Language of document : ECLI:EU:C:2011:63

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 10 de Fevereiro de 2011 (1)

Processo C‑272/09 P

KME Germany AG, anteriormente KM Europa Metal AG

KME France SAS, anteriormente Tréfimétaux SA

KME Italy SpA, anteriormente Europa Metalli SpA

contra

Comissão

«Recurso de decisão do Tribunal Geral – Concorrência – Acordo de fixação dos preços e de repartição dos mercados – Factores a levar em conta no cálculo das coimas – Alcance da competência do Tribunal Geral – Fiscalização jurisdicional efectiva»





Três empresas associadas participaram, juntamente com outras empresas, em acordos de fixação de preços e de repartição do mercado e em práticas concertadas no mercado dos tubos industriais de cobre, proibidas pelo artigo 81.° CE (actual artigo 101.° TFUE), tendo‑lhes sido aplicada uma coima pela Comissão.

1.        Para o cálculo das coimas, a Comissão teve em consideração os critérios estabelecidos nas suas próprias orientações e outras circunstâncias agravantes e atenuantes.

2.        As empresas em questão recorreram para o Tribunal Geral (2), pedindo uma redução significativa das coimas que lhes foram aplicadas, alegando cinco erros específicos na determinação dos seus montantes.

3.        Foi negado provimento ao seu recurso na íntegra (3) e vêm agora interpor recurso para o Tribunal de Justiça, invocando cinco fundamentos, dos quais os primeiros quatro correspondem aos primeiros quatro fundamentos que apresentaram em primeira instância. Porém, o quinto fundamento suscita a questão mais vasta da extensão e da natureza da fiscalização que deveria ter sido exercida pelo Tribunal Geral no exercício da sua competência de plena jurisdição no respeitante às sanções pecuniárias.

 Quadro jurídico

 Direitos do homem e direitos fundamentais

4.        O artigo 6.°, n.° 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (a seguir «CEDH») dispõe designadamente que:

«Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela […]».

5.        O artigo 6.°, n.os 2 e 3, prevê garantias adicionais específicas para quem for «acusad[o] de uma infracção», incluindo a presunção de inocência e o acesso a diversas vias que assegurem a sua defesa.

6.        O artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») (4), intitulado «Direito à acção e a um tribunal imparcial» dispõe designadamente que:

«Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma acção perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.

Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei […]».

7.        A nota explicativa relativa a este artigo indica designadamente que o segundo parágrafo corresponde ao n.° 1 do artigo 6.° da CEDH, especificando que:

«No direito da União, o direito a julgamento imparcial não se aplica apenas a litígios relativos a direitos e obrigações do foro civil. É uma das consequências do facto de a União ser uma comunidade de direito, tal como estabelecido pelo Tribunal de Justiça no processo 294/83, Os Verdes contra Parlamento Europeu (acórdão de 23 de Abril de 1986, Colect., 1986, p. 1339). Porém, com excepção do seu âmbito de aplicação, as garantias dadas pela CEDH são aplicadas de modo similar na União.»

8.        O artigo 49.° da Carta intitula‑se «Princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas». Relativamente às penas, o n.° 3 do artigo 49.° dispõe que: «As penas não devem ser desproporcionadas em relação à infracção». Segundo a nota explicativa, tal «retoma o princípio geral da proporcionalidade dos delitos e das penas consagrado pelas tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros e pela jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias […]»

9.        O artigo 51.° da Carta, que define o seu âmbito de aplicação, enuncia que:

«As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respectivas competências» (5).

 Disposições do Tratado

10.      O artigo 81, n.° 1, CE (actualmente, após ligeira alteração, artigo 101.°, n.° 1, TFUE), prevê que:

«São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados‑Membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que consistam em:

(a)      Fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transacção;

[…]

(c)      Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;

[…]».

11.      O artigo 229.° CE (actualmente, após ligeira alteração, artigo 261.° TFUE), prevê que:

«No que respeita às sanções neles previstas, os regulamentos adoptados em conjunto pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, e pelo Conselho, por força das disposições dos Tratados, podem atribuir plena jurisdição ao Tribunal de Justiça da União Europeia.»

12.      Em termos mais gerais, o artigo 230.° CE (actualmente, após alteração, artigo 263.°, TFUE) atribui ao Tribunal de Justiça competência para fiscalizar a legalidade dos actos das instituições, incluindo a Comissão, «com fundamento em incompetência, violação de formalidades essenciais, violação dos Tratados ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação, ou em desvio de poder.»

13.      Segundo o artigo 225.°, n.° 1, CE (actualmente, após alteração, artigo 256, n.° 1.°, TFUE), o Tribunal Geral tem em princípio competência para conhecer em primeira instância destes recursos, sem prejuízo do direito de interpor recurso da sua decisão para o Tribunal de Justiça, limitado às questões de direito.

 Aplicação do direito da concorrência

14.      O artigo 15.° do Regulamento n.° 17 (6), que era aplicável no momento dos factos, prevê designadamente que:

«2.      A Comissão pode, mediante decisão, aplicar às empresas e associações de empresas multas de mil unidades de conta, no mínimo, a um milhão de unidades de conta [(7)], podendo este montante ser superior desde que não exceda dez por centro do volume de negócios realizado, durante o exercício social anterior, por cada uma das empresas que tenha participado na infracção sempre que, deliberada ou negligentemente:

a)      Cometam uma infracção ao disposto no n.° 1 do artigo 85.° ou no artigo 86.° do Tratado, ou

[...]

Para determinar o montante da multa, deve tomar‑se em consideração, além da gravidade da infracção, a duração da mesma.

[...]

4.      As decisões tomadas por força dos n.os 1 e 2 não têm natureza penal [(8)].»

15.      O artigo 17.° do Regulamento n.° 17 prevê que:

«O Tribunal de Justiça decidirá com plena jurisdição, na acepção do artigo [229.° CE/261.° TFUE], os recursos interpostos das decisões em que tenha sido fixada uma multa ou uma adstrição pela Comissão; o Tribunal pode suprimir, reduzir ou aumentar a multa ou a adstrição aplicadas» (9).

16.      Igualmente aplicáveis no momento dos factos eram as orientações para o cálculo das coimas de 1998 (a seguir «orientações») (10). No seu preâmbulo, previam, designadamente que:

«Os princípios enunciados nas presentes orientações deverão permitir assegurar a transparência e o carácter objectivo das decisões da Comissão, quer em relação às empresas, quer em relação ao Tribunal de Justiça, reafirmando, simultaneamente, a margem de discricionariedade deixada pelo legislador à Comissão em matéria de fixação de coimas, no limite de 10% do volume de negócios global das empresas. Esta margem de discricionariedade deverá, contudo, ser exercida segundo uma linha de política coerente e não discriminatória, adaptada aos objectivos prosseguidos pela repressão das infracções às regras de concorrência.

A nova metodologia aplicável ao montante das coimas pautar‑se‑á doravante pelo esquema a seguir apresentado que se baseia na fixação de um montante de base ajustado através de majorações, para ter em conta circunstâncias agravantes, e de diminuições, para ter em conta circunstâncias atenuantes [(11)].»

17.      O ponto 1 das orientações especifica que o montante de base é determinado em função da gravidade e da duração da infracção que constituem os únicos critérios referidos no n.° 2 do artigo 15.° do Regulamento n.° 17.

18.      No tocante à gravidade, convém, nos termos do n.° 1, ponto A, ter em consideração o carácter da própria infracção, «o seu impacto concreto no mercado quando este for quantificável» e a dimensão do mercado geográfico de referência. Estavam previstas três categorias: infracções pouco graves, infracções graves e infracções muito graves, abrangendo estas últimas restrições horizontais de tipo cartel de preços e quotas de repartição dos mercados, merecendo «montantes previstos» superiores a 20 milhões de euros. Seria também possível «diferenciar o tratamento a aplicar às empresas em função da natureza das infracções cometidas» e necessário «tomar em consideração a capacidade económica efectiva dos autores da infracção de causarem um prejuízo importante aos outros operadores, nomeadamente aos consumidores, e determinar um montante que assegure que a coima apresenta um carácter suficientemente dissuasivo.»

19.      Relativamente à duração, o n.° 1, ponto B, estabelecia uma distinção entre infracções de curta duração (em geral, inferiores a um ano), não merecedoras de um montante adicional para além do montante da coima considerado em relação à gravidade; de média duração (geralmente, entre um a cinco anos), conduzindo a um aumento de até 50% desse montante; e de longa duração (em geral, mais do que cinco anos), determinando um aumento «fixado em cada ano em 10%» (12). O montante determinado em função da gravidade e o montante determinado em função da duração formam, no seu conjunto, o montante de base da coima aplicada.

20.      O n.° 2 estabelecia que este montante de base seria aumentado em função de circunstâncias agravantes específicas, como, designadamente, a reincidência da ou das mesmas empresas relativamente a uma infracção do mesmo tipo.

21.      O n.° 3 determinava que o montante de base poderia ser diminuído em função de circunstâncias atenuantes específicas, como, por exemplo, a não aplicação efectiva dos acordos ou práticas ilícitos (segundo travessão), o facto de ter posto termo às infracções desde as primeiras intervenções da Comissão (nomeadamente verificações) (terceiro travessão), a colaboração efectiva da empresa no processo fora do âmbito de aplicação da comunicação da Comissão «sobre a cooperação» de 1996 (sexto travessão) (13).

22.      Esta última comunicação especifica as condições em que não será aplicada uma coima às empresas que cooperem com a Comissão durante o seu inquérito sobre um cartel ou as condições em que poderão beneficiar da redução da coima que, em princípio, lhes seria aplicada.

23.      O n.° 4 do título A da comunicação sobre a cooperação prevê que: «A Comissão considera que é do interesse da Comunidade fazer beneficiar de um tratamento favorável as empresas que com ela cooperem nas condições a seguir definidas. Para os consumidores e cidadãos em geral, a detecção e proibição de tais práticas reveste‑se de maior interesse do que a aplicação de coimas às empresas que, cooperando com a Comissão, lhe permitem detectar e sancionar tais práticas ou que a ajudam nesta tarefa.» Os títulos B, C e D identificam com pormenor o tipo de comportamentos que permitem que uma empresa que participou em actividades anticoncorrenciais possa, apesar de tal, beneficiar de um tratamento clemente. Têm a seguinte redacção:

«B.      NÃO APLICAÇÃO OU REDUÇÃO MUITO SUBSTANCIAL DA COIMA

Uma empresa que:

a)      Denuncie um acordo, decisão ou prática concertada secretos à Comissão antes desta ter procedido a uma verificação, após ter adoptado a pertinente decisão, nas empresas envolvidas no acordo, decisão ou prática concertada e sem que a Comissão disponha previamente de informações suficientes para provar a existência do acordo, decisão ou prática concertada denunciados;

b)      Seja a primeira a produzir elementos determinantes que provem a existência do acordo, decisão ou prática concertada;

c)      Ponha termo à sua participação na actividade ilícita o mais tardar no momento em que denuncia o acordo, decisão ou prática concertada;

d)      Apresente à Comissão todas as informações úteis, bem como toda a documentação e provas de que dispõe sobre o caso, mantendo uma cooperação permanente e total durante toda a investigação;

e)      Não tenha coagido outra empresa a participar no acordo, decisão ou prática concertada nem tenha desempenhado um papel de instigação ou determinante na actividade ilícita,

beneficiará de uma redução de, pelo menos, 75% do montante da coima que lhe teria sido aplicada se não se propusesse cooperar, podendo inclusivamente ser totalmente isentada da mesma.

C.      REDUÇÃO SUBSTANCIAL DA COIMA

Uma empresa que, preenchendo as condições descritas no ponto B, alíneas b) a e) supra, denuncie um acordo, decisão ou prática concertada secretos depois de a Comissão ter procedido a uma verificação, após ter adoptado a pertinente decisão, em qualquer das empresas envolvidas no acordo, decisão ou prática concertada sem que essa verificação tenha podido constituir uma base suficiente para justificar o início do processo com vista à tomada de uma decisão, beneficiará de uma redução de 50% a 75% do montante da coima.

D.       REDUÇÃO SIGNIFICATIVA DA COIMA

1.      A partir do momento em que uma empresa se propõe cooperar sem se encontrarem preenchidas todas as condições expostas nos pontos B ou C, a mesma beneficiará de uma redução de 10% a 50% do montante da coima que lhe teria sido aplicada na falta da sua cooperação.

2.      Esta situação pode verificar‑se, nomeadamente, se:

–      uma empresa, antes do envio de uma comunicação de acusações, fornecer à Comissão informações, documentação ou outras provas que contribuam para confirmar a existência da infracção,

–      uma empresa, após ter recebido a comunicação de acusações, informar a Comissão de que não contesta a materialidade dos factos em que a Comissão baseia as suas acusações.»

 Aplicação e determinação das coimas no presente caso

24.      Em 16 de Dezembro de 2003, na sequência de diversos inquéritos, a Comissão adoptou a decisão (14) e constatou que seis empresas – Wieland Werke AG (a seguir «Wieland»), Outokumpu Oyj, Outokumpu Copper Products OY (a seguir, conjuntamente, «Outokumpu»), KM Europa Metal AG (a seguir «KME Germany»), Europa Metalli SpA (a seguir «KME Italy») e Tréfimétaux SA (a seguir «KME France») – violaram as disposições do artigo 81.°, n.° 1, CE e – desde 1 de Janeiro de 1994 – o artigo 53.°, n.° 1, do Acordo EEE por terem participado, entre 3 de Maio de 1988 e 22 de Março de 2001, numa série de acordos e de práticas concertadas que consistiram em fixar os preços e em partilhar os mercados entre si no sector dos tubos industriais. A KME Germany, a KME France e a KME Italy (que desde 1995 fazem parte do grupo KME e que a seguir são denominadas conjuntamente «KME») eram as recorrentes na primeira instância e são também as recorrentes no presente recurso.

25.      Foram aplicadas à KME (15) coimas no montante total de 39,81 milhões de euros. O processo seguido pela Comissão para fixar os montantes em causa foi resumido do seguinte modo nos n.os 11 a 22 do acórdão recorrido:

«11      No que diz respeito, em primeiro lugar, à fixação do montante de partida da coima, a Comissão considerou que a infracção, que consistia essencialmente em fixar os preços e em repartir os mercados, era, pela sua própria natureza, uma infracção muito grave (considerando 294 da decisão impugnada).

12      Para determinar a gravidade da infracção, a Comissão também levou em conta o facto de o cartel ter afectado a totalidade do território do Espaço Económico Europeu (EEE) (considerando 316 da decisão impugnada). A Comissão analisou, além disso, os efeitos reais da infracção e concluiu que o acordo, ‘globalmente, produziu efeitos no mercado’ (considerando 314 da decisão impugnada).

13      Para chegar a esta última conclusão, baseou‑se, nomeadamente, nos seguintes indícios. Em primeiro lugar, debruçou‑se sobre a execução do acordo referindo‑se ao facto de os participantes terem comunicado uns aos outros os volumes de vendas e os níveis de preços (considerando 300 da decisão impugnada). Em segundo lugar, determinados elementos do processo demonstravam que os preços tinham baixado nos períodos em que o acordo colusório tinha sido pouco respeitado e tinham aumentado significativamente noutros períodos (considerando 310 da decisão impugnada). Em terceiro lugar, a Comissão fez referência à quota de mercado colectiva de 75 a 85% detida pelos membros do cartel (considerando 310 da decisão impugnada). Em quarto lugar, a Comissão verificou que as quotas de mercado respectivas dos participantes no cartel se tinham mantido relativamente estáveis durante todo o período pelo qual se prolongou a infracção, apesar de os clientes dos participantes terem por vezes mudado (considerando 312 da decisão impugnada).

14      Por último, ainda no âmbito da determinação da gravidade da infracção, a Comissão levou em conta o facto de o mercado dos tubos industriais de cobre ser um sector importante, cujo valor foi estimado em 288 milhões de euros ao nível do EEE (considerando 318 da decisão impugnada).

15      Tendo em conta todas estas circunstâncias, a Comissão concluiu que a infracção em causa devia ser considerada muito grave (considerando 320 da decisão impugnada).

16      Em segundo lugar, a Comissão procedeu a um tratamento diferenciado das empresas envolvidas, de forma a levar em consideração a capacidade económica efectiva de cada uma delas para causar um prejuízo significativo à concorrência. A este respeito, a Comissão mencionou a existência de uma diferença entre as quotas de mercado detidas no mercado dos tubos industriais no EEE, por um lado, pelo grupo KME, líder do mercado no EEE com uma quota de mercado de [confidencial]% e, por outro, pela Outokumpu e pela Wieland, que detêm, respectivamente, uma quota de mercado de [confidencial] e de 13,4%. Tendo em conta esta diferença, o montante de partida da coima aplicada à Outokumpu e à Wieland foi fixado em 33% do montante da coima aplicada ao grupo KME, ou seja, 11,55 milhões de euros para a Outokumpu e para a Wieland e 35 milhões de euros para o grupo KME (considerandos 327 e 328 da decisão impugnada).

17      Uma vez que o grupo KME foi criado em 1995, a Comissão dividiu o montante de partida da coima aplicada ao grupo, concretamente, 35 milhões de euros, em duas partes: [a] primeira para o período compreendido entre 1988 e 1995 (tendo distinguido a KME Germany da KME France e da KME Italy) e a segunda para o período compreendido entre 1995 e 2001 (tendo considerado as três entidades como um grupo). O referido montante de partida, portanto, foi repartido do seguinte modo: 8,75 milhões de euros para a KME Germany (1988 a 1995); 8,75 milhões solidariamente para a KME Italy e a KME France (1988 a 1995) e 17,50 milhões de euros para o grupo KME, ou seja, para a KME Germany, a KME France e a KME Italy solidariamente (1995 a 2001) (considerando 329 da decisão impugnada).

18      Em terceiro lugar, para responder à necessidade de fixar a coima a um nível que lhe assegurasse um efeito dissuasivo, a Comissão agravou o montante de partida da coima aplicada à Outokumpu de 50%, elevando‑o assim a 17,33 milhões de euros, por ter considerado que o seu volume de negócios mundial, superior a 5 mil milhões de euros, indicava que a mesma tinha uma dimensão e um poder económico que permitiam o referido agravamento (considerando 334 da decisão impugnada).

19      Em quarto lugar, a Comissão qualificou a duração da infracção, que se prolongou pelo período compreendido entre 3 de Maio de 1988 e 22 de Março de 2001, como ‘longa’. Assim, a Comissão considerou adequado agravar de 10% por ano de participação no cartel o montante de partida das coimas aplicadas às empresas envolvidas. Por conseguinte, a Comissão agravou de 55% o montante de partida da coima aplicada ao grupo KME para o período compreendido entre 1995 e 2001, e de 70% o montante de partida das coimas aplicadas à KME Germany, por um lado, bem como à KME Italy e à KME France, por outro, para o período compreendido entre 1988 e 1995. O montante de base das coimas foi fixado, portanto, em 56,88 milhões de euros para o grupo KME no seu todo (considerandos 338, 342 e 347 da decisão impugnada) [(16)].

20      Em quinto lugar, por efeito de circunstâncias agravantes, o montante de base da coima aplicada à Outokumpu foi agravado de 50%, por reincidência, uma vez que esta empresa foi destinatária da Decisão 90/417/CECA da Comissão, de 18 de Julho de 1990, relativa a um processo nos termos do artigo 65.° [CA] relativo ao acordo e práticas concertadas entre fabricantes europeus de produtos planos de aço inoxidável laminado a frio (JO L 220, p. 28) (considerando 354 da decisão impugnada).

21      Em sexto lugar, por efeito de circunstâncias atenuantes, a Comissão referiu que, sem a cooperação da Outokumpu, só teria podido demonstrar a existência da infracção pelo período de quatro anos e, por conseguinte, reduziu o montante de base da respectiva coima em 22,22 milhões de euros, de modo a que o montante de base correspondesse à coima que lhe teria sido aplicada por esse período de quatro anos (considerando 386 da decisão impugnada).

22      Em sétimo e último lugar, a Comissão, nos termos do título D da comunicação sobre a cooperação de 1996, procedeu a uma redução do montante das coimas de 50% para a Outokumpu, de 20% para a Wieland e de 30% para o grupo KME (considerandos 402, 408 e 423 da decisão impugnada).»

