Language of document : ECLI:EU:C:2017:173

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

7 de março de 2017 (*)

[Texto retificado por despacho de 24 de março de 2017]

«Reenvio prejudicial — Regulamento (CE) n.o 810/2009 — Artigo 25.o, n.o 1, alínea a) — Visto com validade territorial limitada — Emissão de um visto por razões humanitárias ou por força de obrigações internacionais — Conceito de ‘obrigações internacionais’ — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais — Convenção de Genebra — Emissão de um visto em caso de risco existente de violação dos artigos 4.o e/ou 18.o da Carta dos Direitos Fundamentais — Inexistência de obrigação»

No processo C‑638/16 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Conseil du Contentieux des Étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, Bélgica), por decisão de 8 de dezembro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de dezembro de 2016, no processo

X e X

contra

État belge,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidente, L. Bay Larsen, T. von Danwitz, J. L. da Cruz Vilaça e M. Berger (relatora), presidentes de secção, A. Borg Barthet, A. Arabadjiev, C. Toader, M. Safjan, E. Jarašiūnas, C. G. Fernlund, C. Vajda, S. Rodin e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: V. Giacobbo‑Peyronnel, administradora

vistos os autos e após a audiência de 30 de janeiro de 2017,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de X e X, por T. Wibault e P. Robert, avocats,

–        em representação do Governo belga, por C. Pochet e M. Jacobs, na qualidade de agentes, assistidas por C. L’hoir, M. Van Regemorter, M. F. Van Dijck, peritos, E. Derriks e F. Motulsky, avocats,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo dinamarquês, por N. Lyshøj e C. Thorning, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo alemão, por M. T. Henze, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo estónio, por N. Grünberg, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo francês, por E. Armoet, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo húngaro, por M. Fehér, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo maltês, por A. Buhagiar, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo neerlandês, por M. de Ree, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo austríaco, por J. Schmoll, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo polaco, por M. Kamejsza, M. Pawlicka e B. Majczyna, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo esloveno, por V. Klemenc e T. Mihelič Žitko, na qualidade de agentes,

–        [Conforme retificado por despacho de 24 de março de 2017] em representação do Governo eslovaco, por M. Kianička, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo finlandês, por M. J. Heliskoski, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por C. Cattabriga e G. Wils, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 7 de fevereiro de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento (CE) n.o 810/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece o Código Comunitário de Vistos (Código de Vistos) (JO 2009, L 243, p. 1, e retificação no JO 2013, L 154, p. 10), conforme alterado pelo Regulamento (UE) n.o 610/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (JO 2013, L 182, p. 1) (a seguir «Código de vistos»), bem como dos artigos 4.o e 18.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe X e o. ao État belge (Estado belga) a propósito da recusa de emissão de vistos com validade territorial limitada.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        Segundo o artigo 1.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), epigrafado «Obrigação de respeitar os direitos do homem»:

«As Altas Partes Contratantes reconhecem a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição os direitos e liberdades definidos no título I da presente Convenção.»

4        O artigo 3.o da CEDH, epigrafado «Proibição da tortura», que figura no título I desta, dispõe:

«Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes.»

5        O artigo 33.o da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951 [Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954)], conforme completada pelo Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados, concluído em Nova Iorque, em 31 de janeiro de 1967, entrado, ele próprio, em vigor em 4 de outubro de 1967 (a seguir «Convenção de Genebra»), epigrafado «Proibição de expulsar e de repelir», prevê, no seu n.o 1:

«Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.»

 Direito da União

 Carta

6        Segundo o artigo 4.o da Carta, epigrafado «Proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes»:

«Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes.»

7        Nos termos do artigo 18.o de Carta, sob a epígrafe «Direito de asilo»:

«É garantido o direito de asilo, no quadro da [Convenção de Genebra] e nos termos do Tratado da União Europeia e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia […]»

8        O artigo 51.o da Carta, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», prevê, no seu n.o 1:

«As disposições da […] Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União […].»

