Language of document : ECLI:EU:C:2000:251

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

16 de Maio de 2000 (1)

«Artigo 48.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 39.° CE) - Igualdade de tratamento - Imposto sobre o rendimento - Residência separada dos cônjuges - Tributação conjunta dos cônjuges»

No processo C-87/99,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE (actual artigo 234.° CE), pelo tribunal administratif (Luxemburgo), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Patrick Zurstrassen

e

Administration des contributions directes,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 48.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 39.° CE) e do artigo 1.° do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: J. C. Moitinho de Almeida, presidente das Terceira e Sexta Secções, exercendo funções de presidente, D. A. O. Edward, L. Sevón e R. Schintgen, presidentes de secção, P. J. G. Kapteyn, C. Gulmann, G. Hirsch, H. Ragnemalm, M. Wathelet (relator), V. Skouris e F. Macken, juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,


secretário: D. Louterman-Hubeau, administradora principal,

vistas as observações escritas apresentadas:

-    em representação de P. Zurstrassen, por J.-P. Noesen, advogado no foro do Luxemburgo,

-    em representação do Governo luxemburguês, por P. Steinmetz, director dos Assuntos Jurídicos e Culturais no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo espanhol, por M. López-Monís Gallego, abogado del Estado, na qualidade de agente,

-    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por H. Michard e B. Mongin, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações de P. Zurstrassen, representado por J.-P. Noesen, do Governo luxemburguês, representado por P. Steinmetz, assistido por J.-M. Klein, consultor de direcção na Administração das Contribuições Directas, do Governo espanhol, representado por M. López-Monís Gallego, e da Comissão, representada por B. Mongin, na audiência de 14 de Dezembro de 1999,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 27 de Janeiro de 2000,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por decisão de 11 de Março de 1999, que deu entrada na Secretaria do Tribunal em 12 de Março, o Tribunal administratif (Luxemburgo) submeteu ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE (actual artigo 234.° CE), uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 48.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 39.° CE) e do artigo 1.° do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77).

2.
    A questão foi suscitada no quadro de um litígio entre P. Zurstrassen e a Administração das Contribuições Directas a propósito do cálculo do imposto sobre o rendimento.

O enquadramento jurídico nacional

3.
    Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, da Lei luxemburguesa de 4 de Dezembro de 1967 relativa ao imposto sobre o rendimento (Mémorial A 1967, n.° 79, a seguir «LIR»), na redacção que lhe foi dada pela Lei de 6 de Dezembro de 1990:

«As pessoas singulares são consideradas como contribuintes residentes ou como contribuintes não residentes consoante tenham ou não o seu domicílio fiscal ou residência habitual no Grão-Ducado.»

4.
    O artigo 3.° da LIR estabelece:

«São tributados conjuntamente

a)    os cônjuges que, no início do ano a que o imposto respeita, sejam contribuintes residentes e não estejam separados de facto em virtude de uma dispensa legal ou de uma decisão judicial;

b)    os contribuintes residentes que contraiam matrimónio no decurso do ano a que o imposto respeita;

c)    os cônjuges que se tornem contribuintes residentes no decurso do ano a que o imposto respeita e que não estejam separados de facto em virtude de uma dispensa legal ou de uma decisão judicial.»

5.
    Para efeitos de aplicação da tabela de cálculo do imposto, os contribuintes são divididos em três classes de imposto. Assim, nos termos do artigo 119.° da LIR:

«1.    A classe 1 abrange as pessoas que não pertencem às classes 1a ou 2.

2.    A classe 1a abrange os seguintes contribuintes que não pertençam à classe 2:

    a)    os viúvos,

    b)    os que têm direito a uma redução do imposto pelos filhos nas condições definidas no artigo 123.°,

    c)    os que tenham completado 64 anos no início do ano a que o imposto respeita.

3.    A classe 2 abrange

    a)    as pessoas tributadas conjuntamente por força do artigo 3.°,

    b)    os viúvos, cujo casamento tenha sido dissolvido na sequência do falecimento do cônjuge no decurso dos três anos anteriores ao ano a que o imposto respeita,

    c)    os divorciados, separados de pessoas e bens ou separados de facto em virtude de uma dispensa legal ou de uma decisão judicial ocorrida no decurso dos três anos anteriores ao ano a que o imposto respeita, se não tiverem beneficiado da presente disposição ou de uma disposição análoga anterior no decurso dos cinco anos precedentes.»

6.
    Os contribuintes da classe 2, em igualdade de rendimentos e independentemente de eventuais deduções, beneficiam de uma taxa mais favorável do que os da classe 1. Com efeito, segundo dispõe o artigo 121.° da LIR:

«O imposto devido pelos contribuintes da classe 2 corresponde ao dobro do montante de imposto que, por aplicação da taxa prevista no artigo 118.°, seria devido pela metade do rendimento tributável.»

7.
    Além disso, o artigo 157.°-A, n.° 3, da LIR, prevê:

«...os contribuintes não residentes, casados e não separados de facto, são tributados, a seu pedido, pela classe de imposto 2, se estiverem sujeitos a imposto no Grão-Ducado por mais de 50% dos rendimentos profissionais do casal. Se ambos os cônjuges auferirem rendimentos tributáveis no Luxemburgo, o requerimento implica a tributação conjunta dos rendimentos.»

