Language of document : ECLI:EU:C:2014:2213

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 11 de setembro de 2014 (1)

Processo C‑449/13

CA Consumer Finance SA

contra

Ingrid Bakkaus,

Charline Bonato, com o apelido de solteira Savary

Florian Bonato

[pedido de decisão prejudicial apresentado tribunal d’instance d’Orléans (França)]

«Proteção dos consumidores — Crédito ao consumo — Obrigações pré‑contratuais que incumbem ao mutuante profissional — Deveres de informação e de avaliação da solvabilidade do consumidor — Modalidade e ónus da prova de execução das referidas obrigações»





1.        O presente pedido de decisão prejudicial diz respeito à interpretação de certas disposições da Diretiva 2008/28/CE (2), relativas às obrigações pré‑contratuais que incumbem ao mutuante profissional. Mais especificamente, estão em causa as obrigações referidas nos artigos 5.° (obrigação de informação e explicação) e 8.° (avaliação da solvabilidade do consumidor) da referida diretiva.

2.        O órgão jurisdicional de reenvio procura, no essencial, obter clarificações quanto ao ónus e meios de prova de cumprimento das referidas obrigações. Conforme exporei nas presentes conclusões, embora a questão de saber a quem incumbe, em princípio, demonstrar que as obrigações de informação e verificação contratuais decorrentes da Diretiva 2008/48 foram corretamente executadas me pareça decorrer logicamente da referida diretiva, as modalidades de prova da referida execução parecem‑nos amplamente regidas pelo princípio da autonomia processual. Importa por isso abordar as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio com uma certa prudência, de modo a encontrar um justo equilíbrio entre o objetivo de proteção do consumidor prosseguido pela referida diretiva e a necessidade de não impor ao mutuante um procedimento probatório irrealista.

I –    Quadro jurídico

A –    Direito da União

3.        O artigo 5.° da Diretiva 2008/48, sob a epígrafe «Informações pré‑contratuais», dispõe:

«1.      Em tempo útil, antes de o consumidor se encontrar obrigado por um contrato de crédito ou uma oferta, o mutuante e, se for caso disso, o intermediário de crédito devem, com base nos termos e nas condições do crédito oferecidas pelo mutuante e, se for caso disso, nas preferências expressas pelo consumidor e nas informações por este fornecidas, dar ao consumidor as informações necessárias para comparar diferentes ofertas, a fim de tomar uma decisão com conhecimento de causa quanto à celebração de um contrato de crédito. Tais informações, em papel ou noutro suporte duradouro, devem ser prestadas através do formulário sobre ‘Informação Normalizada Europeia em matéria de Crédito aos Consumidores’ constante do anexo II. Considera‑se que o mutuante cumpriu os requisitos de informação previstos no presente número e nos n.os 1 e 2 do artigo 3.° da Diretiva 2002/65/CE se tiver fornecido a ‘Informação Normalizada Europeia em matéria de Crédito aos Consumidores’. [...]

[...]

6.      Os Estados‑Membros devem garantir que os mutuantes e, se for caso disso, os intermediários de crédito forneçam explicações adequadas ao consumidor, de modo a colocá‑lo numa posição que lhe permita avaliar se o contrato de crédito proposto se adapta às suas necessidades e situação financeira, eventualmente fornecendo as informações pré‑contratuais previstas no n.° 1, explicando as características essenciais dos produtos propostos e os efeitos específicos que possam ter para o consumidor, incluindo as consequências da falta de pagamento pelo consumidor. Os Estados‑Membros podem adaptar a forma e a extensão em que esta assistência é prestada, bem como identificar quem a presta, às circunstâncias específicas da situação na qual se propõe o contrato de crédito, a quem é proposto e ao tipo de crédito oferecido.»

4.        O artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2008/48, com a epígrafe «Obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor» prevê:

«Os Estados‑Membros devem assegurar que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante avalie a solvabilidade do consumidor com base em informações suficientes, se for caso disso, obtidas do consumidor e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante. Os Estados‑Membros cuja legislação exija que os mutuantes avaliem a solvabilidade dos consumidores com base numa consulta da base de dados relevante podem reter esta disposição.»

5.        O artigo 22.° da Diretiva 2008/48, sob a epígrafe «Harmonização e caráter imperativo da presente diretiva», dispõe nos seus n.os 2 e 3:

«2.      Os Estados‑Membros devem assegurar que o consumidor não possa renunciar aos direitos que lhe são conferidos por força das disposições da legislação nacional que dão cumprimento ou correspondem à presente diretiva.

3.      Os Estados‑Membros devem assegurar, além disso, que as disposições que venham a aprovar para dar cumprimento à presente diretiva não possam ser contornadas em resultado da redação dos contratos, em especial integrando levantamentos ou contratos de crédito sujeitos ao âmbito de aplicação da presente diretiva em contratos de crédito cujo carácter ou objetivo permitiria evitar a aplicação desta.»

6.        O artigo 23.° da Diretiva 2008/48, intitulado «Sanções», dispõe:

«Os Estados‑Membros devem determinar o regime das sanções aplicáveis à violação das disposições nacionais aprovadas em aplicação da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação das referidas disposições. As sanções previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.»