 Código de Vistos

9        Nos termos do considerando 29 do Código de Vistos:

«O presente regulamento respeita os direitos fundamentais e os princípios reconhecidos, designadamente, na [CEDH] e na [Carta].»

10      O artigo 1.o deste código, epigrafado «Objeto e âmbito de aplicação», enuncia, no seu n.o 1:

«O presente regulamento estabelece os procedimentos e as condições para a emissão de vistos de trânsito ou de estada prevista no território dos Estados‑Membros não superior a 90 dias num período de 180 dias.»

11      De acordo com o artigo 2.o do referido código:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

2.      ’Visto‘, uma autorização emitida por um Estado‑Membro para efeitos de:

a)      Trânsito ou estada prevista no território dos Estados‑Membros de duração não superior a 90 dias num período de 180 dias;

b)      Trânsito através das zonas internacionais de trânsito dos aeroportos dos Estados‑Membros;

[…]»

12      O artigo 25.o do Código de Vistos, epigrafado «Emissão de vistos com validade territorial limitada», prevê:

«1.      Um visto com validade territorial limitada é emitido excecionalmente nos seguintes casos:

a)      Sempre que o Estado‑Membro em causa considere necessário, por razões humanitárias ou de interesse nacional, ou por força de obrigações internacionais:

i)      A primeira frase do artigo 1.o e o título III do Regulamento (CE) n.o 562/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, que estabelece o código comunitário relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) [(JO 2006, L 105, p. 1)];

ii)      emitir um visto apesar de o Estado‑Membro consultado nos termos do artigo 22.o se opor à emissão de um visto uniforme, ou

iii)      emitir um visto por razões urgentes […]

ou

b)      Sempre que, por razões que o consulado considere justificadas, seja emitido um novo visto para uma estada durante o mesmo período de 180 dias a um requerente que, nesse período de 180 dias, já tenha utilizado um visto uniforme ou um visto com validade territorial limitada para uma estada de 90 dias.

2.      O visto com validade territorial limitada é válido para o território do Estado‑Membro emitente. Pode excecionalmente ser válido para o território de mais de um Estado‑Membro, sob reserva do consentimento dos Estados‑Membros em causa.

[…]

4.      Se tiver sido emitido um visto com validade territorial limitada nos casos previstos na alínea a) do n.o 1, as autoridades centrais do Estado‑Membro emitente devem transmitir imediatamente as informações relevantes às autoridades centrais dos outros Estados‑Membros […]

5.      Os dados […] são inseridos no [Sistema de informação sobre vistos] quando for tomada uma decisão sobre a emissão do visto.»

13      O artigo 32.o, n.o 1, alínea b), do Código de Vistos, epigrafado «Recusa de visto», prevê:

«Sem prejuízo do n.o 1 do artigo 25.o, o visto é recusado:

[…]

b)      Se existirem dúvidas razoáveis quanto à [intenção do requerente] de sair do território dos Estados‑Membros antes de o visto requerido caducar.»

 Regulamento (UE) 2016/399

14      O artigo 4.o do Regulamento (UE) 2016/399 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, que estabelece o código da União relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) (JO 2016, L 77, p. 1, a seguir «Código das Fronteiras Schengen»), epigrafado «Direitos fundamentais», tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros aplicam o presente regulamento agindo no estrito cumprimento do direito aplicável da União, designadamente a [Carta], do direito internacional aplicável, designadamente a [Convenção de Genebra], das obrigações em matéria de acesso à proteção internacional, em particular o princípio de não repulsão, e dos direitos fundamentais. Em conformidade com os princípios gerais do direito da União, as decisões ao abrigo do presente regulamento devem ser tomadas caso a caso.»

