Language of document : ECLI:EU:C:2008:771

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

22 de Dezembro de 2008 (*)

«Transporte aéreo – Regulamento (CE) n.° 261/2004 – Artigo 5.° – Indemnização e assistência aos passageiros em caso de cancelamento de um voo – Isenção da obrigação de indemnizar – Cancelamento devido a circunstâncias excepcionais que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis»

No processo C‑549/07,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Handelsgericht Wien (Áustria), por decisão de 30 de Outubro de 2007, entrado no Tribunal de Justiça em 11 de Dezembro de 2007, no processo

Friederike Wallentin‑Hermann

contra

Alitalia – Linee Aeree Italiane SpA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, T. von Danwitz, E. Juhász, G. Arestis e J. Malenovský (relator), juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: R. Grass,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        por F. Wallentin‑Hermann, Rechtsanwältin, litigando em causa própria,

–        em representação da Alitalia – Linee Aeree Italiane SpA, por O. Borodajkewycz, Rechtsanwalt,

–        em representação do Governo austríaco, por E. Riedl, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo grego, por S. Chala e D. Tsagkaraki, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo polaco, por M. Dowgielewicz, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo português, por L. Fernandes, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por C. Gibbs, na qualidade de agente, assistida por D. Beard, barrister,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por R. Vidal Puig e M. Vollkommer, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91 (JO L 46, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito do litígio que opõe F. Wallentin‑Hermann à Alitalia – Linee Aeree Italiane SpA (a seguir «Alitalia»), na sequência da recusa de esta última indemnizar a demandante no processo principal, cujo voo fora cancelado.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        A Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de Maio de 1999 (a seguir «Convenção de Montreal»), foi assinada pela Comunidade Europeia em 9 de Dezembro de 1999 e aprovada em seu nome pela Decisão 2001/539/CE do Conselho, de 5 de Abril de 2001 (JO L 194, p. 38). Esta convenção entrou em vigor, no que respeita à Comunidade, em 28 de Junho de 2004.

4        Os artigos 17.° a 37.° da Convenção de Montreal constituem o capítulo III da mesma, sob a epígrafe «Responsabilidade da transportadora e limites da indemnização por danos».

5        O artigo 19.° desta convenção, sob a epígrafe «Atrasos», dispõe:

«A transportadora é responsável pelo dano resultante de atraso no transporte aéreo de passageiros, bagagens ou mercadorias. Não obstante, a transportadora não será responsável pelo dano resultante de atraso se provar que ela ou os seus trabalhadores ou agentes adoptaram todas as medidas que poderiam razoavelmente ser exigidas para evitar o dano ou que lhes era impossível adoptar tais medidas.»

 Direito comunitário

6        O Regulamento n.° 261/2004 contém, nomeadamente, os seguintes considerandos:

«(1)      A acção da Comunidade no domínio do transporte aéreo deve ter, entre outros, o objectivo de garantir um elevado nível de protecção dos passageiros. Além disso, devem ser tidas plenamente em conta as exigências de protecção dos consumidores em geral.

(2)      As recusas de embarque e o cancelamento ou atraso considerável dos voos causam sérios transtornos e inconvenientes aos passageiros.

[...]

(12)      Os transtornos e inconvenientes causados aos passageiros pelo cancelamento dos voos deverão [...] ser reduzidos. Para esse efeito, as transportadoras aéreas deverão ser persuadidas a informar os passageiros sobre os cancelamentos antes da hora programada de partida e, além disso, a oferecer‑lhes um reencaminhamento razoável, por forma a permitir‑lhes tomar outras disposições. Caso assim não procedam, as transportadoras aéreas deverão indemnizar os passageiros, a menos que o cancelamento se tenha ficado a dever a circunstâncias excepcionais que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.

