Language of document : ECLI:EU:C:2010:119

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 4 de Março de 2010 1(1)

Processo C‑31/09

Nawras Bolbol

contra

Bevándorlási és Állampolgársági Hivatal

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Fővárosi Bíróság (Hungria)]

«Condições mínimas a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado – Apátrida de origem palestiniana – Requisitos para a concessão do estatuto de refugiado – Artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 2004/83/CE»





1.        O desafio humanitário de como prestar assistência a pessoas que perderam a casa e os meios de subsistência em resultado de um conflito acompanha‑nos desde que o Homem aprendeu, pela primeira vez, a fabricar armas e a usá‑las contra os seus vizinhos. Os indivíduos e grupos de indivíduos nessa situação necessitam e são dignos de assistência e protecção. Infelizmente, certas formas de conflito dão origem a um grande número de pessoas nessas circunstâncias. Os países mais prósperos ou estáveis a que estas pessoas se dirigem solicitando asilo podem não necessariamente lidar de forma fácil com o influxo de refugiados, em especial imediatamente após um novo conflito, sem colocar potencialmente em risco a sua própria prosperidade e estabilidade. Portanto, o tratamento preferencial concedido, por alguma razão, a qualquer categoria ou grupo particular de refugiados porá em causa – caso não seja proporcional e equilibrado – o tratamento adequado de outras pessoas, que, de um ponto de vista humanitário objectivo, são igualmente dignas dessa assistência.

2.        Por conseguinte, a comunidade internacional estabeleceu, na Convenção de Genebra, de 28 de Julho de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados (2), normas vinculativas de direito internacional humanitário que definem quem e em que circunstâncias deve ser considerado refugiado e como deve ser tratado. Todos os Estados‑Membros da UE são signatários desta convenção. A nível comunitário, as suas obrigações estão previstas na Directiva 2004/83 (3).

3.        O presente pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Fővárosi Bíróság (tribunal de Budapeste) nos termos do antigo artigo 68.° CE tem por objecto as circunstâncias em que, ao abrigo da Directiva 2004/83, um Estado‑Membro pode ou deve conceder o estatuto de refugiado a uma palestiniana que solicitou asilo nesse Estado‑Membro.

 Direito internacional

 Convenção de 1951

4.        O preâmbulo da Convenção de 1951 recorda que a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos do Homem afirmaram o princípio de que os seres humanos, sem distinção, devem desfrutar dos direitos e das liberdades fundamentais sem distinção, e salienta que, em diversas ocasiões, a Organização das Nações Unidas tem manifestado a sua profunda solicitude para com os refugiados e que se preocupou com assegurar‑lhes o exercício mais lato possível dos direitos e das liberdades fundamentais. Ao mesmo tempo, o preâmbulo refere que da concessão do direito de asilo podem resultar encargos excepcionalmente pesados para alguns países e que a solução satisfatória dos problemas de que a Organização das Nações Unidas reconheceu o alcance e carácter internacionais não pode obter‑se sem uma solidariedade internacional. O preâmbulo expressa o desejo de que todos os Estados, reconhecendo o carácter social e humanitário do problema dos refugiados, façam tudo o que esteja em seu poder para evitar que este problema se torne uma causa de tensão entre Estados.

5.        O artigo 1.° A da Convenção de 1951 define os critérios pormenorizados para avaliar se um indivíduo tem direito à concessão do estatuto de refugiado:

«Para os fins da presente convenção, o termo ‘refugiado’ aplicar‑se‑á a qualquer pessoa:

[…]

2. que receando, com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a protecção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar.

[…]» (4)

6.        O artigo 1.° C prevê as diversas circunstâncias em que a convenção deixará de ser aplicável a uma pessoa que beneficiou do estatuto de refugiado ao abrigo das disposições da parte A, essencialmente, porque deixou ou deveria deixar de necessitar da protecção conferida por esta convenção.

7.        O artigo 1.° D (cuja interpretação é fundamental para o caso vertente) tem a seguinte redacção:

«Esta convenção não será aplicável às pessoas que actualmente beneficiam de protecção ou assistência da parte de um organismo ou instituição das Nações Unidas que não seja o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

Quando essa protecção ou assistência tiver cessado por qualquer razão sem que a sorte dessas pessoas tenha sido definitivamente resolvida, em conformidade com as resoluções respectivas aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas, essas pessoas beneficiarão de pleno direito do regime desta convenção.»

8.        O artigo 38.° estabelece que qualquer litígio entre as partes nesta convenção, relativo à sua interpretação e aplicação, será submetido ao Tribunal Internacional de Justiça (5), a pedido de uma das partes.

 Resoluções da Assembleia Geral da ONU relativas à situação na Palestina (6)

9.        Na sequência dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e, mais especificamente, do Holocausto, as Nações Unidas aprovaram as propostas para a partilha da Palestina elaboradas pelo United Nations Special Committee on Palestine (7) [Comité Especial das Nações Unidas para a Palestina] [Resolução 181 (II), de 29 de Novembro de 1947]. O Estado de Israel foi proclamado em 14 de Maio de 1948. Seguiu‑se, de imediato, o que posteriores resoluções da ONU descrevem como o «conflito de 1948». Através da Resolução 273 (III), de 11 de Maio de 1949, as Nações Unidas admitiram o Estado de Israel como membro dessa organização.

10.      Em resultado do conflito de 1948, muitos palestinianos passaram a ser deslocados. A Resolução 212 (III), de 19 de Novembro de 1948, instituiu o United Nations Relief for Palestinian Refugees [Auxílio das Nações Unidas aos Refugiados da Palestina] para prestar assistência imediata e temporária a essas pessoas. Através da Resolução da Assembleia Geral da ONU 302 (IV), de 8 de Dezembro de 1949, as Nações Unidas fundaram a United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East (8) [Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente].

11.      Desde a sua criação em 1949, o mandato da UNRWA tem sido renovado de três em três anos. O actual mandato termina em 2011 (9). A sua área de operações engloba cinco «zonas»: o Líbano, a República Árabe Síria, a Jordânia, a Cisjordânia (incluindo Jerusalém oriental) e a Faixa de Gaza (10).

 Instruções consolidadas para a elegibilidade e o registo (CERI)

12.      Segundo as CERI adoptadas pela UNRWA, entendem‑se por «pessoas que preenchem os critérios da UNRWA relativos aos refugiados palestinianos» «as pessoas cuja residência habitual se situava na Palestina durante o período compreendido entre 1 de Junho de 1946 e 15 de Maio de 1948 e que, em resultado do conflito de 1948, perderam a casa e os meios de subsistência» (11). Algumas outras pessoas, embora não respondam aos critérios da UNRWA relativos aos refugiados palestinianos, são igualmente elegíveis para beneficiar dos serviços oferecidos por esta agência (12). A UNRWA agrupa estas duas categorias considerando‑as pessoas «elegíveis para beneficiar dos serviços oferecidos pela UNRWA após terem sido registadas no Sistema de Registo da agência e de terem obtido o Cartão de Registo da UNRWA como prova desse registo» (13).

13.      Além disso, existem outras categorias de pessoas que são elegíveis para beneficiar dos serviços oferecidos pela UNRWA sem estarem registadas no Sistema de Registo desta agência (14). Essas categorias incluem «pessoas não‑registadas deslocadas devido ao conflito de 1967 e às hostilidades subsequentes» (15) e «pessoas não‑registadas que vivem em campos de refugiados e comunidades» (16).

 Estatuto do Gabinete do ACNUR

14.      O Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (17) foi criado em 14 de Dezembro de 1950 pela Resolução 428 (V) da Assembleia Geral das Nações Unidas. Nos termos do artigo 22.° da Carta das Nações Unidas, o ACNUR é um órgão subsidiário das Nações Unidas. As funções desempenhadas pelo Gabinete do ACNUR encontram‑se definidas no seu Estatuto (18).

15.      O artigo 6.° do Estatuto define o âmbito de competências do ACNUR. No entanto, de acordo com o artigo 7.°, alínea c), essas competências não abrangem uma pessoa que continue a beneficiar de protecção ou assistência por parte de outros órgãos ou agências das Nações Unidas.

 Declarações do ACNUR

16.      Ocasionalmente, o ACNUR profere declarações que têm força persuasiva, mas não vinculativa (19). O seu Gabinete publicou várias declarações relativas à interpretação do artigo 1.°D da Convenção de 1951, designadamente as explicações constante do seu Handbook on Procedures and Criteria for Determining Refugee Status under the 1951 Convention and the 1967 Protocol [Manual de procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refugiado ao abrigo da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967], uma nota publicada em 2002 (e revista em 2009) e uma declaração proferida em 2009 (também posteriormente revista) que se refere expressamente ao caso de N. Bolbol. Considerarei esta última como uma carta amicus curiae não oficial.

 Manual do ACNUR

17.      O Manual define o artigo 1.° D como uma disposição aplicável a pessoas que, ainda que preencham os requisitos em matéria de refugiados, não podem, no entanto, beneficiar desse estatuto. O referido manual afirma que a exclusão ao abrigo desta cláusula é aplicável a qualquer pessoa que beneficie de protecção ou assistência por parte da UNRWA, indicando que esta agência só opera em certas zonas do Médio Oriente, e que unicamente aí é prestada protecção e assistência (20). Portanto, um refugiado da Palestina que se encontre fora dessa área não beneficia da referida assistência e pode ser considerado para efeitos da determinação do seu estatuto de refugiado, de acordo com os critérios da Convenção de 1951. O manual afirma, em seguida, que normalmente é suficiente demonstrar que as circunstâncias que inicialmente o qualificaram para a protecção ou assistência por parte da UNRWA ainda se mantêm e que as cláusulas de cessação e de exclusão (21) não lhe são aplicáveis.