15      O artigo 6.o do Código das Fronteiras Schengen, epigrafado «Condições de entrada para os nacionais de países terceiros», prevê:

«1.      Para uma estada prevista no território dos Estados‑Membros de duração não superior a 90 dias em qualquer período de 180 dias […], as condições de entrada para os nacionais de países terceiros são as seguintes:

a)      Estar na posse de um documento de viagem válido […]

b)      Estar na posse de um visto válido, se tal for exigido […]

c)      Justificar o objetivo e as condições da estada prevista e dispor de meios de subsistência suficientes […]

d)      Não estar indicado […] para efeitos de não admissão […]

e)      Não ser considerado suscetível de perturbar a ordem pública, a segurança interna, a saúde pública ou as relações internacionais de qualquer Estado‑Membro […]

[…]

5.      Não obstante o n.o 1:

[…]

c)      O nacional de país terceiro que não preencha uma ou várias das condições estabelecidas no n.o 1 pode ser autorizado por um Estado‑Membro a entrar no seu território por motivos humanitários ou de interesse nacional, ou ainda devido a obrigações internacionais […]»

 Diretiva 2013/32/UE

16      Nos termos do artigo 3.o da Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 60):

«1.      A presente diretiva aplica‑se a todos os pedidos de proteção internacional apresentados no território dos Estados‑Membros, incluindo a fronteira, as águas territoriais e as zonas de trânsito, bem como à retirada da proteção internacional.

2.      A presente diretiva não é aplicável aos pedidos de asilo diplomático ou territorial apresentados nas representações dos Estados‑Membros.

[…]»

 Regulamento (UE) n.o 604/2013

17      O artigo 1.o do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31), epigrafado «Objeto», dispõe:

«O presente regulamento estabelece os critérios e mecanismos para a determinação do Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida […].»

18      Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013:

«Os Estados‑Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado‑Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. […]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19      Os recorrentes no processo principal — duas pessoas casadas uma com a outra —, bem como os seus três filhos menores de tenra idade, são de nacionalidade síria e vivem em Alep (Síria). Em 12 de outubro de 2016, apresentaram, com fundamento no artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, pedidos de vistos com validade limitada na Embaixada da Bélgica em Beirute (Líbano), antes de regressarem à Síria, no dia seguinte.

20      Em apoio dos seus pedidos, os recorrentes no processo principal explicaram que os vistos solicitados tinham por objetivo permitir‑lhes deixar a cidade ocupada de Alep com o intuito de apresentar um pedido de asilo na Bélgica. Um dos recorrentes no processo principal declarava, designadamente, que tinha sido sequestrado por um grupo terrorista, depois espancado e torturado, antes de ter sido por fim libertado mediante o pagamento de um resgate. Os recorrentes no processo principal acentuavam particularmente a situação precária na Síria em geral e em Alep em especial, bem como o facto de que, por serem de confissão cristã ortodoxa, corriam o risco de serem perseguidos em razão das suas crenças religiosas. Acrescentavam que lhes era impossível registarem‑se como refugidos nos países limítrofes tendo em conta, designadamente, o encerramento da fronteira entre o Líbano e a Síria.

21      Por decisões de 18 de outubro de 2016, comunicadas aos recorrentes no processo principal em 25 de outubro de 2016, o Office des étrangers (Serviço de Estrangeiros, Bélgica) indeferiu os referidos pedidos. O Serviço de Estrangeiros explicou, designadamente, que estes tinham intenção de permanecer mais de 90 dias na Bélgica, que o artigo 3.o da CEDH não obrigava os Estados partes nesta Convenção a admitir, nos territórios respetivos, «as pessoas a viver uma situação catastrófica» e que os postos diplomáticos belgas não faziam parte das autoridades às quais um estrangeiro pode apresentar um pedido de asilo. Segundo o Serviço de Estrangeiros, autorizar a entrega de um visto de entrada aos recorrentes no processo principal a fim de que estes apresentem um pedido de asilo na Bélgica equivaleria a permitir‑lhes fazer esse pedido num posto diplomático.