 Resumo do acórdão recorrido

26.      A petição apresentada pela KME na primeira instância intitulava‑se: «Recurso ao abrigo dos artigos 225.° e 230.° CE». Nesta, a KME pedia que o Tribunal Geral se dignasse:

–        reduzir substancialmente a coima;

–        condenar a Comissão nas despesas da KME e nas despesas em que incorreu para prestar uma garantia bancária em vez de proceder ao pagamento da coima até à prolação do acórdão do Tribunal;

–        ordenar quaisquer outras medidas que o Tribunal considerasse adequadas.

27.      As recorrentes invocaram cinco fundamentos de recurso, todos ligados à fixação do montante da coima que lhes foi aplicada. São relativos: (a) ao facto de o impacto concreto do cartel ter sido inadequadamente levado em conta para o cálculo do montante de partida da coima; (b) à avaliação inadequada da dimensão do mercado pertinente; (c) ao facto de a coima ter sido erradamente aumentada em função da duração da infracção; (d) ao facto de não terem sido aplicadas circunstâncias atenuantes; e (e) à errada aplicação da comunicação sobre a cooperação de 1996. O Tribunal Geral negou provimento a todos estes fundamentos e, consequentemente, ao recurso na sua totalidade.

28.      Quanto ao primeiro fundamento (inadequada consideração do impacto concreto do cartel), o Tribunal Geral concluiu que a Comissão tinha o direito de proceder a um tratamento diferenciado dos participantes, em função das quotas detidas no mercado de referência; que os cartéis, em especial os que têm por objecto a fixação dos preços e a repartição da clientela, são, devido à sua natureza própria, tão graves que justificam as coimas mais elevadas, independentemente do impacto no mercado; e que, «para ser exaustiva», a Comissão tinha feito prova bastante de que o cartel teve um impacto concreto no mercado em causa.

29.      No seu segundo fundamento, a KME alegou que a Comissão tinha avaliado erradamente a dimensão do mercado de produção de tubos de cobre, tendo partido do volume de negócios que incluía o custo da matéria‑prima (ou seja, o cobre), ao passo que este custo era determinado, e por vezes directamente suportado, pelo comprador; uma avaliação correcta teria tido por base o valor acrescentado pelos fabricantes. O Tribunal Geral constatou que nenhuma razão válida impunha que o volume de negócios de um mercado pertinente fosse calculado excluindo certos custos de produção e que, apesar da sua natureza aproximativa, o volume de negócios era considerado, tanto pelo legislador comunitário como pela Comissão e pelo Tribunal de Justiça, um critério adequado para apreciar a dimensão e o poder económico das empresas.

30.      Relativamente ao terceiro fundamento (errado agravamento da coima – em 10% por ano – em função da duração da infracção), o Tribunal Geral constatou que, sem confundir a gravidade e a duração da infracção, a Comissão tinha exercido a sua margem de apreciação sem se afastar das regras que impôs a si própria nas orientações e que o aumento de 125% referente a um período de doze anos e dez meses não era desproporcionado.

31.      No seu quarto fundamento, a KME alegou que, sem respeitar as suas próprias orientações, a Comissão se tinha recusado a levar em conta determinadas circunstâncias atenuantes: (i) embora não se tenha sistematicamente abstido de executar os acordos, a KME pô‑los em prática de modo limitado; (ii) a KME pôs termo à infracção, imediata e voluntariamente, depois das inspecções realizadas pela Comissão; (iii) a situação económica difícil do sector dos tubos industriais; e (iv) a KME prestou informações à Comissão que foram decisivas ou que completaram elementos probatórios que esta detinha. A respeito destes argumentos, o Tribunal Geral concluiu respectivamente que: (i) a KME não tinha adoptado um comportamento verdadeiramente concorrencial e que uma aplicação limitada não constituía um factor suficientemente atenuante; (ii) uma redução da coima por se ter posto termo às infracções, designadamente desde as primeiras intervenções da Comissão, se inseria no poder de apreciação da Comissão e dependia da sua avaliação das circunstâncias; (iii) a Comissão não era obrigada a considerar como circunstância atenuante a deficiente saúde financeira do sector em causa; e que (iv) a Comissão dispõe de uma margem de apreciação relativamente à aplicação de circunstâncias atenuantes e não a exerceu incorrectamente quando considerou que foi a Outokumpu, e não a KME, quem tinha transmitido a informação importante.

32.      No seu quinto fundamento (redução insuficiente do montante da coima nos termos da comunicação sobre a cooperação), a KME alegou que: (i) o tratamento de que beneficiaram terceiros em processos anteriores foi mais favorável; (ii) a informação transmitida pela KME deveria ter correspondido a uma redução de mais de 30%; e (iii) a Comissão violou o princípio da igualdade de tratamento quando concedeu uma redução de 50% à Outokumpu. A respeito destes argumentos, o Tribunal Geral concluiu respectivamente que: (i) o facto de a Comissão ter concedido, na sua prática decisória anterior, uma certa taxa de redução em relação a determinado comportamento não significa que tenha a obrigação de conceder a mesma redução quando aprecia um comportamento semelhante no âmbito de um procedimento administrativo posterior; (ii) só poderia ser censurado um manifesto erro de apreciação, uma vez que a Comissão beneficia de uma ampla margem de apreciação na avaliação da qualidade e da utilidade da cooperação prestada por uma empresa, nomeadamente em comparação com as contribuições de outras empresas, e que, no caso em apreço, não foi cometido tal erro manifesto; e (iii) que não houve um tratamento discriminatório, pois a KME e a Outokumpu não se encontravam em situações comparáveis.

 Fundamentos

33.      A KME invoca cinco fundamentos de recurso, que podem ser resumidos do seguinte modo.

34.      Em primeiro lugar, tendo considerado que a Comissão tinha demonstrado de modo jurídico bastante que o cartel tinha tido um impacto no mercado, um factor a ter em conta para a determinação do montante de base da coima da KME, o Tribunal Geral violou o direito da União Europeia (a seguir «UE») e fundamentou de forma ilógica e inadequada a sua decisão de julgar improcedente o primeiro fundamento. Além disso, tendo confirmado a conclusão da Comissão de que a prova econométrica da KME não demonstrava que, no seu todo, a infracção não tinha tido qualquer impacto no mercado, o Tribunal Geral desvirtuou manifestamente os factos e as provas de que dispunha.

35.      Em segundo lugar, tendo aceite a dimensão do mercado afectado pelo cartel (tubos industriais) como determinada pela Comissão, que nele incluiu o volume de negócios num mercado distinto a montante (o do cobre), apesar do facto de os participantes no cartel não estarem verticalmente integrados neste mercado a montante, o Tribunal Geral violou o direito da UE e fundamentou de modo inadequado a improcedência do segundo fundamento da KME.

36.      Em terceiro lugar, o Tribunal Geral violou o direito da UE e fundamentou o seu acórdão de modo confuso, ilógico e inadequado, tendo confirmado a relevante parte da decisão em causa e julgado improcedente o terceiro fundamento da KME, segundo o qual a Comissão tinha aplicado erradamente as orientações e infringido os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento quando impôs a percentagem máxima de aumento ao montante de partida da coima da KME em função da duração.

37.      Em quarto lugar, o Tribunal Geral violou o direito da UE quando rejeitou a quarta parte do quarto fundamento da KME e confirmou a parte da decisão na qual a Comissão recusou à KME o direito de beneficiar de uma redução da coima em virtude da cooperação fora do âmbito de aplicação da comunicação sobre a cooperação, isto em violação tanto das orientações como dos princípios da equidade e da igualdade de tratamento.

38.      Em quinto lugar, o Tribunal Geral violou o direito da UE e o direito fundamental das recorrentes a um acesso à justiça efectivo e sem entraves, por não ter examinado completa e cuidadosamente os argumentos da KME e por se ter remetido a uma deferência tendenciosa face ao poder de apreciação da Comissão.

39.      Destes fundamentos de recurso, creio que o quinto e último deve ser apreciado em primeiro lugar, uma vez que a abordagem que venha a ser seguida pelo Tribunal de Justiça sobre a questão geral do alcance, grau e natureza da fiscalização que deve ser exercida pelo Tribunal Geral neste tipo de casos influenciará a abordagem que adoptará relativamente aos quatro primeiros fundamentos de recurso, sendo que cada um destes critica uma diversa aplicação específica desta fiscalização.

 Quinto fundamento de recurso: efectividade do acesso à Justiça

 Passagens pertinentes do acórdão recorrido

40.      A KME cita as seguintes passagens do acórdão recorrido para alicerçar o seu argumento de que o Tribunal Geral «se remeteu, em medida excessiva e desrazoável, à margem de apreciação da Comissão»:

«92      [...] a gravidade da infracção é determinada com base em numerosos factores, relativamente aos quais a Comissão dispõe de uma margem de apreciação […]»

«103      [...] compete à Comissão escolher, no âmbito da sua margem de apreciação [...], a taxa de agravamento que considera dever aplicar em função da duração da infracção.»

«115      Com efeito, a adopção das orientações não retirou pertinência à jurisprudência anterior segundo a qual a Comissão dispõe de um poder de apreciação que lhe permite ter ou não ter em consideração determinados elementos quando fixa o montante das coimas que tenciona aplicar, nomeadamente em função das circunstâncias específicas do caso. Deste modo, uma vez que as orientações não prevêem de modo imperativo que circunstâncias atenuantes podem ser tidas em conta, deve‑se considerar que a Comissão conservou uma determinada margem para apreciar de uma forma global a importância de uma eventual redução do montante das coimas a título de circunstâncias atenuantes.»

«129      [...] a Comissão dispõe de uma margem de apreciação relativamente à aplicação de circunstâncias atenuantes […]»

41.      Estas passagens podem ser lidas à luz daquilo que, «a título preliminar», o Tribunal Geral recordou nos n.os 32 a 37 do acórdão recorrido, apesar de a KME não as evocar explicitamente:

«32      […] importa recordar, por um lado, que resulta dos considerandos 290 a 387 da decisão impugnada que as coimas aplicadas pela Comissão para punir a infracção foram impostas por força do artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 e, por outro lado, embora a Comissão não tenha feito expressamente referência, na decisão impugnada, às [orientações], é facto assente que determinou o montante das coimas por aplicação da metodologia definida nessas orientações.

33      As orientações, apesar de não poderem ser qualificadas como normas jurídicas, enunciam uma norma de conduta indicativa da prática a seguir de que a Comissão não se pode afastar, num caso concreto, sem apresentar justificações (v. acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, Archer Daniels Midland e Archer Daniels Midland Ingredients/Comissão, C‑397/03 P, Colect., p. I‑4429, n.° 91 e jurisprudência aí referida).

34      Consequentemente, compete ao Tribunal verificar, no âmbito da fiscalização da legalidade das coimas aplicadas pela decisão impugnada, se a Comissão exerceu o seu poder de apreciação segundo o método previsto nas orientações e, se concluir que a Comissão se afastou desse método, verificar se esse desvio se justificava e se foi devidamente fundamentado. A este respeito, importa referir que o Tribunal de Justiça confirmou a validade, por um lado, do próprio princípio das orientações e, por outro, do método nelas previsto (acórdão do Tribunal de Justiça de 28 de Junho de 2005, Dansk Rørindustri e o./Comissão, C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, Colect., p. I‑5425, n.os 252 a 255, 266, 267, 312 e 313).

35      Com efeito, a autolimitação do poder de apreciação da Comissão resultante da adopção das orientações não é incompatível com a subsistência de uma margem de apreciação substancial da Comissão. As orientações contêm diversos elementos de flexibilidade que permitem à Comissão exercer o seu poder discricionário em conformidade com as disposições do Regulamento n.° 17, tais como interpretadas pelo Tribunal de Justiça (acórdão Dansk Rørindustri e o./Comissão, já referido no n.° 34, n.° 267).

36      Por conseguinte, nos domínios em que a Comissão manteve uma margem de apreciação, por exemplo no que diz respeito à taxa de agravamento em função da duração da infracção, a fiscalização da legalidade dessas operações limita‑se à verificação da inexistência de erros manifestos de apreciação (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Julho de 2005, Scandinavian Airlines System/Comissão, T‑241/01, Colect., p. II‑2917, n.os 64 e 79).

37      A margem de apreciação da Comissão e os limites que ela lhe impõe não prejudicam, por outro lado, em princípio, o exercício, pelo juiz comunitário, da sua competência de plena jurisdição (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 8 de Julho de 2004, JFE Engineering e o./Comissão, T‑67/00, T‑68/00, T‑71/00 e T‑78/00, Colect., p. II‑2501, n.° 538), que o habilita a suprimir, reduzir ou agravar o montante da coima aplicada pela Comissão (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro de 2007, Groupe Danone/Comissão, C‑3/06 P, Colect., p. I‑1331, n.os 60 a 62; acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 21 de Outubro de 2003, General Motors Nederland e Opel Nederland/Comissão, T‑368/00, Colect., p. II‑4491, n.° 181).»

 Resumo das alegações

 Recurso da KME

42.      A KME critica ao Tribunal Geral não ter realizado uma análise aprofundada e rigorosa dos argumentos que apresentou em primeira instância e a «excessiva deferência» ao poder discriminatório da Comissão que conduziram à confirmação de uma coima desproporcionada. Na perspectiva da KME, esta abstenção viola o direito fundamental a uma cabal, efectiva e equitativa fiscalização da legalidade da decisão em causa por um tribunal imparcial e independente.

43.      O direito da concorrência da União é forjado pela interacção entre a Comissão, no desempenho das suas missões de investigação, acusação e decisão, e o poder judicial, que assegura uma fiscalização externa. Porém, a jurisprudência nunca esclareceu o significado exacto, o alcance ou a lógica da margem de apreciação concedida à Comissão em função do equilíbrio institucional entre os dois poderes.

44.      O estado desta interacção tem sido influenciado pela evolução do papel da Comissão na aplicação da política da concorrência desde que foi adoptado o Regulamento n.° 17. Em 1962, a CEE era constituída por seis Estados‑Membros e o direito europeu da concorrência era pouco conhecido e estava mal firmado. As notificações constituíram uma fonte útil de informação, pois permitiram à Comissão exercer um controlo a priori e formar a sua política de implementação; tiveram principalmente como função educar e proporcionar segurança jurídica através da adopção de decisões formais de isenção, de decisões de arquivamento e de decisões de autorização. Apesar de a Comissão já fazer uso à época dos poderes de investigação, de acusação e de decisão, os inquéritos e as acusações eram relativamente raros e as coimas eram normalmente de montante pouco elevado. Neste contexto, era perfeitamente razoável, lógico e equitativo que o Tribunal de Justiça tivesse declarado, como fez no seu acórdão Consten e Grundig (17) que, uma vez que o exercício dos poderes da Comissão implicava necessariamente apreciações complexas de natureza económica, a fiscalização jurisdicional destas apreciações devia respeitar este carácter, limitando‑se ao exame da veracidade dos factos e das qualificações jurídicas a que procedeu a Comissão. Acresce que a moderação da Comissão tornava menos crucial a questão da definição de limites claros ao exercício dos seus poderes em matéria de aplicação de coimas.

45.      Todavia, seria arbitrário, perigoso e injusto aplicar a mesma «deferência judicial» à margem de apreciação da Comissão no âmbito do actual regime de aplicação do direito da concorrência da União, caracterizado por coimas cada vez mais avultadas que têm um inevitável impacto económico e financeiro nas empresas, accionistas e empregados e que conduzem a uma «criminalização» de facto do direito da concorrência. As regras da concorrência da União são directamente aplicáveis e não deixam qualquer margem para uma apreciação discricionária de natureza política no momento da sua interpretação e aplicação, pelo que os tribunais, quando fiscalizam a sua aplicação por parte da Comissão num caso específico, só estão obrigados a um grau muito reduzido de «deferência».

46.      Em conformidade com o regime actual introduzido pelo Regulamento n.° 1/2003, o artigo 101.° TFUE, no seu todo, é presentemente aplicado não só pela Comissão, mas também pelas autoridades nacionais da concorrência e pelos tribunais nacionais. Nunca ninguém sugeriu que, ao aplicar o artigo 101.° TFUE a casos individuais, um tribunal nacional dispõe de uma ampla margem de apreciação que um tribunal superior deva respeitar em sede de recurso.

47.      A perícia da Comissão na avaliação de uma matéria de facto complexa e/ou de questões económicas não pode justificar que lhe seja reconhecida uma ampla margem de discricionariedade na aplicação do direito da concorrência da União. Seria melhor afirmar que compete ao Tribunal Geral proceder a um escrutínio mais aprofundado nos casos complexos, por força do mandato que lhe foi conferido em reacção às críticas de que a intensidade da fiscalização da legalidade até então exercida já não correspondia aos padrões que se exigem de um regime jurídico, o qual tinha começado a lesar significativamente os direitos individuais com a sua aplicação de um modo demasiado rigoroso das regras da concorrência. Acresce que tanto o Tribunal Geral como o Tribunal de Justiça empreenderam frequentemente, ambos com sucesso, fiscalizações da legalidade particularmente intensas em casos complexos. A intensidade da fiscalização do Tribunal Geral não diminui com a complexidade dos factos em questão, mas depende da sua apreciação do tipo de exame necessário e adequado, tendo em conta as circunstâncias de cada caso concreto.

48.      Além disso, o Tribunal Geral dispõe de competência de plena jurisdição nos recursos interpostos das penas aplicadas nos casos de concorrência. No exercício desta competência, não deve reconhecer à Comissão qualquer margem de apreciação no que respeita ao carácter adequado e proporcional de uma coima ou ao método utilizado para o seu cálculo – a fortiori, atendendo à natureza de facto penal de tais coimas e à exigência, imposta pela CEDH, de uma fiscalização efectiva da legalidade de qualquer decisão administrativa que aplique uma sanção penal. Portanto, o Tribunal Geral tem o dever de examinar o modo como a Comissão apreciou a gravidade e a duração da conduta ilícita em cada caso concreto e pode substituir esta apreciação pela sua, anulando, reduzindo ou aumentando a coima. O exercício efectivo desta competência de plena jurisdição implica a fiscalização, não apenas da legalidade formal da coima, mas também do seu carácter adequado, através de uma apreciação independente da gravidade da conduta a punir e do carácter equitativo da sanção no seu todo, tendo em conta todas as circunstâncias específicas do caso concreto.

49.      O alcance da margem de apreciação da Comissão (a existir) em casos análogos ao presente deve ser estritamente definido e o grau de deferência judicial (na medida em que exista) relativamente a esta apreciação discricionária deve ser limitado de modo correspondente. A natureza técnica de um determinado caso não deve implicar que o Tribunal de Justiça negligencie o seu dever de zelar pelo respeito do direito.

50.      Questão diversa é a de saber se a fiscalização prevista pelo sistema judicial da UE é suficientemente aprofundada e intensa para assegurar o grau de protecção exigido pelo artigo 6.°, n.° 1, da CEDH. O debate sobre esta questão tornou‑se mais intenso à luz não apenas da conjugação dos poderes de investigação, acusação e decisão confiados à Comissão, mas também da «criminalização» actual do direito da concorrência da União. Há já muito tempo que o Tribunal Europeu do Direitos do Homem admitiu que a aplicação do direito administrativo, inclusive no que toca à aplicação de coimas, não é incompatível com o artigo 6.°, n.° 1, da CEDH. No entanto, mesmo não devendo tal aplicação ser totalmente «judicializada», é necessário, para satisfazer os requisitos desse artigo, que existam garantias processuais suficientemente fortes e uma fiscalização efectiva da legalidade com competência de plena jurisdição para controlar a decisão administrativa. Os requisitos que um sistema de fiscalização pelos tribunais deve satisfazer para estar em conformidade com o artigo 6.°, n.° 1, da CEDH não foram ainda totalmente esclarecidos, mas não é seguro que o sistema existente em matéria de aplicação do direito da concorrência da UE, incluindo a fiscalização exercida pelos tribunais, satisfaça esses requisitos.