 Nota de 2002

18.      Na sua nota de 2002 (22), o ACNUR considera as duas frases do artigo 1.° D como alternativas e não cumulativas. Em seu entender, o artigo 1.° D aplica‑se a refugiados palestinianos na acepção da Resolução 194 (III), de 11 de Dezembro de 1948, ou a pessoas deslocadas na acepção da Resolução 2252 (ES‑V), de 4 de Julho de 1967 (23). As pessoas que vivem na zona da UNRWA que estão registadas ou em condições de serem registadas na agência (24) deverão ser consideradas beneficiárias de protecção e assistência por parte da UNRWA, estando, deste modo, abrangidas pela primeira frase do artigo 1.° D e não pelo âmbito de aplicação da Convenção de 1951.

19.      O ACNUR considera que a segunda frase do artigo 1.° D concede um direito automático a beneficiar do regime da Convenção de 1951 às pessoas que se encontram fora da zona da UNRWA (25), mas que, todavia, são refugiados palestinianos na acepção da Resolução 194 (III), de 11 de Dezembro de 1948, ou pessoas deslocadas na acepção da Resolução 2252 (ES‑V), de 4 de Julho de 1967. Isto inclui pessoas que nunca residiram na zona da UNRWA e que, por conseguinte, estão abrangidas pelo âmbito de competências do ACNUR (26). No entanto, essas pessoas podem igualmente regressar (ou ser obrigadas a regressar) à zona da UNRWA (27). Caso tal se verifique, serão abrangidas pela primeira frase do artigo 1.° D.

 Nota de 2009

20.      A nota de 2009 toma igualmente como ponto de partida o texto das Resoluções 194 (III) e [2252] (ES‑V). O ACNUR considera que o termo «beneficiam» contido na primeira frase do artigo 1.° D se refere a «serem elegíveis para beneficiar» de protecção e assistência por parte da UNRWA; e salienta que, para se encontrarem numa posição que lhes permita beneficiar dessa assistência, essas pessoas devem encontrar‑se na zona da UNRWA  (28). No que diz respeito à segunda frase do artigo 1.° D, o ACNUR acrescenta aos argumentos apresentados na sua nota de 2002 que, no seu entender, a expressão «tiver cessado por qualquer razão» inclui os casos em que determinada pessoa, já registada na UNRWA, viajou para fora da zona da UNRWA  (29).

 Direito da União Europeia

 Tratado CE

21.      O artigo 63.° CE (30) prevê o seguinte:

«O Conselho […] adopta […]:

1.      Medidas em matéria de asilo concordantes com a Convenção de Genebra, de 28 de Julho de 1951, e o Protocolo, de 31 de Janeiro de 1967, relativos ao estatuto dos refugiados, bem como com os demais tratados pertinentes […]

[…]»

 Posição Comum 96/196/JAI

22.      O artigo 12.° da Posição Comum (31), com a epígrafe «Artigo 1.° D da Convenção de Genebra», tem o seguinte teor:

«Uma pessoa que se subtraia deliberadamente à protecção e à assistência previstas no artigo 1.° D da Convenção de Genebra não é automaticamente abrangida de jure por aquela Convenção. Nesse caso, a qualidade de refugiado é, em princípio, determinada em aplicação do artigo 1.° A da referida Convenção.»

 Directiva 2004/83

23.      O Conselho de Tampere lançou as bases para o programa de legislação comunitária em matéria de liberdade, segurança e justiça na União Europeia, denominado Programa de Haia. A Directiva 2004/83 faz parte desse programa. Esta directiva estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa com direito a uma forma subsidiária de protecção [como a ordem de não repulsão («non‑refoulement»)].

24.      O terceiro considerando da Directiva 2004/83 sublinha que «[a] Convenção de Genebra e o seu protocolo constituem a pedra angular do regime jurídico internacional relativo à protecção dos refugiados». O sexto considerando dispõe que «[o] principal objectivo da presente directiva consiste em, por um lado, assegurar que todos os Estados‑Membros apliquem critérios comuns de identificação das protecção às pessoas que tenham efectivamente necessidade de protecção internacional e, por outro, assegurar que em todos os Estados‑Membros exista um nível mínimo de benefícios à disposição daquelas pessoas».

25.      O artigo 2.°, alínea c), da directiva reproduz o primeiro parágrafo do artigo 1.° A, n.° 2, da Convenção de 1951. O referido artigo 2.°, alínea c), da directiva define como «refugiado», «o nacional de um país terceiro que, receando com razão ser perseguido em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social, se encontre fora do país de que é nacional e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a protecção desse país, ou o apátrida que, estando fora do país em que tinha a sua residência habitual, pelas mesmas razões que as acima mencionadas, não possa ou, em virtude do referido receio, a ele não queira voltar, e aos quais não se aplique o artigo 12.°».

26.      O capítulo III da directiva versa sobre as condições para o reconhecimento como refugiado. O artigo 12.°, contido nesse capítulo, reflecte o artigo 1.° D, da Convenção de 1951. Em particular, o artigo 12.°, n.° 1, alínea a) reproduz o artigo 1.° D, tendo a seguinte redacção:

«O nacional de um país terceiro ou o apátrida é excluído da qualidade de refugiado se:

a) Estiver coberto pelo âmbito do ponto D do artigo 1.° da Convenção de Genebra, relativa à protecção ou assistência por parte de órgãos ou agências das Nações unidas, que não sejam o Alto Comissariado das Nações unidas para os Refugiados. Quando essa protecção ou assistência tiver cessado por qualquer razão sem que a situação da pessoa em causa tenha sido definitivamente resolvida em conformidade com as resoluções aplicáveis da assembleia Geral das Nações unidas, essa pessoa terá direito ipso facto a beneficiar do disposto na presente directiva; […]»

27.      O artigo 13.° da directiva prevê que o estatuto de refugiado deve ser concedido «ao nacional de um país terceiro ou ao apátrida que preencha as condições para ser considerado como refugiado, nos termos dos capítulos II [apreciação do pedido de protecção internacional] e III [condições para o reconhecimento como refugiado]».

28.      Os capítulos V e VI da directiva versam, respectivamente, sobre a qualificação para, e o estatuto de, protecção subsidiária. Em particular, o artigo 18.° prevê a concessão do estatuto de protecção subsidiária ao nacional de um país terceiro ou ao apátrida elegível para protecção subsidiária, nos termos dos capítulos II e V.

29.      O artigo 38.°, n.° 1 estipula que a directiva deve ser transposta para o direito nacional até 10 de Outubro de 2006. À data dos factos que deram origem ao presente reenvio prejudicial, o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva não foi transposto para o direito nacional húngaro, embora o prazo previsto para o efeito tenha expirado. Ambas as partes no processo principal consideram que o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva é suficientemente claro, preciso e incondicional para poder ser invocado pela recorrida contra a autoridade nacional competente.

 Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

30.      N. Bolbol, apátrida palestiniana, chegou à Hungria com o seu cônjuge em 10 de Janeiro de 2007, vinda da Faixa de Gaza com um visto. Após a chegada, N. Bolbol solicitou e obteve uma autorização de residência, outorgada pela autoridade competente em matéria de imigração. Em 21 de Junho de 2007, a recorrente apresentou um pedido de concessão do estatuto de refugiado junto da Bevándorlási és Állampolgársági Hivatal (autoridade competente em matéria de imigração e cidadania, a seguir «BAH»), visto que, caso a autoridade competente em matéria de imigração não prorrogasse a sua autorização de residência, não queria regressar à Faixa de Gaza, por a considerar insegura devido ao conflito entre o Fatah e o Hamas.

31.      O pedido de N. Bolbol foi apresentado ao abrigo do artigo 1.° D, segundo parágrafo, da Convenção de 1951 com base no facto de a recorrente ser uma palestiniana que reside fora da zona da UNRWA. Só o seu pai continua a residir na Faixa de Gaza, onde trabalha como professor universitário. Todos os restantes membros da sua família emigraram.

32.      É pacífico que, na realidade, N. Bolbol não recorreu à protecção e à assistência da UNRWA enquanto se encontrava na Faixa de Gaza. O seu pedido baseia‑se no direito que lhe assiste de beneficiar dessa protecção. Como fundamento desse direito, a recorrente apresentou um cartão de registo na UNRWA emitido a favor da família do primo do seu pai. No entanto, perante a falta de provas documentais directas, a BAH contesta a existência da referida relação familiar. A UNRWA não confirmou expressamente que a recorrente tinha direito a registar‑se (32).

33.      Por decisão de 14 de Setembro de 2007, a BAH indeferiu o pedido de concessão do estatuto de refugiado apresentado por N. Bolbol (33). Simultaneamente, a BAH colocou N. Bolbol sob a protecção decorrente da ordem de não repulsão (34) com base no facto de que a readmissão dos palestinianos depende da vontade arbitrária das autoridades israelitas e de que a recorrente ficaria exposta ao risco de tortura ou de um tratamento desumano e degradante, dadas as circunstâncias críticas existentes na Faixa de Gaza.

34.      N. Bolbol interpôs recurso da decisão da BAH que indeferiu o seu pedido de concessão do estatuto de refugiado para o Fővárosi Bíróság, que suspendeu a instância e submeteu à apreciação do Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«Para efeitos da aplicação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 2004/83/CE do Conselho:

1.      Deve considerar‑se que uma pessoa beneficia da protecção e assistência de um organismo das Nações Unidas pelo mero facto de que tem direito à referida protecção ou assistência, ou é necessário que tenha efectivamente obtido estas últimas?

2.      A cessação da protecção ou assistência do organismo refere‑se à permanência fora da área de operações do organismo, à cessação da actividade do organismo, ao facto de o organismo já não poder conceder a protecção ou assistência, ou a um impedimento objectivo em razão do qual a pessoa que tem direito à protecção ou à assistência não as possa obter?

3.      O direito a beneficiar do disposto na directiva implica o reconhecimento do estatuto de refugiado, ou de qualquer das duas formas de protecção incluídas no âmbito de aplicação da directiva (estatuto de refugiado e estatuto de protecção subsidiária), em função do que decida o Estado‑Membro, ou não implica automaticamente nenhuma das duas formas, mas apenas a inclusão no âmbito de aplicação pessoal da directiva?»