[…]

(14)      Tal como ao abrigo da Convenção de Montreal, as obrigações a que estão sujeitas as transportadoras aéreas operadoras deverão ser limitadas ou eliminadas nos casos em que a ocorrência tenha sido causada por circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. Essas circunstâncias podem sobrevir, em especial, em caso de instabilidade política, condições meteorológicas incompatíveis com a realização do voo em causa, riscos de segurança, falhas inesperadas para a segurança do voo e greves que afectem o funcionamento da transportadora aérea.

(15)      Considerar‑se‑á que existem circunstâncias extraordinárias sempre que o impacto de uma decisão de gestão do tráfego aéreo, relativa a uma determinada aeronave num determinado dia provoque um atraso considerável, um atraso de uma noite ou o cancelamento de um ou mais voos dessa aeronave, não obstante a transportadora aérea em questão ter efectuado todos os esforços razoáveis para evitar atrasos ou cancelamentos.»

7        O artigo 5.° do Regulamento n.° 261/2004, sob a epígrafe «Cancelamento», enuncia:

«1.      Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a:

a)      Receber da transportadora aérea operadora assistência nos termos do artigo 8.°; e

b)      Receber da transportadora aérea operadora assistência nos termos da alínea a) do n.° 1 e do n.° 2 do artigo 9.°, bem como, em caso de reencaminhamento quando a hora de partida razoavelmente prevista do novo voo for, pelo menos, o dia após a partida que estava programada para o voo cancelado, a assistência especificada nas alíneas b) e c) do n.° 1 do artigo 9.°; e

c)      Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.°, salvo se:

i)      tiverem sido informados do cancelamento pelo menos duas semanas antes da hora programada de partida, ou

ii)      tiverem sido informados do cancelamento entre duas semanas e sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até duas horas antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até quatro horas depois da hora programada de chegada, ou

iii)      tiverem sido informados do cancelamento menos de sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até uma hora antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até duas horas depois da hora programada de chegada.

[…]

3.      A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.°, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.

[…]»

8        O artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 261/2004, sob a epígrafe «Direito a indemnização», dispõe:

«Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:

a)      250 euros para todos os voos até 1 500 quilómetros;

b)      400 euros para todos os voos intracomunitários com mais de 1 500 quilómetros e para todos os outros voos entre 1 500 e 3 500 quilómetros;

c)      600 euros para todos os voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b).

[…]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9        Resulta da decisão de reenvio que F. Wallentin‑Hermann reservou na Alitalia, para si, o seu marido e a sua filha, três lugares num voo com partida de Viena (Áustria) e destino a Brindisi (Itália), via Roma (Itália). A partida de Viena estava prevista para 28 de Junho de 2005, às 6.45, e a chegada a Brindisi estava prevista para o mesmo dia, às 10.35.

10      Após o check‑in, os três passageiros foram informados, cinco minutos antes da hora de partida prevista, que o seu voo tinha sido cancelado. Em seguida, foram transferidos para um voo da companhia Austrian Airlines com destino a Roma, onde chegaram às 9.40, isto é, 20 minutos depois da hora de partida da sua ligação para Brindisi, que portanto perderam. F. Wallentin‑Hermann e a sua família chegaram a Brindisi às 14.15.

11      O cancelamento do voo da Alitalia com partida de Viena deveu‑se a uma complexa avaria do motor que afectou a turbina, detectada na véspera durante uma inspecção. A Alitalia foi informada na noite anterior a esse voo, à 1 hora. A reparação da aeronave, que obrigou ao envio de peças sobressalentes e à deslocação de técnicos, ficou concluída em 8 de Julho de 2005.

12      F. Wallentin‑Hermann reclamou à Alitalia uma indemnização de 250 euros, nos termos do artigo 5.°, n.° 1, alínea c), e 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 261/2004, pelo cancelamento do seu voo, bem como 10 euros de despesas de telefone. A Alitalia recusou este pedido.

