Language of document : ECLI:EU:C:2017:127

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

16 de fevereiro de 2017 (*)

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Fronteiras, asilo e imigração — Sistema de Dublim — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Tratos desumanos ou degradantes — Transferência de um requerente de asilo gravemente doente para o Estado‑Membro responsável pela análise do seu pedido — Inexistência de razões sérias para acreditar na existência de falhas sistémicas reveladas nesse Estado‑Membro — Obrigações impostas ao Estado‑Membro que deve proceder à transferência»

No processo C‑578/16 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Vrhovno sodišče (Supremo Tribunal, Eslovénia), por decisão de 28 de outubro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de novembro de 2016, no processo

C. K.,

H. F.,

A. S.

contra

Republika Slovenija,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: J. L. da Cruz Vilaça (relator), presidente de secção, M. Berger, A. Borg Barthet, E. Levits e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: M. Aleksejev, administrador,

visto o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de 28 de outubro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de novembro de 2016, de submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente, em conformidade com o disposto no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

vista a decisão de 1 de dezembro de 2016 da Quinta Secção de deferir o referido pedido,

vistos os autos e após a audiência de 23 de janeiro de 2017,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de C. K., H. F. e A. S., inicialmente por Z. Kojić, e em seguida por M. Nabergoj, svetovalca za begunce,

–        em representação do Governo esloveno, por N. Pintar Gosenca e A. Vran, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. L. Cordì, avvocatto dello Stato,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por C. Crane, na qualidade de agente, assistida por D. Blundell, barrister,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Condou‑Durande e M. Zebre, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de fevereiro de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.o 2, e do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31, a seguir «Regulamento Dublim III»), do artigo 267.o TFUE e do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe C. K., H. F. e o filho destes, A. S., à Republika Slovenija (República da Eslovénia), representada pelo seu Ministério da Administração Interna, a propósito da transferência dessas pessoas para a Croácia, designada como sendo o Estado‑Membro responsável pela análise do seu pedido de proteção internacional em conformidade com as disposições do Regulamento Dublim III.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

 Convenção de Genebra

3        O artigo 33.o da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951 [Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954), completada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, celebrado em Nova Iorque, em 31 de janeiro de 1967] (a seguir «Convenção de Genebra»), sob a epígrafe «Proibição de expulsar e repelir», estipula no seu n.o 1:

«Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras de territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.»

 CEDH

4        Sob a epígrafe «Proibição da tortura», o artigo 3.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), dispõe:

«Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.»

 Direito da União

 Carta

5        Nos termos do artigo 1.o da Carta, sob a epígrafe «Dignidade do ser humano»:

«A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida.»

6        O artigo 4.o da Carta, sob a epígrafe «Proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes», enuncia:

«Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes.»

7        O artigo 19.o da Carta, sob a epígrafe «Proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição», prevê no seu n.o 2:

«Ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes.»

8        O artigo 51.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe no seu n.o 1:

«As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados.»

9        O artigo 52.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito e interpretação dos direitos e dos princípios», enuncia, no seu n.o 3:

«Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela [CEDH], o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.»

 Regulamento Dublim III

10      O Regulamento Dublim III, entrado em vigor em 19 de julho de 2013, veio substituir o Regulamento (CE) n.o 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro (JO 2003, L 50, p. 1, a seguir «Regulamento Dublim II»), com efeito a partir de 1 de janeiro de 2014.

11      Os considerandos 4, 5, 9, 32 e 39 do Regulamento Dublim III enunciam:

«(4)      As conclusões do Conselho de Tampere precisaram igualmente que [o sistema de asilo europeu comum] deverá incluir, a curto prazo, um método claro e operacional para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de asilo.

(5)      Este método deverá basear‑se em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa. Deverá, permitir, nomeadamente, uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de proteção internacional e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.

[…]

(9)      Tendo em conta os resultados das avaliações efetuadas aos instrumentos da primeira fase, é conveniente, nesta ocasião, confirmar os princípios consagrados no [Regulamento Dublim II], ao mesmo tempo que se introduzem as melhorias necessárias, identificadas com base na experiência adquirida, para aumentar a eficácia do sistema de Dublim e a proteção concedida aos requerentes ao abrigo desse sistema. […]. Deverá ser prevista uma avaliação exaustiva e concreta, mediante uma análise baseada em elementos de prova, abrangendo os efeitos jurídicos, económicos e sociais do sistema de Dublim, incluindo os seus efeitos sobre os direitos fundamentais.

[…]

(32)      No que se refere ao tratamento das pessoas abrangidas pelo âmbito de aplicação do presente regulamento, os Estados‑Membros encontram‑se vinculados pelas obrigações que lhes incumbem por força de instrumentos de direito internacional, nomeadamente pela jurisprudência pertinente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

[…]

(39)      O presente regulamento respeita os direitos fundamentais e os princípios reconhecidos nomeadamente pela [Carta]. Em particular, o presente regulamento visa assegurar o pleno respeito do direito de asilo garantido pelo artigo 18.o da [Carta], bem como dos direitos nela reconhecidos nos artigos 1.o, 4.o, 7.o, 24.o e 47.o O presente regulamento deverá por conseguinte ser aplicado nesse sentido.»

12      O artigo 3.o deste regulamento, sob a epígrafe «Acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional», dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado‑Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado‑Membro, que será aquele que os critérios enunciados no capítulo III designarem como responsável.

2.      […]

Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado‑Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado‑Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da [Carta], o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado‑Membro seja designado responsável.

[…]»

13      O capítulo III do Regulamento Dublim III contém os critérios de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de asilo. Esse capítulo inclui, nomeadamente, o artigo 12.o desse regulamento, sob a epígrafe «Emissão de documentos de residência ou vistos», que prevê no seu n.o 2:

«Se o requerente for titular de um título de residência válido, o Estado‑Membro que o tiver emitido é responsável pela análise do pedido de proteção internacional […]»

14      O artigo 17.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Cláusulas discricionárias», dispõe, no seu n.o 1:

«Em derrogação do artigo 3.o, n.o 1, cada Estado‑Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.

[…]»

15      O capítulo VI do Regulamento Dublim III intitula‑se «Procedimentos de tomada e retomada a cargo». Contém, nomeadamente, os artigos 27.o, 29.o, 31.o e 32.o desse regulamento.

16      O artigo 27.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Vias de recurso», dispõe, no seu n.o 1:

«O requerente ou outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), tem direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da decisão de transferência, para um órgão jurisdicional.»

17      A secção VI do capítulo VI do Regulamento Dublim III, respeitante às transferências dos requerentes para o Estado‑Membro responsável, contém o artigo 29.o desse regulamento, sob a epígrafe «Modalidades e prazos», que prevê:

«1.      A transferência do requerente ou de outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3.