51.      O direito do acesso efectivo à justiça também está consagrado no artigo 47.° da Carta. A jurisprudência confirma que os destinatários das decisões da Comissão que aplicam coimas nos processos no domínio da concorrência têm direito a um processo equitativo e que o direito a um tribunal imparcial é violado quando não estiver prevista qualquer via de recurso para um órgão jurisdicional com competência de plena jurisdição, na acepção da CEDH.

 Resposta da Comissão

52.      A Comissão alega, em primeiro lugar, que o fundamento do recurso é demasiado geral e impreciso para poder ser examinado pelo Tribunal de Justiça (não cumpre, pois, os requisitos do artigo 112.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo) e que, portanto, é inadmissível; sustenta seguidamente que o acórdão do Tribunal Geral se baseou nas suas próprias conclusões assertivas e que, consequentemente, o fundamento é improcedente.

53.      No que respeita à falta de precisão, a KME apresenta uma série de argumentos a favor de uma fiscalização aprofundada das decisões da Comissão por parte do Tribunal Geral, mas reconhece que um sistema administrativo de aplicação do direito, conjugado com a sua fiscalização por um órgão jurisdicional com competência de plena jurisdição é compatível com o artigo 6.°, n.° 1, da CEDH. Admite também que o Tribunal Geral e o Tribunal de Justiça são, em princípio, capazes de proceder a uma fiscalização adequada e que na prática, o têm feito. Ou seja, não contesta a estrutura fundamental da fiscalização da legalidade das decisões da Comissão.

54.      Consequentemente, a KME deveria ter: (a) especificado os elementos do acórdão dos quais resulta que o Tribunal Geral não tratou de modo adequado as suas alegações; (b) especificado o critério que deve servir para apreciar a qualidade da fiscalização do Tribunal Geral; e (c) à luz desse critério, ter demonstrado em que medida este Tribunal não tratou de modo adequado as suas alegações. Em vez de assim proceder, citou quatro passagens do acórdão que fazem referência ao poder de apreciação da Comissão, sem explicar de que modo demonstram a falta de fiscalização da decisão da Comissão pelo Tribunal Geral à luz das observações da KME.

55.      Na verdade, o critério a ser aplicado para apreciar a fiscalização realizada pelo Tribunal Geral à luz do artigo 6.°, n.° 1, da CEDH está longe de ser evidente, mesmo aceitando a afirmação da KME de que as coimas aplicadas no domínio do direito da concorrência da União assumem natureza «penal» para este efeito. A KME evita qualquer discussão sobre o que tal pode implicar a respeito do critério adequado em matéria de fiscalização.

56.      O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem enunciou claramente que os requisitos do artigo 6.°, n.° 1, da CEDH variam até mesmo no seio da categoria geral das «acusações em matéria penal». Uma vez que a legislação comunitária qualifica explicitamente como não penais as coimas aplicadas no âmbito do direito da concorrência, não se inserem no «núcleo duro» do direito penal mencionado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e as garantias aplicáveis em caso de processo penal não devem, pois, ser necessariamente aplicadas com um rigor absoluto.

57.      Em todo o caso, o Tribunal Geral dispõe de competência de «plena jurisdição» para os efeitos do artigo 6.°, n.° 1, da CEDH (não confundir com o conceito do direito da União de competência de plena jurisdição em matéria do controlo das penalidades financeiras). O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou, por ser inadequado, um recurso jurisdicional de actos administrativos que se limite à fiscalização dos erros de direito e que, portanto, não permita que o tribunal corrija os erros de facto. Porém, e não obstante o dever de o órgão jurisdicional verificar também o respeito da proporcionalidade, uma fiscalização que esteja limitada a certos aspectos não é, por si só, incompatível com o conceito de competência de «plena jurisdição» enunciado no artigo 6.°, n.° 1, da CEDH.

58.      Quanto à segunda alegação, de que o Tribunal Geral se baseou nas próprias constatações assertivas da Comissão, esta observa que, não obstante as referências feitas ao seu poder de apreciação, o Tribunal Geral procedeu a uma fiscalização eficaz e aprofundada do cálculo da coima e chegou às suas próprias conclusões assertivas, considerando infundados os segundo, terceiro e quarto fundamentos da KME (18). Nesta matéria, o Tribunal Geral examinou e rejeitou os argumentos da KME relativos ao mérito, declarando‑se de acordo com a Comissão, sem se «remeter [ao seu] poder de apreciação». Seja qual for o critério de fiscalização que está subentendido no artigo 6.°, n.° 1, da CEDH, o Tribunal Geral satisfez esse critério.

 Apreciação

59.      A KME argumenta essencialmente que, tendo concluído que as várias apreciações a que procedeu a Comissão para a determinação das coimas se inseriam no seu poder discricionário, não tendo, consequentemente, forjado a sua própria opinião nesta matéria, o Tribunal Geral não submeteu a decisão em causa ao escrutínio exigido pela CEDH e pela Carta.

60.      É, pois, importante que se determine qual o é tipo de fiscalização que estes instrumentos jurídicos requerem, sendo que a fonte mais pertinente a este respeito reside na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

61.      A KME alega que os procedimentos de aplicação do direito da concorrência, como aqueles em causa, que implicam a verificação de que a empresa adoptou um comportamento proibido e a aplicação de uma coima em razão deste comportamento, têm claramente natureza penal para os efeitos da CEDH. A Comissão observa que as decisões do tipo em causa são qualificadas expressamente como não tendo «natureza penal», mas admite que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tal não constitui um critério determinante; caso revistam natureza penal, para efeitos da referida jurisprudência, em todo o caso não se inserem no «núcleo duro» do direito penal identificado por esse Tribunal. A questão é de grande importância, pois o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem exigido garantias processuais mais rigorosas e níveis mais elevados de fiscalização para os processos penais relativamente aos processos cíveis e, na esfera do direito penal, requer idêntica exigência para o «núcleo duro» em relação aos outros processos.

62.      Para decidir se os processos relativos a infracções devem ser qualificados de «penais» ou não, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem atende aos três «critérios do processo Engel», assim chamados por referência ao acórdão no qual foram formulados pela primeira vez (19). Em primeiro lugar, há a qualificação formal do sistema jurídico em causa, que é explicitamente considerada não «mais do que um ponto de partida». No acórdão Engel, bem como em acórdãos subsequentes, o Tribunal Europeu de Direitos do Homem atribuiu uma importância nitidamente muito superior – ao ponto de não atender à qualificação da legislação nacional – aos segundo e terceiro critérios, a saber, a natureza da infracção e o grau de severidade da pena que pode ser aplicada à pessoa em causa. A este respeito, considerou relevante saber se a pena é imposta ao abrigo de uma norma geral que tenha por destinatários todos os cidadãos ou se a um grupo que possui um estatuto especial e se o seu objectivo consiste essencialmente em punir para impedir a reincidência ou, diversamente, na reparação pecuniária de danos (20).

63.      À luz destes critérios, não tenho dificuldade alguma em concluir que o processo que conduz à aplicação de uma coima por violação da proibição de celebração de acordos de fixação de preços e de repartição do mercado imposta pelo artigo 81.°, n.° 1, CE se insere na «vertente penal» do artigo 6.°, n.° 1, da CEDH, como tem vindo a ser progressivamente definida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (21). A proibição e a possibilidade de aplicação de uma coima estão consagradas em legislação primária e secundária de aplicação geral; a infracção implica a existência de um comportamento que é igualmente considerado desleal, em detrimento do público em sentido amplo, uma característica que partilha com as infracções penais em geral e que implica um verdadeiro opróbrio (22); uma coima de um montante que pode ir até (23) 10% do volume de negócios é inquestionavelmente severa e pode mesmo pôr em causa a viabilidade de uma empresa; e a intenção é explicitamente a de punir e dissuadir (24), sem qualquer elemento a título da reparação dos danos.

64.      É verdade que, como realçou a Comissão, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem indicou no seu acórdão Neste (25) que determinados aspectos da aplicação da legislação russa em matéria da concorrência não se inseriam na esfera penal. Porém, creio que os factores que teve em conta nesse processo são muito diferentes dos que estão presentes no caso em apreço. Salientou que as regras anti‑monopólio só se aplicavam às relações que influenciaram a concorrência no mercado dos produtos de base e que eram, pois, de aplicação restritiva; que tinham por objectivo proteger e restabelecer a concorrência; e que as medidas que podiam ser impostas não eram «sanções propriamente ditas», mas sim injunções, conjugadas com a confiscação dos benefícios obtidos ilegalmente, destinadas a assegurar a reparação pecuniária do dano, em vez de uma punição destinada a dissuadir a reincidência.

65.      É certo que, nesta decisão, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem também salientou o facto de determinados tipos de comportamento monopolista poderem ser autorizados quando se comprove que servem o interesse geral (uma eventualidade prevista no artigo 85.°, n.° 3, CE, pelo menos em teoria, mesmo a respeito dos acordos de fixação dos preços e de repartição do mercado), ao passo que, geralmente, o comportamento intrinsecamente criminoso não está sujeito a tal justificação utilitária; e que a livre concorrência no mercado é um valor relativo e circunstancial, a respeito do qual as intromissões que se possam verificar não são, por si só, inerentemente erradas. Contudo, a respeito da primeira consideração – com o devido respeito pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – gostaria de salientar que não é difícil encontrar comportamentos inegavelmente criminosos que, não obstante, podem ser autorizados em circunstâncias apropriadas. A posse de armas de fogo pode constituir uma infracção penal em geral, mas ser autorizada em certas situações com vista à protecção do público; a venda de certas drogas pode constituir uma infracção penal em geral, mas ser autorizada para determinados fins medicinais, etc. E, no tocante à segunda consideração, a fixação dos preços e a repartição do mercado têm repercussões para o consumidor e, consequentemente, para o público em geral, que vão muito além da simples «intromissão na liberdade de concorrência» que afecta a comunidade empresarial.

66.      Por conseguinte, embora o procedimento de aplicação de coimas em questão no caso em apreço integre a esfera penal para efeitos da CEDH (e da Carta), não deixo de concordar com os termos do acórdão Jussila (26), segundo o qual «não se insere no núcleo duro do direito penal; consequentemente, as garantias oferecidas pela vertente penal […] não devem necessariamente ser aplicadas com todo o seu rigor». O que, em concreto, significa que a aplicação de sanções penais numa primeira instância pode ser compatível com o artigo 6.°, n.º 1, da CEDH mesmo quando não seja efectuada por «um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei», mas sim por um organismo administrativo ou não judicial que não satisfaz ele próprio os requisitos da referida disposição, desde que a decisão desse organismo esteja sujeita à posterior fiscalização de um órgão judicial com competência de plena jurisdição e que cumpra aqueles requisitos (27). Dito de outro modo, tem de ser manifesto que as vias de recurso disponíveis permitem sanar todas as deficiências do processo tramitado na primeira instância (28).

67.      Têm sido tecidas numerosas críticas ao triplo papel da Comissão, a qual, nos processos de aplicação da legislação da concorrência, desempenha funções de inquérito, de instrução e de tomada de decisão, algumas das quais foram citadas pela KME no seu recurso (29). Contudo, embora possa haver razões convincentes para considerar que a Comissão não é, neste sentido, «um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei», creio que estas razões são na realidade estranhas ao presente recurso. Na verdade, a alegação da KME não se baseia na inadequação do procedimento na Comissão, mas assenta no que considera ser a insuficiente fiscalização do Tribunal Geral face aos resultados deste procedimento. O facto de a Comissão ser um órgão administrativo e de poder não ser capaz de separar totalmente as suas três funções durante um processo (30) é considerado um dado adquirido no âmbito do presente recurso. A questão é a de saber se o Tribunal Geral exerceu uma competência de «plena jurisdição» na acepção da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (31).

68.      Este descreveu a competência de «plena jurisdição» no sentido de que inclui «o poder de anular em todos os seus aspectos, tanto por questões de facto como de direito, a decisão do organismo que a proferiu». Um órgão jurisdicional encarregado da fiscalização «deve, em particular, ter competência para examinar todas as questões de facto e de direito relevantes para a solução do litígio nele pendente»(32). O mesmo Tribunal também enunciou que, para determinar se um tribunal de segunda instância tem competência de «plena jurisdição» ou se goza de um «adequado poder de fiscalização» para corrigir uma falta de independência na primeira instância, é necessário levar em conta factores como o «objecto da decisão recorrida, o modo como se chegou a esta decisão e o fundo do litígio, incluindo os fundamentos invocados e o objectivo do recurso»(33).

69.      Creio que cabe pouca dúvida de que a «competência de plena jurisdição» conferida ao Tribunal Geral pelo artigo 229.° CE e pelo artigo 17.° do Regulamento n.° 17 cumpre estes requisitos no tocante aos recursos que impugnam o montante da coima aplicada, mesmo tratando‑se, como sustenta a Comissão, de um conceito diferente do critério de «jurisdição plena» do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que deve ser considerado como respeitando aos recursos interpostos, por exemplo, contra a declaração concreta da existência de uma infracção (dos quais o Tribunal Geral também pode e deve conhecer – embora de forma restrita – quando tal seja o objecto do processo que lhe foi submetido). Aqui, pelo contrário, estamos unicamente confrontados com um recurso que versa sobre o montante de uma coima e não tenho a intenção de estender mais a minha análise. Neste quadro, a competência de plena jurisdição para suprimir, reduzir ou aumentar este montante, sem restrições quanto ao tipo de fundamentos (de facto ou de direito) que permitem o seu exercício, fornece necessariamente, a meu ver, a garantia exigida pelo artigo 6.° da CEDH – pelo menos, em teoria.

70.      No entanto, pode suscitar‑se a questão de saber se, num caso concreto, o Tribunal Geral exerceu esta competência de forma adequada e é justamente esta a questão que é aqui suscitada pela KME.

71.      Trata‑se de uma questão legítima, mas a sua análise deve, a meu ver, ser acompanhada de certas precauções, tanto de carácter geral como particular, e o modo como foi suscitada deve ser escrutinado à luz de certas críticas que foram formuladas pela Comissão.

72.      Em primeiro lugar, considero que o mais importante é o modo como o Tribunal Geral efectivamente exerceu a sua fiscalização, sendo menos relevante o modo como a descreveu. Assim, respondendo aos argumentos da KME, não se pode concluir com segurança, a partir das referências para o grau de apreciação, de escolha ou de liberdade de que dispõe a Comissão, que o Tribunal Geral não cumpriu o seu dever de apreciação do modo como foi fixada a coima. Nem, inversamente, se pode concluir da utilização dos termos «no exercício da sua competência de plena jurisdição» que este Tribunal efectivamente exerceu adequadamente os seus poderes de apreciação. Cada caso deve ser examinado com base no seu conteúdo real.

73.      Do precedentemente exposto se conclui que, seja qual for o alcance da sua competência, os processos no Tribunal Geral têm, por natureza, carácter contraditório. Nem o artigo 6.° da CEDH nem a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem exigem que o «tribunal independente e imparcial» investigue, por sua própria iniciativa, questões que não lhe tenham sido submetidas. É certo que a jurisprudência do nosso próprio Tribunal impõe que determinadas questões de ordem pública (que se prendem essencialmente com garantias processuais) sejam apuradas oficiosamente mas, noutros aspectos, o modo como o Tribunal Geral exerce sua competência de plena jurisdição deve ser analisado a partir do conteúdo dos argumentos sobre os quais foi chamado a pronunciar-se.

74.      Observo, contudo, que o Tribunal Geral pediu à Comissão que apresentasse vários documentos do seu processo administrativo e que a Comissão entregou mais de 500 páginas em resposta a este pedido. Isto sugere, no mínimo, uma fiscalização suficientemente rigorosa para cumprir as exigências da CEDH e da Carta. No entanto, continua por verificar, a partir do próprio acórdão, se esta fiscalização correspondeu ao que tinha sido pedido. Por outras palavras, limitou‑se a verificar se a Comissão não excedeu os limites do seu poder de apreciação ou foi também analisada (quando solicitada pela KME) a apreciação efectuada dentro deste quadro?

75.      Abordo agora duas críticas específicas da Comissão a respeito dos argumentos apresentados pela KME.

76.      Uma questão formal que a Comissão apenas suscitou na audiência prende‑se com o facto de a KME ter interposto o seu recurso na primeira instância expressamente ao abrigo do artigo 230.° CE e não do artigo 229.° CE. Consequentemente, sugere‑se que a KME nem sequer pediu que o Tribunal Geral exercesse a sua competência de plena jurisdição e não está, pois, em posição de criticar o facto de alegadamente o não ter feito.

77.      Enquanto tal, não creio que seja uma alegação séria. A referência ao artigo 230.° consta apenas do título da petição. O simples facto de a KME pretender uma redução da coima basta para ser manifesto que foi invocada a competência de plena jurisdição do Tribunal Geral, e não uma simples fiscalização da legalidade. Se fosse favorável à recorrente, tal fiscalização apenas poderia conduzir à anulação da coima, deixando à Comissão a tarefa de aplicar uma nova coima em conformidade com os fundamentos do acórdão. Porém, a petição insiste repetidamente na redução da coima, a respeito da qual o Tribunal Geral só poderia decidir com base no artigo 229.° CE e no artigo 17.° do Regulamento n.° 17.

78.      Por outro lado, não se deve esquecer que a KME não pediu especificamente que o Tribunal reapreciasse a coima a partir de zero, mas sim que ajustasse o seu montante em função dos erros alegadamente cometidos na decisão impugnada.

79.      Entendo que a segunda crítica da Comissão constitui uma alegação mais séria. Essencialmente, assinala que, por melhor que a KME possa ter apresentado o caso no seu todo de modo a que o Tribunal Geral pudesse exercer com rigor a competência de plena jurisdição de que goza em casos como o presente, não foi capaz de identificar o nível específico de fiscalização jurisdicional que deveria ter sido observado ou as passagens do acórdão recorrido nas quais esse nível não terá sido observado.

80.      Nesta matéria, concordo com a Comissão. O quinto fundamento de recurso da KME é apresentado sobretudo como uma crítica geral ao sistema de aplicação do direito da concorrência da União no seu conjunto e ao papel do Tribunal Geral neste sistema, não identificando erros específicos cometidos por este Tribunal no acórdão recorrido. Contudo, é jurisprudência assente que o recurso interposto deve indicar de modo preciso os elementos do acórdão recorrido que contesta e os argumentos jurídicos que especificamente adianta (34).

81.      Normalmente, um fundamento de recurso que enferme de tal vício deve simplesmente ser julgado inadmissível. Creio, porém, que tal abordagem pode não ser inteiramente adequada no caso em apreço. É verdade que, enquanto argumento autónomo, o quinto fundamento de recurso da KME não transmite ao Tribunal de Justiça indicações suficientemente precisas para que possa decidir se e em que medida é manifesto que o Tribunal Geral não efectuou uma fiscalização adequada. Não obstante, este argumento pode servir de critério para a apreciação dos restantes fundamentos do recurso – visto que, de facto, a Comissão o abordou na sua resposta, examinando‑o no quadro dos segundo, terceiro e quarto fundamentos do recurso.

82.      Por conseguinte, proponho que não se considere o quinto fundamento do recurso enquanto argumento autónomo, mas que se conservem em mente as alegações nele formuladas na apreciação dos quatro primeiros fundamentos do recurso. Fazendo‑o, limitar‑me‑ei – como referido supra – ao modo como o Tribunal Geral apreciou os argumentos que lhe foram apresentados, uma vez que a linguagem que utilizou para descrever tal apreciação mais não constitui, a este respeito, do que uma mera indicação.

 Primeiro fundamento do recurso: impacto concreto no mercado

 Passagens pertinentes do acórdão recorrido

83.      O Tribunal Geral, na apreciação do primeiro fundamento da KME (inadequada tomada em consideração do impacto concreto do cartel no mercado), começou por admitir como prova três estudos econométricos apresentados pela KME, antes de concluir o seguinte:

«60      […] as recorrentes contestam, através dele, tanto a avaliação, pela Comissão, da gravidade da infracção (v. n.os 12 e 13, supra), como o tratamento diferenciado que esta operou com base nas quotas de mercados das empresas envolvidas (v. n.° 16, supra).