O litígio no processo principal

8.
    P. Zurstrassen e a mulher são de nacionalidade belga. P. Zurstrassen exerce uma actividade assalariada no Luxemburgo, onde reside, enquanto a mulher, sem profissão, e os filhos continuam a residir em Battice, na Bélgica, nomeadamente por razões ligadas à escolaridade dos filhos. O casal encontra-se, regra geral, aos fins-de-semana em Battice.

9.
    A quase totalidade dos rendimentos do casal (98%) provém dos rendimentos profissionais de P. Zurstrassen no Luxemburgo, correspondendo os 2% restantes aosrendimentos obtidos pelo interessado na sua qualidade de docente da Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. A mulher não dispõe de rendimentos próprios, de modo que não está sujeita a imposto no Estado de residência.

10.
    Nos avisos de liquidação do imposto sobre o rendimento dos anos fiscais de 1995 e 1996, emitidos em Maio de 1997, a Administração das Contribuições Directas classificou P. Zurstrassen na classe de imposto 1, aplicável aos solteiros.

11.
    Depois de ter reclamado para o director da Administração das Contribuições Directas, reclamação que não obteve resposta, P. Zurstrassen interpôs, em 5 de Fevereiro de 1998, dois recursos para o órgão jurisdicional de reenvio, «visando obter a reforma, se não a anulação», dos avisos de liquidação do imposto sobre o rendimento dos anos fiscais de 1995 e 1996.

12.
    P. Zurstrassen sustentou no tribunal de reenvio que as decisões impugnadas tinham um carácter discriminatório, visto que o casal era desfavorecido, por um lado, em relação aos cônjuges que residiam separadamente no território luxemburguês, que beneficiam, por força do artigo 3.°, alínea a), da LIR, da tributação conjunta (e, portanto, de uma taxa de imposto mais favorável) e, por outro, em relação aos não residentes casados e não separados de facto que auferem mais de 50% dos rendimentos profissionais do casal no Luxemburgo e que trabalham ambos no Luxemburgo, visto que, sendo equiparados aos residentes para efeitos fiscais, podem beneficiar da tributação conjunta nos termos do artigo 157.°-A, n.° 3, da LIR. Estas discriminações seriam contrárias ao artigo 48.° do Tratado.

13.
    Constatando que P. Zurstrassen fez uso do direito à livre circulação dos trabalhadores consagrado pelo artigo 48.° do Tratado e que reside no Luxemburgo, o Tribunal administratif do Luxemburgo, tendo dúvidas sobre a compatibilidade com o direito comunitário do regime fiscal em causa, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 48.° do Tratado da União Europeia e o artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento (CEE) n.° 1612/68, de 15 de Outubro de 1968, opõem-se a uma regulamentação nacional que sujeita o benefício da tributação conjunta dos dois cônjuges e da correspondente inclusão na classe II do imposto, que concede, sob certas condições, aos cônjuges um encargo fiscal mais favorável do que o que sobre eles incidiria em caso de tributação individual, desde que os dois cônjuges não separados de facto nem por força de uma decisão judicial tenham os seus domicílios fiscais respectivos no mesmo Estado-Membro, excluindo desse modo do benefício desse regime de tributação um cônjuge que se estabelece num Estado-Membro deixando o resto da sua família noutro Estado-Membro?»

14.
    Nos termos do artigo 48.°, n.° 2, do Tratado, a livre circulação dos trabalhadores «implica a abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, entreos trabalhadores dos Estados-Membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições de trabalho».

15.
    O artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1612/68 estabelece:

«Os nacionais de um Estado-Membro, independentemente do local da sua residência, têm o direito de aceder a uma actividade assalariada e de a exercer no território de outro Estado-Membro, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais deste Estado.»

16.
    Acresce que o artigo 7.°, n.° 2, deste mesmo regulamento prevê que os trabalhadores nacionais de um Estado-Membro beneficiam, no território dos outros Estados-Membros, «das mesmas vantagens sociais e fiscais que os trabalhadores nacionais».

17.
    A questão prejudicial deve, pois, ser entendida como visando esclarecer mais precisamente se o artigo 48.°, n.° 2, do Tratado e o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1612/68 se opõem a uma regulamentação nacional que, em matéria de imposto sobre o rendimento, faz depender o benefício da tributação conjunta dos cônjuges não separados de facto nem por força de uma decisão judicial da condição de serem ambos residentes no território nacional e que recusa esse benefício fiscal a um trabalhador residente nesse Estado, onde recebe a quase totalidade dos rendimentos do agregado familiar, cujo cônjuge reside noutro Estado-Membro.

18.
    Segundo jurisprudência constante, as normas referentes à igualdade de tratamento, tanto do Tratado como do artigo 7.° do Regulamento n.° 1612/68, proíbem não só as discriminações ostensivas, em razão da nacionalidade, mas ainda qualquer forma de discriminação dissimulada que, mediante a aplicação de outros critérios de distinção, conduza efectivamente ao mesmo resultado (v., designadamente, o acórdão de 12 de Fevereiro de 1974, Sotgiu, 152/73, Colect., p. 91, n.° 11).