35.      Foram apresentadas observações escritas por N. Bolbol, pelos Governos belga, alemão, francês, húngaro e do Reino Unido e pela Comissão. Todos, à excepção do Governo do Reino Unido, compareceram na audiência e apresentaram alegações orais, em 20 de Outubro de 2009.

 Análise

 Directiva e Convenção de 1951

36.      Embora a União Europeia, enquanto tal, não seja signatária da convenção, o artigo 63.°, n.° 1, CE prevê expressamente que a política comum em matéria de asilo deve ser adoptada em conformidade com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967. A Directiva 2004/83, cuja base jurídica consiste no artigo 63.°, n.° 1, CE, descreve, no seu preâmbulo, a Convenção de 1951 como uma «pedra angular» na protecção dos refugiados. Esta directiva procura manifestamente, através de regras comunitárias comuns, dar seguimento às obrigações internacionais dos Estados‑Membros. Por conseguinte, as disposições da directiva devem ser interpretadas em conformidade com a Convenção de 1951  (35).

37.      Embora o ACNUR tenha expressado a sua opinião sobre a matéria (36), o Tribunal Internacional de Justiça ainda não se pronunciou a respeito da interpretação do artigo 1.° D da Convenção de 1951. Uma análise (não exaustiva) das decisões pertinentes proferidas por órgãos jurisdicionais de Estados‑Membros mostra uma disparidade impressionante em termos quer de raciocínio, quer de resultado (37) (reflectida nas observações apresentadas pelos Estados‑Membros intervenientes no processo). O Tribunal de Justiça não está, evidentemente, vinculado a nenhuma destas interpretações.

38.      A fim de responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional nacional, considera lógico e útil analisar o artigo 1.° D da convenção, para depois aplicar essa análise no âmbito do direito da União Europeia (38).

39.      É igualmente indispensável clarificar o âmbito do caso vertente. Tanto o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 2004/83 como o artigo 1.° D da Convenção de 1951 se referem, em termos gerais, à «protecção ou assistência» prestada por «órgãos ou agências» da ONU. No entanto, o recurso interposto por N. Bolbol para o órgão jurisdicional nacional baseia‑se no alegado direito a beneficiar da assistência prestada pela UNRWA. Além disso, as observações apresentadas por todos os interessados no Tribunal de Justiça abordaram as questões em apreço tendo em conta exclusivamente o papel desempenhado pela UNRWA (e não em termos mais gerais). Por conseguinte, seguirei esse raciocínio nestas conclusões.

40.      No âmbito da análise do artigo 1.° D da Convenção de 1951, apreciarei, portanto, em primeiro lugar, o contexto histórico em que o referido artigo foi elaborado (em conjunto com os travaux préparatoires) (39). Em seguida, antes de analisar os elementos específicos de interpretação que devem ser objecto de apreciação, definirei os princípios orientadores que considero aplicáveis. Por último, debruçar‑me‑ei sobre a Directiva 2004/83 e analisarei, subsequentemente, as questões prejudicais.

 Contexto histórico e travaux préparatoires

41.      A redacção da Convenção de 1951 realizou‑se num quadro dominado por um conflito recente, pela devastação e pela deslocação da população. A Segunda Guerra Mundial deixou um grande número de pessoas deslocadas na Europa. Uma série de eventos, que embora distintos entre si são conexos, conduziram, com a participação da comunidade internacional, à partilha da Palestina, seguida pela declaração do Estado de Israel. No conflito regional que precedeu e se seguiu a este acontecimento, um número significativo de pessoas foram deslocadas.

42.      Uma vez que está formulado em termos genéricos, o artigo 1.° D é potencialmente aplicável a qualquer situação em que «outros organismos ou instituições» da ONU garantam a «protecção ou assistência» de pessoas que, caso contrário, seriam abrangidas pelo âmbito de aplicação pessoal da Convenção de 1951. De facto, a ONU começou recentemente a fornecer uma assistência específica no que respeita ao conflito da Coreia (40). Dito isto, os travaux préparatoires revelam que, aquando da redacção do artigo 1.° D, a Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados e dos Apátridas (41) tinha sobretudo em mente a situação na Palestina.

43.      As actas da Conferência de Plenipotenciários reflectem três preocupações fundamentais (42): primeiro, a necessidade de prevenir um êxodo em massa da área geográfica que tenha pertencido à Palestina (43); segundo, o desejo de determinados Estados de manter a visibilidade política das pessoas deslocadas em consequência dos acontecimentos de 1948 (44); e terceiro, a necessidade de evitar uma sobreposição de competências entre o ACNUR e a UNRWA (45). Todas estas preocupações se centram (por motivos históricos) nas consequências da situação na Palestina em termos de pessoas deslocadas que necessitam de assistência. Por conseguinte, na análise do artigo 1.° D para efeitos do caso vertente, considerarei esta circunstância como o ponto de partida histórico.

44.      Os travaux préparatoires parecem igualmente abordar a deslocação dos palestinianos como, essencialmente, um problema que afecta um grupo de pessoas (46). No entanto, embora a categoria dos deslocados palestinianos constitua, em termos históricos, o objecto do artigo 1.° D, a disposição, em si mesma, deve ser interpretada de forma a torná‑la inteligível e aplicável a um indivíduo. Esta abordagem reflecte o facto de o direito internacional, no seu conjunto, atribuir uma grande importância ao direito de auto‑determinação (um direito colectivo para grupos de pessoas (47)), mas, ao mesmo tempo, o facto de o direito internacional humanitário se basear em princípios de respeito pela pessoa e pelos indivíduos no seio de um grupo (48).

45.      O compromisso negociado em que se tornou o artigo 1.° D consiste no facto de individualizar, em especial, os deslocados palestinianos para efeitos de uma atenção especial e, em alguns aspectos, uma protecção especial no quadro geral do direito internacional em matéria de refugiados.

46.      Embora seja uma disposição curta, o artigo 1.° D está repleto de questões sem resposta. É possível distinguir, pelo menos, quatro grandes domínios de incerteza – dois decorrentes da primeira frase e dois decorrentes da segunda – que devem ser esclarecidos de modo a responder às questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça no caso vertente (49).

47.      Primeiro, o que se deve entender, em termos geográficos e/ou temporais, por «pessoas que actualmente beneficiam de protecção ou assistência»? Segundo, essas pessoas devem beneficiar efectivamente de protecção ou assistência, ou é suficiente que tenham direito a beneficiar dela? (Como sub‑questão, especificamente relevante para efeitos da interpretação da directiva e do processo no tribunal nacional: qual o efeito do registo formal na UNRWA: um efeito substantivo ou meramente probatório?) Terceiro, em que circunstâncias se deve considerar que «essa protecção ou assistência cessou por alguma razão»? Quarto, qual o significado a atribuir à frase «essas pessoas beneficiarão de pleno direito do regime desta Convenção»?

 Princípios orientadores

48.      Como esclareceram as observações escritas e orais apresentadas ao Tribunal de Justiça, a versão actual do artigo 1.° D é capaz de suportar uma grande variedade de diferentes significados. Por conseguinte, considero ser fundamental estabelecer, de forma clara e inequívoca, os princípios que orientam o meu raciocínio.

49.      Em primeiro lugar, todos os refugiados genuínos são dignos de protecção e assistência. Por conseguinte, qualquer interpretação que conduza a um vazio em matéria de protecção destas pessoas deve, a priori, ser rejeitada.

50.      Em segundo lugar, a intenção histórica subjacente artigo 1.° D consistiu manifestamente em conceder algum tipo de tratamento e atenção especiais aos deslocados palestinianos (50).

51.      Em terceiro lugar, quaisquer que fossem as esperanças iniciais da Assembleia Geral (expressas em 1951 pelos autores da convenção) de que a UNRWA teria apenas de se ocupar de uma prestação temporária de assistência, os problemas associados à situação na Palestina revelaram‑se de difícil solução ao longo das décadas seguintes, como demonstraram as renovações sucessivas do mandato da UNRWA. O Protocolo de 1967 reflecte igualmente a infeliz realidade de que os problemas dos refugiados que necessitam de ser apreciados ao abrigo da Convenção de 1951 não se limitam aos problemas causados pelos acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951. Portanto, a intenção inicial dos autores da convenção deve ser matizada pela realidade histórica subsequente.

52.      Em quarto lugar, os autores da convenção pretenderam que os deslocados palestinianos que estivessem a beneficiar do tratamento e atenção especiais adoptados expressamente para lhes dar apoio (assistência prestada por parte da UNRWA) não pudessem solicitar a concessão do estatuto de refugiado ao abrigo da convenção, tal como supervisionado pelo ACNUR (daí resulta a primeira frase do artigo 1.° D). Enquanto beneficiarem de assistência por parte da UNRWA, os deslocados palestinianos estão excluídos ratione personae da convenção.

53.      Em quinto lugar, como corolário dessa exclusão (ou, possivelmente, como forma de compensação pela mesma), em determinadas circunstâncias, os deslocados palestinianos abrangidos pela segunda frase do artigo 1.° D têm direito ipso facto a beneficiar do regime da convenção (e não apenas a deixarem de ser excluídos do seu âmbito em caso de cessação da protecção ou assistência por parte da UNRWA). A própria presença da segunda frase implica uma consequência que vai mais além do que, quando preenchidas as suas condições específicas, a mera junção dessas pessoas na lista de todos os outros potenciais candidatos à concessão do estatuto de refugiado na acepção do artigo 1.° A.

54.      Em sexto lugar, o conceito de «cessação da protecção ou assistência» por parte de um organismo da ONU ou agência diferente do ACNUR (no caso vertente, a UNRWA) não pode ser interpretado de forma a que essas pessoas fiquem, efectivamente, bloqueadas na zona da UNRWA, incapazes (embora forçosamente excluídos da assistência da UNRWA) de partir e solicitar a concessão do estatuto de refugiado noutro lugar até que a situação na Palestina esteja resolvida e a UNRWA encerrada. Um resultado neste sentido seria totalmente inaceitável.