61      No que diz respeito, em primeiro lugar, ao tratamento diferenciado das empresas em causa, a fundamentação da Comissão na decisão impugnada nesta matéria faz menção, nomeadamente, de uma preocupação de levar em conta o ‘peso específico de cada empresa, e portanto os efeitos reais do seu comportamento ilícito sobre a concorrência’ (considerando 322 da decisão impugnada). No entanto, há que salientar que, mesmo sem provas dos efeitos concretos da infracção no mercado, a Comissão pode proceder a um tratamento diferenciado, em função das quotas detidas no mercado de referência, tal como é descrito nos considerandos 326 a 329 da decisão impugnada.

62      Resulta, com efeito, da jurisprudência que a quota de mercado de cada uma das empresas envolvidas no mercado que foi objecto de uma prática restritiva constitui um elemento objectivo que dá a correcta medida da responsabilidade de cada uma delas no que diz respeito à nocividade potencial da referida prática para o jogo normal da concorrência (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 29 de Abril de 2004, Tokai Carbon e o./Comissão, T‑236/01, T‑239/01, T‑244/01 a T‑246/01, T‑251/01 e T‑252/01, Colect., p. II‑1181, n.° 197).

63      Do mesmo modo, no que diz respeito à apreciação da gravidade da infracção, há igualmente que referir que, mesmo que a Comissão não tivesse provado que o cartel teve um impacto concreto no mercado, isso não teria quaisquer efeitos sobre a qualificação da infracção como ‘muito grave’ e, portanto, sobre o montante da coima.

64      A este respeito, importa referir que resulta do sistema comunitário de sanções pelas violação das regras da concorrência, tal como instituído pelo Regulamento n.° 17 e interpretado pela jurisprudência, que devem ser aplicadas aos cartéis, devido à sua natureza própria, as coimas mais elevadas. O seu eventual impacto concreto no mercado, nomeadamente a questão de saber em que medida a restrição da concorrência originou um preço de mercado superior ao que se teria imposto no caso de o cartel não existir, não é um critério determinante para a fixação do nível das coimas (v., neste sentido, acórdãos do Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 1983, Musique diffusion française e o./Comissão, 100/80 a 103/80, Recueil, p. 1825, n.os 120 e 129; de 17 de Julho de 1997, Ferriere Nord/Comissão, C‑219/95 P, Colect., p. I‑4411, n.° 33; de 16 de Novembro de 2000, Stora Kopparbergs Bergslags/Comissão, C‑286/98 P, Colect., p. I‑9925, n.os 68 a 77, e de 25 de Janeiro de 2007, Dalmine/Comissão, C‑407/04 P, Colect., p. I‑829, n.os 129 e 130; acórdão Tokai Carbon e o./Comissão, já referido no n.° 62, n.° 225; v., igualmente, conclusões do advogado‑geral J. Mischo no processo C‑283/98 P, acórdão do Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 2000, Mo och Domsjö/Comissão, Colect., p. I‑9855, I‑9858, n.os 95 a 101).

65      Há que acrescentar que resulta das orientações que os acordos ou práticas concertadas que têm por objecto, nomeadamente, como no caso em apreço, a fixação dos preços e a repartição da clientela podem, unicamente com base na sua natureza própria, ser qualificados como ‘muito graves’, não sendo necessário caracterizar tais comportamentos por um impacto ou uma extensão geográfica particulares. Esta conclusão é corroborada pelo facto de, apesar de a descrição das infracções ‘graves’ mencionar expressamente o impacto no mercado e os efeitos sobre as zonas alargadas do mercado comum, a das infracções ‘muito graves’, em contrapartida, não mencionar nenhuma exigência relativa ao impacto concreto no mercado nem aos efeitos sobre uma área geográfica particular (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 25 de Outubro de 2005, Groupe Danone/Comissão, T‑38/02, Colect., p. II‑4407, n.° 150).

66      Para ser exaustivo, o Tribunal acrescenta que a Comissão fez prova bastante de que o cartel teve um impacto concreto no mercado em causa.

67      Neste contexto, há que salientar que a premissa das recorrentes segundo a qual a Comissão, quando invoca um impacto concreto do cartel para fixar o montante da coima, é obrigada a fazer prova científica de que se verificaram efeitos económicos tangíveis no mercado e de que há um nexo de causa e efeito entre o impacto e a infracção não é aceite pela jurisprudência.

68      Com efeito, o Tribunal declarou em várias ocasiões que o impacto concreto de um acordo no mercado deve considerar‑se suficientemente demonstrado se a Comissão puder fornecer indícios concretos e credíveis que indiquem, com probabilidade razoável, que o acordo teve impacto no mercado (v., nomeadamente, acórdãos do Tribunal de Primeira Instância Scandinavian Airlines System/Comissão, já referido no n.° 36, n.° 122; de 27 de Setembro de 2006, Archer Daniels Midland/Comissão, T‑59/02, Colect., p. II‑3627, n.os 159 a 161; Jungbunzlauer/Comissão, T‑43/02, Colect., p. II‑3435, n.os 153 a 155; Archer Daniels Midland/Comissão, T‑329/01, Colect., p. II‑3255, n.os 176 a 178; Roquette Frères/Comissão, T‑322/01, Colect., p. II‑3137, n.os 73 a 75).

69      A este respeito, há que observar que as recorrentes não contestaram a materialidade dos factos, acima expostos no n.° 13, em que a Comissão se baseou para concluir pela existência de um impacto concreto do cartel no mercado, ou seja, o facto de os preços terem baixado nos períodos em que o acordo colusório foi pouco respeitado e terem aumentado significativamente noutros períodos, a criação de um sistema de troca de informações relativas aos volumes de vendas e aos níveis de preços, a significativa quota de mercado detida pela totalidade dos membros do cartel e o facto de as quotas de mercado respectivas dos participantes no cartel se terem mantido relativamente estáveis durante todo o período durante o qual foi perpetrada a infracção. As recorrentes apenas alegaram que os referidos factos não eram susceptíveis de demonstrar que a infracção em causa tinha tido um impacto concreto no mercado.

70      Ora, resulta da jurisprudência que a Comissão pode legitimamente deduzir, com base nos indícios referidos no número anterior, que a infracção teve um impacto concreto no mercado (v., neste sentido, acórdãos Jungbunzlauer/Comissão, n.° 159; Roquette Frères/Comissão, n.° 78; de 27 de Setembro de 2006, Archer Daniels Midland/Comissão, T‑59/02, n.° 165; Archer Daniels Midland/Comissão, T‑329/01, n.° 181; acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 14 de Dezembro de 2006, Raiffeisen Zentralbank Österreich e o./Comissão, T‑259/02 a T‑264/02 e T‑271/02, Colect., p. II‑5169, n.os 285 a 287).

71      Quanto ao argumento das recorrentes segundo o qual o processo contém exemplos de casos em que os acordos colusórios não foram respeitados, há que referir que o facto de os acordos não terem sido sempre respeitados pelos membros do cartel não basta para excluir um impacto no mercado (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância, Groupe Danone/Comissão, já referido no n.° 65, n.° 148).

72      Os argumentos apresentados pelas recorrentes respeitantes ao seu próprio comportamento também não podem ser acolhidos. Com efeito, o comportamento efectivo que uma empresa alega ter adoptado não é pertinente para avaliar o impacto de um cartel no mercado, apenas devendo ser levados em conta os efeitos resultantes da infracção no seu todo (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 9 de Julho de 2003, Archer Daniels Midland e Archer Daniels Midland Ingredients/Comissão, T‑224/00, Colect., p. II‑2597, n.° 167). De igual modo, a Comissão não pode ser censurada pelo facto de ter referido, no considerando 303 da decisão impugnada, que o relatório inicial não permitia refutar as suas conclusões relativas aos efeitos reais da infracção no mercado. Com efeito, a análise econométrica que consta desse relatório apenas trata de dados numéricos relativos às recorrentes.

73      Por conseguinte, tendo em conta as considerações precedentes, há que julgar o presente fundamento improcedente.

74      Além disso, o Tribunal considera, no âmbito da sua competência de plena jurisdição e à luz das considerações anteriores, que não há que pôr em causa a fixação do montante de partida da coima em função da gravidade efectuada pela Comissão.»

 Resumo das alegações

 O presente recurso da KME

84.      A KME contesta a conclusão do Tribunal Geral de que a Comissão demonstrou de modo jurídico bastante que o cartel teve um impacto no mercado e que podia, pois, tê‑lo em conta na determinação do montante de partida da coima. As orientações impõem que a Comissão tenha em conta três elementos, incluindo o «impacto concreto no mercado, quando este possa ser medido». Por conseguinte, só poderia levar em conta este impacto se e na medida em que o conseguisse estabelecer e quantificar. Não deveria ter sido autorizada a recorrer – escudando-se com o critério da «probabilidade razoável» estabelecido no acórdão Roquette Frères (35) – a presunções que lhe permitem levar em conta o impacto no mercado mesmo quando não lhe tenha sido possível estabelecer a existência ou o alcance de tal impacto nos termos das orientações. Permitir o recurso a tais presunções reduz a nada a possibilidade de distinguir entre as infracções em função do seu impacto no mercado. A jurisprudência à qual se faz referência nos n.os 68 e 70 do acórdão recorrido é manifestamente errada.

85.      Além disso, se um participante num cartel apresenta a prova econométrica de que o cartel no seu todo não teve qualquer impacto sobre os preços no mercado e os outros participantes alegam o mesmo, não deve ser reconhecido à Comissão o direito de rejeitar esta prova e de concluir que a infracção produziu um impacto – e levar em conta este elemento para a fixação do montante de partida da coima nos termos das orientações – apenas com base em elementos de prova indirectos, como os examinados no n.° 69 do acórdão recorrido. Perante tal cenário, a Comissão deve apresentar elementos de prova directos que mostrem que o cartel teve realmente um impacto no mercado.

86.      A prova econométrica fornecida pela KME assenta em dados completos retirados de todas as facturas e informações disponíveis relativas à sua clientela referentes a mais de uma década e demonstra que: (i) o cartel não teve qualquer impacto estatisticamente significativo nos preços facturados pela KME; e (ii) que esta análise era válida para o cartel no seu todo. A falta de impacto foi confirmada através de elementos de prova que constam dos autos e que mostram que os acordos não foram respeitados por diversos participantes. Por último, a ausência de qualquer prejuízo para os utilizadores finais foi confirmada pelo facto de os tubos em questão representarem apenas cerca de 2% do preço de venda a retalho dos produtos finais nos quais foram incorporados.

87.      Nos termos do direito, a Comissão deveria ter fornecido uma contraprova directa, assente em factores económicos objectivos relativos ao mercado em causa e ao contexto económico, que justificasse a existência e a amplitude do alegado impacto no mercado; não tinha o direito de concluir que o cartel teve um impacto no mercado apenas com base nas provas indirectas invocadas na decisão em causa.

88.      O acórdão recorrido padece igualmente de fundamentação ilógica e inadequada. O Tribunal Geral, na apreciação do mérito do argumento da KME de que a prova econométrica que tinha apresentado demonstrava a inexistência de qualquer impacto no mercado, (i) referiu‑se unicamente ao relatório preliminar, segundo o qual o cartel não teve qualquer impacto sobre os preços da KME; (ii) por conseguinte, não levou em conta os dois relatórios subsequentes, que concluíam que o cartel no seu todo não teve qualquer impacto no mercado; e (iii) por último, rejeitou a argumentação da KME com o fundamento de que a prova econométrica fornecida não demonstrava que o cartel no seu todo não tinha tido impacto no mercado. Por outras palavras, o Tribunal Geral, julgando embora admissíveis as provas que demonstravam a inexistência de um impacto no mercado, rejeitou o argumento da KME com o fundamento de que não tinha fornecido esta prova – desvirtuando manifestamente os factos e os elementos de prova que lhe foram submetidos.

89.      Assim, não tendo constatado os erros de direito cometidos pela Comissão, o Tribunal Geral violou o direito da União. Por conseguinte, a KME entende que o Tribunal de Justiça deve proceder a uma nova fixação do montante de partida da coima, excluindo do cálculo o elemento do impacto no mercado.

 Resposta da Comissão

90.      Em primeiro lugar, a Comissão sustenta que este fundamento do recurso é inoperante, pois está dirigido contra um raciocínio secundário e acessório.

91.      A constatação de que a Comissão demonstrou de forma jurídica bastante que o cartel teve um impacto concreto no mercado foi explicitamente apresentada unicamente para ser exaustivo. É jurisprudência assente que um acórdão não pode ser anulado com base numa impugnação dirigida unicamente contra este tipo de constatações. O Tribunal Geral declarou que cada um dos dois elementos da decisão em causa relativamente aos quais a KME alegava que o impacto concreto no mercado deveria ter sido tomado em consideração estava justificado, quer este impacto tivesse podido ser estabelecido ou não. A propósito do tratamento diferenciado das empresas participantes, afirmou que, mesmo sem a prova de um impacto concreto no mercado, a Comissão tinha o direito de proceder a um tratamento diferenciado em função das quotas de mercado detidas; e que, relativamente à gravidade da infracção, mesmo que a Comissão não tivesse provado um impacto concreto no mercado, tal não teria tido quaisquer efeitos para a qualificação da infracção como «muito grave» e, consequentemente, no montante da coima. A KME nem sequer menciona qualquer uma destas duas constatações de princípio, que são fulcrais e que, assim, estão fora do âmbito do presente recurso. As suas críticas à constatação adicional desse Tribunal, para ser exaustivo, não podem resultar na anulação do acórdão recorrido.

92.      Em segundo lugar, a Comissão alega que este fundamento de recurso é inadmissível, uma vez que contesta a apreciação dos factos.

93.      A KME alega simplesmente que o Tribunal Geral: (i) concluiu erradamente que a Comissão tinha o direito de deduzir a existência de um impacto concreto no mercado a partir dos elementos de prova enumerados no n.° 69 do seu acórdão; (ii) deveria ter atribuído mais peso, no n.° 71, às provas que, na opinião da KME, indicavam a falta de impacto e o não respeito dos acordos pelos membros do cartel; (iii) deveria ter atribuído maior importância, no n.° 72, aos estudos econométricos que, na perspectiva da KME, indicavam a ausência de um impacto significativo do ponto de vista estatístico; e (iv) deveria ter exigido a «prova directa» da existência e da amplitude de um impacto.

94.      Todavia, o Tribunal de Justiça não tem competência para apurar os factos nem, em princípio, para examinar os elementos de prova acolhidos pelo Tribunal Geral. Compete apenas a este último apreciar o valor dos elementos de prova, sempre que tenham sido obtidos de forma regular e que tenham sido respeitadas as normas e os princípios aplicáveis na matéria. Salvo quando tenha havido desvirtuação destes elementos de prova, esta apreciação não é susceptível de fiscalização por parte do Tribunal de Justiça.

95.      A prova de um impacto concreto invocada na decisão em causa e as constatações daí retiradas foram debatidas com pormenor perante o Tribunal Geral, que no n.° 69 do seu acórdão resumiu essa prova, e que no n.° 70 concluiu que a Comissão tinha o direito de dela deduzir que o cartel teve um impacto concreto, e prosseguiu rejeitando, nos n.os 71 e 72, os argumentos da KME segundo os quais outros elementos punham em causa essa conclusão.

96.      Acresce que, além do facto de os argumentos da KME se basearem unicamente no seu próprio comportamento, os estudos econométricos que apresentou foram fundamentalmente infirmados através de diversas questões que foram amplamente debatidas no Tribunal Geral. Este Tribunal não precisou de se pronunciar sobre essas questões, uma vez que rejeitou os argumentos da KME, mas a Comissão resume‑as da seguinte forma.

97.      Os estudos procuravam retirar conclusões sobre o impacto do cartel, comparando os preços que se sabia terem sido objecto de acordo com os preços em «período de concorrência normal» e/ou nos países «em que a situação da concorrência era normal». No entanto, estes últimos incluíam um número elevado de zonas relativamente às quais havia prova directa de um comportamento colusório. Um acordo sobre os preços incluía aumentos específicos para países citados nominalmente e [um aumento de] 8% para «qualquer outro país não mencionado», sugerindo que todas as vendas da KME eram governadas pelo cartel e que não existiam «países em situação de concorrência normal» com os quais se pudesse fazer uma comparação.

98.      Em qualquer caso, o exame dos cálculos estatísticos mostrava que os resultados eram coerentes com um aumento dos preços devido à existência do cartel. O modelo apresentado pela KME não podia excluir um aumento médio de 10,5% por ano e mostrava que os preços da KME Germany tinham crescido a uma média de 29,9% por ano enquanto durou o cartel. Noutros aspectos, os estudos produziam resultados inusitados que a KME não pôde explicar.

99.      Assim, o Tribunal Geral examinou correctamente as provas nas quais a Comissão se apoiou na decisão controvertida para estabelecer um impacto concreto, bem como todos os argumentos aduzidos pela KME para contestar tal conclusão. O Tribunal Geral constatou a existência de um impacto concreto com base em provas específicas, credíveis e adequadas, que excedem substancialmente o mero facto de os acordos sobre os preços terem sido implementados.

100.  Em terceiro lugar, a Comissão alega que as constatações do Tribunal Geral estão devidamente fundamentadas.

101. O argumento da KME – segundo o qual o raciocínio do Tribunal Geral era ilógico e inadequado, pois constatou que a prova econométrica da KME não demonstrava que a infracção como um todo não teve impacto no mercado, referindo‑se ao relatório inicial que versava apenas sobre os preços praticados pelo KME, mas sem mencionar os dois relatórios adicionais, que diziam respeito ao cartel no seu todo – assenta numa errada interpretação do n.° 72 do acórdão.

102. No processo no Tribunal Geral, a KME alegava que os estudos sobre os preços que praticava provavam que o cartel não teve um impacto concreto no mercado. Todavia, o estudo inicial que foi tomado em consideração pela Comissão na decisão em causa, tal como os dois estudos adicionais que foram juntos aos autos no Tribunal Geral, versavam unicamente sobre as vendas da KME. No n.° 72 do seu acórdão, o Tribunal Geral rejeitou o argumento da KME após ter apreciado de forma soberana os factos e as provas, insistindo sobre o facto de a conduta de uma única empresa não ser relevante para avaliar o impacto de um cartel no seu todo. Não existem quaisquer incoerências neste raciocínio.

103. É manifesta a importância de, nos presentes autos, se examinar o efeito do cartel no seu todo. Na primeira instância, a Comissão realçou que o cartel incluía um sistema de repartição da clientela e um mecanismo no quadro do qual, antes de visitar os clientes, os participantes no cartel tinham de contactar o líder de cada país para saber a quantidade que poderia ser vendida e a que preço. Por conseguinte, os dados sobre os preços da KME não poderiam justificar conclusões a respeito dos preços dos outros membros do cartel – por exemplo, quando na realidade não tenha tentado vender aos clientes destes devido ao acordo de partilha. A KME sugeriu que não tinha respeitado os acordos colusórios, mas, para que dos seus estudos econométricos se pudessem retirar informações a este propósito, deveria ter provado que violou o acordo a respeito de cada cliente atribuído a outro participante no cartel. A KME nem sequer tentou fazê‑lo, quer perante a Comissão, quer perante o Tribunal Geral.

104. A última frase do n.° 72 do acórdão recorrido refere‑se unicamente ao relatório inicial, posto que a KME alegava que a decisão impugnada tinha erradamente recusado a sua importância. Os relatórios adicionais não existiam no momento em que foi adoptada esta decisão e não poderiam pois ter sido tomados em consideração. É evidente que o Tribunal Geral examinou os três estudos econométricos antes de chegar às suas constatações a respeito dos argumentos da KME que assentavam na análise dos seus preços. Estes argumentos foram rejeitados por uma razão comum aos três estudos, a saber, o facto de que se reportavam unicamente aos preços praticados pela KME.

 Apreciação

105. A primeira questão é a de saber se o facto de o Tribunal Geral ter aceitado a apreciação da infracção pela Comissão como sendo «muito grave» e a consequente fixação do montante de partida da coima pode ser justificado unicamente pela natureza da infracção (um acordo de fixação dos preços e de repartição do mercado), independentemente da prova de um impacto concreto no mercado.