B –    Direito francês

7.        A Lei n.° 2010‑737, de 1 de julho de 2010, relativa à reforma do crédito ao consumo (3), que visa transpor a Diretiva 2008/48 foi incluída nos artigos L. 311‑1 e seguintes do código do consumo.

8.        O artigo L. 311‑6 do referido código, relativo à obrigação de enviar a ficha de Informação Normalizada Europeia dispõe:

«I.      Antes da celebração de um contrato de crédito, o mutuante ou o intermediário de crédito devem dar ao mutuário, em papel ou noutro suporte duradouro, as informações necessárias para comparar diferentes ofertas e que permitam ao mutuário, tendo em conta as suas preferências, compreender claramente a extensão do seu compromisso. […]

II.      Quando o consumidor solicitar a celebração de um contrato de crédito no local de venda, o mutuante deve garantir que o formulário de informação referido no n.° I lhe é entregue nesse local.»

9.        O artigo L. 311‑8 do Código do Consumo, relativo ao dever de explicação pré‑contratual, prevê:

«O mutuante, ou o intermediário de crédito, deve fornecer ao mutuário as explicações necessárias que lhe permitam avaliar se o contrato de crédito proposto se adapta às suas necessidades e situação financeira, designadamente com base nas informações contidas no formulário referido no artigo L. 311‑6. Deverá chamar a atenção do mutuário para as características essenciais do ou dos créditos propostos e para os efeitos específicos que esses créditos possam ter na situação financeira do mutuário, incluindo em caso de falta de pagamento. Estas informações serão prestadas, se for caso disso, com base nas preferências expressas pelo mutuário.

[...]»

10.      O artigo L. 311‑9 deste código tem a seguinte redação:

«Antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante verificará a solvabilidade do mutuário, com base em informações suficientes, incluindo as fornecidas por este último a pedido do mutuante. O mutuante consultará o ficheiro previsto no artigo L. 333‑4, nas condições previstas pelo decreto referido no artigo L. 333‑5.»

11.      O artigo L. 311‑48, segundo e terceiro parágrafos, do Código do Consumo prevê:

«Quando o mutuante não cumprir com as obrigações fixadas nos artigos L. 311‑8 e L. 311‑9, perde o direito aos juros, na totalidade ou proporção fixado pelo julgador. […]

O mutuário é responsável apenas pelo reembolso do capital de acordo com o calendário previsto, bem como, se for o caso, pelo pagamento dos juros não perdidos pelo mutuante. As somas recebidas a título de juros, que gerarem juros à taxa de juro legal a partir do dia do seu pagamento, são restituídas pelo mutuante ou afetas ao capital que permanecer em dívida.»

II – Factos na origem do litígio, questões prejudiciais e processo no Tribunal de Justiça

12.      O pedido de decisão prejudicial foi apresentado no âmbito de dois litígios que opõem a CA Consumer Finance SA (a seguir «CA CF»), por um lado, a I. Bakkaus e, por outro lado, aos cônjuges Bonato (a seguir recorridos no processo principal) a respeito de pedidos de pagamento de somas que permanecem em dívida relativas aos empréstimos que esta sociedade lhes tinha concedido, acrescidas de juros, com vista à aquisição de veículos automóveis.

13.      O órgão jurisdicional de reenvio ao qual foram submetidos estes litígios, uma vez que os recorridos no processo principal não compareceram na audiência, suscitou oficiosamente (4), com vista à eventual perda do direito aos juros contratuais do mutuante, nos termos do artigo L. 311‑48 do Código do Consumo, os fundamentos baseados, em primeiro lugar, na falta de prova do conteúdo da ficha de informações pré‑contratuais que devia ter sido entregue ao mutuário, em segundo lugar, numa falta de prova de cumprimento do dever de explicação e violação por parte do mutuante do seu dever de aviso ao mutuante no âmbito do dever de explicação e, em terceiro lugar, na não consulta do ficheiro de incidentes de reembolso de crédito aos particulares (FICP), no quadro da verificação da avaliação da solvabilidade. Além disso, no litígio que opõe os cônjuges Bonato à CA CF, este órgão jurisdicional também salientou a falta de demonstração do cumprimento do dever de verificação da solvabilidade dos mutuários.

14.      Considerando que estes litígios levantam questões ligadas à aplicação e à interpretação do direito da União, o tribunal d’instance d’Orléans decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve a Diretiva 2008/48 ser interpretada no sentido de que compete ao mutuante demonstrar o cumprimento correto e pleno das obrigações que lhe incumbem no momento da elaboração e do cumprimento de um contrato de crédito, resultantes do direito nacional que transpôs a diretiva?

2)       A Diretiva 2008/48 opõe‑se a que a prova do cumprimento correto e pleno das obrigações que incumbem ao mutuante possa ser produzida exclusivamente através de uma cláusula tipo inserida no contrato de crédito em que o consumidor reconhece que o mutuante cumpriu as suas obrigações, sem que esse cumprimento seja corroborado pelos documentos apresentados pelo mutuante e entregues ao mutuário?

3)       Deve o artigo 8.° da Diretiva 2008/48/CE ser interpretado no sentido de que se opõe a que a verificação da solvabilidade do consumidor seja efetuada apenas com base nas informações declaradas pelo consumidor, sem confirmação efetiva destas informações através de outros documentos?