Se as transferências para o Estado‑Membro responsável forem efetuadas sob forma de uma partida controlada ou sob escolta, os Estados‑Membros devem garantir que são realizadas em condições humanas e no pleno respeito dos direitos fundamentais e da dignidade humana.

[…]

2.      Se a transferência não for executada no prazo de seis meses, o Estado‑Membro responsável fica isento da sua obrigação de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, e a responsabilidade é transferida para o Estado‑Membro requerente. Este prazo pode ser alargado para um ano, no máximo, se a transferência não tiver sido efetuada devido a retenção da pessoa em causa, ou para 18 meses, em caso de fuga.

[…]

4.      A Comissão adota atos de execução que regulem os procedimentos de consulta e o intercâmbio de informações entre os Estados‑Membros, em especial em caso de transferências adiadas ou atrasadas, as transferências na sequência de aceitação por omissão, ou em casos de transferência de menores ou dependentes e casos de transferência controlada. […]»

18      Nessa mesma secção VI, o artigo 31.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Intercâmbio de informações relevantes antes da realização das transferências», dispõe:

«1.      O Estado‑Membro que procede à transferência de um requerente[…] comunica ao Estado‑Membro responsável os dados pessoais relativos à pessoa a transferir que sejam adequados, pertinentes e não excessivos, unicamente para efeitos de assegurar que as autoridades competentes de acordo com a legislação nacional do Estado‑Membro responsável podem proporcionar à pessoa em causa a assistência adequada, nomeadamente a prestação dos cuidados de saúde imediatos necessários para proteger o interesse vital da pessoa em causa, e garantir a continuidade da proteção e dos direitos previstos no presente regulamento e noutros instrumentos jurídicos relevantes em matéria de asilo. Essas informações são comunicadas ao Estado‑Membro responsável num prazo razoável antes da realização da transferência, a fim de assegurar que as autoridades competentes de acordo com a legislação nacional do Estado‑Membro responsável disponham de tempo suficiente para tomar as medidas necessárias.

2.      O Estado‑Membro que procede à transferência transmite ao Estado‑Membro responsável todas as informações essenciais, na medida em que a autoridade competente de acordo com a legislação nacional delas disponha, para salvaguardar os direitos e as necessidades especiais imediatas da pessoa em causa, nomeadamente:

a)      As medidas imediatas que o Estado‑Membro responsável tenha de tomar para assegurar que as necessidades especiais da pessoa a transferir sejam adequadamente consideradas, incluindo os cuidados de saúde imediatos eventualmente necessários;

[…]»

19      Ainda na referida secção, o artigo 32.o do Regulamento Dublim III, sob a epígrafe «Intercâmbio de dados de saúde antes de a transferência ser efetuada», prevê, no seu n.o 1:

«Exclusivamente para efeitos de prestação de cuidados médicos ou de tratamento médico, em especial a deficientes, idosos, grávidas, menores e pessoas vítimas de tortura, violação ou outras formas graves de violência psicológica, física ou sexual, o Estado‑Membro que procede à transferência transmite ao Estado‑Membro responsável — na medida em que a autoridade competente de acordo com a legislação nacional delas disponha — informações sobre eventuais necessidades especiais da pessoa a transferir que, em casos específicos, podem incluir informações acerca do seu estado de saúde físico e mental. As informações são transmitidas por intermédio de um atestado de saúde comum, acompanhado da documentação necessária. O Estado‑Membro responsável certifica‑se de que é dada resposta adequada a tais necessidades especiais, incluindo, em especial, cuidados médicos eventualmente necessários.

[…]»

 Regulamento de aplicação

20      O Regulamento (CE) n.o 1560/2003 da Comissão, de 2 de setembro de 2003, relativo às modalidades de aplicação do Regulamento n.o 343/2003 (JO 2003, L 222, p. 3), conforme alterado pelo Regulamento de Execução (UE) n.o 118/2014 da Comissão, de 30 de janeiro de 2014 (JO 2014, L 39, p. 1) (a seguir «regulamento de aplicação»), contém as modalidades de aplicação do Regulamento Dublim II e, agora, do Regulamento Dublim III.

21      O capítulo III do regulamento de aplicação tem por título «Execução da transferência». Nesse capítulo figuram, nomeadamente, os artigos 8.o e 9.o desse regulamento.

22      O artigo 8.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Cooperação com vista à transferência», prevê:

«1.      O Estado‑Membro responsável é obrigado a permitir a transferência do requerente o mais rapidamente possível e deve garantir que não sejam criados obstáculos à sua entrada. Incumbe‑lhe determinar, se for caso disso, o local do seu território em que o requerente será transferido ou entregue às autoridades competentes, tendo em conta os condicionalismos geográficos e os meios de transporte disponíveis para o Estado‑Membro que procede à transferência. Não pode ser exigido, em caso algum, que a escolta acompanhe o requerente para além do ponto de chegada do meio de transporte internacional utilizado ou que o Estado‑Membro que procede à transferência suporte as despesas de transporte para além desse ponto.

2.      Incumbe ao Estado‑Membro que procede à transferência organizar o transporte do requerente e da respetiva escolta e fixar, em concertação com o Estado‑Membro responsável, a hora de chegada e, se for caso disso, as modalidades de entrega do requerente às autoridades competentes. O Estado‑Membro responsável pode exigir um pré‑aviso de três dias úteis.

3.      Deve ser utilizado o formulário‑tipo que consta do Anexo VI para efeitos da transmissão ao Estado‑Membro responsável dos dados essenciais para proteger os direitos e as necessidades imediatas da pessoa a transferir. Este formulário‑tipo é considerado um pré‑aviso na aceção do n.o 2.»

23      Nos termos do artigo 9.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Adiamento da transferência e transferências tardias»:

«1.      O Estado‑Membro responsável deve ser informado sem demora de qualquer adiamento da transferência devido quer a um procedimento de recurso ou de revisão com efeitos suspensivos, quer a circunstâncias materiais tais como o estado de saúde do requerente, a indisponibilidade do meio de transporte ou o facto de o requerente se ter eximido à execução da transferência.

1‑A.      Sempre que uma transferência tenha sido adiada a pedido do Estado‑Membro que procede à transferência, este último e o Estado‑Membro responsável devem retomar a comunicação para que possa ser organizada uma nova transferência o mais rapidamente possível, em conformidade com o artigo 8.o, e o mais tardar duas semanas a partir do momento em que as autoridades tomem conhecimento da cessação das circunstâncias que estiveram na origem do atraso ou do adiamento. Nesse caso, antes da transferência, deve ser enviado um formulário‑tipo atualizado para a transferência de dados antes de uma transferência, como constante do Anexo VI.