106. Na decisão em causa, a Comissão fixou o montante de partida com base nas suas conclusões segundo as quais (a) a infracção era «muito grave» devido (i) à sua natureza, (ii) ao seu impacto no mercado e (iii) à dimensão geográfica deste mercado e (b) ao facto de a quota de mercado da KME ser superior em cerca de três vezes à da Outokumpu ou à da Wieland. Fixou um montante de partida global de 58,1 milhões de euros – 35 milhões de euros para a KME e 11,55 milhões de euros para cada uma destas duas outras empresas.

107. A KME alegou na primeira instância que, tanto na apreciação da gravidade da infracção como na repartição do montante de partida da coima entre os participantes no cartel, a Comissão cometeu um erro por não ter tido em consideração o impacto concreto no mercado; limitou‑se a considerar que a existência de um impacto no mercado estava estabelecida, mas que não podia ser quantificada, e que o montante de partida podia validamente ser repartido com base nas quotas de mercado. No essencial, a KME argumentou que a Comissão estava juridicamente obrigada a levar em conta o impacto concreto no mercado sempre que este pudesse ser quantificado, o que acontecia no presente caso, e que o estudo econométrico por si apresentado demonstrava que esse impacto era estatisticamente insignificante; assim, o montante de partida global deveria ter sido fixado no montante correspondente à parte inferior da escala aplicável (que começa em 20 milhões de euros para as infracções «muito graves»).

108. O Tribunal Geral constatou, no n.° 63 do seu acórdão, que «mesmo que a Comissão não tivesse provado que o cartel teve um impacto concreto no mercado, isso não teria quaisquer efeitos sobre a qualificação da infracção como ‘muito grave’ e, portanto, sobre o montante da coima», acrescentando-lhe a fundamentação que justifica esta constatação nos n.os 64 e 65.

109. No Tribunal de Justiça, os argumentos da KME visam principalmente as constatações posteriores que figuram nos n.os 66 e 72 do acórdão recorrido, através das quais o Tribunal Geral, «[p]ara ser exaustivo», concluiu que a Comissão tinha demonstrado de forma bastante que o cartel teve um impacto concreto no mercado em causa.

110. Por conseguinte, a Comissão afirma que o fundamento de recurso é inoperante, uma vez que a KME não impugnou a constatação principal que consta do n.° 63; mesmo que os seus argumentos relativos ao impacto concreto no mercado viessem a ser acolhidos, a constatação relativa à natureza «muito grave» do cartel deveria ser mantida e o acórdão não poderia ser anulado na medida em que julgou improcedente o primeiro fundamento.

111. Não encontro qualquer vício nesta argumentação, mas não creio que a premissa segundo a qual a KME não impugnou a constatação essencial que figura no n.° 63 deve necessariamente ser aceite.

112. É certamente verdade que a KME não impugnou a constatação segundo a qual a Comissão tinha o direito de considerar «muito grave» a infracção unicamente com base na sua natureza. De facto, refere (embora apenas numa nota) que, na primeira instância, não tinha considerado o problema nesta perspectiva; em contrapartida, tinha alegado que, tendo em conta o concreto impacto limitado do cartel no mercado, o montante de partida da coima deveria ter sido globalmente fixado no limite inferior da escala das infracções «muito graves» – ou seja, segundo as orientações, em 20 milhões de euros – em vez de 58,1 milhões de euros. Visto sob este ângulo, creio que o primeiro fundamento de recurso da KME deve ser entendido como contestando necessariamente (apesar de, reconhecidamente, não ser tão explícito como seria desejável) a constatação do Tribunal Geral de que, uma vez que o impacto concreto no mercado era irrelevante para a qualificação da infracção como «muito grave», também não assumia importância para a determinação do montante de partida da coima.

113. Admito, porém, que caso sejam confirmadas as constatações que figuram nos n.os 63 a 65 do acórdão recorrido, uma impugnação das outras constatações que figuram nos n.os 66 a 72 será vã, mesmo sendo acolhida. Resulta claramente da parte introdutória do n.° 66 (36) que as considerações subsequentes iam além daquilo que o Tribunal Geral considerava constituir um raciocínio suficiente. Além disso e em toda a lógica, se, «em função da sua natureza, os cartéis estão sujeitos a coimas mais severas» independentemente dos seus efeitos concretos no mercado e se a Comissão se baseou na existência de um impacto e não na sua exacta amplitude para a fixação do montante de partida da coima, então este montante não pode ser questionado através de uma tentativa de prova de que o impacto foi limitado.

114. A Comissão alega igualmente que este fundamento é inadmissível, pois coloca unicamente em causa as apreciações de facto feitas pelo Tribunal Geral.

115. Uma vez mais, não estou totalmente convencida. Há vários pontos da alegação da KME que respeitam efectivamente a apreciações de facto – nomeadamente os formulados nos n.os 18 a 20 e 22 da petição de recurso e reproduzidos nos n.os 87 e 89, supra – mas outros são argumentos jurídicos dirigidos contra a alegada insuficiência da fundamentação do acórdão recorrido (embora, de novo, pudessem ter sido formulados de modo mais adequado). Essencialmente, a KME alega que, confrontado com o desacordo sobre as conclusões a tirar dos elementos de prova disponíveis, o Tribunal Geral não deveria ter simplesmente autorizado a Comissão a fundar-se nas presunções retiradas de «indícios concretos e credíveis que indiquem, com probabilidade razoável, que o acordo teve impacto no mercado», mas que lhe deveria ter exigido no mínimo, que refutasse de forma convincente as provas em contrário apresentadas pela KME. Este argumento deve ser considerado, como expliquei no n.° 113, supra, no quadro de uma impugnação da constatação do Tribunal Geral, não pelo facto de ter reafirmado que o impacto concreto no mercado era irrelevante para a qualificação da infracção como «muito grave», mas pelo facto de ter também afirmado que não assumia importância para a determinação do montante de partida da coima.

116. Por conseguinte, não consideraria inoperante o primeiro fundamento, nem o julgaria inadmissível por apenas colocar em causa constatações de facto.

117. Por outro lado e na medida em que este suscita efectivamente questões de direito, não proponho que seja julgado procedente. A constatação do Tribunal Geral, no n.° 64 do seu acórdão, segundo a qual o eventual impacto concreto do cartel no mercado não é um critério determinante para a fixação do nível das coimas, está amplamente alicerçada pela jurisprudência para a qual remete (37). Tal impacto é unicamente um de entre numerosos factores, não limitados aos três que são enumerados nas orientações, que devem ser levados em conta. Na medida em que a Comissão efectivamente estabeleceu, na decisão em causa, que houve um certo impacto (o que a KME não contesta), podia recorrer a esta constatação como um dos factores a atender para o cálculo do montante de partida da coima. E na medida em que, fazendo‑o, a Comissão não presumiu que o impacto se situava a um determinado nível concreto – pelo contrário, procedeu explicitamente com base no facto de que os seus efeitos não podiam ser quantificados de forma precisa (38) – não pode ser criticada por não ter identificado com rigor tal nível, nem pode o Tribunal Geral ser criticado por ter confirmado o acerto da abordagem da Comissão.

118. Gostaria de acrescentar que, caso as empresas optem por apresentar estudos econométricos que apoiem os seus argumentos, a Comissão tem obviamente o dever de ter essa prova em consideração no quadro da sua apreciação global. Contudo, se não aceitar a prova na sua totalidade, não se lhe exige a realização de outros estudos econométricos que provem o contrário.

119. Resta analisar, como mencionei no n.° 83 supra, se o exame aprofundado deste fundamento pelo Tribunal Geral pode não ter satisfeito os critérios impostos pela CEDH e pela Carta.

120. A este respeito, observo que a KME não invoca tal carência. Nenhuma das passagens citadas no quadro do seu quinto fundamento é extraída da parte em questão do acórdão do Tribunal Geral. E esta parte do acórdão também não utiliza o género de formulação ao qual a KME especificamente se opõe, a saber, uma referência ao poder de apreciação da Comissão.

121. Creio também que o Tribunal Geral tratou o primeiro fundamento em conformidade com o modo como foi apresentado pela KME.

122. O argumento da KME assentava essencialmente na afirmação de que a Comissão estava obrigada, por força das suas próprias orientações, ou a medir o impacto concreto do cartel no mercado e a basear-se nessa medida, ou a abster-se simplesmente de invocar o impacto no mercado. O Tribunal Geral ocupou-se deste argumento e – apesar de considerar supérfluo fazê‑lo – também examinou os elementos de prova de que a Comissão dispôs, bem como os relatórios econométricos posteriores fornecidos pela KME, tendo concluído que a referência da Comissão a um impacto no mercado e o recurso a este elemento para fixar o montante de partida da coima não podia ser criticado. Por conseguinte, mesmo que se pudessem ter suscitado outras questões – por exemplo, a respeito da eventual necessidade de explicar porque razão o montante global inicial da coima foi fixado em 58,1 milhões de euros e não em 20 milhões ou 100 milhões de euros – não o foram, e o Tribunal Geral abordou as questões que realmente foram suscitadas de tal modo que nada há que indique que não exerceu a sua competência de plena jurisdição conforme exigido pela CEDH.

 Segundo fundamento do recurso: a dimensão do mercado

 Passagens pertinentes do acórdão recorrido

123. Na decisão em causa, para o cálculo da dimensão do mercado, a Comissão incluiu o custo do cobre utilizado no fabrico dos tubos. A KME alegou na primeira instância que tal cálculo ignorava a realidade do mercado. Efectivamente, são os próprios compradores dos tubos que determinam o preço do cobre utilizado e este preço, que representa cerca de dois terços do preço final dos tubos, é‑lhes simplesmente repercutido. O peso económico efectivo do mercado estava limitado à margem de transformação, que representa cerca de um terço do valor de 228 milhões de euros que foi utilizado na decisão em causa.

124. O Tribunal Geral observou, nos n.os 86 a 89 do seu acórdão, que a Comissão tinha o direito, mas não o dever, de se referir à dimensão do mercado na determinação da gravidade da infracção para efeitos da fixação do montante de partida da coima; no presente caso fê‑lo, embora apenas como um dos factores a levar em conta; e era, pois, necessário examinar se a Comissão errou quando levou em conta o preço do cobre a esse respeito. A conclusão do Tribunal Geral figura nos n.os 91 a 94:

«91      […] nenhuma razão válida impõe que o volume de negócios de um mercado pertinente seja calculado excluindo certos custos de produção. Como correctamente afirmou a Comissão, em todos os sectores industriais há custos inerentes ao produto final que o fabricante não pode controlar mas que, no entanto, constituem um elemento essencial das suas actividades e que, por conseguinte, não podem ser excluídos do seu volume de negócios aquando da fixação do montante de partida da coima (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 15 de Março de 2000, Cimenteries CBR e o./Comissão, T‑25/95, T‑26/95, T‑30/95 a T‑32/95, T‑34/95 a T‑39/95, T‑42/95 a T‑46/95, T‑48/95, T‑50/95 a T‑65/95, T‑68/95 a T‑71/95, T‑87/95, T‑88/95, T‑103/95 e T‑104/95, Colect., p. II‑491, n.os 5030 e 5031). O facto de o preço do cobre constituir uma parte significativa do preço final dos tubos industriais ou de o risco de flutuações dos preços do cobre ser muito mais elevado do que quando se trata de outras matérias‑primas não infirma esta conclusão.

92      […] no que diz respeito aos argumentos das recorrentes de acordo com os quais estas afirmam que, em vez de recorrer ao critério do volume de negócios do mercado pertinente, seria mais adequado, na perspectiva da finalidade dissuasiva das coimas e do princípio da igualdade de tratamento, fixar o respectivo montante em função da rentabilidade do sector afectado ou do valor acrescentado correspondente, há que referir que não são pertinentes. A este respeito, importa observar, antes de mais, que a gravidade da infracção é determinada com base em numerosos factores, relativamente aos quais a Comissão dispõe de uma margem de apreciação (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 12 de Dezembro de 2007, BASF/Comissão, T‑101/05 e T‑111/05, Colect., p. II‑4949, n.° 65), não tendo sido estabelecida uma lista vinculativa nem taxativa de critérios que devam obrigatoriamente ser levados em conta (acórdão Dalmine/Comissão, já referido no n.° 64, n.° 129), e que não compete ao juiz comunitário, mas à Comissão, escolher, no âmbito da sua margem de apreciação e de acordo com os limites decorrentes do princípio da igualdade de tratamento e do Regulamento n.° 17, os factores e os dados numéricos que levará em conta para executar uma política que assegure o respeito das proibições previstas no artigo 81.° CE.

93      […] é incontestável que o volume de negócios de uma empresa ou de um mercado é, enquanto factor de avaliação da gravidade da infracção, necessariamente vago e imperfeito. Não faz distinção nem entre os sectores de grande valor acrescentado e os sectores de pequeno valor acrescentado, nem entre as empresas lucrativas e as menos lucrativas. Todavia, apesar da sua natureza aproximativa, o volume de negócios é considerado, actualmente, tanto pelo legislador comunitário como pela Comissão e pelo Tribunal de Justiça, um critério adequado, no âmbito do direito da concorrência, para apreciar a dimensão e o poder económico das empresas em causa [v., nomeadamente, acórdão Musique diffusion française e o./Comissão, já referido no n.° 64, n.° 121; artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17, considerando 10 e artigos 14.° e 15.° do Regulamento (CE) n.° 139/2004 do Conselho, de 20 de Janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas (JO L 24, p. 1)].

94      Face ao exposto, há que concluir que a Comissão agiu correctamente ao levar em conta o preço do cobre para determinar a dimensão do mercado de referência.»

 Resumo dos argumentos das partes

 O recurso da KME

125. A KME considera que, uma vez que a sua descrição das características do mercado em causa não foi contradita no acórdão recorrido, há que concluir que os dados que avançou devem ser considerados factos apurados para efeitos do presente recurso. Afirma, porém, que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito e fundamentou de modo inadequado o seu acórdão quando não reconheceu à Comissão o direito de interpretar o conceito de «volume de negócios» como correspondendo ao volume de negócios «líquido» para efeitos do cálculo do valor de mercado.

126. Em primeiro lugar, a jurisprudência e a prática da Comissão demonstram que, para o cálculo do montante de partida da coima, se devem ter em conta as características específicas do mercado ou das empresas em questão. Os órgãos jurisdicionais declararam que ela se pode afastar da sua prática habitual, que consiste em basear o seu cálculo no volume de negócios do último ano completo da infracção, se esse ano não for representativo da verdadeira dimensão e do poder económico da empresa e da gravidade da infracção. A respeito do cálculo do montante máximo da coima, o Tribunal de Justiça declarou que, em cada caso específico e tendo em conta tanto o contexto como os objectivos do regime das coimas, a Comissão deve avaliar o impacto pretendido na empresa em causa, tendo nomeadamente em conta um volume de negócios que reflicta a real situação económica da empresa ao longo do período de duração da infracção. Na sua prática decisória recente, a Comissão tem‑se apoiado frequentemente na faculdade conferida pelas orientações de se afastar da regra da utilização das vendas durante o último ano completo de participação na infracção, quando tal se justifique devido às circunstâncias específicas do processo ou a outros factores externos. E o Tribunal Geral declarou que a Comissão pode basear a sua avaliação da capacidade económica efectiva para provocar prejuízos significativos nos dados relativos ao volume de negócios e às quotas de mercado, salvo se circunstâncias especiais, como as características do mercado, diminuírem consideravelmente o carácter significativo destes dados e exigirem que sejam levados em conta outros factores.

127. Em segundo lugar, o facto de o preço do cobre depender unicamente da decisão de um cliente comprar num determinado dia torna a indústria dos tubos de cobre única e incomparável com outras indústrias, tal como o cobre não pode ser comparado com outros factores de produção – como a energia, a água e os equipamentos – cujos preços são determinados contratualmente entre o fabricante e o fornecedor. Contudo, o Tribunal Geral concluiu erradamente que, para efeitos do cálculo da coima, não existia uma razão válida para excluir o preço do cobre da dimensão do mercado afectado pelo cartel. Fazendo‑o, infringiu igualmente os princípios da não discriminação (por força do qual as situações diferentes devem ser tratadas de modo diferente) e da proporcionalidade. Quanto a este último princípio, a coima da KME representa cerca 2% do seu volume de negócios mundial total em 2002, 40% a nível do EEE no mercado dos tubos industriais com base no preço global dos tubos incluindo o preço do cobre, 80% do volume de negócios respeitante à transformação por si obtido neste mercado, 42% do seu lucro operacional bruto consolidado em 2003 e 16% do seu património consolidado em Junho de 2003.

128.  Em terceiro lugar, se a Comissão tivesse aplicado uma coima à KME por ter participado num cartel no quadro do mesmo mercado que tivesse cessado em 2007 e tivesse calculado o valor do mercado com base no volume de negócios total para esse ano, o montante de partida da coima teria sido muito mais elevado, simplesmente devido ao enorme aumento do preço do cobre entre 2003 e 2007.

129. Em quarto lugar, foi erradamente que o Tribunal Geral remeteu para o seu acórdão Cimenteries CBR (39): nesse processo, os custos relevantes dos factores de produção, como as despesas dos transportes e do fornecimento dos sacos, estavam sob o controlo dos membros do cartel, ao passo que, no presente caso, o preço do cobre não era controlado pelos fabricantes dos tubos. Além disso, foi erradamente que remeteu para a jurisprudência que reconhece à Comissão uma margem de apreciação para escolher os factores que utiliza na determinação da gravidade de uma infracção e que incluem, regra geral, o volume de negócios, já que o volume de negócios global não é um indicador significativo da gravidade de uma infracção no contexto do mercado dos tubos industriais. A margem de apreciação de que goza a Comissão para escolher estes factores não pode abranger elementos que, à luz das características específicas do contexto económico, não têm qualquer influência relativamente à gravidade da infracção. No seu acórdão, o Tribunal Geral não examinou se os critérios utilizados pela Comissão eram pertinentes e adequados.

 Resposta da Comissão

130. A Comissão sustenta que as afirmações da KME a respeito do modo como são determinados os preços do cobre e são vendidos os tubos industriais não constituem factos apurados para efeitos do presente recurso. O Tribunal Geral não estava obrigado a pronunciar-se sobre esses pormenores. As suas constatações não corroboram a caracterização feita pela KME dos membros do cartel como agentes de compra de metal e a Comissão alegou expressamente na primeira instância que, pelas razões finalmente adoptadas no acórdão recorrido, as afirmações da KME segundo as quais agia frequentemente como agente dos seus clientes não eram pertinentes. Como a Comissão explicou, quando o cliente adquiria ele próprio o cobre e encarregava a KME da sua transformação, o preço do metal não entrava no volume de negócios da KME. Em todo o caso, as constatações do Tribunal Geral relativas à dimensão do mercado dos tubos industriais são incompatíveis com a sugestão segundo a qual os fabricantes de tubos industriais realizavam simultaneamente vendas num «mercado do cobre» concorrencial e num «mercado de serviços de transformação» objecto de um cartel; existe um único mercado: o dos tubos industriais.

131. O Tribunal Geral rejeitou a afirmação da KME, segundo a qual o mercado dos tubos industriais é sui generis devido à falta de controlo dos preços dos factores de produção, sem ter necessidade de efectuar constatações a respeito das alegações pormenorizadas da KME. Declarou no n.° 91 do seu acórdão que nenhuma razão válida impunha que o volume de negócios de um mercado fosse calculado excluindo certos custos de produção e que todos os sectores são confrontados com custos inerentes ao produto final que o fabricante não pode controlar, mas que, apesar de tudo, constituem um elemento essencial do conjunto das suas actividades. Estes custos não podem ser excluídos do volume de negócios quando é fixado o montante de partida de uma coima. Esta conclusão não é infirmada pelo facto de o preço do cobre constituir uma parte importante do preço final dos tubos industriais ou de o risco de flutuação dos preços ser mais elevado para o cobre do que para outras matérias‑primas.

132. O presente fundamento de recurso simplesmente convida o Tribunal de Justiça a proceder a uma apreciação diferente do carácter sui generis ou não do sector dos tubos industriais. A KME reitera as alegações apresentadas na primeira instância a propósito dos direitos contratuais dos clientes quanto ao preço do cobre, à parte do preço do cobre no preço total dos tubos e às flutuações do preço do cobre. Tal argumento não só é inadmissível como, na verdade, nada há que distinga os fabricantes de tubos industriais de outros fabricantes que adquirem matérias‑primas, serviços essenciais ou equipamentos. Nenhuma empresa que não ocupe uma posição dominante se encontra na posição de poder controlar o preço das matérias-primas. Todos os contratos resultam da própria escolha dos fabricantes – assim como, no presente caso, a vantagem de poderem repercutir o risco da flutuação dos preços do cobre no cliente.