4)       Deve o artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48 ser interpretado no sentido de que não se pode considerar que o mutuante forneceu explicações adequadas ao consumidor se não tiver verificado previamente a situação financeira e as necessidades deste?

Deve o artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48 ser interpretado no sentido de que se opõe a que as explicações adequadas fornecidas ao consumidor resultem apenas das informações contratuais mencionadas no contrato de crédito, sem formalização num documento específico?»

15.      Foram apresentadas observações escritas pela CA CF, pelos Governos francês, alemão e espanhol, bem como pela Comissão Europeia.

16.      Os Governos francês e alemão bem como a Comissão foram ouvidos na audiência que se realizou em 10 de julho de 2014.

III – Análise

A –    Considerações gerais quanto às obrigações pré‑contratuais decorrentes da Diretiva 2008/48 e quanto ao regime de prova de cumprimento das referidas obrigações

17.      Tendo como primeira finalidade assegurar a todos os consumidores um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses e instituir um verdadeiro mercado interno (5), a Diretiva 2008/48 impõe designadamente aos Estados‑Membros que tomem as medidas adequadas para incentivar práticas ditas «responsáveis» em todas as fases da relação de crédito, tendo em conta as especificidades do seu mercado de crédito (6).

18.      Um dos pilares da harmonização decorrente da Diretiva 2008/48 diz respeito assim às obrigações pré‑contratuais que se impõem aos mutuantes. Dividem‑se globalmente, por um lado, numa obrigação de fornecer um certo número de informações e explicações ao consumidor (7), a fim de que este esteja em posição de efetuar uma escolha esclarecida previamente ao seu compromisso de celebrar um contrato de crédito, e, por outro lado, numa exigência de avaliação da solvabilidade do consumidor, exigência destinada a responsabilizar tanto o mutuário como o mutuante na decisão de contratar e conceder o crédito (8).

19.      No caso em apreço, dois aspetos harmonizados pela Diretiva 2008/48 são precisamente postos em causa pelos fundamentos suscitados oficiosamente pelo órgão jurisdicional de reenvio. O primeiro é relativo à obrigação de fornecer informações e explicações referido no artigo 5.°, n.os 1 e 6, da Diretiva 2008/48. O segundo aspeto diz respeito ao dever de verificação da solvabilidade previsto no artigo 8.° desta diretiva. No direito francês, a violação destas obrigações, impostas pelos artigos L. 311‑6, L. 311‑8 e L. 311‑9 do Código do Consumo, implica consequências avultadas para o mutuante infrator, uma vez que é sancionada, nos termos do artigo L. 311‑48 deste código, pela perda, em princípio total, do direito aos juros, disposição que visa transpor o artigo 23.° da referida diretiva (9).

20.      Importa salientar que as disposições correspondentes desta diretiva foram transpostas para o direito francês através da adoção da «Lei Lagarde», de 1 de julho de 2010 (10), o que permite, apesar da formulação das questões prejudiciais, excluir qualquer discussão quanto a um eventual efeito direto horizontal que devesse ser reconhecido à diretiva.

21.      Deve igualmente referir‑se que o órgão jurisdicional de reenvio não questiona o Tribunal de Justiça quanto à possibilidade de poder aplicar oficiosamente as disposições que transpõem para o direito interno a Diretiva 2008/48. Isto explica‑se certamente tanto pelo facto de esta possibilidade lhe ter sido oferecida, em todo o caso, pelo direito interno (v. artigo L. 141‑4 do Código do Consumo) como pela analogia que pode indiscutivelmente ser feita com os ensinamentos do acórdão Rampion e Godard (11), que reconheceu ao juiz nacional o poder de aplicar oficiosamente certas disposições que transpõem para o direito interno disposições da Diretiva 87/102 que precederam a Diretiva 2008/48.

22.      O órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se, no essencial, quanto ao ónus e meios de prova do cumprimento das obrigações pré‑contratuais.

23.      Tal como exporemos nos desenvolvimentos que se seguem, embora a questão de saber a quem incumbe a tarefa de provar que as referidas obrigações foram corretamente executadas nos pareça decorrer implicitamente da Diretiva 2008/48 e dos objetivos que esta prossegue, as modalidade de prova admitidos a este respeito decorrem, em princípio, em conformidade com o princípio da autonomia processual, do direito nacional dos Estados‑Membros.

24.      Em primeiro lugar, no que diz respeito à questão de saber a quem incumbe estabelecer a correta execução das obrigações pré‑contratuais, é verdade, tal como salientou corretamente o órgão jurisdicional de reenvio, que nenhuma disposição da Diretiva 2008/48 contém regras claras e precisas relativas ao ónus da prova de execução das obrigações pré‑contratuais que impendem sobre os mutuantes. Assim, esta diretiva não põe em causa os regimes de prova da execução ou da não execução das obrigações previstas noutras ordens jurídicas nacionais.

25.      Há que reconhecer que decorre logicamente do objetivo de proteção dos consumidores prosseguido pela Diretiva 2008/48 que o ónus da prova da execução das obrigações pré‑contratuais de informação e de verificação deve em princípio recair sobre o mutuante profissional — voltaremos a este ponto no exame da primeira questão prejudicial. De maneira geral, parece‑nos que deveria incumbir ao responsável por uma obrigação específica de informação e de verificação, no caso em apreço um mutante profissional, provar o cumprimento da mesma.