2.      Incumbe ao Estado‑Membro que, por um dos motivos enunciados no artigo 29.o, n.o 2, do [Regulamento Dublim III], não pode proceder à transferência no prazo normal de seis meses a contar da data da aceitação do pedido de tomada a cargo ou de retomada a cargo da pessoa em causa ou da decisão final sobre um recurso ou revisão com efeitos suspensivos, informar o Estado‑Membro responsável de tal facto antes do termo deste prazo. Caso contrário, a responsabilidade pelo tratamento do pedido de proteção internacional e as outras obrigações decorrentes do [Regulamento Dublim III] incumbem ao Estado‑Membro requerente, em conformidade com o disposto no artigo 29.o, n.o 2, do referido regulamento.

[…]»

24      Os Anexos VI e IX do regulamento de aplicação contêm os formulários‑tipo destinados, respetivamente, às transferências de dados e intercâmbio de dados relativos à saúde antes da execução de uma transferência ao abrigo do Regulamento Dublim III.

 Diretiva «acolhimento»

25      A Diretiva 2013/33/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 96, a seguir «diretiva ‘acolhimento’»), tem por objetivo, em conformidade com o seu artigo 1.o, estabelecer normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional nos Estados‑Membros.

26      O artigo 17.o desta diretiva, sob a epígrafe «Disposições gerais em matéria de condições materiais de acolhimento e de cuidados de saúde», dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que os requerentes de asilo têm acesso às condições materiais de acolhimento quando apresentam o seu pedido de proteção internacional.

2.      Os Estados‑Membros asseguram que as condições materiais de acolhimento proporcionam um nível de vida adequado aos requerentes que garanta a sua subsistência e a sua saúde física e mental.

Os Estados‑Membros asseguram que esse nível de vida seja também garantido no caso de pessoas vulneráveis, nos termos do artigo 21.o […]

[…]»

27      O artigo 18.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Regras em matéria de condições materiais de acolhimento», prevê, no seu n.o 3:

«Os Estados‑Membros devem ter em conta os fatores específicos relativos ao sexo e à idade e a situação das pessoas vulneráveis relativamente aos requerentes que se encontrem nas instalações e nos centros de acolhimento referidos no n.o 1, alíneas a) e b).»

28      Nos termos do artigo 19.o da diretiva «acolhimento», sob a epígrafe «Cuidados de saúde»:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que os requerentes beneficiam dos cuidados de saúde necessários, que incluem, pelo menos, os cuidados de urgência e o tratamento básico de doenças e de distúrbios mentais graves.

2.      Os Estados‑Membros prestam cuidados médicos ou outro tipo de assistência necessária aos requerentes com necessidades de acolhimento especiais, incluindo assistência psicológica adequada, se necessário.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

29      Decorre da decisão de reenvio, bem como dos elementos dos autos e das intervenções na audiência no Tribunal de Justiça, que, em 16 de agosto de 2015, C. K., nacional da República Árabe Síria, e H. F., nacional da República Árabe do Egito, entraram no território da União Europeia com um visto validamente emitido pela República da Croácia. Da mesma decisão resulta também que, após uma curta permanência nesse Estado‑Membro, atravessaram a fronteira eslovena munidos de falsos documentos de identidade gregos. Seguidamente, essas pessoas foram admitidas num centro de acolhimento para requerentes de asilo de Ljubljana (Eslovénia) tendo cada uma delas apresentado, no Ministério da Administração Interna da República da Eslovénia, um pedido de asilo. Resulta ainda dessas informações que C. K. estava grávida no momento em que entrou no território esloveno.

30      Em 28 de agosto de 2015, as autoridades eslovenas, considerando que a República da Croácia era, por força do artigo 12.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III, o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de asilo dos recorrentes no processo principal, dirigiram às autoridades desse Estado‑Membro um pedido com vista à sua tomada a cargo. Por resposta de 14 de setembro de 2015, a República da Croácia reconheceu a sua responsabilidade relativamente a essas pessoas.

31      Tendo em conta o estado avançado de gravidez de C. K., a República da Eslovénia apenas deu seguimento ao procedimento previsto no Regulamento Dublim III depois de 20 de novembro de 2015, data em que a recorrente no processo principal deu à luz o seu filho A. S. Em 27 de novembro de 2015, foi apresentado um pedido de proteção internacional em nome deste último, tendo o mesmo sido processado em conjunto com os pedidos apresentados por C. K. e H. F.

32      Em 20 de janeiro de 2016, o Ministério da Administração Interna proferiu uma decisão de recusa do exame dos pedidos de asilo dos recorrentes no processo principal e de transferência destes para a Croácia.

33      Por um acórdão de 2 de março de 2016, o Upravno sodišče (Tribunal Administrativo, Eslovénia) anulou esta decisão e remeteu o processo para novo exame, dando às autoridades competentes instruções para obterem por parte da República da Croácia a garantia de que C. K., H. F. e o filho destes teriam acesso aos cuidados médicos adequados nesse Estado‑Membro.

34      Em 30 de março de 2016, as autoridades eslovenas fizeram um pedido nesse sentido à República da Croácia. Por resposta de 7 de abril de 2016, esse Estado‑Membro garantiu que os recorrentes no processo principal beneficiariam na Croácia de um alojamento, dos cuidados adequados e dos tratamentos médicos necessários.

35      Em 5 de maio de 2016, o Ministério da Administração Interna adotou uma nova decisão de recusa da análise dos pedidos dos recorrentes no processo principal e de transferência destes para a Croácia.

36      Os recorrentes no processo principal interpuseram recurso desta decisão para o Upravno sodišče (Tribunal Administrativo). Além disso, pediram a esse órgão jurisdicional que suspendesse, provisoriamente, a execução da referida decisão até à adoção de uma decisão jurisdicional definitiva quanto ao mérito.

37      No âmbito desse recurso, os recorrentes no processo principal alegaram, nomeadamente, que a sua transferência teria consequências negativas no estado de saúde de C. K., suscetíveis de afetar também o bem‑estar do seu filho recém‑nascido. A este respeito, apresentaram vários certificados médicos atestando que C. K. tinha tido uma gravidez de risco e que sofria, desde o parto, de problemas de ordem psiquiátrica. Um psiquiatra especialista diagnosticou a esta última depressão pós‑parto e tendências suicidas periódicas. De resto, decorria de vários pareceres médicos que o mau estado de saúde de C. K. resulta principalmente da incerteza desta quanto ao seu estatuto e do stress daí decorrente. Além disso, a deterioração do seu estado de saúde mental poderia provocar um comportamento agressivo desta contra si própria e contra os outros, que exigiria, se necessário, cuidados hospitalares. Consequentemente, na opinião desse psiquiatra, a doença de que padece C. K. exigia que ela e o filho permanecessem no centro de acolhimento de Ljubljana para aí receber tratamento.