22      O órgão jurisdicional de reenvio, no qual os recorrentes no processo principal contestam estas decisões, precisa que estes últimos pediram, segundo o processo nacional dito de «extrema urgência», a suspensão da execução das referidas decisões. Ora, sendo a admissibilidade desse pedido incerta à luz das disposições nacionais aplicáveis, esse órgão jurisdicional decidiu recorrer à Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional, Bélgica) para que esta se pronuncie sobre a questão. Enquanto aguarda a resposta que será dada por aquela Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional), o órgão jurisdicional de reenvio prossegue o exame do processo principal segundo a tramitação de extrema urgência.

23      Perante o órgão jurisdicional de reenvio, os recorrentes no processo principal sustentam, em substância, que o artigo 18.o da Carta prevê uma obrigação positiva de os Estados‑Membros garantirem o direito ao asilo e que a concessão de proteção internacional é o único meio de evitar o risco de violação do artigo 3.o da CEDH e do artigo 4.o da Carta. Neste caso, dado que as próprias autoridades belgas consideraram que a sua situação apresentava um caráter humanitário excecional, os recorrentes no processo principal alegam que, tendo em conta as obrigações internacionais que incumbem ao Reino da Bélgica, as condições de aplicação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos estavam preenchidas e daí inferem que, por motivos humanitários, lhes deveriam ter sido emitidos os vistos solicitados.

24      Por sua vez, o Estado belga considera que não é obrigado, nem com fundamento no artigo 3.o da CEDH nem com fundamento no artigo 33.o da Convenção de Genebra, a admitir no seu território um nacional de um país terceiro, dado que a única obrigação que sobre ele recai a este respeito é uma obrigação de não repulsão.

25      O órgão jurisdicional de reenvio afirma que, como resulta do artigo 1.o da CEDH, conforme interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, os recorrentes no processo principal só poderiam invocar o artigo 3.o da CEDH na condição de se encontrarem sob «jurisdição» belga. Ora, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se sobre se a aplicação da política de vistos pode ser considerada o exercício dessa jurisdição. Por outro lado, segundo esta jurisdição, um direito de entrada poderia decorrer, enquanto corolário da obrigação de tomar medidas preventivas e do princípio da não repulsão, do artigo 3.o da CEDH, bem como, mutatis mutandis, do artigo 33.o da Convenção de Genebra.

26      Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a aplicação do artigo 4.o da Carta depende, contrariamente ao artigo 3.o da CEDH, não do exercício de uma jurisdição, mas da aplicação do direito da União. Ora, não resulta dos Tratados nem da Carta que a referida aplicação seja territorialmente limitada.

27      Quanto ao artigo 25.o do Código de Vistos, o órgão jurisdicional de reenvio observa que este prevê, designadamente, que seja emitido um visto quando um Estado‑Membro «considere» necessário ou por força de obrigações internacionais. Esse órgão jurisdicional interroga‑se, porém, acerca da amplitude da margem de apreciação deixada, neste contexto, aos Estados‑Membros e considera que, tendo em conta a natureza vinculativa das obrigações internacionais e das que decorrem da Carta, toda e qualquer margem poderia ser excluída a este respeito.

28      Nestas circunstâncias, o Conseil du Contentieux des Étrangers (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, Bélgica) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

«1)      As ‘obrigações internacionais’, a que se refere o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do [Código de Vistos], abrangem todos os direitos garantidos pela [Carta], incluindo, em especial, os garantidos pelos artigos 4.o e 18.o, e compreendem também as obrigações que incumbem aos Estados‑Membros, nos termos da [CEDH] e do artigo 33.o da [Convenção de Genebra]?