26.       Em segundo lugar, no que respeita às modalidades de administração da prova das referidas obrigações, importa, em conformidade com o princípio da autonomia processual, remeter para o direito interno sem prejuízo do respeito pelos princípios da efetividade e da equivalência. Com efeito, Estados‑Membros devem assegurar que as modalidades de prova, em primeiro lugar, não sejam menos favoráveis do que as relativas a recursos similares de natureza interna e, em segundo, não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício pelo particular dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (12).

27.      O princípio da equivalência não está aqui em causa.

28.      Quanto ao respeito pelo princípio da efetividade, somos do parecer que este não impõe uma definição precisa das modalidades de prova admissíveis para efeitos de demonstrar a correta execução das obrigações do mutuante, decorrentes das medidas de transposição da Diretiva 2008/48. Tal como o órgão jurisdicional de reenvio parece admitir, o acórdão Rampion e Godard (EU:C:2007:575) referia‑se à necessidade, para efeitos de assegurar a efetividade da proteção dos consumidores, de uma «intervenção externa», ou seja, de estabelecer o poder do juiz que deve aplicar oficiosamente as disposições de transposição da Diretiva 87/102. Não obstante, o órgão jurisdicional de reenvio entende que a intervenção do juiz não pode garantir a eficácia do direito da União sem uma regra relativa ao ónus e ao objeto da prova. Explica que a existência de eventuais violações depende frequentemente dos documentos apresentados na audiência.

29.      Esta argumentação não nos parece totalmente convincente.

30.      Desde logo, isso seria, no nosso entender, dar um passo suplementar em relação a considerar que a proteção dos consumidores exige uma «regra» relativa ao ónus e ao objeto da prova das obrigações decorrentes da Diretiva 2008/48. O estabelecimento de tal regra implicaria o risco de estabelecer um sistema de prova legal, que excluiria qualquer princípio de liberdade probatória e que não está isento de perigo sob a perspetiva da efetividade da proteção jurisdicional.

31.      Em seguida, esta consideração omite o facto de o juiz, a partir do momento em que se interroga sobre a existência de eventuais violações da obrigações pré‑contratuais previstas pelas Diretiva 2008/48, poder, ou mesmo dever, pôr em marcha todos os meios processuais necessários com vista a apurar se as referidas obrigações foram corretamente cumpridas (13). Tal como o Tribunal de Justiça já indicou, no que diz respeito à apreciação oficiosa do caráter abusivo de uma cláusula incluída num contrato entre um consumidor e um mutuante profissional e tendo em conta a analogia que pode ser feita, tal como o Tribunal de Justiça fez no acórdão Rampion e Godard (EU:C:2007:575), entre o nível de proteção conferida pelas diferentes diretivas relativas à proteção dos consumidores, o julgador deve, se for o caso, adotar oficiosamente medidas de instrução a fim de estabelecer se o deveres de verificação e de informação pré‑contratuais que incumbem ao mutuante foram corretamente executados.

32.      À luz deste conjunto de considerações examinaremos cada uma das questões prejudiciais.

B –    Quanto à primeira questão, relativa ao ónus da prova da correta execução das obrigações pré‑contratuais do mutuante estabelecidas pela Diretiva 2008/48

33.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a Diretiva 2008/48 deve ser interpretada no sentido de que compete ao mutuante fazer prova do cumprimento correto e integral das obrigações, decorrentes das disposições nacionais relativas à transposição da referida diretiva, postas a seu cargo no momento da formação e execução de um contrato de crédito.

34.      Consideramos que a efetividade do exercício dos direitos conferidos pela Diretiva 2008/48 não se opõe a uma norma nacional (14), como a que está estabelecida no direito francês, que faz impender sobre o mutuante o ónus da prova da execução correta das obrigações de informações pré‑contratuais.

35.      Pelo contrário, no seguimento do que já referimos a título preliminar, podemos considerar que decorre logicamente do objetivo da proteção dos consumidores prosseguido pela Diretiva 2008/48 que o ónus da prova de execução das obrigações pré‑contratuais de informação e de verificação previstas por esta diretiva deve em princípio impender sobre o mutuante profissional. O mutuante pode ver‑se obrigado a demonstrar em juízo a boa execução destas obrigações pré‑contratuais o que, como referiu o Governo francês, implica que o mutuante tenha uma certa diligência na recolha e conservação das provas de execução das obrigações de informação e de explicação que lhe incumbem.

36.      Isto implica concretamente que o juiz nacional, que deve conhecer da questão de saber se a execução de diversas obrigações de informação e de verificação pré‑contratuais previstas pelas Diretiva 2008/48 foram plenamente e corretamente cumpridas, deve, caso considere insuficientes os documentos que lhe foram apresentados, interpelar o mutuante profissional a fim de que este esteja em posição de fornecer os elementos considerados em falta.

37.      Assim sendo, embora, para assegurar a efetividade da Diretiva 2008/48, o mutuante deva mostrar diligência na recolha de provas do cumprimento das suas obrigações pré‑contratuais, não se lhe pode exigir que apresente documentos que, por definição, só o mutuário detém, tais como informações que devia este ter comunicado, em suporte de papel ou em qualquer outro suporte não perecível, ao consumidor nos termos do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2008/48.