38      Por acórdão de 1 de junho de 2016, o Upravno sodišče (Tribunal Administrativo) anulou a decisão de transferência dos recorrentes no processo principal. Por despacho desse mesmo dia, o referido órgão jurisdicional suspendeu igualmente a execução dessa decisão até à adoção de uma decisão jurisdicional definitiva quanto ao mérito do litígio.

39      O Ministério da Administração Interna interpôs então recurso desse acórdão no Vrhovno sodišče (Supremo Tribunal, Eslovénia). Em 29 de junho de 2016, esse órgão jurisdicional reformou o acórdão da primeira instância e confirmou a referida decisão de transferência. No que se refere ao cuidados que o estado de saúde de C. K. requer, considerou que decorria de um relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), recebido a pedido das autoridades eslovenas, que a situação na Croácia no que se refere ao acolhimento dos requerentes de asilo era boa. Este Estado‑Membro dispõe, nomeadamente em Kutina (Croácia), de um centro especialmente destinado a pessoas vulneráveis, onde os requerentes de asilo têm livre acesso a cuidados médicos dispensados por um médico que se desloca regularmente ao centro ou, em caso de urgência, pelo hospital local ou mesmo, se necessário, pelo hospital de Zagreb (Croácia).

40      Quanto a outras alegações dos recorrentes no processo principal segundo as quais tinham sido vítimas de provocações e de violência de caráter racial na Croácia, o Vrhovno sodišče (Supremo Tribunal) considerou que não tinham demonstrado que havia razões sérias para crer na existência, na Croácia, de falhas sistémicas no que respeita ao procedimento de asilo e às condições de acolhimento dos requerentes de asilo, suscetíveis de expor os referidos recorrentes a um risco de tratamentos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III. De resto, nem as instituições da União nem o ACNUR consideraram crítica a situação nesse Estado‑Membro.

41      Seguidamente, o acórdão do Vrhovno sodišče (Supremo Tribunal) transitou em julgado. No entanto, os recorrentes no processo principal interpuseram um recurso constitucional no Ustavno sodišče (Tribunal Constitucional, Eslovénia).

42      Por decisão de 28 de setembro de 2016, este último órgão jurisdicional declarou que, era certo que, no caso em apreço, não se verificava a existência, na Croácia, de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de asilo, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III. No entanto, isso não constitui o único motivo que pode ser invocado pelos recorrentes no processo principal para demonstrar que a sua transferência para o referido Estado‑Membro os expunha a um risco real de tratamentos desumanos e degradantes.

43      Com efeito, em conformidade com o considerando 32 desse regulamento, os Estados‑Membros devem respeitar as exigências decorrentes do artigo 33.o, n.o 1, da Convenção de Genebra, do artigo 3.o da CEDH e da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa a tais exigências. Ora, essas exigências são mais amplas do que o critério das falhas sistémicas previsto no artigo 3.o, n.o 2, do referido regulamento que, de resto, diz respeito unicamente à situação em que é impossível para os Estados‑Membros proceder a qualquer transferência de requerentes de asilo para um Estado‑Membro determinado. No caso de, fora a situação prevista nessa disposição, a transferência de um requerente de asilo para outro Estado‑Membro implicar a violação das referidas exigências fundamentais, os Estados‑Membros estão obrigados a aplicar a cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III.

44      Daqui resulta a obrigação para as autoridades competentes e para o juiz, quando um requerente de asilo afirma que o Estado‑Membro responsável pelo seu pedido não é, na sua opinião, um «Estado seguro», de examinarem todas as circunstâncias importantes para o respeito do princípio de não repulsão, incluindo o estado de saúde do interessado. Neste contexto, essas autoridades devem ter em conta a situação pessoal do requerente na Eslovénia e apreciar se a simples transferência deste requerente poderia, em si, ser contrária ao princípio da não repulsão.

45      Por conseguinte, segundo o Ustavno sodišče (Tribunal Constitucional), uma vez que, no caso em apreço, os recorrentes no processo principal alegaram que uma nova deslocação de C. K. teria uma incidência negativa no seu estado de saúde, apresentando vários pareceres médicos suscetíveis de demonstrar estas afirmações, o Vrhovno sodišče (Supremo Tribunal) não se podia limitar, como fez, a ter em conta o estado de saúde de C. K. no âmbito da apreciação da situação na Croácia, mas deveria ter igualmente verificado se a própria transferência para esse Estado‑Membro era compatível com o artigo 3.o da CEDH. Ao não apreciar as alegações e as provas apresentadas a este respeito pelos recorrentes no processo principal, o referido órgão jurisdicional violou o direito que a Constituição eslovena lhes reconhece de lhes ser garantido uma «proteção igual perante a lei». Por estes motivos, o Ustavno sodišče (Tribunal Constitucional) anulou o acórdão do Vrhovno sodišče (Supremo Tribunal) e remeteu‑lhe o processo principal a fim de este ser novamente julgado em conformidade com as considerações aduzidas na sua decisão.

46      Tendo verificado que o Ustavno sodišče (Tribunal Constitucional) não tinha submetido ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial antes de proferir a sua decisão de 28 de setembro de 2016, e tendo, porém, dúvidas quanto à compatibilidade com o direito da União das considerações que aí são desenvolvidas pelo Tribunal Constitucional, o Vrhovno sodišče (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A interpretação das normas relativas à aplicação da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III compete em última instância, tendo em conta a natureza desta disposição, ao órgão jurisdicional do Estado‑Membro e essas normas liberam o órgão jurisdicional de cujas decisões não cabe recurso da obrigação de submeter o processo ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 267.o, terceiro parágrafo, [TFUE]?

A título subsidiário, em caso [de] resposta negativa à primeira questão:

2)      A apreciação das circunstâncias nos termos do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III (num caso como o que é objeto do reenvio) é suficiente para satisfazer os requisitos do artigo 4.o e do artigo 19.o, n.o 2, da [Carta], conjugados com o artigo 3.o da [CEDH] e com o artigo 33.o da Convenção de Genebra?

Em relação com esta questão:

3)      Decorre da interpretação do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III que a aplicação da cláusula discricionária pelo Estado‑Membro é obrigatória para assegurar uma proteção efetiva contra uma violação dos direitos previstos no artigo 4.o da [Carta] em casos como o que é objeto do presente reenvio, e que tal aplicação obsta à transferência do requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro competente que reconheceu a sua competência em conformidade com este regulamento?

Em caso de resposta afirmativa à terceira questão:

4)      Pode a cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III constituir uma base que permita a um requerente de proteção internacional ou a outra pessoa num processo de transferência nos termos desse regulamento invocar a sua aplicação, que as autoridades administrativas competentes e os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro devem apreciar, ou estão essas autoridades administrativas e esses órgãos jurisdicionais obrigados a determinar oficiosamente as referidas circunstâncias?»