2)      a)      Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, deve o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do [Código de Vistos] ser interpretado no sentido de que, sem prejuízo da margem de apreciação de que dispõe tendo em conta as circunstâncias em causa, o Estado‑Membro a que foi submetido um pedido de visto com validade territorial limitada é obrigado a emitir o visto pedido, quando exista um risco de violação do artigo 4.o e/ou do artigo 18.o da [Carta], ou de outra obrigação internacional a que está vinculado?

b)      A existência de vínculos entre o requerente e o Estado‑Membro a que foi submetido o pedido de visto (por exemplo, relações familiares, famílias de acolhimento, fiadores e patrocinadores, etc.) influencia a resposta a esta questão?»

 Quanto à tramitação urgente

29      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

30      Em apoio deste pedido, o órgão jurisdicional de reenvio invocou, designadamente, a situação dramática do conflito armado na Síria, a tenra idade dos filhos dos recorrentes no processo principal, o perfil particularmente vulnerável destes últimos, ligado à sua pertença à comunidade cristã ortodoxa, e, de qualquer forma, o facto de este ter sido chamado a pronunciar‑se no quadro de um processo suspensivo de extrema urgência.

31      O órgão jurisdicional de reenvio precisou, a este respeito, que o presente reenvio prejudicial tinha tido por efeito suspender o processo que lhe fora submetido.

32      A este respeito, importa sublinhar, em primeiro lugar, que o presente reenvio prejudicial, que tem por objeto a interpretação do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos, suscita questões respeitantes aos domínios referidos no título V, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça, da parte III do Tratado FUE. Por conseguinte, esse pedido pode ser submetido à tramitação prejudicial urgente, em conformidade com o artigo 107.o, n.o 1, do Regulamento de Processo.

33      Em segundo lugar, não se contesta que, pelo menos à data da apreciação do pedido destinado a submeter o presente reenvio prejudicial à tramitação prejudicial urgente, os recorrentes no processo principal corriam o risco real de serem alvo de tratamentos desumanos ou degradantes, facto que deve ser considerado um elemento de urgência que justifica a aplicação dos artigos 107.o e seguintes do Regulamento de Processo.

34      Tendo em conta o que precede, a Quinta Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 15 de dezembro de 2016, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de que o presente reenvio prejudicial fosse submetido a tramitação urgente. Por outro lado, decidiu remeter o processo ao Tribunal de Justiça com vista à sua atribuição à Grande Secção.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

35      A competência do Tribunal de Justiça para responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio é posta em causa, designadamente, pelo Governo belga com base no facto de que o artigo 25.o, n.o 1, do Código de Vistos, cuja interpretação é solicitada, não é aplicável aos pedidos em causa no processo principal.

36      No entanto, resulta inequivocamente da decisão de reenvio que os referidos pedidos foram apresentados, por razões humanitárias, com base no artigo 25.o do Código de Vistos.

37      Quanto à questão de saber se este código é aplicável a pedidos, como os que estão em causa no processo principal, que têm por finalidade permitir a nacionais de países terceiros apresentar pedidos de asilo no território de um Estado‑Membro, tal questão está indissociavelmente ligada às respostas que devem ser dadas ao presente pedido de decisão prejudicial. Nestas condições, o Tribunal de Justiça tem competência para responder a este pedido (v., neste sentido, acórdão de 10 de setembro de 2015, Wojciechowski, C‑408/14, EU:C:2015:591, n.o 26 e jurisprudência referida).

 Quanto às questões prejudiciais

38      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos deve ser interpretado no sentido de que as obrigações internacionais nele referidas englobam o respeito, por um Estado‑Membro, de todos os direitos garantidos pela Carta, em especial nos seus artigos 4.o e 18.o, bem como pela CEDH e pelo artigo 33.o da Convenção de Genebra. Através da sua segunda questão, pergunta, tendo em conta a resposta à sua primeira questão, em substância, se o artigo 25.o, n.o 1, alínea a), do Código de Vistos deve ser interpretado no sentido de que o Estado‑Membro ao qual tenha sido apresentado um pedido de visto de validade territorial limitada é obrigado a emitir o visto pedido quando haja risco de violação dos artigos 4.o e/ou 18.o da Carta ou de uma obrigação internacional que esse Estado‑Membro deva respeitar. Se for caso disso, aquele órgão jurisdicional pretende saber se a existência de vínculos entre o requerente e o Estado‑Membro ao qual o pedido foi submetido tem importância a este respeito.