38.      Consequentemente, consideramos que a norma, que prevalece no direito francês, segundo a qual é em princípio o mutuante que tem o ónus da prova de execução das obrigações pré‑contratuais referidas nos artigos 5.° a 8.° da Diretiva 2008/48, não só não me parece comprometer a proteção dos consumidores garantida por esta diretiva, mas parece‑me plenamente conforme à efetividade da mesma.

39.      Resulta destas considerações que importa dar uma resposta afirmativa à primeira questão prejudicial e considerar que a Diretiva 2008/48 deve ser interpretada no sentido que compete ao mutuante fazer prova do cumprimento correto e integral das obrigações que lhe incumbem no momento da formação e na execução de um contrato de crédito.

C –    Quanto à segunda questão, relativa à prova da execução das obrigações pré‑contratuais do mutuante pela inclusão de uma cláusula‑tipo

40.      Com a sua segunda questão, o juiz a quo questiona o Tribunal de Justiça quanto ao ponto de saber se a inclusão de uma cláusula‑tipo, não confirmada por documentos emitidos pelo mutuante e remetidos ao mutuário, pode bastar para provar o cumprimento correto das obrigações pré‑contratuais de informação e de verificação que incumbem ao mutuante.

41.      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o contrato de crédito ao qual uma das partes no processo principal aderiu, ou seja, I. Bakkaus, continha uma cláusula contratual geral nos termos da qual esta reconhecia «ter recebido e tomado conhecimento da ficha de Informação Normalizada Europeia». O órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se se essa cláusula, para além de impor ao mutuário o envio de uma ficha de informações pré‑contratuais, pode igualmente provar que o próprio conteúdo das informações pré‑contratuais fornecidas está em conformidade com os requisitos da Diretiva 2008/48. Refere‑se, designadamente, ao artigo 22.° desta Diretiva 2008/48 que obriga os Estados‑Membros a assegurar, por um lado, que os consumidores não possam renunciar aos direitos que as disposições nacionais de transposição da referida diretiva lhes atribuem e, por outro, que estas disposições não possam ser contornadas através da redação dos contratos.

42.      Consideramos que importa dar uma resposta elaborada a esta questão.

43.      Na verdade, resulta do artigo 5.°, n.° 1, última frase, da Diretiva 2008/48 que «o mutuante cumpriu os requisitos de informação previstos no presente número […] se tiver fornecido a ‘Informação Normalizada Europeia em matéria de Crédito aos Consumidores’» constante do anexo II. A inclusão de uma cláusula que confirma a receção da ficha de Informação Normalizada Europeia atesta assim o cumprimento de um ato que, se e apenas se for considerado em conformidade com as exigências resultantes do anexo II desta diretiva, confirma que o mutuante cumpriu com as suas obrigações de informação pré‑contratuais.

44.      Em contrapartida, consideramos que a cláusula aqui em causa não pode de forma nenhuma ser vista como uma cláusula que estabelece o reconhecimento por parte do consumidor mutuário do cumprimento pleno e correto das obrigações pré‑contratuais que competem ao mutuante profissional e, como tal, uma inversão do ónus da prova de execução das referidas obrigações suscetível de por em causa a efetividade de direitos reconhecidos pela Diretiva 2008/48.

45.      Com esta cláusula, o mutuário atesta simplesmente a execução de um facto (envio da ficha de Informação Normalizada Europeia) e não da plena e correta execução de uma obrigação (ou seja, uma ficha de Informação Normalizada Europeia que cumpra os requisitos decorrentes da diretiva). Por outras palavras e contrariamente à configuração contante do acórdão Rampion e Godard (EU:C:2007:575), a inclusão de uma cláusula‑tipo como a referida no processo principal não tem por efeito excluir as disposições imperativas de transposição da referida diretiva. Parece‑nos portanto que tal cláusula, enquanto modalidade de prova da execução de uma obrigação, não é em si contrária ao artigo 22.° da Diretiva 2008/48, que visa proibir a utilização de cláusulas contratuais que permitam contornar as obrigações decorrentes desta diretiva ou renúncia a direitos que esta lhes atribui direta ou indiretamente.

46.      Isso não altera o facto de o reconhecimento por parte do consumidor de que recebeu corretamente a referida ficha poder permitir presumir, na falta de contestação ou elementos contrários, que o consumidor foi informado previamente à celebração do contrato de crédito. Todavia, trata‑se de uma simples presunção plenamente conforme ao princípio da efetividade. Com efeito, o consumidor tem sempre a possibilidade de alegar que não recebeu o documento ou que este não satisfaz as obrigações de informação pré‑contratual que incumbem ao mutuante. A inclusão de uma cláusula‑tipo não deve, no nosso entendimento, ser proibida a menos que possa comprometer a possibilidade, tanto para o consumidor como para o julgador, de pôr em causa o cumprimento correto das obrigações de informação e de verificação pré‑contratuais a cargo do mutuante.

47.      Por outro lado, como salientou designadamente a CA CF nas suas observações escritas, exceto para exigir a intervenção de um terceiro, na falta de cláusula de reconhecimento de que a ficha de informações pré‑contratuais foi enviada ao consumidor, afigura‑se difícil o mutuante provar que cumpriu corretamente o deu dever de informação e que efetivamente enviou ao mutuário o documento de informação e demonstrar o seu conteúdo.