133. No n.° 93 do seu acórdão, o Tribunal Geral reconheceu que, enquanto factor de avaliação da gravidade da infracção, o volume de negócios de uma empresa presente num mercado é necessariamente vago e imperfeito. Admitiu que o volume de negócios não permite distinguir entre sectores de grande ou de pequeno valor acrescentado ou entre empresas mais ou menos lucrativas. Não obstante, entendeu que o volume de negócios constitui um critério adequado, no quadro do direito da concorrência, para apreciar a dimensão e o poder económico das empresas em causa. Em contrapartida, os argumentos da KME convidam simplesmente o Tribunal de Justiça a infirmar a apreciação do Tribunal Geral a esse respeito. Tal apreciação, expressa após ter sido amplamente debatida no quadro dos articulados e na audiência, é equilibrada e preferiu a objectividade do volume de negócios ao risco de controvérsias intermináveis, de subjectividade e ao carácter imprevisível que teria implicado a proposta da KME de se deduzirem os custos que os membros do cartel não podem controlar.

134. A apreciação desse Tribunal foi correcta. Em, especial, o Tribunal de Justiça deve resistir à sugestão da KME de proceder a uma nova avaliação da coima com base nos números relativos a 2002 ou 2003. Argumentos deste tipo só têm razão de ser quando são submetidos ao Tribunal Geral.

135. Relativamente à pertinência do exame desse Tribunal, a Comissão observa que (no âmbito do quinto fundamento do seu recurso, mas por referência ao tratamento do seu segundo fundamento na primeira instância) a KME cita o n.° 92 do acórdão recorrido, no qual o Tribunal Geral se referiu ao poder de apreciação da Comissão. No entanto, no n.° 91, esse Tribunal concluiu que «nenhuma razão válida impõe que o volume de negócios de um mercado pertinente seja calculado excluindo certos custos de produção», que «em todos os sectores industriais há custos inerentes ao produto final que o fabricante não pode controlar mas que, no entanto, constituem um elemento essencial das suas actividades e que, por conseguinte, não podem ser excluídos do seu volume de negócios aquando da fixação do montante de partida da coima» e que «[o] facto de o preço do cobre constituir uma parte significativa do preço final dos tubos industriais ou de o risco de flutuações dos preços do cobre ser muito mais elevado do que quando se trata de outras matérias‑primas não infirma esta conclusão.» No n.° 93, concluiu que «apesar da sua natureza aproximativa, o volume de negócios é considerado, actualmente, tanto pelo legislador comunitário como pela Comissão e pelo Tribunal de Justiça, um critério adequado, no âmbito do direito da concorrência, para apreciar a dimensão e o poder económico das empresas em causa.» Finalmente, no n.° 94, o Tribunal Geral afirmou que: «[f]ace ao exposto, há que concluir que a Comissão agiu correctamente [...]».

 Apreciação

136. Está aqui subjacente a questão de saber se, quando utiliza a dimensão do mercado (isto é, o volume das vendas e não a extensão geográfica) como um dos critérios para a avaliação da gravidade de uma infracção, a Comissão se deve referir em todos os casos aos preços totais ou apenas à parte do preço sobre a qual os infractores podem exercer uma influência.

137. O argumento da KME não sustenta que a dimensão do mercado nunca deve ser levada em conta, nem que a referência aos preços totais é sempre incorrecta, mas sim que o mercado dos tubos de cobre tem características específicas que tornam incorrecto proceder assim no presente caso. Por conseguinte, considera que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito e fundamentou de forma inadequada a sua conclusão de que o volume de negócios bruto constituía um modo válido para medir a dimensão do mercado.

138. Na minha perspectiva, a Comissão alegou acertadamente que a KME está, em larga medida, a solicitar ao Tribunal de Justiça que proceda a uma apreciação dos factos sobre as características do mercado para a qual não é competente em sede de recurso. O Tribunal Geral apenas considerou apurado em termos de matéria de facto que «o preço do cobre constitui uma parte importante do preço final dos tubos industriais» e que «o risco de flutuações nos preços do cobre é bastante mais elevado do que noutras matérias‑primas». Face a esta constatação, a KME não alegou que o Tribunal Geral tenha desvirtuado o sentido da prova. Assim, é a partir desta base factual que cabe apreciar se o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ou fundamentou a sua decisão de forma insuficiente.

139. No essencial, o Tribunal Geral baseou a sua apreciação jurídica em quatro conclusões: a dimensão de qualquer mercado, medida em termos do volume das vendas, inclui forçosamente algumas despesas que os fabricantes não podem controlar; as características do mercado dos tubos industriais não constituem, a este respeito, uma excepção; a Comissão dispõe de um determinado grau de liberdade para escolher os factores a tomar em consideração; e o volume de negócios bruto constitui um indicador da dimensão e do poder económico das empresas que,sendo embora imperfeito, foi já admitido.

140. Não encontro qualquer lacuna neste raciocínio. É verdade que, no acórdão Cimenteries CBR, referido pelo Tribunal Geral, estavam em causa custos acessórios que eram sem dúvida menos significativos do que o preço do cobre no caso em apreço, mas uma diferença em grau não impede o desenvolvimento da jurisprudência existente para abranger custos mais significativos. Além disso, parece inevitável que a proporção do volume de negócios representado pelas matérias‑primas varie significativamente de um sector para outro. Se fosse permitido levar em conta o volume de negócios bruto em certos casos e não noutros, seria necessário estabelecer um limite, provavelmente através da relação entre o volume de negócios líquido e bruto, que conduziria a uma diferença de tratamento. Todavia, tal limite seria muito difícil de aplicar e poderia dar origem a disputas intermináveis e irresolúveis, incluindo alegações de tratamento desigual. Além disso, importa recordar que a decisão em causa não estabeleceu qualquer ligação directa ou matemática entre a dimensão do mercado e o montante de partida total das coimas e que o próprio Tribunal Geral considerou que a dimensão do mercado era apenas um dos factores utilizados pela Comissão. Nestas circunstâncias, não é despropositado aceitar que a Comissão possa confiar numa forma «aproximada», mas facilmente utilizável, de medição da dimensão do mercado, como um dos critérios da combinação utilizada para a determinação da gravidade de uma infracção. Em todo o caso, a KME não apresentou qualquer razão válida que permita concluir que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito quando concluiu que a Comissão podia agir desse modo.

141. Abordo agora a questão de saber se a fiscalização feita pelo Tribunal Geral a respeito do segundo fundamento invocado na primeira instância foi adequada à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

142. Antes de mais, é verdade que o Tribunal Geral afirmou na sua fundamentação que «a gravidade da infracção é determinada com base em numerosos factores, relativamente aos quais a Comissão dispõe de uma margem de apreciação» e que «não compete ao juiz comunitário, mas à Comissão, escolher, no âmbito da sua margem de apreciação […] os factores e os dados numéricos que levará em conta.» A KME invocou, pelo menos, a primeira destas passagens para alegar, no contexto do seu quinto fundamento de recurso, que o Tribunal Geral demonstrou «excessiva deferência» pela apreciação da Comissão.

143. Contudo, resulta do segundo fundamento, no qual a KME afirma que «a discricionariedade de que dispõe a Comissão para escolher os factores que utiliza para determinar a gravidade de um cartel não pode estender‑se ao ponto de depender de elementos que, à luz das características especiais do contexto económico, não têm qualquer relação com a gravidade da infracção» que, na verdade, a KME aceita a existência deste poder de apreciação, discordando do Tribunal Geral unicamente no tocante à sua extensão. Creio que tal não constitui uma base adequada para se alegar que o Tribunal Geral não exerceu a sua competência de plena jurisdição na fiscalização da decisão em causa.

144. É igualmente verdade que as observações relevantes do Tribunal Geral, nos n.os 91 a 93 do seu acórdão, são concisas. Todavia, tal não implica necessariamente que os argumentos não tenham sido examinados com profundidade. Pelo contrário, resulta da longa exposição dos argumentos da KME (nos n.os 75 a 82) e da não procedência do argumento invocado pela Comissão, de que a dimensão do mercado não teve incidência no montante da coima (no n.° 88), que o segundo fundamento foi cuidadosamente examinado. As constatações do Tribunal Geral são totalmente coerentes com a conclusão segundo a qual construiu a sua própria opinião sobre o acerto da inclusão dos preços do cobre na avaliação da dimensão do mercado para efeitos da determinação da gravidade da infracção e, a meu ver, a KME não apresentou qualquer argumento convincente que permita pôr em causa tal conclusão.

 Terceiro fundamento do recurso: percentagem da majoração em função da duração

 Passagens pertinentes do acórdão recorrido

145. Na primeira instância, a KME alegou no seu terceiro fundamento que, uma vez que as orientações permitem um aumento de até 10% por ano (ou seja, entre 0% e 10%) com base na duração da infracção, a Comissão devia ter ajustado este aumento para ter em conta a intensidade variável do cartel ao longo do tempo e a sua falta de impacto nos preços, em vez de aplicar um aumento de montante pré‑fixado correspondente ao máximo de «10% por cada ano de duração, num total de 125%». O Tribunal Geral julgou este fundamento improcedente. Nos n.os 100 a 104 do acórdão recorrido, enunciou que:

«100      […] um aumento do montante da coima em função da duração não se limita aos casos em que existe uma relação directa entre a duração e um prejuízo acrescido (40) causado aos objectivos comunitários das regras da concorrência (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 30 de Setembro de 2003, Michelin/Comissão, T‑203/01, Colect., p. II‑4071, n.° 278 e jurisprudência aí referida).

101      Além disso, resulta das orientações que a Comissão não estabeleceu nenhuma sobreposição nem nenhuma interdependência entre a apreciação da gravidade e a da duração da infracção.

102      Pelo contrário, em primeiro lugar, resulta da economia das orientações que estas prevêem a apreciação da gravidade da infracção enquanto tal para determinar o montante de partida geral da coima. Em segundo lugar, a gravidade da infracção é analisada em relação às características da empresa em causa, nomeadamente a sua dimensão e a sua posição no mercado pertinente, o que pode dar lugar a uma ponderação do montante de partida, à repartição das empresas por categorias e à fixação de um montante de partida específico. Em terceiro lugar, a duração da infracção é levada em conta para a fixação do montante de base e, em quarto lugar, as orientações prevêem que sejam levadas em consideração circunstâncias agravantes e atenuantes que permitem modular o montante da coima, nomeadamente em função do papel activo ou passivo das empresas envolvidas na perpetração da infracção.

103      Daí decorre que o simples facto de a Comissão se ter reservado a possibilidade de agravar a coima por cada ano de duração da infracção, agravamento que pode ir, relativamente às infracções de longa duração, até 10% do montante fixado em função da gravidade da infracção, em nada a obriga a fixar essa taxa atendendo à intensidade das actividades do cartel ou aos respectivos efeitos, ou ainda à gravidade da infracção. Com efeito, compete à Comissão escolher, no âmbito da sua margem de apreciação (v. n.° 36, supra), a taxa de agravamento que considera dever aplicar em função da duração da infracção.

104      No caso em apreço, a Comissão, nomeadamente nos considerandos 335 e 340 da decisão impugnada, verificou que o grupo KME tinha participado na infracção durante um período de doze anos e dez meses, o que é considerado uma duração longa na acepção das orientações e, portanto, agravou a coima em 125%. Ao fazê‑lo, a Comissão não se afastou das regras que impôs a si própria nas orientações. De resto, o Tribunal considera que este agravamento em 125% não é, no caso em apreço, manifestamente desproporcionado.»

 Resumo das alegações

 Recurso da KME

146. A KME alega que o raciocínio do Tribunal Geral é obscuro, ilógico e inadequado, uma vez que não formula qualquer regra clara.

147. A interpretação e aplicação do ponto 1 B das orientações foram frequentemente discutidas na jurisprudência – a qual, porém, não enuncia os critérios nos quais a Comissão se deve basear para, relativamente a uma infracção com uma duração superior a cinco anos, ajustar o montante de partida da coima dentro da margem de 0% a 10% por ano de infracção. Parece simplesmente enunciar que o aumento em função da duração não se limita aos casos em que existe uma relação directa entre a duração e um prejuízo acrescido causado aos objectivos comunitários das regras da concorrência – por outras palavras, o montante de partida pode ser aumentado em função da duração mesmo quando o prejuízo causado aos objectivos comunitários das regras da concorrência não seja agravado directamente por este elemento, ou mesmo quando este seja inexistente. Esta abordagem está errada.

148. Em primeiro lugar, contradiz os termos claros do ponto 1 B, que menciona a punição efectiva das restrições «que produziram de forma duradoura efeitos nocivos nos consumidores». A própria Comissão estabeleceu assim o requisito de uma relação directa entre a duração da infracção e o seu efeito prejudicial, cuja existência foi já há muito tempo reconhecida pela jurisprudência. O Tribunal Geral julgou já que, quando a Comissão determina o montante de partida em função da gravidade tendo em conta o impacto concreto no mercado, este impacto deve ser «plenamente demonstrado para todo o período de duração do acordo», sob pena de o montante de partida dever ser reduzido (41).

149. Em segundo lugar, tendo afirmado que a Comissão não estabeleceu nas orientações nenhuma correspondência ou interdependência entre a apreciação da gravidade e a da duração da infracção, o Tribunal Geral aceitou o argumento da Comissão de que o montante do aumento em função da duração reflecte unicamente a duração da infracção e não a sua gravidade, de tal modo que todos os elementos pertinentes a respeito da intensidade da infracção já são levados em conta quando a gravidade é apreciada. Contudo, o Tribunal Geral não averiguou se a Comissão, quando avaliou a gravidade da infracção, atribuiu a importância adequada ao facto de o cartel ter variado de intensidade e de eficácia ao longo do tempo e de que houve períodos significativos de tensão e de divergência. Em vez de aceitar a afirmação da Comissão de que se pretendia evitar contar duas vezes os mesmos elementos em benefício dos membros do cartel, o Tribunal Geral devia ter examinado cuidadosamente se foi realmente esse o caso na decisão controvertida. Na verdade, foi por duas vezes que a Comissão não atendeu às variações de intensidade, incluindo dois períodos de inactividade: uma vez quando determinou o montante de partida em função da gravidade e novamente quando determinou a majoração em função da duração.

150. Em terceiro lugar, o Tribunal Geral cometeu um erro de lógica quando afirmou que o aumento de 10% por ano era coerente com os princípios enunciados nas orientações, simplesmente com base no facto de estas preverem um aumento de até 10% por ano. O que teria sido correcto se estas tivessem previsto um aumento de (em vez de até) 10%. Todavia, o poder discricionário da Comissão para fixar sanções dentro de um limite mínimo e máximo não é absoluto, pelo que deve explicar a sua escolha em função das especificidades de cada caso, sob fiscalização jurisdicional. A aplicação do aumento máximo não deveria ter sido aprovada pelo Tribunal Geral sem ter primeiro verificado o modo como a Comissão exerceu o seu poder discricionário.

151. Por último, o Tribunal Geral cometeu igualmente um erro quando considerou que um aumento de 125% no montante de partida não era manifestamente desproporcionado. Na decisão em causa, a Comissão reconheceu que a intensidade e a eficácia do cartel variaram no tempo e que houve períodos significativos de tensão e de divergência, mas, ainda assim, aplicou o aumento máximo com base na duração. Por conseguinte, a KME teria sido tratada do mesmo modo mesmo se o cartel tivesse mantido inteiramente a sua intensidade e efectividade do seu início até ao seu fim. Não tendo reconhecido nem atribuído peso a esta realidade, nem tendo corrigido o aumento fixado pela Comissão, o Tribunal Geral violou os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento.

152. Por conseguinte, a KME considera que o acórdão recorrido deve ser anulado a este respeito e que o Tribunal de Justiça deve exercer a sua competência de plena jurisdição para fixar adequadamente um menor aumento percentual em função da duração e reavaliar novamente o montante de partida e, assim, o montante total da coima.

 Resposta da Comissão

153. A Comissão sustenta que o Tribunal Geral determinou que não estava obrigada a fixar o aumento em função da duração com base na intensidade dos efeitos do cartel ou mesmo da gravidade da infracção. No presente fundamento do seu recurso, a KME está unicamente a discordar desta apreciação e convida o Tribunal de Justiça a substituí‑la pela sua própria apreciação; por conseguinte, é inadmissível.

154. O Tribunal Geral forneceu uma explicação clara e lógica para a sua apreciação, respondendo a todos os fundamentos jurídicos invocados pela KME. Decidiu que um aumento em função da duração não está limitado aos casos em que existe uma relação directa entre a duração e o prejuízo acrescido causado aos objectivos comunitários visados pelas regras da concorrência. De seguida, explicou que as orientações não estabeleceram nenhuma sobreposição ou interdependência entre a apreciação da gravidade e a da duração da infracção. Em vez disso, prevêem quatro etapas distintas. A Comissão deve:

(a)      apreciar a gravidade da infracção enquanto tal, para determinar o montante de partida;

(b)      analisar a gravidade da infracção em relação às características de cada empresa, o que pode dar lugar a uma ponderação do montante de partida;

(c)      levar em conta a duração da infracção para a fixação do montante de base; e

(d)      levar em consideração as circunstâncias agravantes e atenuantes que permitem modular o montante da coima.

155. A gravidade da infracção ou a intensidade dos efeitos do cartel não fazem necessariamente parte do aumento referente à duração no quadro da terceira etapa. Uma vez que os argumentos da KME sustentavam que este aumento deveria ter sido inferior a 10% por ano e estando esses argumentos apoiados nesses elementos, a argumentação carecia de fundamento. Não obstante, o Tribunal Geral decidiu que o aumento de 125% que tinha sido fixado não era manifestamente desproporcionado.

156. A KME vem agora alegar que esta apreciação foi iníqua e que o Tribunal de Justiça deveria substituí‑la pela sua própria apreciação. Porém, «[…] num recurso, a fiscalização do Tribunal de Justiça tem por objectivo, por um lado, apreciar em que medida o [Tribunal Geral] levou em consideração, de modo juridicamente correcto, todos os factores essenciais para apreciar a gravidade de um determinado comportamento [...] e, por outro, verificar se o [Tribunal Geral] respondeu satisfatoriamente a todos os argumentos invocados pela parte recorrente com vista a obter a anulação ou a redução da coima [...]. No que diz respeito à amplitude da redução da coima, […] não compete ao Tribunal de Justiça, quando se pronuncia sobre questões de direito no âmbito de um recurso de uma decisão do Tribunal Geral, substituir, por motivos de equidade, pela sua própria apreciação, a apreciação efectuada pelo Tribunal [Geral], o qual se pronunciou, no exercício da sua competência de plena jurisdição, sobre o montante das coimas aplicadas a empresas devido à violação, por estas, do direito comunitário» (42).

157. O terceiro fundamento de recurso da KME é, pois, inadmissível. Além disso, carece de fundamento pelas razões apontadas pelo Tribunal Geral.

158. Relativamente ao acerto da fiscalização do Tribunal Geral, a Comissão observa que (no quadro do seu quinto fundamento, mas referindo‑se ao tratamento que mereceu na primeira instância o seu terceiro fundamento) a KME citou o n.° 103 do acórdão recorrido, no qual o Tribunal Geral fez referência, no âmbito das orientações, ao poder discricionário da Comissão no tocante ao aumento a aplicar em função da duração de uma infracção. Todavia, no n.° 100, o Tribunal Geral já tinha feito, em termos de princípio, a seguinte constatação assertiva: «um aumento do montante da coima em função da duração não se limita aos casos em que existe uma relação directa entre a duração e um prejuízo acrescido (43) causado aos objectivos comunitários das regras da concorrência». Relativamente ao argumento da KME de que, neste contexto, a Comissão estabeleceu um limite a si própria quando adoptou as orientações, o Tribunal Geral explicou o sistema das orientações no n.° 102 e, no n.° 103, fez a seguinte constatação assertiva: «[d]aí decorre que o simples facto de a Comissão se ter reservado a possibilidade de agravar a coima por cada ano de duração da infracção, agravamento que pode ir, relativamente às infracções de longa duração, até 10% do montante fixado em função da gravidade da infracção, em nada a obriga a fixar essa taxa atendendo à intensidade das actividades do cartel ou aos respectivos efeitos, ou ainda à gravidade da infracção. Com efeito, compete à Comissão escolher, no âmbito da sua margem de apreciação […], a taxa de agravamento que considera dever aplicar em função da duração da infracção.» Por conseguinte, o Tribunal Geral tomou em consideração o argumento da KME segundo o qual a Comissão tinha imposto a si própria uma obrigação específica quando adoptou as orientações e formulou a constatação assertiva de que tal não era o caso.