55.      Em sétimo lugar, uma vez que todos os refugiados genuínos deveriam poder obter protecção ou assistência, mas a capacidade dos Estados para absorver os refugiados não é infinita, o artigo 1.° D não pode ser interpretado no sentido de que dá a qualquer deslocado palestiniano, beneficie ou não efectivamente ou tendo ou não beneficiado de assistência por parte da UNRWA, o direito de abandonar voluntariamente a zona da UNRWA e solicitar automaticamente a concessão do estatuto de refugiado noutro lugar. Uma interpretação neste sentido resultaria na prestação de um tratamento desproporcionalmente favorável aos deslocados palestinianos em detrimento de outros candidatos genuínos à concessão do estatuto de refugiados deslocados em consequência de outros conflitos existentes no mundo.

56.      Por último, as duas frases que constituem o artigo 1.° D devem ser consideradas em conjunto de forma a fazer face às preocupações subjacentes à prestação de um tratamento e atenção especiais às pessoas deslocadas em resultado da situação na Palestina. Uma vez que a primeira frase, por si só, foi considerada insuficiente para esse fim, acrescentou‑se a segunda. Por conseguinte, é razoável interpretar as duas frases (e, portanto, os elementos as compõem) em conjunto e não separadamente (51); e procurar interpretar esta disposição como um todo que estabelece um equilíbrio razoável entre a ajuda concedida aos deslocados palestinianos (ao abrigo do artigo 1.° D) e a ajuda concedida a outros potenciais refugiados (ao abrigo da Convenção de 1951 no seu conjunto).

57.      Analisarei agora, em pormenor, os quatro elementos de interpretação (52) suscitados pelas questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

 (i) Significado de «pessoas que actualmente beneficiam de protecção ou assistência»

58.      A expressão «actualmente beneficiam» é restritiva em dois sentidos. Primeiro, os aspectos práticos relacionados com o benefício da protecção ou assistência por parte da UNRWA sugerem uma limitação espacial (53). Segundo, o termo «actualmente» e o uso do presente do indicativo sugerem uma limitação temporal (54).

 Limitação espacial

59.      Para beneficiar de protecção ou assistência por parte de um organismo ou agência da ONU que não seja o ACNUR, a pessoa deve encontrar‑se num local em que essa protecção e assistência estejam disponíveis fisicamente. Apenas é possível beneficiar da assistência prestada pela UNRWA na sua área de operações. Consequentemente, como o ACNUR afirmou, para efeitos do caso vertente, apenas se considera que uma pessoa está abrangida pela primeira frase do artigo 1.° D quando se encontrar na zona da UNRWA.

60.      Juridicamente, nenhuma das duas frases que constituem o artigo 1.° D está, de algum modo, limitada em termos geográficos. Daqui resulta que um indivíduo que abandona a zona da UNRWA deveria, em determinadas circunstâncias, poder invocar os direitos específicos conferidos pela segunda frase do artigo 1.° D, onde quer que se encontrasse.

61.      Além disso, saliento que as duas frases do artigo 1.° D devem ser lidas em conjunto. Assim, sempre que um indivíduo pretenda invocar direitos ao abrigo da segunda frase do referido artigo, é necessário, em primeiro lugar, determinar se inicialmente esse indivíduo estava abrangido pela primeira frase do mesmo artigo. Em caso negativo, o indivíduo não foi previamente excluído ratione personae do âmbito de aplicação da convenção. Pelo contrário, pode – como qualquer outro potencial refugiado – solicitar uma avaliação individual, na acepção do artigo 1.° A (55).

 Limitação temporal

62.      O Reino Unido alega que o uso do termo «actualmente» se refere ao ano de 1951, quando a convenção foi redigida. O Reino Unido considera que as partes que participaram na sua redacção tinham apenas presente o grupo de pessoas identificado como beneficiando já da assistência e protecção da UNRWA quando a convenção entrou em vigor.

63.      Segundo N. Bolbol, qualquer pessoa que tenha alguma vez beneficiado (56) de assistência por parte da UNRWA está abrangida pela cláusula de exclusão contida na primeira frase do artigo 1.° D (57).

64.      A Comissão e a Hungria interpretam a expressão «actualmente beneficiam» como referindo‑se a um benefício no momento imediatamente anterior ao pedido de concessão do estatuto de refugiado nos termos do artigo 1.° D.

65.      Em minha opinião, a interpretação proposta pelo Reino Unido é mais rígida do que o texto do artigo permitirá, em particular à luz do Protocolo de 1967 e das renovações consecutivas do mandato da UNRWA.

66.      Admito que, em 1951, as partes que participaram na redacção da convenção possam ter tido principalmente em mente as pessoas que, naquela época, beneficiavam já de protecção ou assistência por parte de outros «organismos e agências» das Nações Unidas (como a UNRWA). No entanto, desde então, essa organização tem prestado assistência e protecção a muitas mais pessoas (tanto aos descendentes dos que foram originariamente deslocados, como a novas pessoas deslocadas). De facto, as alterações à convenção feitas pelo Protocolo de 1967 expressam claramente o reconhecimento pela comunidade internacional de que as situações que dão origem a pedidos de concessão do estatuto de refugiado, infelizmente, não cessaram num determinado momento da história.

67.      Da aplicação deste mesmo raciocínio ao caso vertente resulta que a leitura restritiva feita pelo Reino Unido da primeira frase do artigo 1.° D não pode estar correcta. Uma leitura restritiva é igualmente difícil de conciliar com as próprias directrizes (CERI) da UNRWA, com base nas quais a assistência é oferecida não apenas a pessoas deslocadas em consequência dos acontecimentos de 1948, mas também (por exemplo) a «pessoas não‑registadas deslocadas devido ao conflito de 1967 e às hostilidades subsequentes» (58).

68.      Além disso, o artigo 7.° do Estatuto do ACNUR exclui do âmbito de competências desta organização qualquer «pessoa […] que continue a beneficiar de protecção ou assistência da parte de outros organismos ou agências das Nações Unidas […]». Com base nas hipóteses (razoáveis) de que (a) a UNRWA presta assistência a um maior número de pessoas agora do que em 1951 e de que (b) muitas daquelas que beneficiaram da assistência da UNRWA em 1951 entretanto faleceram, parece‑me que uma leitura restritiva da primeira frase do artigo 1.° D é susceptível de oferecer um grau de tratamento e atenção especiais aos deslocados palestinianos inferior ao pretendido pelas Nações Unidas.

69.      No entanto, em meu entender, o extenso âmbito temporal da abordagem defendida por N. Bolbol vai, por outro lado, longe de mais. Apenas aqueles inicialmente excluídos do âmbito de aplicação da convenção pela primeira frase do artigo 1.° D são potenciais beneficiários do tratamento especial previsto na segunda frase dessa disposição (59). Uma interpretação equilibrada do artigo 1.° D como um todo exige que não se aumente artificialmente a dimensão do grupo excluído definido pela primeira frase (para além das pessoas que «actualmente beneficiam» de protecção ou assistência não‑ACNUR) nem se alarguem demasiado as circunstâncias em que os membros desse grupo poderão ter direito aos benefícios conferidos pela segunda frase.

70.      Daqui resulta a necessidade de uma certa limitação temporal. Por conseguinte, entendo que a expressão – «actualmente beneficiam» de protecção ou assistência – contida na primeira frase do artigo 1.° D deve ser interpretada como referindo‑se, em qualquer altura, a «pessoas que presentemente beneficiam de protecção ou assistência da parte de um organismo ou agência que não seja o ACNUR». Essas pessoas estão excluídas da convenção visto que não necessitam da sua protecção.

 (ii) Benefício efectivo ou potencial?

71.      O segundo elemento de interpretação consiste em saber se a pessoa em causa beneficiou efectivamente de assistência ou protecção, ou se é suficiente que essa pessoa tenha potencialmente direito a beneficiar da referida assistência ou protecção.

72.      Em minha opinião, a primeira frase do artigo 1.° D abrange apenas as pessoas que efectivamente tenham obtido protecção ou assistência por parte de um organismo ou agência que não seja o ACNUR.

73.      Em primeiro lugar, na redacção da primeira frase é utilizada a expressão «beneficiam» em vez de «direito a beneficiar» (60). A este respeito, estou de acordo com o Reino Unido quando afirma que interpretar «beneficiam» no sentido de «direito a beneficiar» consiste em interpretar algo que não consta claramente do texto.

74.      Em segundo lugar, na medida em que exclui uma categoria específica de pessoas do âmbito de aplicação da convenção, a primeira frase do artigo 1.° D constitui uma derrogação ao princípio geral de que a protecção rationepersonae concedida pela convenção é universal (61). Como tal, essa disposição deverá presumivelmente ser interpretada de forma estrita e não extensiva (62).

75.      Em terceiro lugar, uma interpretação estrita está igualmente de acordo com a ideia de que essas pessoas (que poderão posteriormente, caso seja necessário, invocar os direitos especiais previstos na segunda frase do artigo 1.° D) não agem por vontade própria, sendo antes arrastadas por acontecimentos sobre os quais não têm controlo (63), na medida em que a decisão de prestar assistência a qualquer indivíduo em particular depende, directa ou indirectamente, da UNRWA (64).

76.      Neste ponto, discordo da interpretação proposta pelo Gabinete do ACNUR, orientando‑me, em primeira linha, pela letra clara da disposição que permanece inalterada há mais de 50 anos. Ao invés, a interpretação proposta pelo ACNUR apresenta variações ao longo do tempo (65), reflectindo a difícil solução da questão da Palestina. Embora a sua interpretação tenha a vantagem de eliminar a maioria dos problemas de prova relacionados com a primeira frase, fá‑lo através da exclusão de um número muito mais elevado de potenciais refugiados do âmbito de aplicação da Convenção de 1951.