48.      Tendo em conta estas considerações, propomos responder à segunda questão que a Diretiva 2008/48 não se opõe à inclusão de uma cláusula‑tipo segundo a qual o mutuário reconhece ter recebido a ficha de Informação Normalizada Europeia. No entanto, tal cláusula não constitui necessariamente prova de cumprimento correto e integral das obrigações decorrentes desta diretiva.

D –    Quanto à terceira questão, relativa à obrigação de verificação por parte do mutuante da solvabilidade do consumidor

49.      A terceira questão prejudicial levanta a questão de saber em que medida o mutuante profissional deve, no âmbito da verificação da solvabilidade do consumidor prévia à celebração do contrato de crédito, controlar a veracidade das declarações efetuadas pelo consumidor.

50.      Importa, em nosso entender, fornecer também aqui uma resposta elaborada.

51.      Desde logo, é difícil saber em que medida a CA CF se baseou, como alega, em documentos comprovativos dos rendimentos e capacidade financeira dos recorridos ou se se limitou a basear‑se em simples declarações sem fundamento destes para concluir pela solvabilidade dos mesmos (15).

52.      Seguidamente, conforme resulta nomeadamente do considerando 26 da Diretiva 2008/48, o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2008/48 tem por objeto a celebração de contratos de crédito de forma responsável, o que implica, designadamente, que «os mutuantes deverão ser responsáveis por verificar, individualmente, a solvabilidade do consumidor (16)». Este objetivo implica que o mutuante se deve assegurar da solvabilidade do candidato ao contrato de crédito pelo método ou métodos que considerar mais adequados. Esta verificação pode fazer‑se através de documentos comprovativos da sua situação financeira, como fichas de remuneração, extratos e históricos de contas bancárias e avisos de pagamento, entre outros. Por exemplo, não seria de excluir que o mutuante, que mantém uma relação comercial de longa data com certos clientes, já tenha um conhecimento prévio da situação financeira do candidato ao empréstimo.

53.      Em contrapartida, parece‑nos que a Diretiva 2008/48 não obriga as instituições de crédito a fiscalizar sistematicamente a veracidade das informações que atestam os rendimentos e despesas do consumidor, fornecidas por este. Conforme resulta claramente da redação do artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2008/48, só se exige do mutuante que verifique a solvabilidade do mutuário «com base em informações suficientes, se for caso disso obtidas [deste] e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante». Como salientou corretamente, em nosso entender, o Governo alemão nas suas observações escritas, esta formulação sublinha a margem de apreciação concedida ao mutuante para decidir se as informações de que dispõe são suficientes para atestar a solvabilidade do candidato ao empréstimo.

54.       Esta análise encontra um certo respaldo no facto de a proposta (17) que visava impor ao mutuante assegurar a solvabilidade do mutuário antes da celebração do contrato de crédito «por todos os meios à sua disposição» (18) ter acabado por não ser acolhida na Diretiva 2008/48.

55.      Sem prejuízo da possibilidade de os Estados‑Membros darem aos mutuantes instruções e orientações (v. considerando 26 da Diretiva 2008/48), incumbe apenas ao mutuante assegurar‑se de que dispõe de «informações suficientes». O caráter suficiente das referidas informações variará necessariamente segundo as circunstâncias da celebração do contrato de crédito ou o montante que este visa. Em contrapartida, aquele não pode ser acusado, após ter recolhido um número suficiente de informações que atestem a solvabilidade do mutuário, de não ter procedido a uma fiscalização da exatidão ou veracidade das referidas informações.

56.       Importa a este respeito sublinhar que a verificação da solvabilidade constitui uma garantia tanto para o consumidor (na medida em que o previne contra um compromisso que não terá condições de cumprir) como para o profissional mutuante (que diminui o risco de não ver honrados os reembolsos acordados).

57.      Esta verificação de solvabilidade, com interesse para ambas as partes do contrato de crédito, assenta em deveres recíprocos. Por um lado, o mutuante deve recolher um número suficiente de informações que atestem a capacidade contributiva do consumidor. Por outro, o consumidor deve colaborar lealmente e presume‑se de boa‑fé na entrega dos documentos solicitados (19).

58.      Embora o mutuante, com razões para duvidar da sinceridade do mutuário, possa eventualmente proceder a investigações mais ou menos detalhadas com vista a assegurar a veracidade dos documentos fornecidos pelo requerente de crédito, não tem de forma nenhuma a obrigação de o fazer em todos os casos. Pode limitar‑se a constatar que, à luz da documentação que lhe foi fornecida, o consumidor deve ser considerado solvente.

59.      Qualquer outra abordagem significaria um risco de restringir significativamente as condições de concessão de empréstimo ao consumo e, consequentemente, pôr em causa a criação de um mercado comum de crédito que, recordamos, é também um dos objetivos da Diretiva 2008/48 (20).

60.      Resulta destas considerações que o artigo 8.° da Diretiva 2008/48 impõe ao mutuante que verifique a solvabilidade do consumidor baseando‑se em informações suficientes e que não se limite às meras declarações não comprovadas do consumidor. Em contrapartida, esta disposição não impõe ao mutuante profissional que proceda à verificação sistemática da sinceridade das informações fornecidas pelo consumidor para atestar a sua veracidade.

