, embora os Estados‑Membros possam limitar a livre prestação de serviços por razões de protecção da saúde pública, essa faculdade não os autoriza, porém, a excluir da aplicação do princípio fundamental da livre circulação o sector da saúde pública, enquanto sector económico do ponto de vista da livre prestação de serviços (acórdão Kohll, já referido, n.os 45 e 46).

81      O Tribunal de Justiça já declarou, no caso das prestações não hospitalares, que as condições de acesso e de exercício das actividades relativas a essas prestações foram objecto de várias directivas de coordenação ou de harmonização, pelo que a exigência de uma autorização prévia só pode ser justificada por considerações ligadas à qualidade das prestações fornecidas no estrangeiro (v. acórdão Kohll, já referido, n.° 49).

82      De qualquer modo, o Decreto‑Lei n.° 177/92 subordina a autorização prévia, não à verificação da qualidade dos cuidados prestados noutro Estado‑Membro mas ao facto de os mesmos não estarem disponíveis em Portugal.

83      Daqui resulta que a exigência de autorização prévia para o reembolso das despesas médicas em causa não pode ser justificada por razões de protecção da saúde ligadas à necessidade de controlo da qualidade dos cuidados de saúde prestados no estrangeiro.

–       Características essenciais do SNS

84      Segundo a República Portuguesa, o procedimento de autorização prévia justifica‑se pela especificidade da organização e do funcionamento do SNS, designadamente pela inexistência de mecanismo de reembolso de despesas médicas e pela obrigação de passar por um médico generalista para consultar um médico especialista.

85      A este respeito, observe‑se que, no próprio quadro da aplicação do Regulamento n.° 1408/71, os Estados‑Membros que tenham instituído um regime de prestações em espécie, ou mesmo um serviço nacional de saúde, devem, de qualquer modo, prever mecanismos de reembolso, a posteriori, das despesas com cuidados dispensados noutro Estado‑Membro que não seja o Estado‑Membro competente (acórdão Müller‑Fauré e van Riet, já referido, n.° 105).

86      Do mesmo modo, as condições de concessão das prestações, desde que não sejam discriminatórias nem constitutivas de um entrave à livre circulação de pessoas, continuam a ser oponíveis em caso de cuidados fornecidos num Estado‑Membro que não seja o de inscrição. É assim, nomeadamente, no que respeita à exigência da consulta de um médico generalista antes de consultar um médico especialista (acórdão Müller‑Fauré e van Riet, já referido, n.° 106).

87      Por último, o Tribunal de Justiça sublinhou que nada se opõe a que o Estado‑Membro de inscrição onde exista um regime de prestações em espécie fixe os montantes de reembolso das despesas a que têm direito os pacientes que tenham recebido cuidados noutro Estado‑Membro, desde que esses montantes assentem em critérios objectivos, não discriminatórios e transparentes (acórdão Müller‑Fauré e van Riet, já referido, n.° 107).

88      Em consequência, as características essenciais do SNS não permitem justificar a exigência de uma autorização prévia, prevista pelo Decreto‑Lei n.° 177/92, com vista a obter o reembolso das despesas com cuidados de saúde não hospitalares, dispensados noutro Estado‑Membro.

89      Resulta do exposto que a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE, ao subordinar, no Decreto‑Lei n.° 177/92, à concessão de uma autorização prévia o reembolso das despesas com cuidados não hospitalares «de grande especialização», prestados noutro Estado‑Membro, que não implicam o recurso a equipamentos materiais pesados e dispendiosos, taxativamente enumerados na legislação nacional.

 Quanto aos cuidados não hospitalares que não sejam «pesados», não visados pelo Decreto‑Lei n.° 177/92

90      O Decreto‑Lei n.° 177/92 regula unicamente a assistência médica de grande especialização no estrangeiro. Daqui resulta que, para os cuidados não hospitalares, não visados pelo Decreto‑Lei n.° 177/92, excepto nas circunstâncias previstas pelo Regulamento n.° 1408/71, o direito português não prevê possibilidade alguma de reembolso de despesas. De resto, a República Portuguesa admitiu na audiência que a tomada a cargo das referidas despesas médicas não hospitalares efectuadas noutro Estado‑Membro, como a consulta de um médico generalista ou de um dentista, não está prevista de maneira nenhuma.

91      A República Portuguesa não adiantou nenhum argumento específico que justificasse a compatibilidade dessa não tomada a cargo com o artigo 49.° CE, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça.

92      De qualquer modo, os fundamentos relativos ao carácter restritivo da exigência de autorização prévia e à falta de justificação legítima desta aplicam‑se obviamente, por maioria de razão, no caso de se tratar dos cuidados médicos não hospitalares para os quais não existe nenhuma possibilidade de reembolso de despesas.

93      Consequentemente, há que declarar que a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE, ao não prever, excepto nas circunstâncias previstas pelo Regulamento n.° 1408/71, a possibilidade de reembolso de despesas com cuidados médicos não hospitalares, efectuadas noutro Estado‑Membro, não visados pelo Decreto‑Lei n.° 177/92.

94      Resulta das considerações expostas que a acção da Comissão é procedente.

95      Consequentemente, importa declarar que, ao não prever, excepto nas circunstâncias previstas pelo Regulamento n.° 1408/71, a possibilidade de reembolso das despesas com cuidados médicos não hospitalares, efectuadas noutro Estado‑Membro, que não implicam o recurso a equipamentos materiais pesados e dispendiosos, taxativamente enumerados na legislação nacional, ou, nos casos em que o Decreto‑Lei n.° 177/92 reconhece a possibilidade de reembolso das despesas com os referidos cuidados, ao subordinar o seu reembolso à concessão de uma autorização prévia, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE.

 Quanto às despesas

96      Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Nos termos do n.° 3 deste mesmo artigo, o Tribunal de Justiça pode repartir as despesas ou decidir que cada uma das partes suporte as suas próprias despesas, designadamente, por motivos excepcionais. Neste caso concreto, a República Portuguesa foi vencida, mas, ao longo do processo, efectuou despesas a fim de refutar acusações a que a Comissão renunciou na sequência da audiência. Nestas condições, a Comissão e a República Portuguesa suportarão as suas próprias despesas.

97      Em conformidade com o artigo 69.°, n.° 4, primeiro parágrafo, deste mesmo regulamento, o Reino de Espanha e a República da Finlândia suportarão, enquanto intervenientes, as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) decide:

1)      Ao não prever, excepto nas circunstâncias previstas pelo Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na sua versão alterada e actualizada pelo Regulamento (CE) n.° 118/97 do Conselho, de 2 de Dezembro de 1996, conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 1992/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro de 2006, a possibilidade de reembolso das despesas com cuidados médicos não hospitalares, efectuadas noutro Estado‑Membro, que não implicam o recurso a equipamentos materiais pesados e dispendiosos, taxativamente enumerados na legislação nacional, ou, nos casos em que o Decreto‑Lei n.° 177/92, de 13 de Agosto de 1992, que fixa os requisitos do reembolso das despesas médicas efectuadas no estrangeiro, reconhece a possibilidade de reembolso das despesas com os referidos cuidados, ao subordinar o seu reembolso à concessão de uma autorização prévia, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE.

2)      A República Portuguesa e a Comissão Europeia suportam as suas próprias despesas.

3)      O Reino de Espanha e a República da Finlândia suportam as suas próprias despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: português.