 Quanto à tramitação prejudicial urgente

47      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

48      Em apoio desse pedido, o referido órgão jurisdicional alegou, em substância, que tendo em conta o estado de saúde de C. K., a questão do seu estatuto devia ser resolvida o mais rapidamente possível.

49      A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que o presente reenvio prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento Dublim III, adotado com base, nomeadamente, no artigo 78.o, n.o 2, alínea e), TFUE, disposição que figura do título V da parte III do Tratado FUE, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça. É, portanto, suscetível de ser submetido à tramitação prejudicial urgente.

50      Em segundo lugar, a possibilidade de os recorrentes no processo principal serem transferidos para a República da Croácia antes do termo de um processo prejudicial ordinário não pode ser excluída no presente caso. Com efeito, em resposta a um pedido de esclarecimentos do Tribunal de Justiça, formulado com base no artigo 101.o, n.o 1, do seu Regulamento de Processo, o órgão jurisdicional de reenvio indicou que, embora, em primeira instância, o Upravno sodišče (Tribunal Administrativo) tivesse ordenado, a pedido dessas pessoas, a suspensão da execução da decisão de transferência a seu respeito, nenhuma medida jurisdicional suspende a execução dessa decisão na fase atual do processo nacional.

51      Nestas condições, foi deferido o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de que o presente reenvio prejudicial fosse submetido a tramitação prejudicial urgente, em conformidade com a decisão tomada, em 1 de dezembro de 2016, pela Quinta Secção do Tribunal de Justiça, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

52      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que a questão da aplicação, por um Estado‑Membro, da «cláusula discricionária» prevista nessa disposição é regulada unicamente pelo direito nacional e pela interpretação que dela faz o Tribunal Constitucional desse Estado‑Membro, ou se constitui uma questão de interpretação do direito da União, na aceção do artigo 267.o TFUE.

53      A este respeito, há que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou, no que se refere à «cláusula de soberania» que figurava no artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim II, cujos termos coincidem, no essencial, com os da «cláusula discricionária» prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III e cuja interpretação é, portanto, transponível para esta, que o poder de apreciação que a mesma reconhece aos Estados‑Membros faz parte integrante do sistema de determinação do Estado‑Membro responsável, elaborado pelo legislador da União (a seguir «sistema de Dublim»). Daqui resulta que um Estado‑Membro aplica o direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, também quando utiliza essa cláusula (v. acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 64 a 68). Consequentemente, a aplicação da «cláusula discricionária» prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III implica efetivamente uma interpretação do direito da União, na aceção do artigo 267.o TFUE.

54      Em face das considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que a questão da aplicação, por um Estado‑Membro, da «cláusula discricionária» prevista nessa disposição não é regulada unicamente pelo direito nacional e pela interpretação que dela faz o Tribunal Constitucional desse Estado‑Membro, mas constitui uma questão de interpretação do direito da União, na aceção do artigo 267.o TFUE.

 Quanto à segunda a quarta questões

55      Com as suas segunda a quarta questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias em que a transferência de um requerente de asilo, que apresenta uma doença mental ou física especialmente grave, implicasse um risco real e comprovado de uma deterioração significativa e irremediável do estado de saúde do interessado, essa transferência constituiria um trato desumano e degradante, na aceção desse artigo. Em caso de resposta afirmativa, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se o Estado‑Membro em causa é obrigado a aplicar a «cláusula discricionária» prevista no artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento e a analisar ele próprio o pedido de asilo em causa.

56      A título preliminar, há que recordar que, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, um pedido de asilo apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida no território de um dos Estados‑Membros, seja qual for, é, em princípio, analisado unicamente pelo Estado‑Membro designado como responsável segundo os critérios enunciados no capítulo III deste regulamento.

57      O sistema de Dublim, no qual se inscreve o referido regulamento, tem por objetivo, como decorre dos seus considerandos 4 e 5, permitir, em especial, a determinação rápida do Estado‑Membro responsável, a fim de garantir um acesso efetivo aos processos de concessão de proteção internacional e de não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.

58      Neste contexto, um Estado‑Membro onde foi apresentado um pedido de asilo é obrigado a seguir os procedimentos previstos no capítulo VI do mesmo regulamento para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise desse pedido, a requerer a esse Estado‑Membro que tome a cargo o requerente em causa e, uma vez esse pedido aceite, a transferir essa pessoa para o referido Estado‑Membro.

59      Assim sendo, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as regras do direito derivado da União, incluindo as disposições do Regulamento Dublim III, devem ser interpretadas e aplicadas com respeito pelos direitos fundamentais garantidos pela Carta (v., por analogia, no que se refere ao Regulamento Dublim II, acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 77 e 99). A proibição das penas ou dos tratamentos desumanos ou degradantes, prevista no artigo 4.o da Carta, é, a este respeito, de importância fundamental, na medida em que esta reveste caráter absoluto, uma vez que está estreitamente ligada ao respeito da dignidade do ser humano referida no seu artigo 1.o (v., neste sentido, acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15, EU:C:2016:198, n.os 85 e 86).

60      Ora, no seu acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 86 a 94 e 106), o Tribunal de Justiça salientou que a transferência de requerentes de asilo no âmbito do sistema de Dublim pode, em determinadas circunstâncias, ser incompatível com a proibição prevista no artigo 4.o da Carta. Declarou, assim, que um requerente de asilo corria um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção desse artigo, no caso de transferência para um Estado‑Membro onde seja de recear seriamente que existam falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes. Por conseguinte, em conformidade com a proibição prevista no referido artigo, incumbe aos Estados‑Membros não efetuarem transferências no âmbito do sistema de Dublim para um Estado‑Membro quando não possam ignorar a existência, no mesmo, dessas falhas.

61      Resulta do considerando 9 do Regulamento Dublim III que o legislador da União está ciente dos efeitos do sistema de Dublim sobre os direitos fundamentais dos requerentes de asilo. Resulta ainda desse mesmo considerando que, ao adotar o referido regulamento, o legislador da União pretendeu introduzir as melhorias necessárias, à luz da experiência, não só à eficácia desse sistema mas também à proteção conferida aos requerentes de asilo ao abrigo desse sistema.

62      Assim, o Tribunal de Justiça já constatou que, no que diz respeito aos direitos conferidos aos requerentes de asilo, o Regulamento Dublim III difere, em pontos essenciais, do Regulamento Dublim II (v., neste sentido, acórdão de 7 de junho de 2016, Ghezelbash, C‑63/15, EU:C:2016:409, n.o 34).

63      No que se refere aos direitos fundamentais que lhes são reconhecidos, além da codificação, no artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III, da jurisprudência decorrente do acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), mencionado no n.o 60 do presente acórdão, o legislador da União fez questão de salientar, nos considerandos 32 e 39 do referido regulamento, que os Estados‑Membros estão vinculados, na aplicação do mesmo, pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e pelo artigo 4.o da Carta.