E –    Quanto à quarta questão, relativa ao dever de explicação e de assistência do mutuante em relação ao consumidor, nos termos do artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48

61.      Esta questão, que diz respeito à interpretação do artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48, está dividida em duas partes separadas.

62.      A primeira parte da questão diz respeito ao ponto de saber se o cumprimento da obrigação do mutuante de fornecer explicações adequadas ao consumidor deve ser precedido de uma verificação da situação financeira do consumidor e das suas necessidades.

63.      Mais uma vez, uma leitura literal das disposições conjugadas do artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48, que se refere às explicações relativas ao contrato de crédito proposto e à sua adequação às necessidades do consumidor e do artigo 8.°, n.° 1, desta diretiva, que diz respeito à verificação da solvabilidade, levam‑nos a dar uma resposta negativa.

64.      Conforme decorre dos termos empregues no considerando 27 da Diretiva 2008/48, a obrigação de fornecimento de explicações adequadas referida no artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48 tem por objeto permitir ao consumidor aderir a um tipo de contrato de empréstimo em total conhecimento de causa. Com efeito, trata‑se de fornecer aos consumidores «uma ajuda suplementar para determinar qual é o contrato de crédito, do inventário de produtos oferecidos, que corresponde melhor às suas necessidades e à sua situação financeira», o que pode exigir «uma explicação personalizada ao consumidor de maneira a que este possa compreender o impacto que estes produtos podem ter na sua situação económica». O artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48 não refere, no âmbito do dever de explicação que compete ao mutuante, uma obrigação de este verificar a situação financeira do mutuário e, muito menos, a sua solvabilidade.

65.       Nesta fase, como referiu a CA CF, não se trata de proceder a uma avaliação da solvabilidade, que a Diretiva 2008/48 só aborda no artigo 8.°, precisando que a verificação da adaptação do crédito às necessidades e à situação financeira do mutuário incumbe pessoalmente a este (o mutuante fornece «explicações adequadas ao consumidor, de modo a colocá‑lo numa posição que lhe permita avaliar se o contrato de crédito proposto se adapta (21)), ao passo que o exame de solvabilidade é uma iniciativa que compete ao mutuante levar a cabo.

66.      Esta interpretação parece‑nos desde logo apoiada pela exposição de motivos da proposta de diretiva(22), que, no que respeita à informação prévia «[o] mutuante e, caso se justifique, o intermediário de crédito apenas podem solicitar ao consumidor e ao garante dados que, nos termos do artigo 6.° da Diretiva 95/46/CEE, sejam adequados, pertinentes e não excessivos relativamente às finalidades para que são recolhidos e tratados. O consumidor e o garante deverão responder de boa‑fé às questões concretas colocadas pelo mutuante e, caso se justifique, pelo intermediário de crédito».

67.      De onde decorre que o artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado no sentido que não obriga o mutuante profissional a verificar, antes do cumprimento dos deveres de explicação e de assistência, a solvabilidade do consumidor.

68.       Quanto à segunda parte da questão, diz respeito à fase em que as informações pré‑contratuais devem ser fornecidas e se, caso se justifique, devem ser fornecidas num documento específico.

69.      Em primeiro lugar, no que diz respeito à fase em que tanto as informações como as explicações referidas no artigo 5.°, n.os 1 e 6, da Diretiva 2008/48 devem ser fornecidas, parece‑nos que basta salientar que estas disposições dizem respeito a obrigações «pré‑contratuais», o que pressupõe que o consumidor teve a possibilidade de tomar conhecimento das referidas informações antes da celebração do contrato. Parece‑nos que este requisito pode ser cumprido pela inclusão de referências na própria minuta de contrato de crédito a partir do momento em que o consumidor teve conhecimento da mesma antes da assinatura.

70.      Em segundo lugar, no que diz respeito às modalidades de cumprimento da obrigação de explicações adequadas prevista no artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48, esta disposição não exige qualquer formalismo particular no fornecimento das explicações que o mutuante profissional deve fornecer ao consumidor antes da celebração de um contrato de crédito. Todavia, mais uma vez, isto não prejudica, em virtude do princípio da autonomia processual, a possibilidade de os Estados‑Membros definirem as modalidades de cumprimento do dever de explicação previsto no artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48.

71.      De onde resulta que a prova de cumprimento efetivo das referidas obrigações, que deve ser adaptada ao caso concreto (v. considerando 27 e artigo 5.° da Diretiva 2008/48), não exige necessariamente a apresentação de um formulário ou documento específico.

72.      Trata‑se de um exame caso a caso, conforme resulta do considerando 27 da Diretiva 2008/48 que atribui aos Estados‑Membros a faculdade de determinar quando e em que medida as explicações devem ser fornecidas ao consumidor, «tendo em conta o contexto particular em que o crédito é oferecido, a necessidade de assistência ao consumidor e a natureza de cada produto de crédito».

73.      Resulta do que precede que o artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48 não impõe ao mutuante profissional que prepare um documento específico detalhando as explicações que forneceu antes da celebração do contrato de crédito.

74.      Tendo em conta o conjunto destas considerações, propomos responder à quarta questão que o artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado no sentido que, por um lado, não obriga o mutuante profissional a verificar a situação financeira do mutuário ou as suas necessidades antes de lhe fornecer as explicações adequadas e, por outro, que as explicações adequadas que o mutuante deve fornecer não podem resultar de informações contratuais que figuram no contrato de crédito. Não obstante, o mutuante não tem que enviar ao mutuário um documento escrito diferente do contrato de crédito para lhe fornecer explicações adequadas.