 Apreciação

159. Uma especificidade inesperada do presente fundamento deste recurso (e do correspondente fundamento na primeira instância e até mesmo da parte pertinente da decisão em causa) é que toda a controvérsia assenta afinal inteiramente num elementar erro de aritmética que ressalta do acórdão recorrido, embora se constate que escapou à atenção de todos os interessados.

160. A KME queixou‑se desde o início de que a sua coima teve um agravamento de 125% em função da duração da infracção, percentagem que considera excessiva. A Comissão não contestou minimamente esta premissa (o que certamente explica a razão pela qual o Tribunal Geral a aceitou sem dificuldade) e constata-se mesmo que teve a impressão de que tinha efectivamente aumentado a coima da KME em 125% na decisão em causa. Porém, não o fez.

161. Verifica‑se sem o recurso a um cálculo complicado que o aumento foi consideravelmente inferior. Se aumentarmos um montante em 100% temos o seu dobro; logo, se for aumentado em 125%, termos mais do que o dobro. Todavia, se compararmos os números globais fornecidos para todo o grupo KME nos n.os 17 e 19 do acórdão recorrido (respectivamente, 35 milhões de euros e 56,88 milhões de euros) (44), podemos ver que o aumento descrito no n.° 19 conduziu a um montante de partida inferior ao dobro. Na verdade, o verdadeiro aumento foi de 62,5% (45), precisamente metade do que foi afirmado, presumido ou aceite durante todo o processo. Com efeito, a Comissão tratou o comportamento da KME como uma participação em duas infracções distintas, uma com uma duração de sete anos e outra com uma de cinco anos e meio, conduzindo a um aumento global em função da duração inferior ao aplicado no caso da Outokumpu e da Wieland, apesar de o comportamento infractor ter durado 12 anos e 10 meses no respeitante a todos os participantes (46).

162. É preocupante que esta discrepância de quase 22 milhões de euros (47) tenha passado despercebida. Talvez os contabilistas da KME não tenham verificado os cálculos feitos na decisão em causa; talvez não tenham tido uma oportunidade para chamar à atenção para esta questão e os advogados da KME podem não ter tido as competências matemáticas necessárias ou terem‑se abstido de verificar as ordens de grandeza em causa do modo que descrevi no número anterior. É também possível que a Comissão nunca tenha verificado os números, quer na fase do cálculo da coima quer durante o processo judicial. Se (como parece pouco provável) a intenção tinha efectivamente sido a de aplicar um aumento global de 62,5%, verifica-se que, no mínimo, não houve, no seio da Comissão, qualquer comunicação entre os responsáveis pela fixação da coima e as pessoas encarregadas da defesa no recurso interposto pela KME.

163. Em todo caso, verifica‑se que o resultado líquido foi o seguinte: enquanto as coimas aplicadas à Outokumpu e à Wieland foram realmente aumentadas em 125% (um total acumulado ligeiramente inferior a 10% por ano de infracção) na fase do cálculo, as coimas aplicadas à KME foram aumentadas em apenas 62,5% (ligeiramente inferior a 5% por ano), apesar de ter participado no cartel, como grupo ou na forma de várias sociedades, durante o mesmo período de tempo (48). Eis exposto o que se verifica ser um erro na decisão em causa que, se tivesse sido detectado, poderia ter sido contestado pela Outokumpu ou pela Wieland ou poderia ter levado o Tribunal Geral a aumentar a coima da KME.

164. Contudo, a questão que aqui se coloca é: em que medida este erro afecta o presente fundamento do recurso?

165. Creio que o erro torna este fundamento inoperante. Com efeito, conclui-se que se tornou inoperante o fundamento inicial invocado na primeira instância e que os argumentos da Comissão, bem com as constatações do Tribunal Geral, estão desprovidos de pertinência. A KME sustenta que a Comissão não deveria ter aplicado o agravamento máximo de 10% por ano de infracção em razão de uma duração presumida de doze anos e meio (ou até de um pouco mais), resultando num aumento global de 125%. Não foi isto o que a Comissão fez, nada mais havendo a acrescentar nesta matéria.

166. É verdade que, em teoria, seria possível tratar separadamente a questão de saber se a Comissão deveria ter aplicado um agravamento máximo de 10% por ano do modo como fez, conduzindo a um aumento global de 62,5%. Todavia, o raciocínio do Tribunal Geral e a argumentação da KME em sede deste recurso assentam na hipótese de o aumento global ter sido de 125%. Seria pura especulação tratar a questão à luz do que poderia ter sido esse raciocínio e esta argumentação caso tivesse sido analisado o aumento real.

167. Seria possível sustentar que o facto de ter passado despercebida ao Tribunal Geral a referida discrepância serve de apoio à alegação da KME de que o nível de fiscalização judicial não foi o adequado. No entanto, o Tribunal Geral mais não fez do que assentar a sua decisão numa premissa que era aceite por ambas as partes. Se, além disso, esse Tribunal tivesse considerado que essa premissa estava errada, o resultado não poderia ter sido favorável à KME – a qual, não pode, pois, invocar minimamente que os seus direitos foram negativamente afectados.

 Quarto fundamento de recurso: redução da coima em virtude da cooperação

 Passagens pertinentes do acórdão recorrido

168. Na decisão em causa, a Comissão reduziu a coima aplicada à Outokumpu por esta ter fornecido provas que permitiram estabelecer a duração da infracção em doze anos e dez meses, em vez de em apenas quatro anos. A redução colocou a Outokumpu na mesma posição que estaria se o agravamento em função da duração tivesse sido de apenas 40%, em vez de 125%.

169. Na quarta parte do quarto fundamento apresentado na primeira instância, a KME alegou que, em violação do disposto nas orientações e dos princípios da equidade e da igualdade de tratamento, a Comissão não considerou de forma adequada a sua contribuição para o estabelecimento da duração total da infracção. Como foi a primeira a fornecer à Comissão indícios decisivos (e não simples informações) relativos a dois períodos de infracção (Maio de 1988 a Novembro de 1992 e Maio de 1998 até ao fim de 1999), a KME deveria ter beneficiado de uma redução da coima aplicada a respeito destes dois períodos, nos mesmos termos da redução aplicada à Outokumpu.

170. O Tribunal Geral negou provimento a este argumento nos n.os 123 a 133 do acórdão:

«123      […] há que começar por referir que, nos termos da comunicação sobre a cooperação de 1996, nem a Outokumpu nem as recorrentes podiam beneficiar de uma redução superior a 50% do montante final das coimas que lhes foram aplicadas, já que não tinham denunciado a infracção à Comissão antes de esta ter procedido às inspecções que lhe deram razões suficientes para dar início ao procedimento de infracção que deu origem à decisão impugnada.

124      Também é facto assente que foi através de um memorando da Outokumpu de 30 Maio de 2001 que a Comissão foi informada, pela primeira vez, da duração total do cartel. Com efeito, com base nas informações anteriormente prestadas pela sociedade Mueller Industries, a Comissão só estava em condições de provar a existência de uma infracção em relação ao período compreendido entre Maio de 1994 e Maio de 1998. No entanto, as recorrentes sustentam que foi graças à informação que transmitiram à Comissão em Outubro de 2002 que esta última pôde definitivamente provar a existência do cartel relativamente aos períodos compreendidos entre Maio de 1988 e Novembro de 1992 e entre Maio de 1998 até ao fim de 1999.

125      Ao demonstrar a duração adicional da infracção, a Comissão passou a poder aumentar os montantes de partida das coimas aplicadas aos infractores de 125% em vez de 40%, nos termos do ponto 1 B das orientações. Deste modo, as empresas que tinham dado a informação à Comissão relativa à duração adicional da infracção corriam o risco de ver o montante de partida das suas coimas agravado de 85 pontos percentuais adicionais.

126      Este é um paradoxo inerente à comunicação sobre a cooperação de 1996, no sentido de que uma empresa abrangida pelo ponto D da referida comunicação que transmita informações novas à Comissão corre o risco de ser mais severamente punida do que se não tivesse transmitido essas informações à Comissão. O ponto 3, sexto travessão, das orientações, segundo o qual a «colaboração efectiva da empresa no processo fora do âmbito de aplicação [da comunicação sobre a cooperação de 1996]» pode constituir uma circunstância atenuante, permite corrigir este paradoxo.

127      No caso vertente, ao aplicar, sem o mencionar, o ponto 3, sexto travessão, das orientações, a Comissão concedeu, de facto, imunidade à Outokumpu relativamente à duração suplementar do cartel, que ignorava antes de ter recebido o seu memorando de 30 de Maio de 2001 (considerando 386 da decisão impugnada).

128      Assim sendo, há que verificar se a Comissão era obrigada, quer por força do ponto 3, sexto travessão, das orientações, quer em conformidade com o princípio da igualdade de tratamento, a conceder também uma redução às recorrentes pelas informações que transmitiram à Comissão, mais de dezasseis meses depois da Outokumpu, relativamente aos períodos compreendidos entre 1988 e 1992 e entre 1998 e 1999.

129      A este respeito, importa recordar preliminarmente que a Comissão dispõe de uma margem de apreciação relativamente à aplicação de circunstâncias atenuantes (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 8 de Julho de 2004, Mannesmannröhren‑Werke/Comissão, T‑44/00, Colect., p. II‑2223, n.° 307).

130      Em seguida, há que salientar que é inerente à lógica da imunidade em relação às coimas que só um dos membros de um cartel pode beneficiar dela, dado que o efeito pretendido é o de criar um clima de incerteza dentro dos cartéis, encorajando a sua denúncia à Comissão. Ora, esta incerteza resulta precisamente do facto de os participantes no cartel saberem que só um deles poderá beneficiar da imunidade em relação à coima denunciando os outros participantes na infracção, expondo‑os assim ao risco de lhes serem aplicadas coimas mais elevadas.

131      Numa situação como a do caso em apreço, em que a Comissão sabe que existe um acordo mas não dispõe de certos elementos essenciais susceptíveis de demonstrar a duração total dessa infracção, é particularmente desejável poder recorrer a esse mecanismo, especialmente para evitar que os infractores se ponham de acordo sobre a dissimulação dos referidos elementos.

132      Esta situação é distinta daquelas em que a Comissão já tem conhecimento de elementos probatórios mas procura completá‑los. Neste último caso, a concessão de uma redução da coima aos infractores em vez da imunidade em relação à coima a uma única empresa justifica‑se pelo facto de o objectivo já não ser o de revelar uma circunstância susceptível de levar ao aumento da coima aplicada, mas o de juntar o maior número possível de provas para reforçar a capacidade da Comissão de demonstrar os factos em questão.

133      No que diz respeito à suposta desigualdade de tratamento entre a Outokumpu e as recorrentes, basta referir que estas empresas não se encontravam em situações comparáveis, uma vez que a primeira transmitiu à Comissão as informações relativas à duração suplementar de oito anos e meio do cartel mais de um ano antes das recorrentes.»

 Resumo das alegações

 Recurso da KME

171. A KME assinala que a circunstância atenuante relativa à «colaboração fora do âmbito da comunicação sobre a cooperação» preenche uma lacuna da comunicação sobre a cooperação de 1996 – suprida em 2002 – assegurando que uma empresa que forneça à Comissão a prova de factos até então desconhecidos, relativos à gravidade e/ou à duração da infracção, não seja punida com uma coima mais severa do que a que lhe seria aplicada caso não o tivesse feito. A essa empresa é concedida imunidade parcial relativamente aos aspectos da infracção que a Comissão desconhecia até então e que lhe permitiram estabelecê‑la. Por definição, apenas uma empresa pode beneficiar desta circunstância atenuante. Uma vez que a KME não contestou este princípio, foi com base numa interpretação errada do seu pedido que o Tribunal Geral verificou se a Comissão estava obrigada «a conceder também uma redução às recorrentes pelas informações que transmitiram à Comissão, mais de dezasseis meses depois da Outokumpu, relativamente aos períodos compreendidos entre 1988 e 1992 e entre 1998 e 1999.»

172. A KME entende que existem dois critérios possíveis para a aplicação desta circunstância atenuante: aplica‑se à primeira empresa a prestar à Comissão (a) informações ou (b) provas anteriormente desconhecidas com incidência na gravidade ou na duração de uma infracção. Considera que o segundo critério é o correcto e que o Tribunal Geral aplicou erradamente o primeiro para apreciar qual dos membros cooperantes do cartel – a KME ou a Outokumpu – podia beneficiar desta circunstância atenuante. Fundamenta o seu ponto de vista com as seguintes considerações:

(i)      as disposições correspondentes das comunicações sobre a cooperação de 2002 e de 2006 (49) indicam claramente que apenas uma empresa que apresente provas à Comissão (e não simples informações) pode beneficiar de imunidade parcial;

(ii)      a Comissão não alterou a sua política em matéria de aplicação das coimas na sequência da adopção das comunicações sobre a cooperação de 2002 e de 2006 e, por conseguinte, não se deveria interpretar a «cooperação fora do âmbito da comunicação sobre a cooperação» que figura na comunicação de 1996 de um modo incompatível com a comunicação sobre a cooperação de 2006;

(iii) segundo as comunicações sobre a cooperação de 2002 e de 2006, o facto de a Comissão poder ter algum conhecimento da actividade do cartel não impede que aos requerentes da dispensa ou da redução da coima seja concedida imunidade total relativamente às coimas, mesmo quando tal conhecimento seja suficiente para a realização de uma inspecção no local (mas insuficiente para estabelecer a infracção); de igual modo, o facto de a Comissão poder ter algum conhecimento de comportamentos anticoncorrenciais ocorridos num determinado período – inclusivamente, resultantes de informações infundadas fornecidas por um participante num cartel – não deve impedir que aos requerentes da dispensa ou da redução da coima seja concedida uma imunidade parcial se posteriormente vierem a apresentar elementos de prova adequados de tal comportamento, que permitam à Comissão provar a existência do cartel durante esse período;

(iv)      por último, as empresas estariam muito mais relutantes em cooperar com a Comissão se temessem a aplicação de coimas relativamente a períodos para os quais foram as únicas a fornecer as provas necessárias: sem a cooperação da KME, a Comissão não poderia ter estabelecido a infracção contínua de 1988 a 2001. O raciocínio que permitiu a aplicação da circunstância atenuante pertinente à Outokumpu para os períodos de 1988 a 1993 e de 1999 a 2001, também se aplicava à KME relativamente aos mesmos períodos. Portanto, era injusto que a KME, que forneceu à Comissão provas até então desconhecidas relativas à duração e à gravidade da infracção, fosse sancionada por uma infracção com maior duração que a Comissão só pôde estabelecer (em vez de ter uma mera suspeita) graças à sua cooperação.

173. Nestes termos, a KME pede a anulação do acórdão recorrido, na medida em que o Tribunal Geral não concluiu que a KME devia ter beneficiado de uma redução do coeficiente multiplicador, em razão da duração, aplicado ao montante de partida da coima relativamente aos períodos compreendidos entre Maio de 1988 e Novembro de 1992 e entre Maio de 1998 e o fim de 1999, e que, no exercício da sua competência de plena jurisdição, anule a correspondente parte da decisão em causa e consequentemente recalcule o montante da coima.

 Resposta da Comissão

174. A Comissão sustenta que, quando apreciou os casos nos quais pode ser concedida uma imunidade parcial – diversamente de uma redução da coima por cooperação – o Tribunal Geral forneceu uma explicação clara e lógica, que responde a todos os argumentos jurídicos aduzidos pela KME. Nos n.os 123 a 127 do acórdão recorrido, explicou que, por ter revelado a duração total do cartel, a Outokumpu permitiu à Comissão aumentar o montante de partida da sua coima em 85%, ao passo que a redução máxima da coima em virtude da cooperação não podia ser superior a 50%. A Comissão resolveu esse paradoxo concedendo à Outokumpu uma redução da coima, equivalente à da imunidade parcial no referente à duração adicional que revelou. Nos n.os 131 e 132, o Tribunal Geral explicou como esta situação se distingue do caso das empresas que simplesmente fornecem provas a respeito de um período do cartel que já era do conhecimento da Comissão.

175. A KME pede que o Tribunal de Justiça substitua a apreciação do Tribunal Geral pelo critério que propõe. Não apenas este pedido é inadmissível, mas a apreciação do Tribunal Geral é manifestamente correcta e a da KME manifestamente errada. Quando a Outokumpu forneceu novas informações à Comissão revelou a duração total do cartel, colocando pela primeira vez a Comissão na posição de poder investigar e procurar as provas desta duração total. Sem esta divulgação, não teria sido possível estabelecer uma infracção relativamente a esses anos desconhecidos. A KME limitou‑se a fornecer provas que, enquanto tais, ainda não estavam na posse da Comissão, mas que se relacionavam com elementos da infracção que já eram desta conhecidos (dentro da duração já revelada pela Outokumpu) e que não tiveram, pois, um impacto tão fundamental na investigação. A Comissão já estava a investigar e a procurar provas no tocante à duração do cartel e podia perfeitamente tê‑las obtido mesmo sem o auxílio da KME. Esta limitou-se a facilitar a tarefa da Comissão e não mais do que isto.

176. A distinção operada pela KME entre informações e provas não é decisiva. Na realidade, as «informações» fornecidas pela Outokumpu também constituíam elementos de prova. O memorando da Outokumpu de 30 de Maio de 2001, ao qual se fez referência no n.° 124 do acórdão recorrido, foi utilizado como meio de prova na decisão impugnada. Em contrapartida, as «provas» apresentadas pela KME forneceram claramente à Comissão informações sobre determinados pormenores do cartel. O factor decisivo é saber se alguma «informação» ou «prova» revelam pela primeira vez um elemento do cartel que afecta a sua gravidade ou a sua duração e que não poderia ter sido investigado sem a contribuição da empresa em causa.

177. Além disso, não teria sido concedida imunidade parcial à KME ao abrigo da citada comunicação sobre a cooperação de 2002. Esta comunicação prevê a imunidade parcial para a empresa que «fornecer elementos de prova relacionados com factos anteriormente desconhecidos da Comissão, com incidência directa sobre a gravidade ou a duração do cartel presumido». A prova fornecida pela KME respeitava a factos do conhecimento da Comissão, a saber, a duração total do cartel.

178. O critério alternativo da KME viria juntar‑se ao critério de uma redução da coima em virtude da cooperação prevista no ponto D da comunicação sobre a cooperação de 1996, ao abrigo do qual uma empresa que forneça «informações, documentação ou outras provas que contribuam para confirmar a existência da infracção […] beneficiará de uma redução de 10% a 50%» e tornaria este critério inutilizável. O critério da KME permitir-lhe-ia beneficiar da imunidade, ao passo que a comunicação sobre a cooperação prevê expressamente uma redução máxima de 50% da coima, destruindo assim completamente o sistema criado pela comunicação sobre a cooperação. A KME foi devidamente recompensada pela sua cooperação com uma redução de 30% da coima, a qual foi confirmada pelo Tribunal Geral e não foi por esta impugnada em sede do presente recurso.