64      No que respeita, mais especificamente, às decisões de transferência, o legislador da União veio, por um lado, rodear a sua legalidade de garantias ao reconhecer ao requerente de asilo em causa, nomeadamente, no artigo 27.o do Regulamento Dublim III, o direito de interpor, num órgão jurisdicional, recurso efetivo dessa decisão, cujo alcance abrange tanto as circunstâncias de facto como de direito que envolvem essa decisão. Por outro lado, enquadrou, no n.o 29 do referido regulamento, as modalidades dessas transferências de uma forma mais detalhada do que tinha feiro no Regulamento Dublim II.

65      Decorre de todas as considerações precedentes que a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento Dublim III só pode ser efetuada em condições que excluam que essa transferência implica um risco real de o interessado ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta.

66      A este respeito, não é possível excluir desde logo que, atendendo ao estado de saúde especialmente grave de um requerente de asilo, a sua transferência em aplicação do Regulamento Dublim III possa expor o mesmo a tal risco.

67      Com efeito, deve recordar‑se que a proibição de tratos desumanos ou degradantes prevista no artigo 4.o da Carta corresponde à enunciada no artigo 3.o da CEDH e que, nessa medida, o seu sentido e alcance são, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, os mesmos que os que lhe confere essa Convenção.

68      Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 3.o da CEDH, que deve ser tida em conta para interpretar o artigo 4.o da Carta (v., neste sentido, acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 87 a 91), que o sofrimento causado por uma doença que se manifestou de forma natural, seja essa doença física ou mental, pode estar abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 3.o da CEDH se for ou puder vir a ser agravado por um tratamento, como o que resulta de condições de detenção, de uma expulsão ou de outras medidas, pelas quais as autoridades possam ser responsabilizadas, e isto na condição de o sofrimento daí resultante atingir o mínimo de gravidade exigido por esse artigo (v., neste sentido, TEDH, 13 de dezembro de 2016, Paposhvili c. Bélgica, CE:ECHR:2016:1213JUD004173810, §§ 174 e 175).

69      Tendo em conta o caráter geral e absoluto do artigo 4.o da Carta, estas considerações de princípio são igualmente pertinentes no âmbito do sistema de Dublim.

70      A este propósito, há que sublinhar, no que respeita às condições de acolhimento e aos cuidados disponíveis no Estado‑Membro responsável, que os Estados‑Membros vinculados pela diretiva «acolhimento», entre os quais a República da Croácia, são obrigados, incluindo no âmbito do processo ao abrigo do Regulamento Dublim III, em conformidade com os artigos 17.o a 19.o desta diretiva, a prestar aos requerentes de asilo os cuidados e a assistência médica necessários que incluem, pelo menos, os cuidados urgentes e o tratamento essencial de doenças e de distúrbios mentais graves. Nessas condições, e em conformidade com a confiança mútua entre os Estados‑Membros, existe uma forte presunção de que os tratamentos médicos oferecidos aos requerentes de asilo nos Estados‑Membros serão adequados (v., por analogia, acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 78, 80 e 100 a 105).

71      No caso em apreço, nem a decisão de reenvio nem os elementos dos autos indicam que há razões sérias para acreditar na existência de falhas sistémicas do processo de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo na Croácia, no que respeita em especial ao acesso aos cuidados de saúde, o que, de resto, não é alegado pelos recorrentes no processo principal. Pelo contrário, resulta da referida decisão que a República da Croácia dispõe, nomeadamente na cidade de Kutina, de um centro de acolhimento destinado às pessoas vulneráveis, onde estas têm acesso a cuidados médicos dispensados por um médico e, em caso de urgência, por um hospital local ou ainda pelo hospital de Zagreb. Por outro lado, as autoridades eslovenas obtiveram por parte das autoridades croatas a garantia de que os recorrentes no processo principal beneficiariam dos tratamentos médicos necessários.

72      Além disso, embora seja possível que, para certas doenças graves e específicas, um tratamento médico adequado esteja apenas disponível em certos Estados‑Membros (v., por analogia, acórdão de 5 de junho de 2014, I, C‑255/13, EU:C:2014:1291, n.os 56 e 57), o facto é que os recorrentes no processo principal não alegaram que esse seria o caso no que aos mesmos diz respeito.

73      Dito isto, não se pode excluir que a transferência de um requerente de asilo cujo estado de saúde é particularmente grave possa, em si, expor o interessado a um risco real de tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta, e isso independentemente da qualidade do acolhimento e dos cuidados disponíveis no Estado‑Membro responsável pela análise do seu pedido.

74      Neste contexto, há que considerar que, em circunstâncias em que a transferência de um requerente de asilo, que apresenta uma doença mental ou física particularmente grave, implique o risco real e comprovado de uma degradação significativa e irremediável do seu estado de saúde, essa transferência constituiria um trato desumano e degradante, na aceção do referido artigo.

75      Por conseguinte, sempre que um requerente de asilo apresente, em especial no âmbito do recurso efetivo que lhe é garantido no artigo 27.o do Regulamento Dublim III, elementos objetivos, como certificados médicos sobre a sua pessoa, suscetíveis de demonstrar a gravidade particular do seu estado de saúde e as consequências significativas e irremediáveis que uma transferência poderia implicar, as autoridades do Estado‑Membro em causa, incluindo os seus órgãos jurisdicionais, não podem ignorar esses elementos. Pelo contrário, devem apreciar o risco de que tais consequências se produzam ao decidir da transferência do interessado ou, tratando‑se de um órgão jurisdicional, da legalidade de uma decisão de transferência, quando a execução dessa decisão puder conduzir a um trato desumano ou degradante deste (v., por analogia, acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 88).

76      Consequentemente, caberia a essas autoridades dissipar quaisquer dúvidas sérias relativas ao impacto da transferência no estado de saúde do interessado. Importa, a este propósito, em especial quando se trata de uma doença grave de ordem psiquiátrica, não se ater apenas às consequências da transferência física da pessoa em causa de um Estado‑Membro para outro, mas ter em consideração todas as consequências significativas e irremediáveis que resultariam da transferência.

77      Nesse contexto, as autoridades do Estado‑Membro em causa devem verificar se o estado de saúde da pessoa em questão poderá ser garantido de forma adequada e suficiente tomando as precauções previstas no Regulamento Dublim III e, nesse caso, pôr essas precauções em prática.

78      Com efeito, resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que o artigo 3.o da CEDH, em princípio, não obriga um Estado contratante a não proceder ao afastamento ou à expulsão de uma pessoa quando esta estiver em condições de viajar e desde que as medidas necessárias, adequadas e adaptadas ao seu estado sejam tomadas para o efeito (v., neste sentido, TEDH, 4 de julho de 2006, Karim c. Suécia, CE:ECHR:2006:0704DEC002417105, § 2, e 30 de abril de 2013, Kochieva e o. c. Suécia, CE:ECHR:2013:0430DEC007520312, § 35).