13      No âmbito da acção judicial que F. Wallentin‑Hermann então propôs, o Bezirksgericht für Handelssachen Wien (tribunal de círculo em matéria comercial de Viena) julgou procedente o seu pedido de indemnização, nomeadamente com o fundamento de que os problemas técnicos que afectaram o aparelho em causa não estavam abrangidos pelas «circunstâncias extraordinárias» que isentam da obrigação de indemnizar, previstas no artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004.

14      A Alitalia recorreu desta decisão para o Handelsgericht Wien (tribunal de comércio de Viena), que decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

«1)      Um problema técnico numa aeronave, em particular uma avaria num reactor, de que resulta o cancelamento de um voo, pode constituir uma circunstância extraordinária na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento [...] n.° 261/2004 [...], tendo em conta o seu [décimo quarto] considerando [...], e os motivos de justificação, nos termos do artigo 5.°, n.° 3, do mesmo regulamento, devem ser interpretados na acepção das disposições da Convenção de Montreal (artigo 19.°)?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: [no caso de] transportadoras aéreas [que] cancel[am] voos [...] com uma frequência superior à média, invocando problemas técnicos, [constitui uma] circunstânci[a] extraordinári[a], na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do [Regulamento n.° 261/2004], [a mera] frequência desses cancelamentos?

3)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: pode considerar‑se que uma transportadora aérea tomou todas as «medidas razoáveis», nos termos do artigo 5.°, n.° 3, do [Regulamento n.° 261/2004], no caso de demonstrar que cumpriu as exigências mínimas previstas por lei no que se refere à manutenção da aeronave, sendo esta circunstância suficiente para exonerar a transportadora aérea da obrigação de indemnizar, prevista no artigo 5.°, em conjugação com o artigo 7.° [desse] regulamento?

4)      Em caso de resposta negativa à primeira questão: constituem circunstâncias extraordinárias, na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do [Regulamento n.° 261/2004], casos de força maior ou fenómenos naturais que não correspondem a problemas técnicos e que, como tal, são alheios à transportadora aérea?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira e quarta questões

15      Com as suas primeira e quarta questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional pergunta, no essencial, se o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, lido à luz do décimo quarto considerando desse regulamento, deve ser interpretado no sentido de que um problema técnico detectado numa aeronave e que implica o cancelamento de um voo se enquadra no conceito de «circunstâncias extraordinárias», na acepção dessa disposição, ou se, inversamente, esse conceito abrange situações de outra natureza que não são imputáveis a problemas técnicos. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta igualmente se há que interpretar os motivos de justificação, a que a mesma disposição se refere, em conformidade com o disposto na convenção de Montreal, em particular com o disposto no seu artigo 19.°

16      Refira‑se que o conceito de circunstâncias extraordinárias não figura entre os que estão definidos no artigo 2.° do Regulamento n.° 261/2004. Esse conceito tão‑pouco é definido nos outros artigos do referido regulamento.

17      É jurisprudência constante que a determinação do significado e do alcance dos termos para os quais o direito comunitário não fornece nenhuma definição deve fazer‑se de acordo com o sentido habitual destes na linguagem comum, tendo em atenção o contexto em que são utilizados e os objectivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte. Além disso, quando esses termos figuram numa disposição que constitui uma derrogação a um princípio ou, mais especificamente, a normas comunitárias que se destinam a proteger os consumidores, devem ser lidos de modo a permitir uma interpretação estrita dessa disposição (v., neste sentido, acórdão de 10 de Março de 2005, easyCar, C‑336/03, Colect., p. I‑1947, n.° 21 e jurisprudência referida). Além disso, o preâmbulo de um acto comunitário é susceptível de precisar o conteúdo deste (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão de 10 de Janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C‑344/04, Colect., p. I‑403, n.° 76).