179. Relativamente à adequação do escrutínio do Tribunal Geral, a Comissão observa que (no contexto do seu quinto fundamento, mas referindo‑se ao tratamento do seu quarto fundamento na primeira instância) a KME cita o n.° 115 do acórdão recorrido, no qual o Tribunal Geral afirmou que, não contendo as orientações qualquer indicação de natureza imperativa, a Comissão conservou uma determinada margem para apreciar as circunstâncias atenuantes e o n.° 129, no qual observou novamente que a Comissão dispõe de uma margem de apreciação para este efeito. Porém, estas observações foram feitas no contexto dos argumentos da KME, segundo os quais a Comissão violou o ponto 3 das orientações quando se recusou a levar em conta determinadas circunstâncias atenuantes. O Tribunal Geral devia determinar se estes argumentos versavam sobre matérias relativamente às quais a Comissão estava limitada pelas obrigações que impôs a si própria nas orientações ou se conservava uma margem de apreciação. Tal não indica minimamente uma falta de fiscalização judicial adequada, mas reflecte simplesmente a natureza dos argumentos que a KME apresentou na primeira instância. Relativamente à alegação segundo a qual a KME deveria ter beneficiado de uma imunidade parcial e não de uma «mera» redução da coima a título da cooperação, o Tribunal Geral concluiu de modo assertivo que, em todo o caso, tal não teria sido correcto, assinalando, por exemplo, no n.° 132, que «a concessão de uma redução da coima aos infractores em vez da imunidade em relação à coima a uma única empresa justifica‑se pelo facto de o objectivo já não ser o de revelar uma circunstância susceptível de levar ao aumento da coima aplicada […]».

 Apreciação

180. Observo que, se a coima da KME tivesse sido reduzida na decisão em causa de modo a anular efectivamente o aumento em função da duração referente aos períodos que totalizam seis anos e um mês relativamente aos quais afirma ter fornecido à Comissão «provas decisivas», o resultado teria sido o equivalente à aplicação de um aumento apenas quanto aos restantes seis anos e nove meses da infracção. Se tivesse sido mantida a taxa anual de 10% como o foi para os outros participantes, tal teria implicado um aumento de 67,5%, ou seja, superior em 5% ao aumento global efectivamente (e talvez inadvertidamente) aplicado (50). Por conseguinte, é de novo plausível que, caso o Tribunal Geral tivesse tido um pleno conhecimento da situação, o resultado pudesse não ter sido vantajoso para a KME mesmo que este argumento específico tivesse vingado.

181. Assim sendo, pode‑se entender que é possível adoptar a mesma abordagem que sugeri relativamente ao terceiro fundamento e concluir que este fundamento (juntamente com o argumento aduzido em primeira instância) é inoperante. Todavia, creio que, no caso vertente, a questão de saber se a KME não deveria ter sido tratada como se não tivesse participado no cartel durante os períodos a respeito dos quais forneceu elementos de prova à Comissão não está intrinsecamente relacionada com a questão da percentagem do aumento e pode, pois, ser abordada separadamente.

182. O argumento da KME assenta essencialmente em três proposições, que, em princípio, devem ser todas estabelecidas para que o argumento seja bem sucedido: (a) as informações que revelam um período da infracção devem ser distinguidas dos elementos de prova que estabelecem que a infracção foi cometida durante esse período; (b) quando são fornecidas informações em primeiro lugar por uma parte e posteriormente outra parte fornece elementos de prova, deve ser unicamente esta última a beneficiar da imunidade relativamente ao período em causa; e (c) no que respeita aos períodos decorridos entre Maio de 1988 e Novembro de 1992 e entre Maio de 1998 e o fim de 1999, a KME forneceu elementos de prova, ao passo que a Outokumpu só tinha anteriormente fornecido informações.

183. Quanto ao ponto (a), concordo com o entendimento da Comissão de que não se pode introduzir qualquer distinção válida entre as informações (pelas quais a KME parece entender declarações com base em recordações) e os elementos de prova (entendidos no sentido de documentos ou outros elementos materiais dos quais se podem retirar conclusões). Na realidade, as informações fornecem elementos de prova (caso contrário, seria em vão que se procederia à audição de testemunhas em processos judiciais) e os elementos de prova fornecem informações (sem as quais não teriam qualquer valor). Por conseguinte, o Tribunal Geral não cometeu qualquer erro quando tratou as contribuições da Outokumpu e da KME do mesmo modo no que respeita à natureza da sua contribuição para a investigação da Comissão.

184. Relativamente ao ponto (b), embora as informações e os elementos de prova não possam habitualmente ser distinguidos consoante a sua natureza no tocante à sua utilidade para a investigação, é bem possível que a utilidade de diferentes contribuições, quer se trate de «informações» ou de «elementos de prova», difira grandemente no que concerne à sua utilidade no âmbito de uma determinada investigação. Portanto, é bem possível que um participante num cartel forneça informações ou elementos de prova a propósito de um período de infracção que sejam tão vagos e inconclusivos que não tenham qualquer utilidade prática para a Comissão e que, posteriormente, outro participante forneça informações pormenorizadas ou elementos de prova de suma importância para estabelecer que a infracção ocorreu durante o período em questão. Nesta hipótese, não seria razoável que a Comissão, se concedesse alguma redução da coima a esse respeito, favorecesse o último; e se, ao invés, favorecesse o primeiro, o último poderia de forma perfeitamente justificada pedir que o Tribunal Geral reexaminasse a abordagem seguida, no quadro da sua competência de plena jurisdição, sendo claro que o resultado dependeria da apreciação que o Tribunal fizesse dos factos. Em todo o caso, é indiscutível que a «lógica da imunidade em relação às coimas» a que o Tribunal Geral faz referência no n.° 130 do seu acórdão milita a favor de apenas se recompensar o primeiro participante a fornecer informações ou elementos de prova pertinentes.

185. Relativamente ao ponto (c), a questão de saber se os «elementos de prova» fornecidos pela KME assumiram uma importância decisiva, tendo permitido que a Comissão concluísse que o cartel tinha funcionado durante os períodos em questão, ao passo que as «informações» anteriores da Outokumpu não eram de natureza a se retirar qualquer conclusão, é uma questão de facto que não pode ser objecto do presente recurso. Além disso, resulta a este respeito dos n.os 128 e 131 a 133 do acórdão recorrido que o Tribunal Geral considerou que a Outokumpu tinha fornecido informações essenciais, de natureza a [permitir] demonstrar a duração total da infracção, informações estas que foram completadas pela KME mais de dezasseis meses depois com elementos de prova que reforçaram a capacidade de a Comissão estabelecer os factos. Com base em tal apreciação dos factos, não cabe dúvida de que o Tribunal Geral não cometeu qualquer erro de direito quando julgou improcedente a quarta parte do quarto fundamento invocado pela KME.

186. Por último, relativamente à questão da adequabilidade da fiscalização realizada pelo Tribunal Geral, é evidente que as declarações que este Tribunal fez a respeito da margem de apreciação de que goza a Comissão relativamente aos factores que considera serem atenuantes, em nada o impediram de analisar correctamente e de responder aos argumentos da KME, bem como de chegar a uma conclusão com base numa verdadeira apreciação dos factos e dos argumentos de que dispunha.

 Quanto às despesas

187. Por força do artigo 122.° do Regulamento de Processo, se o recurso for julgado improcedente, o Tribunal de Justiça decidirá sobre as despesas. Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Concluí, no presente caso, que deve ser negado provimento ao recurso. Tendo a Comissão pedido a condenação da recorrente nas despesas, a KME deve ser condenada nas despesas efectuadas pela Comissão.

 Conclusão

188. Visto o conjunto das precedentes considerações, proponho que o Tribunal de Justiça:

–        negue provimento ao recurso; e

–        condene a KME Germany AG, a KME France SAS e a KME Italy SpA nas despesas efectuadas pela Comissão.


1 – Língua original: inglês.


2 – O Tribunal Geral era, nesse momento, antes do Tratado de Lisboa ter entrado em vigor, designado «Tribunal de Primeira Instância». Por uma questão de simplicidade e porque a alteração foi puramente formal, utilizarei a sua designação actual ao longo destas conclusões.


3 – Acórdão de 6 de Maio de 2009, KME Germany e o. (T 127/04, Colect., 2009, p. II-1167) (a seguir «acórdão recorrido»). Os outros participantes no cartel, aos quais foi aplicada uma coima na mesma decisão, também impugnaram essa decisão e aos seus recursos foi igualmente negado provimento no mesmo dia: v. acórdão de 6 de Maio de 2009, Wieland Werke/Comissão (T‑116/04, Colect., 2009, p. II‑1087) e acórdão de 6 de Maio de 2009, Outokumpu e Luvata/Comissão (T‑122/04, Colect., 2009, p. II‑1135).


4 – Proclamada em Nice em 7 de Dezembro de 2000 (JO, C 364, p. 1). Foi aprovada pelo Parlamento Europeu uma versão actualizada em 29 de Novembro de 2007, após terem sido eliminadas as referências à Constituição para a Europa (JO 2007, C 303, p. 1); a versão consolidada mais recente – pós‑Tratado de Lisboa – foi publicada no JO 2010, C 83, p. 389.


5 –      Versão original (2000). Na segunda frase lê‑se agora: «Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respectivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados.»


6 – De 6 de Fevereiro de 1962, Primeiro Regulamento de execução dos artigos [81.°] e [82.°] do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22). Com efeitos a contar de 1 de Maio de 2004, o Regulamento n.° 17 foi revogado e substituído pelo Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado (JO 2003, L 1, p. 1), o qual transferiu uma boa parte da responsabilidade pela aplicação do direito da concorrência da UE para os tribunais e as autoridades dos Estados‑Membros.


7 –      A unidade de conta é a antepassada do euro.


8 –      Disposições substancialmente análogas figuram presentemente no artigo 23.°, n.os 2, 3 e 5, do Regulamento n.° 1/2003.


9 –      Uma disposição substancialmente análoga figura no artigo 31.° do Regulamento n.° 1/2003.


10 – Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2 do artigo 15.° do Regulamento n.° 17 e do n.° 5 do artigo 65.° do Tratado CECA (JO 1998, C 9, p. 3). As Orientações de 1998 foram substituídas a partir de 1 de Setembro de 2006 pelas orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2, alínea a), do artigo 23.o do Regulamento (CE) n.° 1/2003. As orientações de 2006 adoptaram uma abordagem bastante diferente, fixando essencialmente um montante de base habitualmente calculado em 30% do valor anual das vendas às quais a infracção se reporta (eventualmente ajustado em função de todas as circunstâncias relevantes), multiplicado pelo número de anos de participação na infracção e seguidamente ajustado à luz das circunstâncias agravantes, das circunstâncias atenuantes e tendo em conta um factor de dissuasão, até ao limiar máximo legal de 10% do volume de negócios anual, sem prejuízo da aplicação das regras da comunicação sobre a cooperação (v. n.° 22 e nota 13 infra), e da possibilidade excepcional de reduzir a coima que, caso contrário, seria fatal para a empresa.


11 –      Nota desprovida de pertinência para a tradução portuguesa.


12 – Como se verá no contexto do terceiro e do quarto fundamentos do recurso, pode ser útil especificar que isto significa (e é uma interpretação que, tanto quanto sei, nunca foi questionada) um aumento do montante global em (≤10 x n)%, no qual n = número de anos de duração da infracção. V. igualmente n.° 19 do acórdão recorrido, evocado no n.° 26 e na nota 16 infra.


13 – Comunicação da Comissão sobre a não aplicação ou a redução de coimas nos processos relativos a acordos, decisões e práticas concertadas (JO 1996, C 207, p. 4), aplicável à data dos factos. Esta comunicação foi substituída com efeitos a partir de 14 de Fevereiro de 2002 pela Comunicação da Comissão relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis (JO 2002, C 45, p. 3), substituída em 2006 pela Comunicação da Comissão relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis (JO 2006, C 298, p. 17).


14 – C (2003) 4820 final (processo COMP/E‑1/38.240 – tubos industriais) (a seguir «decisão impugnada» ou «decisão em causa»). Um resumo foi publicado no JO 2004 L 125, p. 50.


15 – Este montante era composto por 10,41 milhões de euros para a KME Germany, 10,41 milhões de euros solidariamente para a KME France e para a KME Italy, ambos os valores relativos ao período compreendido entre 3 de Maio de 1988 e 19 de Junho de 1995, e de 18,99 milhões de euros solidariamente para as três empresas, relativos ao período compreendido entre 20 de Junho de 1995 e 22 de Março de 2001.


16 –      Apesar de tal não ser indicado no acórdão recorrido, a decisão em causa aumentou os montantes de partida em 125%, tanto para a Outokumpu como para a Wieland, fazendo‑os passar respectivamente de 17,33 milhões de euros para 38,98 milhões de euros e de 11,55 milhões de euros para 25,99 milhões de euros (considerandos 328, 334 e 347 da decisão em causa).


17 – Acórdão de 13 de Julho de 1966, Consten e Grundig/Comissão (56/64 e 58/64, Colect. 1965‑1968, p. 423).


18 – Creio que a Comissão se refere aqui unicamente aos segundo, terceiro e quarto fundamentos devido às passagens do acórdão citadas pela KME (v. n.° 41, supra) respeitarem apenas a estes fundamentos.


19 – Acórdão Engel e o. c. Países Baixos, de 8 de Junho de 1976, série A, n.° 22, § 82.


20 – V., por exemplo, acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Jussila c. Finlândia, de 23 de Novembro de 2006 (Colectânea dos acórdãos e decisões 2006‑XIII, §  43).


21 – V., igualmente, n.os 48 a 52 das conclusões apresentadas pelo advogado‑geral Bot em 26 de Outubro de 2010 no processo C‑352/09 P, ThyssenKrupp Nirosta/Comissão, as quais subscrevo inteiramente, juntamente com a jurisprudência aí referida.


22 – Não é necessário decidir se, como foi inquirido na audiência, este opróbrio é superior ao que estigmatiza a evasão fiscal, apesar do simples facto de a questão ter sido suscitada não ser muito lisonjeiro para a imagem da moralidade das empresas.


23 – Não creio que seja necessário tomar em consideração as observações da KME sobre o aumento considerável do nível das coimas aplicadas pela Comissão nos últimos anos; não é a severidade da sanção efectivamente aplicada que define a natureza da infracção, mas sim o tipo de sanções que podem ser aplicadas.


24 – As orientações mencionam «os objectivos prosseguidos pela repressão das infracções» e referem que deve ser fixado um montante «que assegure que a coima apresenta um carácter suficientemente dissuasivo.»


25 – Decisão da Terceira Secção de 3 de Junho de 2004, a respeito da admissibilidade das petições n.os 69042/01, 69050/01, 69054/01, 69055/01, 69056/01 e 69058/01, OOO Neste St Petersburg e o./Russia.


26 – Já referido na nota 20, supra, §  43, o qual remete para o acórdão société Stenuit c. França, de 27 de Fevereiro de 1992, série A, n.° 232‑A, prestando especial atenção ao direito da concorrência.


27 – V. igualmente acórdão de 10 de Fevereiro de 1983, Albert e Le Compte c. Bélgica, § 29, série A, n.º 58.


28 – V. acórdão de 29 de Abril de 1988, Belilos e Suíça, § 68, série A, n.° 132.


29 – A KME cita, por exemplo, D. Slater e o., Competition law proceedings before the European Commission and the right to a fair trial: no need for reform?, GCLC Working Paper 04/08; e S. Wisking, Does the European Commission Provide Parties with a Proper Opportunity to be Heard on the Level of Fines?, GCP – The Online Magazine for Global Competition Policy [edição de Junho de 2009 (2)].


30 – Embora se deva reconhecer que foram adoptadas medidas em diversos momentos que permitiram uma melhor separação destas funções, das quais talvez o exemplo mais notável seja a decisão de nomear um auditor independente para presidir às audiências, em vez do director da Direcção que conduziu o inquérito, como era anteriormente o caso (v. XI Relatório da Comissão sobre a Política de Concorrência, de 1981, n.° 26).


31 – O mesmo também vale se o processo respeitar a um litígio puramente «civil» que abranja litígios de direito administrativo (v., por exemplo, TEDH, acórdão Obermeier/Áustria, de 28 de Junho de 1990, §§  67 e 70, Série A, n.° 179).


32 – V. TEHD, acórdão Valico S.r.l. c. Itália (dec.), petição n.° 70074/01, Colectânea dos acórdãos e decisões 2006‑XIII, p. 20 e a jurisprudência referida.


33 – V. TEHD, acórdão Crompton c. Reino Unido, de 27 de Outubro de 2009, § 71 e a jurisprudência referida.


34 – V., como exemplo recente, acórdão de 14 de Outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, C‑280/08 P, ainda não publicado na Colectânea, n.° 24.


35 – Acórdão do Tribunal Geral de 27 de Setembro de 2006, Roquette Frères/Comissão, T‑322/01, Colect., p. II‑3137, n.° 73, citado no n.° 68 do acórdão recorrido.


36 – A qual, mesmo podendo dar origem a alguma hesitação em inglês, é equivalente à inequívoca expressão «[à] titre surabondant» da versão francesa na qual o Tribunal Geral redigiu o seu acórdão.


37 – Remeto especialmente para a resenha que figura nos n.os 95 e segs. das conclusões apresentadas pelo advogado‑geral Mischo no processo Mo och Domsjö/Comissão, e para os n.os 129 e 130 do acórdão Dalmine/Comissão, ambos referidos no n.° 64 do acórdão recorrido e já referidos no n.° 84, supra.


38 – V., designadamente, os n.os 299 a 301 e 314 da decisão em causa.


39 – Referido no n.° 91 do acórdão recorrido.


40 –      V. nota 43, infra.


41 – Acórdão de 5 de Abril de 2006, Degussa/Comissão, T‑279/02, Colect., p. II‑897, n.os 247 e 254.


42 – Acórdão de 29 de Abril de 2004, British Sugar/Comissão (C‑359/01 P, Colect., p. I‑4933, n.os 47 e 48).


43 – Na versão inglesa do acórdão recorrido lê‑se aqui «acute», mas na versão francesa (em que o acórdão foi originalmente redigido) lê‑se «accru» – o que significa «increased». Na jurisprudência anterior, «accru» foi traduzido como «serious». Talvez «aggravated» tivesse sido uma melhor tradução.


44 – V. n.° 26, supra.


45 – Mais precisamente, excedeu ligeiramente 62,5%, porque, depois de realizar os seus cálculos, a Comissão arredondou por excesso o valor obtido, fazendo-o passar de 56,875 milhões de euros para 56,88 milhões de euros. Todavia, compensou-o com um arredondamento por defeito numa fase posterior, quando aplicou uma redução de 30%. Os valores com os quais a Comissão trabalhou na decisão em questão parecem ter sido todos arredondados para a dezena de milhares de euros.


46 – Como o grupo KME foi constituído como tal apenas em 1995 (apesar de as suas entidades constituintes terem participado no cartel durante todo o período), a Comissão dividiu a coima global em duas partes iguais: uma, para o período de 1988 a 1995, repartida seguidamente entre as diversas entidades; a outra, para o período de 1995 a 2001, aplicada ao grupo como um todo. Para a primeira parte, a Comissão aplicou um aumento de 70% e, para a segunda parte, um aumento de 55% − perfazendo, como parece ter acreditado, um total de 125%, correspondente ao aumento que aplicou aos montantes de partida a respeito da Outokumpu e da Wieland (ver nota 16, supra). Na verdade, porém, quando metade de um montante é aumentada numa determinada percentagem e a outra metade numa percentagem diferente, o montante total é aumentado, não na soma, mas sim na média das duas percentagens. Isto torna-se ainda mais evidente se imaginarmos cada metade a ser aumentada na mesma percentagem, digamos 55%, em cada caso: o aumento global continuará a ser claramente de 55% e não de 110%.


47 – Se o montante inicial de 35 milhões de euros tivesse sido aumentado em 125%, o resultado teria sido de 78,75 milhões de euros, 21,87 milhões de euros a mais do que o presente montante de 56,88 milhões de euros.


48 – Pelos meus cálculos, se a coima da KME tivesse sofrido o mesmo aumento, a sua coima total após a subsequente redução de 30% teria ascendido a 55,125 milhões de euros (35 + 125% = 78,75; 78,75‑30% = 55,125), em vez dos 39,81 milhões de euros. Este total poderia então ser repartido, na medida do necessário, de acordo com a relação de 7:5,5 que representa os dois períodos de 1988 a 1995 e de 1995 a 2001.


49 –      V. nota 13, supra.


50 – V. n.os 160 e segs. supra.