79      No que toca mais especificamente às circunstâncias em que as dificuldades de ordem psiquiátrica que afetam um requerente de asilo revelem nele tendências suicidas, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou reiteradamente que o facto de uma pessoa cujo afastamento foi ordenado ameaçar suicidar‑se não obriga o Estado contratante a não executar a medida prevista se tomar medidas concretas para evitar a consumação da ameaça (v. TEDH, 7 de outubro de 2004, Dragan e o. c. Alemanha, CE:ECHR:2004:1007DEC003374303, § 1; 4 de julho de 2006, Karim c. Suécia, CE:ECHR:2006:0704DEC002417105, § 2; e 30 de abril de 2013, Kochieva e o. c. Suécia, CE:ECHR:2013:0430DEC007520312, § 34).

80      No que se refere a essas precauções, há que sublinhar que o Estado‑Membro que deve proceder à transferência pode cooperar com o Estado‑Membro responsável, em conformidade com o artigo 8.o do regulamento de aplicação, para garantir que o requerente de asilo em causa receba cuidados de saúde durante e no termo da transferência.

81      A este propósito, o Estado‑Membro que procede à transferência deve poder organizá‑la de modo a que o requerente de asilo em causa seja acompanhado, durante o transporte, por pessoal de saúde adequado, que disponha do material, recursos e medicamentos necessários, de modo a evitar qualquer agravamento da sua saúde ou qualquer ato de violência deste contra si próprio ou contra os outros.

82      Esse Estado‑Membro deve poder também assegurar‑se de que o requerente de asilo em causa beneficia de cuidados desde a sua chegada ao Estado‑Membro responsável. A este respeito, importa recordar que os artigos 31.o e 32.o do Regulamento Dublim III impõem ao Estado‑Membro que procede à transferência a comunicação ao Estado‑Membro responsável das informações relativas ao estado de saúde do requerente de asilo que sejam suscetíveis de permitir a esse Estado‑Membro prestar‑lhe os cuidados de saúde urgentes indispensáveis à salvaguarda dos seus interesses essenciais.

83      O formulário‑tipo que figura no Anexo VI do regulamento de aplicação e o atestado de saúde comum que se encontra no Anexo IX desse regulamento podem, assim, ser utilizados para informar o Estado‑Membro responsável de que o requerente de asilo em causa requer assistência médica e cuidados quando da sua chegada, bem como de todos os aspetos pertinentes da sua doença e dos cuidados de que necessitará no futuro. Nesse caso, essas informações devem ser comunicadas num prazo razoável antes de dar execução à transferência, de modo a que o Estado‑Membro responsável disponha de um prazo suficiente para tomar as medidas necessárias. O Estado‑Membro que procede à transferência pode, também, obter do Estado‑Membro responsável a confirmação de que os cuidados estarão disponíveis no momento da chegada.

84      No caso de o órgão jurisdicional competente considerar que essas precauções são suficientes para excluir qualquer risco real de tratos desumanos ou degradantes em caso de transferência do requerente de asilo em causa, incumbirá a esse órgão jurisdicional tomar as medidas necessárias para se assegurar de que serão aplicadas pelas autoridades do Estado‑Membro requerente antes da transferência do interessado. Se necessário, o estado de saúde do interessado deverá ser reavaliado antes da execução da transferência.

85      Em contrapartida, no caso de a tomada dessas precauções não ser suficiente, tendo em conta a especial gravidade da doença do requerente de asilo em causa, para assegurar que a sua transferência não implicará um risco real de um agravamento significativo e irremediável do seu estado de saúde, incumbiria às autoridades do Estado‑Membro em causa suspender a execução da transferência dessa pessoa, e isso enquanto o seu estado de saúde não a torne apta a essa transferência.

86      A este respeito, deve recordar‑se que, em conformidade com o artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, a transferência do requerente do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se logo que seja «materialmente possível». Como decorre do artigo 9.o do regulamento de aplicação, o estado de saúde do requerente de asilo é precisamente considerado uma «circunstância material» suscetível de justificar o adiamento da transferência.

87      Se o estado de saúde do requerente de asilo não permitir a sua transferência, caberia assim ao Estado‑Membro requerente, em conformidade com a referida disposição, informar sem demora o Estado‑Membro responsável pelo adiamento da transferência devido ao estado do requerente.

88      Se for o caso, se se aperceber de que o estado de saúde do requerente de asilo em causa não poderá melhorar a curto prazo, ou que a suspensão do processo durante um longo período comporta o risco de agravar o estado do interessado, o Estado‑Membro requerente pode optar por analisar ele próprio o pedido do interessado utilizando a «cláusula discricionária» prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III (v., neste sentido, acórdão de 30 de maio de 2013, Halaf, C‑528/11, EU:C:2013:342, n.o 38). O certo é que a referida disposição, lida à luz do artigo 4.o da Carta, não pode ser interpretada, numa situação como a que está em causa no processo principal, no sentido de que implica a obrigação desse Estado‑Membro de aplicar desse modo a referida cláusula.

89      Em todo o caso, na hipótese de o estado de saúde do requerente de asilo em causa não permitir ao Estado‑Membro requerente proceder à sua transferência antes de decorrido o prazo de seis meses previsto no artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, o Estado‑Membro responsável será liberado da sua obrigação de tomar o interessado a cargo sendo a sua responsabilidade transferida para o primeiro Estado‑Membro, em conformidade com o n.o 2 desse artigo.

90      Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, no processo principal, se o estado de saúde de C. K. apresenta uma gravidade tal que há sérias dúvidas de que a sua transferência a exporia a um risco real de tratos desumanos ou degradantes na aceção do artigo 4.o da Carta. Em caso afirmativo, incumbir‑lhe‑á dissipar essas dúvidas, assegurando‑se de que as precauções visadas nos n.os 81 a 83 do presente acórdão serão tomadas antes da transferência de C. K. ou, se necessário, de que a transferência dessa pessoa será suspensa até que o seu estado de saúde a permita.

91      Neste contexto, carece de fundamento o argumento da Comissão segundo o qual decorre do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III que apenas a existência de falhas sistémicas no Estado‑Membro responsável seria suscetível de afetar a obrigação de transferência de um requerente de asilo para esse Estado‑Membro.

92      Com efeito, nada na redação desta disposição indica que a intenção do legislador da União tenha sido a de regular outra circunstância que não seja a das falhas sistémicas que impedem a transferência do requerente de asilo para um Estado‑Membro determinado. Por conseguinte, a referida disposição não pode ser interpretada no sentido de que exclui que considerações associadas aos riscos reais e comprovados de tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta, possam, em situações excecionais como as descritas no presente acórdão, ter consequências na transferência de um requerente de asilo em especial.