18      A este respeito, os objectivos prosseguidos pelo artigo 5.° do Regulamento n.° 261/2004, que fixa as obrigações que incumbem à transportadora aérea operadora nos casos de cancelamento de um voo, resultam claramente do primeiro e segundo considerandos desse regulamento, nos termos dos quais a acção da Comunidade no domínio dos transportes aéreos deve ter, entre outros, o objectivo de garantir um elevado nível de protecção dos passageiros e deve ter em conta as exigências de protecção dos consumidores em geral, porquanto o cancelamento dos voos causa sérios inconvenientes aos passageiros (v., neste sentido, acórdão IATA e ELFAA, já referido, n.° 69).

19      Como resulta do décimo segundo considerando e do artigo 5.° do Regulamento n.° 261/2004, o legislador comunitário pretendeu reduzir os transtornos e inconvenientes causados aos passageiros pelo cancelamento de voos, incitando as transportadoras aéreas a anunciá‑los com antecedência e, em certas circunstâncias, a propor um reencaminhamento pautado por determinados critérios. Na hipótese de essas medidas não poderem ser tomadas pelas referidas transportadoras, o legislador quer que estas indemnizem os passageiros, a menos que o cancelamento se tenha ficado a dever a circunstâncias excepcionais que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.

20      Neste contexto, é patente que, embora o artigo 5.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 261/2004 estabeleça o princípio do direito dos passageiros a indemnização em caso de cancelamento de um voo, o n.° 3 do mesmo artigo, que determina as condições em que a transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar essa indemnização, deve ser visto como uma excepção a esse princípio. Logo, esta última disposição deve ser objecto de interpretação estrita.

21      A este respeito, o legislador comunitário indicou, como resulta do décimo quarto considerando do Regulamento n.° 261/2004, que essas circunstâncias podem ocorrer, em especial, em caso de instabilidade política, condições meteorológicas incompatíveis com a realização do voo em causa, riscos de segurança, falhas inesperadas para a segurança do voo e greves que afectem o funcionamento da transportadora aérea.

22      Resulta dessa indicação no preâmbulo do Regulamento n.° 261/2004 que o legislador comunitário não considerou que esses eventos, cuja lista, aliás, é apenas exemplificativa, constituem em si mesmos circunstâncias extraordinárias, mas apenas que são susceptíveis de produzir semelhantes circunstâncias. Daí resulta que todas as circunstâncias que rodeiam esses eventos não são necessariamente causas de isenção da obrigação de indemnizar prevista no artigo 5.°, n.° 1, alínea c), desse regulamento.

23      Embora o legislador tenha feito constar da referida lista as «falhas inesperadas para a segurança do voo» e se possa considerar que um problema técnico detectado na aeronave constitui uma dessas falhas, a verdade é que as circunstâncias que rodeiam esse evento só podem ser qualificadas de «extraordinárias», na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, se estiverem relacionadas com um evento que, à semelhança dos enumerados no décimo quarto considerando desse regulamento, não seja inerente ao exercício normal da actividade da transportadora aérea em causa e que, devido à sua natureza ou à sua origem, escape ao controlo efectivo desta última.

24      Ora, atendendo às condições específicas em que é efectuado o transporte aéreo e ao grau de sofisticação tecnológica das aeronaves, há que reconhecer que as transportadoras aéreas, no exercício da sua actividade, são habitualmente confrontadas com diversos problemas técnicos provocados inevitavelmente pelo funcionamento desses aparelhos. Aliás, é para evitar esses problemas e prevenir incidentes que ponham em causa a segurança dos voos que esses aparelhos são sujeitos a inspecções regulares, particularmente rigorosas, que fazem parte das condições correntes de exploração das empresas de transporte aéreo. Assim, a resolução de um problema técnico originado por uma falha na manutenção de um aparelho deve ser considerada inerente ao exercício normal da actividade da transportadora aérea.

25      Consequentemente, problemas técnicos revelados quando da manutenção das aeronaves ou devidos a uma falha nessa manutenção não podem constituir, enquanto tais, «circunstâncias extraordinárias» a que se refere o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004.