IV – Conclusão

75.      Tendo em conta as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo tribunal d’instance d’Orléans (França) da seguinte forma:

«1)       A Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho deve ser interpretada no sentido que compete ao mutuante fazer prova do cumprimento correto e integral das obrigações que lhe incumbem no momento da formação e execução de um contrato de crédito.

2)       A Diretiva 2008/48 não se opõe à inclusão de uma cláusula tipo segundo a qual o mutuário reconhece ter recebido a ficha de Informação Normalizada Europeia. No entanto, tal cláusula não constitui necessariamente prova do cumprimento correto e integral das obrigações decorrentes desta diretiva.

3)       O artigo 8.° da Diretiva 2008/48 impõe ao mutuante que verifique a solvabilidade do consumidor baseando‑se em informações suficientes e que não se limite às meras declarações não comprovadas do consumidor. Em contrapartida, esta disposição não impõe ao mutuante profissional que proceda à verificação sistemática da sinceridade das informações fornecidas pelo consumidor para atestar a sua veracidade.

4)       O artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado no sentido que não obriga o mutuante profissional a verificar, antes do cumprimento dos deveres de explicação e de assistência, a solvabilidade do consumidor.

O artigo 5.°, n.° 6, da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado no sentido que, por um lado, não obriga o mutuante profissional a verificar a situação financeira do mutuário ou as suas necessidades antes de lhe fornecer as explicações adequadas e, por outro, que as explicações adequadas que o mutuante deve fornecer não podem resultar de informações contratuais que figuram no contrato de crédito. Não obstante, o mutuante não tem que enviar ao mutuário um documento escrito diferente do contrato de crédito para lhe fornecer explicações adequadas.»


1 —      Língua original: francês.


2 —      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho (JO L 133, p.66 e retificativos JO 2009, L 207, p. 14, JO 2010, L 199, p. 40, e JO 2011, L 234, p. 46).


3 —      JORF de 2 de julho de 2010, p. 12001.


4 —      Segundo o artigo L. 141‑4 do Código do Consumo, o juiz pode apreciar oficiosamente todas as disposições do presente código nos litígios originados pela sua aplicação.


5 —      V. considerando 9 da Diretiva 2008/48, nos termos do qual «[a] harmonização plena é necessária para garantir que todos os consumidores da Comunidade beneficiem de um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses e para instituir um verdadeiro mercado interno.


6 —      V. considerando 26 da diretiva.


7 —      Artigos 5.° e 6.° da diretiva.


8 —      Artigo 8.° da diretiva.


9 —      No acórdão LCL Le Crédit Lyonnais (C‑565/12, EU:C:2014:190, n.os 46 a 54), o Tribunal de Justiça fez importantes precisões para determinar em que medida o regime nacional era conforme ao artigo 23.° da Diretiva 2008/48.


10 —      V. n.os 7 e 11 das presentes conclusões.


11 —      C‑429/05, EU:C:2007:575 (n.° 69).


12 —      V., neste sentido, acórdão Arcor (C‑55/06, EU:C:2008:244, n.° 191 e jurisprudência referida), e acórdão Steffensen (C‑276/01, EU:C:2003:228, n.os 62 e 63).


13 —      V., neste sentido, acórdão VB Pénzügyi Lízing (C‑137/08, EU:C:2010:659, n.° 56).


14 —      Com efeito, decorre do artigo 1315 do Código Civil francês que aquele que alega estar livre de uma obrigação deve prová‑lo.


15 —      Embora, no processo relativo a I. Bakkaus, a CA CF tenha apresentado ao juiz nacional uma ficha de rendimentos e de encargos assinadas por esta, juntamento com documentos comprovativos, não parece ser esse o caso no processo respeitante aos cônjuges C. e F. Bonato.


16 —      Sublinhado nosso.


17 —      V. artigo 9.° da proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à harmonização das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros em matéria de crédito aos consumidores [COM(2002) 443 final] (JO 2002, C 331 E, p. 200).


18 —      Quanto a este ponto, as exigências decorrentes da Diretiva 2008/48 divergem sensivelmente das recentemente enunciadas na Diretiva 2014/17/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos de crédito aos consumidores para imóveis de habitação e que altera as Diretivas 2008/48/CE e 2013/36/UE e o Regulamento (UE) n.° 1093/2010 (JO L 60, p. 34). O considerando 22 desta diretiva precisa a este respeito: «as disposições relativas à avaliação da solvabilidade deverão ser reforçadas por comparação com o crédito ao consumo, os intermediários de crédito deverão passar a prestar informações mais precisas quanto ao seu estatuto e à sua relação com os mutuantes, a fim de revelar potenciais conflitos de interesse, e todos os intervenientes na celebração de contratos de crédito para bens imóveis deverão ser submetidos à devida autorização e supervisão».


19 —      Estas exigências de boa‑fé e de prudência são invocadas na proposta referida anteriormente na nota 17.


20 —      V. considerando 9 da Diretiva 2008/48 e, neste sentido, acórdão Rampion e Godard (EU:C:2007:575, n.° 59).


21 —      Sublinhado nosso.


22 —      V. proposta referida na nota 17.