39      Importa, desde já, recordar que, por força de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o facto de um órgão jurisdicional de reenvio ter formulado uma questão tendo feito referência apenas a certas disposições do direito da União não obsta a que o Tribunal de Justiça lhe forneça todos os elementos de interpretação que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, independentemente de ter ou não feito essa referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, em particular da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do direito da União que necessitam de interpretação, tendo em conta o objeto do litígio (v., designadamente, acórdão de 12 de fevereiro de 2015, Oil Trading Poland, C‑349/13, EU:C:2015:84, n.o 45 e jurisprudência referida).

40      No caso vertente, observe‑se que o Código de Vistos foi adotado com fundamento no artigo 62.o, n.o 2, alínea a) e alínea b), ii), do Tratado CE, por força do qual o Conselho da União Europeia decreta medidas relativas aos vistos para as estadas previstas de uma duração máxima de três meses, designadamente os procedimentos e as condições de emissão dos vistos pelos Estados‑Membros.

41      Nos termos do seu artigo 1.o, o Código de Vistos tem por objeto estabelecer os procedimentos e as condições de emissão de vistos para trânsitos ou estadas previstos no território dos Estados‑Membros com duração máxima de 90 dias num período de 180 dias. O artigo 2.o, n.o 2, alíneas a) e b), deste código define o conceito de «visto», para efeitos do referido código, como sendo «uma autorização emitida por um Estado‑Membro» para efeitos, respetivamente, de «trânsito ou estada prevista no território dos Estados‑Membros de duração não superior a 90 dias num período de 180 dias» e o «trânsito através das zonas internacionais de trânsito dos aeroportos des Estados‑Membros».

42      Ora, como resulta da decisão de reenvio e dos elementos dos autos apresentados ao Tribunal de Justiça os recorrentes no processo principal apresentaram na Embaixada da Bélgica no Líbano pedidos de vistos por razões humanitárias, baseados no artigo 25.o do Código de Vistos, com intenção de pedir asilo na Bélgica logo que chegassem a este Estado‑Membro e, em seguida, obter uma autorização de permanência cuja duração de validade não fosse limitada a 90 dias.

43      Em conformidade com o artigo 1.o do Código de Vistos, tais pedidos, embora tenham sido formalmente apresentados com fundamento no artigo 25.o deste código, não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do mesmo código, em especial, do artigo 25.o, n.o 1, alínea a), cuja interpretação é solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio com referência ao conceito de «obrigações internacionais» que figura nesta disposição.

44      Além disso, dado que, como observam o Governo belga e a Comissão Europeia nas suas observações escritas, nenhum ato, até esta data, foi adotado pelo legislador da União, com fundamento no artigo 79.o, n.o 2, alínea a), TFUE, no que diz respeito às condições de emissão, pelos Estados‑Membros, de vistos ou de títulos de residência de longa duração a nacionais de países terceiros por razões humanitárias, os pedidos em causa no processo principal são regidos exclusivamente pelo direito nacional.

45      Uma vez que a situação em causa no processo principal não é, portanto, regida pelo direito da União, as disposições da Carta, em especial as dos seus artigos 4.o e 18.o, a que se referem as questões do órgão jurisdicional de reenvio, não lhe são aplicáveis (v., neste sentido, designadamente, acórdãos de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 19, e de 27 de março de 2014, Torralbo Marcos, C‑265/13, EU:C:2014:187, n.o 29 e jurisprudência referida).

46      A anterior conclusão não é posta em causa pelo facto de o artigo 32.o, n.o 1, alínea b), do Código de Vistos elevar a motivo de recusa de visto, e não a causa de não aplicação deste código, a existência de «dúvidas razoáveis quanto à […] intenção [do requerente] de sair do território dos Estados‑Membros antes de o visto requerido caducar».