19.
    Forçoso é constatar que, no presente caso, o benefício da tributação conjunta dos cônjuges está dependente da condição de residência dos dois cônjuges, condição esta que poderá ser mais facilmente satisfeita pelos nacionais luxemburgueses do que pelos nacionais de outros Estados-Membros que se tenham instalado no Grão-Ducado para aí exercerem uma actividade económica e cujos familiares mais frequentemente residem fora do Luxemburgo.

20.
    A condição de residência de ambos os cônjuges no território nacional não é, por conseguinte, de molde a assegurar a igualdade de tratamento imposta pelos artigos 48.°, n.° 2, do Tratado e 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1612/68.

21.
    É certo que, em matéria de impostos directos, como o Tribunal de Justiça já decidiu e como recorda o Governo espanhol, a situação dos residentes e a dos não residentes num Estado não são, regra geral, comparáveis, na medida em que o rendimento obtidono território de um Estado por um não residente constitui apenas, na maior parte dos casos, uma parte do seu rendimento global, centralizado no lugar da sua residência e que a capacidade contributiva pessoal do não residente, resultante da tomada em conta do conjunto do seu rendimento e da sua situação pessoal e familiar, se pode apreciar melhor no lugar em que ele tem o centro dos seus interesses pessoais e patrimoniais, que corresponde, regra geral, à sua residência habitual (acórdãos de 14 de Fevereiro de 1995, Schumacker, C-279/93, Colect., p. I-225, n.os 31 e 32, e de 14 de Setembro de 1999, Gschwind, C-391/97, Colect., p. I-0000, n.° 22).

22.
    Porém, no presente caso, P. Zurstrassen é contribuinte residente no Estado onde aufere a quase totalidade dos seus rendimentos profissionais.

23.
    Nestas condições, a decisão das autoridades fiscais luxemburguesas de considerar P. Zurstrassen como contribuinte solteiro sem encargos familiares, apesar de ele ser casado e ter filhos, pelo facto de a mulher, que não tem rendimentos próprios, ter mantido a sua residência noutro Estado-Membro não pode ser justificada à luz das considerações recordadas no n.° 21 do presente acórdão. Com efeito, o Grão-Ducado do Luxemburgo é o único Estado que pode tomar em consideração a situação pessoal e familiar de P. Zurstrassen, posto que este não só reside neste Estado, mas, além disso, é neste Estado que aufere a quase totalidade dos rendimentos profissionais do seu agregado familiar.

24.
    Para justificar a posição da sua administração fiscal, o Governo luxemburguês alegou que a tributação conjunta do casal simplifica a cobrança do imposto, devido à solidariedade entre os cônjuges, aos quais a autoridade fiscal pode indistintamente exigir o pagamento da totalidade da dívida fiscal. Esta possibilidade não existiria quando um dos cônjuges não é residente.

25.
    Mesmo independentemente de saber se o objectivo de facilitar a cobrança do imposto pode validamente justificar a desigualdade de tratamento segundo a residência do contribuinte, basta constatar que a própria legislação fiscal luxemburguesa autoriza a tributação conjunta de casais não residentes sujeitando-a à condição única de mais de 50% dos rendimentos profissionais do casal serem tributados no Luxemburgo, quando os obstáculos materiais à cobrança do imposto são maiores do que no caso do processo principal.

26.
    Há, assim, que responder à questão prejudicial que o artigo 48.°, n.° 2, do Tratado e o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1612/68 se opõem à aplicação de uma regulamentação nacional que, em matéria de imposto sobre o rendimento, faz depender o benefício da tributação conjunta dos cônjuges não separados de facto nem por força de uma decisão judicial da condição de serem ambos residentes no território nacional e que recusa esse benefício fiscal a um trabalhador residente nesse Estado, onde recebe a quase totalidade dos rendimentos do agregado familiar, cujo cônjuge reside noutro Estado-Membro.

Quanto às despesas

27.
    As despesas efectuadas pelos Governos luxemburguês e espanhol, bem como pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Tribunal administratif do Luxemburgo, através da decisão de 11 de Março de 1999, declara:

O artigo 48.°, n.° 2, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 39.°, n.° 2, CE) e o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade, opõem-se à aplicação de uma regulamentação nacional que, em matéria de imposto sobre o rendimento, faz depender o benefício da tributação conjunta dos cônjuges não separados de facto nem por força de uma decisão judicial da condição de serem ambos residentes no território nacional e que recusa esse benefício fiscal a um trabalhador residente nesse Estado, onde recebe a quase totalidade dos rendimentos do agregado familiar, cujo cônjuge reside noutro Estado-Membro.

Moitinho de Almeida
Edward
Sevón

Schintgen

Kapteyn
Gulmann

Hirsch

Ragnemalm
Wathelet

Skouris

Macken

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 16 de Maio de 2000.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: francês.