 (iii) «quando essa protecção ou assistência tiver cessado por qualquer razão»

77.      As observações escritas apresentadas ao Tribunal de Justiça sugerem, entre elas, uma grande variedade de sentidos na interpretação desta frase que vão desde a cessação total da actividade da UNRWA (66) até à cessação da protecção relativamente a um indivíduo em particular (67). Na realidade, N. Bolbol vai mais longe e sugere que, caso a protecção ou a assistência cessem, aplicar‑se‑á a segunda frase do artigo 1.° D. A recorrente salienta que a United Nations Conciliation Commission for Palestine (68) [Comissão de Conciliação das Nações Unidas para a Palestina] cessou efectivamente a sua actividade (69) e conclui que a segunda frase do artigo 1.° D é, desde logo, necessariamente aplicável a todos aqueles previamente excluídos da protecção pela primeira frase.

78.      Não aceito este argumento. As duas frases do artigo 1.° D devem ser lidas em conjunto. Por conseguinte, a expressão «protecção ou assistência» – utilizada em ambas as frases – deverá ser interpretada como referindo‑se a uma assistência ou protecção prestada por qualquer um dos «organismos ou agências das Nações Unidas» que não o ACNUR. Caso uma pessoa «[beneficie actualmente]» de «protecção ou assistência» por parte de qualquer agência deste tipo, essa pessoa está excluída do âmbito de aplicação da convenção (primeira frase). Entendo que o termo «cessado» deve ser interpretado no sentido de que a segunda frase do artigo 1.° D é aplicável caso essa mesma pessoa deixe de poder beneficiar de protecção ou assistência por parte de qualquer agência deste tipo.

79.      Por outro lado, interpretar o termo «cessado» como exigindo uma cessação total das actividades prestadas pela UNRWA em toda a sua área de operações significaria que, até então, nenhuma pessoa que tivesse deixado de beneficiar de assistência por parte de organismos como a UNRWA poderia retirar qualquer benefício da segunda frase do artigo 1.° D ou, de um ponto de vista discutível, da totalidade da convenção. Essa interpretação no sentido da «cessação total» é, do mesmo modo, dificilmente compatível com a presença da expressão «por qualquer razão» antes da cláusula relativa à resolução do problema subjacente (os deslocados palestinianos), uma vez que a razão óbvia para a cessação total das actividades prestadas pela UNRWA seria o facto de «a sorte dessas pessoas» ter sido definitivamente resolvida.

80.      Por essa razão, concluo que o importante é saber se o indivíduo em causa deixou de beneficiar de protecção ou assistência.

81.      Por último, abordarei a questão de saber se a razão para a cessação da assistência prestada pela UNRWA é relevante. Em especial, a segunda frase do artigo 1.° D é aplicável caso uma pessoa abandone voluntariamente a área geográfica em que a UNRWA actua, sendo‑lhe impossível, deste modo, continuar a beneficiar da assistência prestada pela UNRWA? Ou a «cessação por qualquer razão» deve ser entendida simplesmente no sentido de «qualquer que seja a razão pela qual a UNRWA cessou de prestar assistência a uma pessoa em particular»? Como explicarei em seguida, prefiro a segunda interpretação.

82.      Na tentativa de cortar este nó górdio, considero que se deve ter em atenção quer as consequências resultantes de qualquer interpretação em particular quer a lógica subjacente à disposição. Portanto, a minha resposta está relacionada com a leitura que propus do último elemento de interpretação (nomeadamente, a respeito das consequências jurídicas da aplicação da segunda frase do artigo 1.° D (70)), em que a minha interpretação é mais generosa do que a proposta por alguns Estados‑Membros. Distinguiria entre, por um lado, as pessoas que abandonam voluntariamente a zona da UNRWA e, portanto, a assistência prestada por esta agência e, por outro, aquelas que se deparam com o facto de acontecimentos externos fora do seu controlo terem implicado que a UNRWA cessasse de lhes prestar assistência (71).

83.      Os indivíduos incluídos na primeira categoria deixaram de ser excluídos do âmbito de aplicação pessoal da convenção, visto que «actualmente [não] beneficiam de protecção ou assistência», sendo livres de solicitar uma avaliação individual com vista à obtenção do estatuto de refugiados, na acepção do artigo 1.° A. No entanto, estes indivíduos não podem invocar ter direito ipso facto a beneficiar do regime desta convenção. Eles optaram por se colocar numa situação em que a assistência da UNRWA deixou de estar à sua disposição; porém, não houve qualquer falta de vontade por parte da UNRWA em prestar essa assistência.

84.      Os indivíduos incluídos na segunda categoria deparam‑se involuntariamente com o facto de a sua situação anterior (em que, embora excluídos do âmbito da convenção pela primeira frase do artigo 1.° D beneficiavam de assistência por parte da UNRWA) ter sido alterada. A UNRWA deixou de lhes prestar essa assistência. O regime especial previsto na segunda frase do artigo 1.° D deve – se pretende ter algum sentido – intervir de modo a responder às necessidades dessas pessoas.

 (iv) «beneficiarão de pleno direito do regime desta convenção»

85.      O Governos belga e do Reino Unido defendem que o direito a beneficiar do regime da Convenção de 1951 significa apenas o direito de ser avaliado de acordo com os critérios estabelecidos no artigo 1.° A. No entanto, em minha opinião, da redacção da segunda frase do artigo 1.° D decorre sem ambiguidade que uma pessoa previamente excluída do âmbito de aplicação da convenção pela primeira frase do referido artigo, mas que deixou de beneficiar de protecção ou assistência não‑ACNUR na acepção da primeira parte da segunda frase, tem então direito a muito mais, designadamente ao reconhecimento automático como refugiado.

86.      Em primeiro lugar, ambas as versões inglesa e francesa prestam‑se a uma interpretação nesse sentido. Assim, a versão inglesa prevê «shall ipso facto be entitled to the benefits of this Convention» e a versão francesa «bénéficieront de plein droit du régime de cette convention». Parece‑me difícil compreender como o simples direito a solicitar uma avaliação, com base no artigo 1.° A, pode corresponder a qualquer uma destas formulações.

87.      Em segundo lugar, o artigo 1.° não constitui – enquanto tal – um «benefício» da convenção. Pelo contrário, os benefícios estão contidos nos artigos subsequentes. O artigo 1.° determina quem deve, e quem não deve, ter acesso a esses benefícios (72). Por conseguinte, o direito ipso facto a beneficiar do regime da convenção implica que já se tenha ultrapassado o artigo 1.°

88.      Em terceiro lugar, a lógica subjacente ao artigo 1.° D consiste em que os deslocados palestinianos devem desfrutar de tratamento e atenção especiais. É‑me difícil considerar a simples autorização para se juntar à lista de avaliações individuais para efeitos da concessão do estatuto de refugiado como tratamento e atenção especiais. Essa circunstância afigura‑se‑me mais como a simples supressão de uma entrave prévio (isto é, a exclusão do âmbito de aplicação da convenção).

89.      Por conseguinte, concluo que o direito ipso facto implica a concessão automática do estatuto de refugiado, sem que se proceda a uma avaliação individual.

 Consequências desta interpretação do artigo 1.° D

90.      A interpretação que proponho ao analisar cada um dos quatro elementos de interpretação envolve a leitura das duas frases, que constituem o artigo 1.° D, de uma forma que resulta no seguinte conjunto de consequências:

(a) um deslocado palestiniano que não beneficie de protecção ou assistência por parte da UNRWA não está excluído ratione personae do âmbito da convenção: portanto, deve ser considerado como qualquer outro candidato ao estatuto de refugiado e avaliado nos termos do artigo 1.° A (evita‑se uma sobreposição entre a UNRWA e o ACNUR; aplica‑se o princípio da protecção universal);

(b) um deslocado palestiniano que beneficie de protecção ou assistência por parte da UNRWA está excluído ratione personae do âmbito da convenção enquanto beneficiar dessa protecção ou assistência (evita‑se uma sobreposição entre a UNRWA e o ACNUR);

(c) um deslocado palestiniano que beneficiou de protecção ou assistência por parte da UNRWA, mas que, por qualquer razão, já não pode obter essa protecção ou assistência, deixou de estar excluído ratione personae do âmbito da convenção (aplica‑se o princípio da protecção universal); no entanto, a questão de saber se esse deslocado palestiniano pode ou não beneficiar de pleno direito do regime desta convenção depende da razão pela qual deixou de poder obter essa protecção ou assistência;

(d) caso esse deslocado palestiniano tenha deixado de poder beneficiar de protecção ou assistência por parte da UNRWA em resultado de circunstâncias externas que escaparam ao seu controlo, tem um direito automático ao estatuto de refugiado (aplica‑se o princípio do tratamento e atenção especiais);

(e) caso esse deslocado palestiniano tenha deixado de poder beneficiar de protecção ou assistência por parte da UNRWA em resultado das suas próprias acções, não pode reivindicar automaticamente o estatuto de refugiado; no entanto, tem (naturalmente) direito a que a sua candidatura ao estatuto de refugiado seja avaliada em função da suas especificidades, de acordo com o artigo 1.° A (aplica‑se o princípio da protecção universal e do tratamento justo de todos os refugiados genuínos; interpretação proporcionada do alargamento do tratamento e atenção especiais que deve ser concedido aos deslocados palestinianos).

 Aplicação mutatis mutandis da directiva

91.      Dado que a redacção do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva corresponde directamente à redacção da Convenção de 1951, é agora possível analisar, de forma relativamente rápida, as questões prejudiciais do caso vertente. Uma vez interpretado o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), pelo Tribunal de Justiça, em minha opinião, esta disposição poderá ter efeito directo.

 Primeira questão

92.      O artigo 12.°, n.° 1, alínea a), não prevê textualmente a cláusula de exclusão relativa às pessoas que «actualmente beneficiam de protecção ou assistência»; limita‑se a remeter directamente para o artigo 1.° D da Convenção de 1951. Nada sugere que a cláusula de exclusão na directiva tenha um significado diferente do artigo 1.° D. Pelo contrário: tudo indica que devem ter exactamente o mesmo significado.