47      Com efeito, a situação em causa no processo principal é caracterizada, não pela existência dessas dúvidas, mas por um pedido com um objeto diferente do de um visto de curta duração.

48      Importa acrescentar que a conclusão contrária equivaleria, quando é certo que o Código de Vistos foi concebido para fins de emissão de vistos para estadas no território dos Estados‑Membros que não excedam 90 dias sobre qualquer período de 180 dias, a permitir a nacionais de países terceiros introduzir, com base neste código, pedidos de visto com o objetivo de obter o benefício de uma proteção internacional no Estado‑Membro de sua escolha, o que violaria a economia geral do sistema instituído pelo Regulamento n.o 604/2013.

49      Importa ainda salientar que essa conclusão contrária implicaria que os Estados‑Membros são obrigados, com fundamento no Código de Vistos, a permitir, de facto, que nacionais de países terceiros apresentem um pedido de proteção internacional nas representações dos Estados‑Membros situadas no território de um país terceiro. Ora, sendo certo que o Código de Vistos não tem por objeto harmonizar as regulamentações dos Estados‑Membros relativas à proteção internacional, há que constatar que os atos da União adotados com fundamento no artigo 78.o TFUE que regulam os procedimentos aplicáveis aos pedidos de proteção internacional não preveem essa obrigação e excluem, pelo contrário, do seu âmbito de aplicação os pedidos apresentados em representações dos Estados‑Membros. Deste modo, resulta do artigo 3.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2013/32 que esta diretiva é aplicável aos pedidos de proteção internacional apresentados no território dos Estados‑Membros, designadamente na fronteira, nas águas territoriais ou numa zona de trânsito, mas não aos pedidos de asilo diplomático ou territorial apresentados em representações dos Estados‑Membros. Do mesmo modo, decorre do artigo 1.o e do artigo 3.o do Regulamento n.o 604/2013 que este regulamento obriga unicamente os Estados‑Membros a examinar qualquer pedido de proteção internacional apresentado no território de um Estado‑Membro, incluindo na fronteira ou numa zona de trânsito, e que os procedimentos previstos pelo referido regulamento apenas se aplicam a esses pedidos de proteção internacional.

50      Nestas condições, as autoridades belgas qualificaram erradamente os pedidos em causa no processo principal de pedidos de vistos de curta duração.

51      Tendo em conta as considerações precedentes, importa responder às questões submetidas que o artigo 1.o do Código de Vistos deve ser interpretado no sentido de que um pedido de visto com validade territorial limitada apresentado por um nacional de um país terceiro por razões humanitárias, com base no artigo 25.o deste código, na representação do Estado‑Membro de destino situada no território de um país terceiro, com intenção de apresentar, ao chegar a esse Estado‑Membro, um pedido de proteção internacional e, em seguida, permanecer no referido Estado‑Membro mais de 90 dias sobre um período de 180 dias, não está abrangido pela aplicação do referido código, mas, no estado atual do direito da União, exclusivamente pelo direito nacional.

 Quanto às despesas

52      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas por outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 1.o do Regulamento (CE) n.o 810/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece o Código Comunitário de Vistos (Código de Vistos), conforme alterado pelo Regulamento (UE) n.o 610/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, deve ser interpretado no sentido de que um pedido de visto com validade territorial limitada apresentado por um nacional de um país terceiro por razões humanitárias, com base no artigo 25.o deste código, na representação do EstadoMembro de destino situada no território de um país terceiro, com intenção de apresentar, ao chegar a esse EstadoMembro, um pedido de proteção internacional e, em seguida, permanecer no referido EstadoMembro mais de 90 dias sobre um período de 180 dias, não está abrangido pela aplicação do referido código, mas, no estado atual do direito da União Europeia, exclusivamente pelo direito nacional.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.