26      Todavia, não se pode excluir que problemas técnicos constituam essas circunstâncias extraordinárias, desde que decorram de eventos não inerentes ao exercício normal da actividade da transportadora aérea em causa e que escapem ao controlo efectivo desta última. É o que sucede, por exemplo, na situação em que o construtor dos aparelhos da frota da transportadora aérea em causa ou uma autoridade competente revela, quando esses aparelhos já estão ao serviço, que os mesmos têm um defeito de fabrico oculto que afecta a segurança dos voos. O mesmo vale para os danos causados às aeronaves por actos de sabotagem ou de terrorismo.

27      Compete, pois, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se os problemas técnicos registados pela transportadora aérea implicada no processo principal decorreram de eventos que não são inerentes ao exercício normal da actividade da transportadora aérea em causa e escapavam ao controlo efectivo desta última.

28      Quanto à questão de saber se há que interpretar a causa de isenção enunciada no artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 em consonância com o disposto na Convenção de Montreal, em especial no seu artigo 19.°, refira‑se que essa convenção faz parte integrante da ordem jurídica comunitária. Por outro lado, resulta do artigo 300.°, n.° 7, CE que as instituições da Comunidade estão vinculadas pelos acordos celebrados por esta e, por conseguinte, que esses acordos primam sobre os actos de direito comunitário derivado (v. acórdão de 10 de Julho de 2008, Emirates Airlines, C‑173/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 43).

29      Nos termos do artigo 19.° da Convenção de Montreal, uma transportadora pode ser isenta de responsabilidade pelo dano resultante de atraso «se provar que ela ou os seus trabalhadores ou agentes adoptaram todas as medidas que poderiam razoavelmente ser exigidas para evitar o dano ou que lhes era impossível adoptar tais medidas».

30      A este respeito, há que salientar que o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 faz referência ao conceito de «circunstâncias extraordinárias», ao passo que este não aparece no artigo 19.° da Convenção de Montreal nem noutra disposição desta última.

31      Importa ainda referir que o mesmo artigo 19.° diz respeito aos atrasos, ao passo que o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 trata dos casos de cancelamento de voos.

32      Além disso, como resulta dos n.os 43 a 47 do acórdão IATA e ELFAA, já referido, o artigo 19.° da Convenção de Montreal e o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 situam‑se em contextos diferentes. Com efeito, os artigos 19.° e seguintes da dita convenção regem as condições em que, no caso de atraso num voo, os passageiros interessados podem propor acções destinadas a obter a reparação individualizada dos danos. Em contrapartida, o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 prevê medidas de reparação uniformes e imediatas. Por conseguinte, essas medidas, independentes daquelas cujas condições de exercício são fixadas pela Convenção de Montreal, têm lugar a montante desta. Daqui resulta que as causas de isenção da responsabilidade da transportadora aérea, previstas no artigo 19.° da referida convenção, não podem ser indistintamente transpostas para o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004.

33      Nestas condições, a Convenção de Montreal não pode determinar a interpretação das causas de isenção previstas no referido artigo 5.°, n.° 3.

34      Face ao exposto, há que responder à primeira e quarta questões submetidas que o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que um problema técnico detectado numa aeronave e que implica o cancelamento de um voo não se enquadra no conceito de «circunstâncias extraordinárias», na acepção dessa disposição, salvo se esse problema decorrer de eventos que, pela sua natureza ou a sua origem, não sejam inerentes ao exercício normal da actividade da transportadora aérea em causa e escapem ao seu controlo efectivo. A Convenção de Montreal não é determinante para a interpretação das causas de isenção visadas no artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004.

 Quanto à segunda questão

35      Atendendo a todas as questões submetidas, há que considerar que, com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a mera frequência dos problemas técnicos exclui que estes constituam «circunstâncias extraordinárias», na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, quando as transportadoras aéreas cancelem voos com frequência superior à média, devido a esses problemas.