93.      Por conseguinte, fazendo a interpretação do artigo 1.° D da Convenção de 1951 por mim acima proposta, concluo que uma pessoa apenas está abrangida pelo âmbito de aplicação da primeira frase do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva caso tenha efectivamente obtido protecção ou assistência por parte de um organismo ou de uma agência das Nações Unidas que não o ACNUR. O mero direito a essa protecção ou assistência não exclui essa pessoa da qualidade de refugiado na acepção do artigo 2.°, alínea c), da directiva.

94.      Uma questão subsidiária (suscitada no contexto da aplicação da directiva) consiste em saber que provas deve um candidato fornecer para demonstrar estar abrangido pela primeira frase do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva, como condição preliminar para invocar direitos especiais previstos pela segunda frase. Com base na interpretação por mim acima proposta, um candidato deve apresentar provas de que beneficiava efectivamente de protecção ou assistência.

95.      A este respeito, é fundamental reconhecer tanto o interesse legítimo do Estado em verificar se um indivíduo em particular tem direito ao que reivindica, como os problemas práticos e concretos que qualquer pessoa que pretende obter o estatuto de refugiado pode enfrentar ao fazer prova do seu direito. Alguns candidatos não terão um direito genuíno ao estatuto de refugiado; sendo que o Estado tem legitimidade para verificar esses casos. Ao mesmo tempo, o Estado não pode estabelecer critérios irrealistas para a prova exigida (73).

96.      A questão coloca‑se, então, a respeito da relevância que tem ou poderia ter o registo efectivo na UNRWA.

97.      Em minha opinião, o registo é de uma questão de prova e não de mérito.

98.      A UNRWA presta, por vezes, assistência sem proceder ao registo da pessoa (74). Ocasionalmente, os registos administrativos podem ficar para trás dos acontecimentos; ou podem ter sido destruídos durante os conflitos. Por conseguinte, rejeito o argumento avançado pelo Governo francês de que somente será considerada suficiente a prova efectiva do registo na UNRWA.

99.      Dito isto, considero que a prova do registo efectivo na UNRWA dá origem a uma presunção inilidível de que um candidato beneficiou efectivamente de assistência.

 Segunda questão

100. A segunda frase do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da directiva reproduz directamente a segunda frase da Convenção de 1951 e, a fortiori, deve ser interpretada da mesma forma.

101. Por conseguinte, proponho responder à segunda questão prejudicial no sentido de que a «cessação da protecção ou assistência da parte de uma agência» significa que a pessoa em causa deixou, por motivos alheios à sua vontade, de beneficiar da protecção ou assistência de que usufruía imediatamente antes.

102. Não subestimo as questões relacionadas com a prova que surgirão ao determinar se uma pessoa em particular abandonou a zona da UNRWA de forma voluntária ou involuntária. Os problemas vão desde elementos de prova fragmentários (que confirmam parte de uma narrativa, mas não cada uma das etapas) até à possibilidade de provas fabricadas (ou provas autênticas obtidas por corrupção do funcionário certo). Nesta matéria, como sucede com a prova do benefício efectivo de assistência, o Estado tem direito a insistir na apresentação de algumas provas, mas não da prova perfeita susceptível de ser produzida num mundo ideal.

 Terceira questão

103. A terceira questão prejudicial não pode ser respondida através da transposição directa da análise anterior. Nesta matéria, deve tomar‑se em consideração a sistemática da directiva.

104. Segundo o artigo 2.°, alínea c), da directiva, entende‑se por refugiado o nacional de um país terceiro que preencha um conjunto específico de critérios (inspirados no artigo 1.° A da convenção) «e ao qual não se aplique o artigo 12.°». O artigo 12.° (com a epígrafe «Exclusão») exclui determinadas categorias de pessoas (reproduzindo partes do artigo 1.° da Convenção de 1951 (75)) «da qualidade de refugiado».

105. Isso significa que uma pessoa que esteja abrangida por quaisquer das partes do artigo 12.°, n.° 1, alínea a) (isto é, a primeira e/ou a segunda frases) é permanentemente excluída da qualidade de refugiada? Em minha opinião tal não é possível.

106. Em primeiro lugar, a segunda frase do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), prevê claramente o alargamento do direito de beneficiar do disposto na directiva a pessoas que estavam abrangidas pela primeira frase, mas que, posteriormente, preencheram os critérios estabelecidos na segunda frase. Para conciliar esse texto com a definição geral de «refugiado» prevista pelo artigo 2.°, alínea c), é necessário interpretar a segunda frase do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), como uma excepção à cláusula de exclusão contida na primeira frase dessa disposição, com as respectivas consequências específicas.

107. Em segundo lugar, o artigo 12.° faz parte de capítulo III da directiva («Condições para o reconhecimento como refugiado»). O posicionamento deste artigo indica, como defenderam correctamente N. Bolbol, o Governo húngaro e a Comissão, que o mesmo constitui uma via distinta do procedimento previsto no capítulo II («Apreciação do pedido de protecção internacional»), ao abrigo do qual uma pessoa pode ser considerada refugiado e, portanto, ter direito à concessão do estatuto de refugiado, de acordo com o artigo 13.° (76).

108. Por último, na determinação de quem deve ou não ser considerado refugiado, os artigos 2.°, alínea c), 11.° e 12.° reflectem não apenas o teor, mas também a sistemática do artigo 1.° da Convenção de 1951 no seu conjunto. Se se verificasse a existência de uma lacuna na directiva no sentido de uma pessoa que satisfizesse ambas as partes do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), continuar a ser excluída da qualificação de refugiado, então, a directiva não asseguraria uma transposição correcta para o direito da União Europeia das obrigações de direito internacional dos Estados‑Membros previstas nos termos da convenção. Tal consistiria, por conseguinte, numa leitura errada da directiva.

109. Aplicando a análise do artigo 1.° D da convenção por mim proposta anteriormente, concluo, em resposta à terceira questão prejudicial, que a expressão «beneficiar do disposto na presente directiva» se refere ao preenchimento das condições para ser considerado refugiado e ao direito automático ao estatuto de refugiado em conformidade com o artigo 13.° da directiva (77).

110. Por questões de exaustividade, acrescento que a possibilidade de protecção subsidiária (78), enquanto opção adicional, não condiciona a interpretação do artigo 12.°, n.° 1, alínea a). Essa opção é relevante apenas para as pessoas a quem não é concedido automaticamente o estatuto de refugiado nos termos do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), mas que são avaliadas em conformidade com o capítulo II e que preenchem as condições para beneficiar de protecção subsidiária, nos termos do capítulo V. De acordo com a Convenção de 1951, para beneficiar de qualquer protecção é necessário que a pessoa preencha os critérios previstos pelo artigo 1.° A. De acordo com a directiva, uma pessoa que não satisfaça os critérios equivalentes [estabelecidos no artigo 2.°, alínea c), e aprofundados no capítulo II] poderá, ainda assim, obter um grau (menor) de protecção.

 Conclusão

111. À luz das considerações acima expostas, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais apresentadas pelo Fővárosi Bíróság da seguinte forma:

1.      Uma pessoa apenas está abrangida pelo âmbito de aplicação da primeira frase do artigo 12.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, caso tenha efectivamente obtido a protecção ou assistência por parte de uma agência das Nações Unidas diferente do ACNUR. O mero direito a essa protecção ou assistência não é suficiente para a aplicação dessa disposição.

2.      A expressão «cessação da protecção ou assistência da parte da agência» refere‑se ao facto de a pessoa em causa já não se encontrar na área geográfica relevante e ter deixado, por motivos alheios à sua vontade, de beneficiar da protecção e assistência de que usufruiu imediatamente antes de ter abandonado essa área geográfica.

3.      A expressão «beneficiar do disposto na presente directiva» implica o reconhecimento como refugiado e a concessão automática do estatuto de refugiado.


1 – Língua original: inglês.


2 – A seguir «Convenção de 1951» ou «convenção», que codifica e substitui textos anteriores. Esta convenção entrou em vigor em 22 de Abril de 1954. A versão aplicável ao caso vertente é a resultante da adopção, em 1967, do Protocolo de Nova Iorque, de 31 de Janeiro de 1967, relativo ao Estatuto dos Refugiados (a seguir «Protocolo de 1967»). A Directiva 2004/83 refere‑se à Convenção de 1951 como «Convenção de Genebra», uma expressão abreviada normalmente reservada aos quatro tratados e protocolos, que, em conjunto, estabelecem, a nível internacional, as normas para o tratamento humanitário das vítimas de guerra. Por conseguinte, por uma questão de clareza, evitarei utilizar a denominação «Convenção de Genebra» nestas conclusões, salvo no caso de citações directas.


3 – Directiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de protecção internacional, bem como relativas ao respectivo estatuto, e relativas ao conteúdo da protecção concedida (JO L 304, p. 12) (a seguir «Directiva 2004/83» ou «directiva»).


4 –      Conforme modificado pelo Protocolo em 1967, como reconhecimento do facto de que, desde que a convenção foi adoptada, surgiram novas situações em matéria de refugiados e de que todos os refugiados devem beneficiar de um estatuto igual.


5 – A seguir «TIJ».


6 – A questão de saber se as resoluções da Assembleia Geral da ONU são, de facto, «lei» stricto sensu ainda não foi resolvida [v., por exemplo, para uma análise do valor normativo das resoluções, o parecer consultivo do Tribunal Internacional de Justiça sobre a licitude da ameaça ou do emprego de armas nucleares (CIJ Recueil 1996, p. 226)]. No entanto, para efeitos das presentes conclusões, este ponto não requer uma análise pormenorizada.


7 – A seguir «UNSCOP».


8 – A seguir «UNRWA».


9 – V. Resolução da Assembleia Geral da ONU 62/02.


10 – V. CERI, ponto VII.E. Por razões de simplicidade, nestas conclusões, referir‑me‑ei à área de operações da UNRWA como «zona da UNRWA».


11 – Sítio da Internet da UNRWA: http://www.un.org/unrwa/overview/qa.html; CERI, ponto III.A.1. O ponto VII (glossário e definições) repete esta definição (no ponto VII.J). O ponto VIII contém igualmente definições detalhadas de alguns outros termos a seguir utilizados nesta parte das conclusões.