93      Além disso, tal leitura do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento Dublim III seria, por um lado, incompatível com o caráter geral do artigo 4.o da Carta, que proíbe os tratos desumanos ou degradantes sob todas as suas formas. Por outro lado, seria manifestamente incompatível com o caráter absoluto dessa proibição que os Estados‑Membros pudessem ignorar um risco real e comprovado de tratos desumanos ou degradantes que afetem um requerente de asilo sob pretexto de que esse risco não resulta de uma falha sistémica no Estado‑Membro responsável.

94      Do mesmo modo, a interpretação do artigo 4.o da Carta constante do presente acórdão não é infirmada pelo acórdão de 10 de dezembro de 2013, Abdullahi (C‑394/12, EU:C:2013:813, n.o 60), no qual o Tribunal de Justiça declarou, em substância, no que se refere ao Regulamento Dublim II, que, em circunstâncias como as do processo que deu origem a esse acórdão, um requerente de asilo só pode pôr em causa a sua transferência se invocar a existência de falhas sistémicas no Estado‑Membro responsável. Com efeito, para além do Tribunal de Justiça ter declarado, como recordado no n.o 62 do presente acórdão, que, no que se refere aos direitos conferidos aos requerentes de asilo, o Regulamento Dublim III difere, em aspetos essenciais, do Regulamento Dublim II, há que recordar que o referido acórdão foi proferido num processo que envolvia um nacional que não invocou no Tribunal de Justiça nenhuma circunstância especial suscetível de indicar que a sua transferência seria, em si, contrária ao artigo 4.o da Carta. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça mais não fez do que recordar o seu anterior acórdão de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865), relativo à impossibilidade de proceder a qualquer transferência de requerentes de asilo para um Estado‑Membro cujo processo de asilo ou condições de acolhimento conhecem falhas sistémicas.

95      Por último, a referida interpretação respeita plenamente o princípio da confiança mútua uma vez que, longe de afetar a existência de uma presunção de respeito dos direitos fundamentais em cada Estado‑Membro, garante que as situações excecionais descritas no presente acórdão são devidamente tidas em conta pelos Estados‑Membros. De resto, se um Estado‑Membro procedesse à transferência de um requerente de asilo em tais situações, o trato desumano e degradante que daí resultaria não seria imputável, direta ou indiretamente, às autoridades do Estado‑Membro responsável, mas unicamente ao primeiro Estado‑Membro.

96      Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à segunda a quarta questões que o artigo 4.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que:

–        mesmo não havendo razões sérias para crer na existência de falhas sistémicas no Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de asilo, a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento Dublim III só pode ser feita em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de o interessado sofrer tratos desumanos ou degradantes, na aceção desse artigo;

–        em circunstâncias nas quais a transferência de um requerente de asilo, que apresenta uma doença mental ou física especialmente grave, implica um risco real e comprovado de uma deterioração significativa e irremediável do estado de saúde do interessado, essa transferência constitui um trato desumano e degradante, na aceção do referido artigo;

–        incumbe às autoridades do Estado‑Membro que deve proceder à transferência e, se for caso disso, aos seus órgãos jurisdicionais dissipar quaisquer dúvidas sérias quanto ao impacto da transferência no estado de saúde do interessado, tomando as precauções necessárias para que a sua transferência se realize em condições que permitam salvaguardar de maneira adequada e suficiente o estado de saúde dessa pessoa. No caso de, tendo em conta a especial gravidade da doença do requerente de asilo em causa, a tomada dessas precauções não ser suficiente para assegurar que a sua transferência não implicará um risco real de um agravamento significativo e irremediável do seu estado de saúde, incumbe às autoridades do Estado‑Membro em causa suspender a execução da transferência do interessado, e isso enquanto o seu estado de saúde não o tornar apto a essa transferência; e,

–        se for caso disso, se se aperceber de que o estado de saúde do requerente de asilo em causa não poderá melhorar a curto prazo, ou de que a suspensão do processo durante um longo período comporta o risco de agravar o estado do interessado, o Estado‑Membro requerente pode optar por analisar ele próprio o pedido do interessado, utilizando a «cláusula discricionária» prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III.

97      O artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento, lido à luz do artigo 4.o da Carta, não pode ser interpretado no sentido de obrigar, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, esse Estado‑Membro a aplicar a referida cláusula.

 Quanto às despesas

98      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

1)      O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, deve ser interpretado no sentido de que a questão da aplicação, por um Estado‑Membro, da «cláusula discricionária» prevista nessa disposição não é regulada unicamente pelo direito nacional e pela interpretação que dela faz o Tribunal Constitucional desse Estado‑Membro, mas constitui uma questão de interpretação do direito da União, na aceção do artigo 267.o TFUE.

2)      O artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que:

–        mesmo não havendo razões sérias para crer na existência de falhas sistémicas no Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de asilo, a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento n.o 604/2013 só pode ser feita em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de o interessado sofrer tratos desumanos ou degradantes, na aceção desse artigo;

–        em circunstâncias nas quais a transferência de um requerente de asilo, que apresenta uma doença mental ou física especialmente grave, implica um risco real e comprovado de uma deterioração significativa e irremediável do estado de saúde do interessado, essa transferência constitui um trato desumano e degradante, na aceção do referido artigo;

–        incumbe às autoridades do Estado‑Membro que deve proceder à transferência e, se for caso disso, aos seus órgãos jurisdicionais dissipar quaisquer dúvidas sérias quanto ao impacto da transferência no estado de saúde do interessado, tomando as precauções necessárias para que a sua transferência se realize em condições que permitam salvaguardar de maneira adequada e suficiente o estado de saúde dessa pessoa. No caso de, tendo em conta a especial gravidade da doença do requerente de asilo em causa, a tomada dessas precauções não ser suficiente para assegurar que a sua transferência não implicará um risco real de um agravamento significativo e irremediável do seu estado de saúde, incumbe às autoridades do Estado‑Membro em causa suspender a execução da transferência do interessado, e isso enquanto o seu estado de saúde não o tornar apto a essa transferência; e,

–        se for caso disso, se se aperceber de que o estado de saúde do requerente de asilo em causa não poderá melhorar a curto prazo, ou de que a suspensão do processo durante um longo período comporta o risco de agravar o estado do interessado, o Estado‑Membro requerente pode optar por analisar ele próprio o pedido do interessado, utilizando a «cláusula discricionária» prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013.

O artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013, lido à luz do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, não pode ser interpretado no sentido de obrigar, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, esse Estado‑Membro a aplicar a referida cláusula.

Assinaturas


* Língua do processo: esloveno.