36      Como se disse no n.° 27 do presente acórdão, compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se os problemas técnicos invocados pela transportadora aérea em causa no processo principal decorrem de eventos que não são inerentes ao exercício normal da sua actividade e escapam ao seu controlo efectivo. Resulta deste enunciado que a frequência dos problemas técnicos verificada numa transportadora aérea não é, per se, um elemento que permita concluir pela presença ou não de «circunstâncias extraordinárias», na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004.

37      Face ao exposto, há que responder à segunda questão prejudicial submetida que a frequência dos problemas técnicos verificada numa transportadora aérea não é, per se, um elemento que permita concluir pela presença ou não de «circunstâncias extraordinárias», na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004.

 Quanto à terceira questão

38      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se há que considerar que uma transportadora aérea tomou «todas as medidas razoáveis», na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, se provar que cumpriu as exigências legais mínimas de manutenção da aeronave cujo voo foi cancelado, e se estes elementos de prova bastam para exonerar a referida transportadora da sua obrigação de indemnizar, prevista nos artigos 5.°, n.° 1, alínea c), e 7.°, n.° 1, desse regulamento.

39      Importa observar que o legislador comunitário não pretendeu atribuir carácter de isenção da obrigação de indemnizar os passageiros em caso de cancelamento de um voo a todas as circunstâncias extraordinárias, mas somente àquelas que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.

40      Uma vez que nem todas as circunstâncias extraordinárias isentam de responsabilidade, conclui‑se que quem as pretende invocar é que tem o ónus de provar, além disso, que, em todo o caso, não poderiam ter sido evitadas através de medidas adaptadas à situação, isto é, através de medidas que, no momento em que ocorreram essas circunstâncias extraordinárias, respondiam nomeadamente às condições técnica e economicamente suportáveis para a transportadora aérea em causa.

41      Com efeito, esta deve provar que, mesmo que tivesse lançado mão de todos os recursos humanos, materiais e financeiros de que dispunha, manifestamente, não poderia ter evitado que as circunstâncias extraordinárias com que foi confrontada levassem ao cancelamento do voo, a não ser à custa de sacrifícios insuportáveis face às capacidades da sua empresa no momento relevante.

42      Compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, nas circunstâncias do processo principal, a transportadora aérea em causa tomou as medidas adaptadas à situação, isto é, as medidas que, no momento em que ocorreram as circunstâncias extraordinárias cuja existência tem de demonstrar, respondiam, nomeadamente, a condições técnica e economicamente suportáveis para a referida transportadora.

43      Face ao exposto, há que responder à terceira questão submetida que o facto de uma transportadora aérea ter cumprido as regras mínimas de manutenção de uma aeronave não basta, por si só, para provar que essa transportadora tomou «todas as medidas razoáveis», na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, e, consequentemente, para exonerar a referida transportadora da sua obrigação de indemnizar, prevista nos artigos 5.°, n.° 1, alínea c), e 7.°, n.° 1, desse regulamento.

 Quanto às despesas

44      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

1)      O artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91, deve ser interpretado no sentido de que um problema técnico detectado numa aeronave e que implica o cancelamento de um voo não se enquadra no conceito de «circunstâncias extraordinárias», na acepção dessa disposição, salvo se esse problema decorrer de eventos que, pela sua natureza ou a sua origem, não sejam inerentes ao exercício normal da actividade da transportadora aérea em causa e escapem ao seu controlo efectivo. A Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de Maio de 1999, não é determinante para a interpretação das causas de isenção visadas no artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004.

2)      A frequência dos problemas técnicos verificada numa transportadora aérea não é, per se, um elemento que permita concluir pela presença ou não de «circunstâncias extraordinárias», na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004.

3)      O facto de uma transportadora aérea ter cumprido as regras mínimas de manutenção de uma aeronave não basta, por si só, para provar que essa transportadora tomou «todas as medidas razoáveis», na acepção do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 261/2004, e, consequentemente, para exonerar a referida transportadora da sua obrigação de indemnizar, prevista nos artigos 5.°, n.° 1, alínea c), e 7.°, n.° 1, desse regulamento.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.