12 – Estas pessoas são «pessoas que, no momento do registo inicial, não satisfaziam todos os critérios da UNRWA relativos aos refugiados palestinianos, mas que se determinou terem sofrido perdas significativas e/ou privações por razões relacionadas com o conflito de 1948 na Palestina; entre estas incluem‑se igualmente as pessoas que fazem parte das famílias das Pessoas Registadas» (CERI, ponto III.A.2). Essas pessoas, embora estejam registadas na UNRWA, não são consideradas parte da população de Refugiados Registados oficial da agência. De acordo com o sítio da Internet da UNRWA, existem presentemente cerca de 4,6 milhões de pessoas registadas nesta agência.


13 – CERI, ponto III.A. A UNRWA afirma ainda que «os serviços oferecidos pela UNRWA encontram‑se à disposição de todos aqueles que vivam na sua área de operações e que satisfaçam esta definição, que estejam registados na agência e que necessitem de assistência» (www.un.org/unrwa/refugees/whois.html).


14 – CERI, ponto III.B. A UNRWA salienta que os seus programas «mantêm os devidos registos» dessas pessoas. Talvez compreensivelmente, a UNRWA não procura, no entanto, averiguar ou confirmar se uma determinada pessoa, que não está registada e que efectivamente não beneficiou de assistência, tem, todavia, potencialmente direito a essa assistência (v., ainda, n.° 71 infra).


15 – A UNRWA coloca os seus serviços à disposição das pessoas inseridas nesta categoria em conformidade com a prática estabelecida e/ou o acordo com o país de acolhimento. Na Resolução 2252 (ES‑V), de 4 de Julho de 1967, a Assembleia Geral da ONU apoiou os esforços envidados pela UNRWA «para continuar a prestar ajuda humanitária, na medida do possível, em casos de emergência e como medida temporária, a outras pessoas que se encontrem na sua área de operações, que estão presentemente deslocadas e necessitam urgentemente de assistência contínua devido ao conflito de Junho de 1967 e às recentes hostilidades». A circunstância de a necessidade dessa ajuda humanitária não ser «temporária» é bem demonstrada pelo facto de a redacção da Resolução 2252 (ES‑V) ter sido repetida, desde então, em várias resoluções da Assembleia Geral e, mais recentemente, na Resolução 64/L.13, de 13 de Novembro de 2009.


16 – «Estas pessoas beneficiam dos serviços oferecidos pela UNRWA (por exemplo, saneamento e serviços de higiene do ambiente) que são alargados à totalidade dos campos de refugiados e das comunidades» (CERI, ponto III.B).


17 – A seguir «ACNUR».


18 – Anexo à referida resolução.


19 – O décimo quinto preâmbulo da Directiva 2004/83 refere que «a realização de consultas junto do [ACNUR] pode fornecer orientações úteis destinadas aos Estados‑Membros para determinar o estatuto de refugiado». Para uma discussão mais detalhada sobre o valor das declarações do Gabinete do ACNUR, v. Hathaway, The Right of Refugees under International Law, Cambridge University Press, 2005, pp. 112‑118, em especial as distinções, em termos de peso normativo, que o mesmo faz entre a) Conclusões do Comité Executivo (com mais autoridade), b) o Manual e c) outras declarações emitidas para orientação. Os textos do ACNUR referidos nestas conclusões pertencem às categorias b) e c).


20 – O manual refere que, embora a UNRWA seja actualmente o único organismo ou agência além do ACNUR que assegura protecção e assistência ao abrigo do artigo 1.° D, anteriormente existia um outro organismo deste tipo (a United Nations Korean Reconstruction Agency) [Agência das Nações Unidas para a Reconstrução da Coreia] e existe a possibilidade de virem a existir no futuro outros organismos similares.


21 – Artigo 1.° C (cessação) e artigos 1.° E e 1.° F (exclusão).


22 – O Gabinete do ACNUR emitiu, em 2009, uma versão revista desta nota. Salientei as alterações relevantes nas notas desta parte das minhas conclusões.


23 – A revisão de 2009 esclarece que os seus descendentes estão incluídos.


24 – A revisão de 2009 omite esta exigência, afirmando que a pessoa em causa necessita apenas de se encontrar na zona da UNRWA para ser considerada beneficiária de protecção e assistência.


25 – A revisão de 2009 afirma que essas pessoas estão abrangidas pela segunda frase, visto que «não beneficiam actualmente» (em vez de «deixaram de beneficiar»), tendo, portanto, a protecção cessado.


26 – A revisão de 2009 elimina deste ponto a seguinte parte: «estão abrangidas pelo âmbito de competências do ACNUR».


27 – A revisão de 2009 não se pronuncia sobre o conceito de «ser obrigado a regressar».


28 – A versão revista desta nota adopta a análise da nota de 2002, revista, e acrescenta que todas as pessoas abrangidas pelas Resoluções 194 (III) e 2252 (ES‑V), e seus descendentes, que se encontrem na zona da UNRWA, «actualmente beneficiam de protecção ou assistência» na acepção do artigo 1.° D.


29 – A versão revista não analisa o significado da expressão «tiver cessado por qualquer razão» mas indica apenas que as pessoas que se deslocam do interior para o exterior da zona da UNRWA e depois regressam se movimentam entre os primeiro e segundo parágrafos do artigo 1.° D, independentemente das razões de saída e de regresso.


30 – Na sequência da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o artigo 63.°, n.os 1 e 2, CE é reproduzido (com algumas alterações) no artigo 78.°, n.os 1 e 2, do TFUE. Em especial, o TFUE exige ao Parlamento Europeu e ao Conselho Europeu que adoptem medidas relativas a um sistema europeu comum de asilo que inclua, designadamente, um estatuto uniforme de asilo e de protecção subsidiária para os nacionais de países terceiros. O artigo 63.°, n.° 3, alínea a), CE é reproduzido (com algumas alterações) no artigo 79.°, n.° 2, alínea a), do TFUE.


31 – Posição Comum, de 4 de Março de 1996, definida pelo Conselho com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia sobre a aplicação harmonizada da definição do termo «refugiado» na acepção do artigo 1.° da Convenção de Genebra de 28 de Julho de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados (JO L 63, p. 2).


32 – V. nota 14 (o representante legal de N. Bolbol solicitou essa confirmação). Ainda que N. Bolbol não tivesse direito a registar‑se, poderia, não obstante, (caso se encontrasse na zona da UNRWA) ter direito a beneficiar de assistência: v. n.os 10 a 12 supra.


33 – Resulta do despacho de reenvio que esta decisão se baseou no artigo 3.°, n.° 1, da Menedékjogról Szóló 1997. Évi CXXXIX. Törvény (lei sobre o direito de asilo de 1997, a seguir «Met»)


34 – Resulta do despacho de reenvio que esta ordem se baseou no artigo 38.°, n.° 2, da Met e no artigo 51.°, n.° 1, da Hamadik Országbeli Állampolgárok Beutazásáról és Tartózkodásáról Szóló 2007. Évi II. Törvény (lei relativa à entrada e à residência dos nacionais de países terceiros de 2007).


35 – V. acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de Março de 2010, Salahadin Abdulla e alia (C‑175/08, C‑176/08, C‑178/08 e C‑179/08 ainda não publicado na Colectânea, n.os 52 e 53).


36 – V. Manual do ACNUR e as duas notas referidas nos n.os 18 e 20 supra. O TIJ tem competência exclusiva, ao abrigo do artigo 38.°, para proferir decisões vinculativas quanto à interpretação da Convenção de 1951.


37 – Comparar, por exemplo, o raciocínio da Court of Appeal (Reino Unido) no processo El‑Ali (2003) 1 WLR 95 com a conclusão a que chegou o Conseil du Contentieux des Etrangers da Bélgica nas suas decisões de 21 de Abril de 2009 e de 14 de Maio de 2009 (processos registados sob os números 26 112 e 27 366, respectivamente).


38 – É este particularmente o caso, porquanto o artigo 12.°, n.° 1, alínea a), constitui uma pura transposição dos conceitos e da letra do artigo 1.° D da Convenção de 1951. Dito isto, a presente decisão do Tribunal de Justiça será, evidentemente, vinculativa apenas no que diz respeito à directiva.


39 – Embora o direito internacional se esforce por tornar efectivo o significado natural e comum das disposições de um tratado [de acordo com o artigo 31.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (a seguir «CVDT»)], na determinação do sentido de um termo, sempre que uma interpretação baseada no significado comum de uma disposição de um Tratado, à luz do seu objecto e finalidade, deixe o sentido desse termo ambíguo ou obscuro, é possível, tanto de acordo com a CVDT (nos termos do artigo 31.°), como com os princípios gerais de direito internacional, fazer referência aos travaux préparatoires de um tratado e às circunstâncias da sua conclusão: para um análise mais pormenorizada v. Sinclair, The Vienna Convention on the Law of Treaties, 2.ª edição, Manchester University Press, 1984, pp. 141 e segs.


40 – V. nota 20.


41 – A seguir «Conferência de Plenipotenciários».


42 – Vários organismos internacionais interpretaram, por vezes, as disposições de um tratado à luz da vontade comum das partes no momento em que participaram na sua redacção (v., por exemplo, acórdão do TIJ, Fronteira Terrestre e Marítima entre os Camarões e a Nigéria, CIJ Recueil 2002, p. 303, n.° 59, e Decisão de delimitação da fronteira entre a Eritreia e a Etiópia, apresentada em 13 de Abril de 2002 pela Comissão de Fronteira Eritreia‑Ethiopia, n.os 3.3, 3.4 e 3.13, que remete para o acórdão do tribunal arbitral no processo Fronteira Argentina/Chile (1966) 38 ILR 10, p. 89).


43 – V. declarações dos representantes italiano e iraquiano na 19.ª reunião da Conferência de Plenipotenciários, assim como do representante francês na 29.ª reunião da referida conferência.


44 – V. declarações do representante egípcio nas 19.ª e 29.ª reuniões da Conferência de Plenipotenciários.


45 – V. declarações do representante egípcio na 19.ª reunião da Conferência de Plenipotenciários, assim como do representante francês na 20.ª reunião da referida conferência.


46 – V., por exemplo, declarações do Presidente da Conferência na 19.ª reunião, do representante francês na 20.ª reunião e do representante norte‑americano na 21.ª reunião da Conferência de Plenipotenciários.


47 – V., por exemplo, artigo 1.°, n.° 2, da Carta das Nações Unidas. O conceito de auto‑determinação evoluiu em conjunto com o processo de descolonização e, como tal, tende a apresentar um forte elemento territorial (Shaw, International Law, 5.ª edição, Cambridge University Press 2008). Por conseguinte, é difícil aplicar este conceito a grupos de refugiados ou a apátridas. A questão da sua aplicabilidade aos palestinianos deslocados é objecto de vivos debates [v., designadamente, Parecer Consultivo do TIJ sobre as consequências jurídicas resultantes da edificação de um muro no território palestiniano ocupado (CIJ Recueil 2004, p. 136)].


48 – V. preâmbulo e artigo 1.°, n.° 3, da Carta das Nações Unidas. Esta análise reflecte‑se num aspecto fundamental do artigo 1.° A da convenção, segundo o qual, com vista a obter o estatuto de refugiado, um indivíduo deve demonstrar um receio fundado de ser perseguido, enquanto tal, no contexto de um risco mais geral que afecta um determinado grupo de pessoas que partilham as mesmas características.


49 – Resulta dos travaux préparatoires que mesmo a delegação egípcia, por iniciativa da qual foi acrescentada a segunda frase à redacção que deu origem ao artigo 1.° D, não foi completamente clara quanto à função a que se destina a frase no seu conjunto: v. declarações dos representantes egípcios nas 19.ª e 20.ª reuniões da Conferência de Plenipotenciários.


50 – O Governo alemão interrogou‑se sobre se essas providências separadas e distintas violam o princípio da igualdade de tratamento. Para responder negativamente a essa questão é necessário admitir que o artigo 1.° D foi redigido de forma a ter em conta os problemas específicos de um determinado grupo de pessoas deslocadas, cuja situação foi imputável – pelos menos em parte – a uma decisão tomada pela comunidade internacional (a partilha da Palestina). Essa diferença objectiva justifica então um (certo grau de) tratamento especial. Saber se a aplicação do artigo 1.° D a pessoas que recebem protecção ou assistência por parte de uma entidade diferente do ACNUR constitui uma situação hipotética não provocada por uma decisão tomada pela comunidade internacional que violaria o princípio da igualdade de tratamento é uma questão que foge do âmbito das presentes conclusões.


51 – A este respeito, discordo com a linha de interpretação proposta pelo Gabinete do ACNUR, que afirma [na sua nota de 2002 e, mais claramente, na revisão de 2009 dessa nota) que todos os palestinianos (abrangidos pelo âmbito da Resolução 194 (III), de 11 de Dezembro de 1948, e da Resolução 2252 (ES‑V), de 4 de Julho de 1967] que se encontram fora da zona da UNRWA não beneficiam actualmente de protecção ou assistência, tendo estas, consequentemente, cessado. Isto significa que, teoricamente, a assistência poderia «cessar» relativamente a uma pessoa que nunca tivesse beneficiado dela, o que, simplesmente, não corresponde ao significado natural do termo «cessar». A versão original da nota do ACNUR respeitante ao caso vertente indicava que: se uma pessoa abandonou a zona da UNRWA, a protecção e assistência «cessaram» para ela pelo que deveria obter automaticamente os benefícios da Convenção. Abordo este último raciocínio adiante (n.os 81 e segs. infra).


52 – Resumidos no n.° 47 supra.


53 – Admito que um hipotético futuro organismo ou agência da ONU que opere nos termos do artigo 1.° D possa não ser tão limitado.


54 – Em seguida, no âmbito do segundo elemento de interpretação, analisarei se o termo «beneficiam» deve ser entendido como «beneficiam efectivamente» ou «direito a beneficiar».


55 – Partindo do pressuposto, evidentemente, que o indivíduo em causa não está excluído segundo os artigos 1.° C, 1.° E ou 1.° F.


56 – Ou teria direito a beneficiar de assistência: a este respeito, v. n.os 71 e segs.


57 – N. Bolbol defende, em seguida, em conformidade, uma interpretação extensiva da segunda frase.


58 – V. n.os 11 a 13 supra.


59 – V. n.os 85 e segs. infra para uma análise das consequências desse tratamento especial.


60 – A versão francesa do artigo 1.° D (outra das duas versões que fazem fé, como referido no último parágrafo da convenção) prevê, do mesmo modo, «bénéficient actuellement» em vez de «sont éligibles à bénéficier».


61 – A limitação temporal inicial («em resultado dos acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951») foi eliminada pelo Protocolo de 1967; e a maioria dos Estados optaram agora, nos termos do artigo 1.° B, por considerar a convenção aplicável aos «acontecimentos ocorridos na Europa ou noutro local». A partir de 2009, dos 147 Estados signatários da convenção e do protocolo, apenas quatro Estados optaram por considerar a convenção aplicável apenas a acontecimentos ocorridos na Europa.


62 – Ainda que a jurisprudência em matéria de cláusulas deste tipo seja menos clara do que no direito da União Europeia [v., por exemplo, conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas no processo Satakunnan Markkinapörssi e Satamedia (C‑73/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 58 e jurisprudência citada)], os órgãos jurisdicionais e arbitrários internacionais desenvolveram, com base na CVDT, as suas práticas interpretativas de modo a interpretar os tratados tendo em conta a finalidade e os objectos dos mesmos [v., por exemplo, decisão do TIJ no processo Disputa territorial (Libyun Aruh Jamuhiriyu/Chad), CIJ Recueil 1994, n.° 41, e decisão do tribunal arbitral no processo Dívida Externa Alemã, 19 ILM 1980, p. 1377, n.os 28 e 30)]. Segundo estes órgãos jurisdicionais, é possível que alguns organismos internacionais encarem favoravelmente uma interpretação estrita da derrogação.


63 – Ocupar‑me‑ei ainda do grau de controlo que um refugiado tem sobre o seu destino, nos n.os 77 e segs infra.


64 – V. n.os 11 a 13 supra e respectivas notas.


65 – V. n.os 18 e 19 supra.


66 – Observações apresentadas pelos Governos belga, francês e do Reino Unido.


67 – Observações apresentadas por N. Bolbol e nota de 2009 do ACNUR. A abordagem da Comissão centra‑se igualmente nos indivíduos. Todavia, a Comissão entende que as pessoas que abandonaram a zona da UNRWA não estão abrangidas pelo artigo 1.° D, mas sim pelas regras gerais, dado que as suas deslocações não são equiparáveis a uma cessação da protecção ou assistência (que se verifica independentemente de qualquer acção por parte de um indivíduo).


68 – A seguir «UNCCP».


69 – N. Bolbol defende que a UNRWA foi criada para prestar assistência aos deslocados palestinianos, enquanto o ACNUR devia protegê‑los. N. Bolbol baseia a sua argumentação na cessação das actividades da UNCCP e no facto de a UNRWA não ter assumido as funções da UNCCP.


70 – V. n.os 85 e segs. infra.


71 – Esta é, além disso, a interpretação originariamente adoptada pelo legislador comunitário: v. Posição Comum 96/196, que declara que as pessoas que se subtraíram deliberadamente à protecção e à assistência previstas no artigo 1.° D da Convenção de 1951 não estão automaticamente abrangidas de jure por aquela convenção.


72 – A redacção do artigo 1.° do Protocolo de 1967 apoia esta interpretação, na medida em que agrupa os artigos 2.° a 34.° da Convenção de 1951. A nota de 2009 do Gabinete do ACNUR observa igualmente que «a expressão ‘regime desta convenção’ se refere ao tratamento padrão que os Estados signatários […] devem conceder aos refugiados nos termos dos artigos 2.° a 34.° desta convenção».


73 – Aplicado à directiva (na medida em que é distinta da convenção), tal significa que, embora os Estados‑Membros conservem o direito de estabelecer, de acordo com o direito nacional, as regras aplicáveis em matéria de prova, essas regras não devem impossibilitar, ou impossibilitar virtualmente, um candidato de invocar os direitos garantidos pelo direito da União Europeia: v. acórdão do Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2009, Pontin (C‑63/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 43 e jurisprudência citada).


74 – V. n.° 13 supra e notas 13 a 16. É possível que um número bastante elevado de pessoas que beneficiam de assistência possam não estar formalmente registadas, embora normalmente devesse existir algum tipo de registo na UNRWA para demonstrar ser menos provável que essas pessoas beneficiavam de assistência.


75 – A correlação consiste no seguinte (artigos da directiva mencionados antes dos artigos da convenção): artigo 12.°, n.° 1, alínea a), e artigo 1.° D; artigo 12.°, n.° 1, alínea b), e artigo 1.° E; artigo 12.°, n.° 2, alíneas a), b) e c), e artigo 1.° F. O artigo 12.°, n.° 3, fornece mais esclarecimentos quanto à interpretação do artigo 12.°, n.° 2. A letra do artigo1.° C da convenção é reproduzida noutra disposição da directiva (artigo 11.°: «Cessação»).


76 – «Os Estados‑Membros concedem o estatuto de refugiado ao nacional de um país terceiro ou ao apátrida que preencha as condições para ser considerado como refugiado, nos termos dos capítulos II e III» (sublinhado meu). A redacção do artigo 12.° da Posição Comum 96/196 sugere igualmente que as pessoas abrangidas por ambas as frases do artigo 1.° D da Convenção de 1951 devem automaticamente ter direito ao estatuto de refugiado, não necessitando de ser avaliadas segundo os critérios estabelecidos pelo artigo 1.° A.


77 – A formulação imperativa – «concedem o estatuto de refugiado» – contida no artigo 13.° da directiva (v. nota anterior) não pode ter outro significado.


78 – De acordo com o capítulo VI, artigos 18.° e 19.°, da directiva.