Language of document : ECLI:EU:C:2001:309

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

ANTONIO TIZZANO

apresentadas em 31 de Maio de 2001 (1)

Processo C-424/99

Comissão das Comunidades Europeias

contra

República da Áustria

«Incumprimento de Estado - Directiva 89/105/CEE - Conceito de lista positiva - Prazo para a decisão de incluir um medicamento na lista positiva - Obrigação de prever uma via de recurso no caso de decisão negativa»

I - Introdução

1.
    No quadro da presente acção, intentada pela Comissão das Comunidades Europeias nos termos do artigo 226.° CE, o Tribunal de Justiça é chamado a verificar se a República de Áustria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE, ao não adoptar ou ao não comunicar à Comissão todas as disposições necessárias para a transposição exaustiva da Directiva 89/105/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, relativa à transparência das medidas que regulamentam a formação do preço das especialidades farmacêuticas para uso humano e a sua inclusão nos sistemas nacionais de seguro de saúde (JO 1989, L 40, p. 8, a seguir «directiva»). Em especial, a Comissão invoca uma violação do artigo 6.° da directiva, tanto na parte em que concede às autoridades nacionais um prazo máximo de 90 dias para decidir sobre os pedidos de inclusão de um medicamento na lista dos medicamentos comparticipados pelo sistema nacional de seguro de saúde, como na parte em que prevê que o requerente tenha à sua disposição meios de recurso contra tais decisões.

II - Quadro jurídico

A - A regulamentação comunitária

2.
    O artigo 1.°, n.° 1, da directiva dispõe:

«Os Estados-Membros devem assegurar a concordância entre toda e qualquer medida nacional, seja ela estabelecida por lei, por regulamento ou por um acto administrativo, destinada a controlar os preços das especialidades farmacêuticas para uso humano ou a limitar a variedade de especialidades farmacêuticas abrangidas pelos respectivos sistemas nacionais de seguro de saúde com os requisitos da presente directiva.»

3.
    O artigo 6.° da directiva dispõe:

«As seguintes disposições só serão aplicáveis se uma especialidade farmacêutica for abrangida pelo sistema nacional de seguro de saúde, mas só depois de as autoridades competentes terem decidido incluir a especialidade farmacêutica em causa numa lista positiva de especialidades farmacêuticas abrangidas pelo sistema nacional de seguro de saúde:

1)    Os Estados-Membros devem assegurar que a decisão relativa a qualquer pedido de inclusão de uma especialidade farmacêutica na lista das especialidades farmacêuticas abrangidas pelo sistema nacional de seguro de saúde, apresentado pelo titular de uma autorização de comercialização em conformidade com as normas estabelecidas pelo Estado-Membro em causa, seja adoptada e comunicada ao requerente no prazo de noventa dias a contar da data da sua recepção. Se puder ser feito um pedido ao abrigo do presente artigo antes de as autoridades competentes terem aprovado opreço a aplicar ao produto nos termos do artigo 2.°, ou se a decisão sobre o preço de uma especialidade farmacêutica e a decisão quanto à sua inclusão na lista de especialidades abrangidas pelo sistema nacional de seguro de saúde forem tomadas na sequência de um simples procedimento administrativo, o prazo é prorrogado por mais noventa dias. O requerente deve fornecer às autoridades competentes as informações adequadas. Se as informações justificativas do pedido não forem adequadas, o prazo deve ser suspenso e as autoridades competentes devem notificar imediatamente o requerente das informações pormenorizadas suplementares que são necessárias.

    Se um Estado-Membro não permitir a apresentação de um pedido antes de as autoridades competentes terem acordado o preço a aplicar à especialidade farmacêutica nos termos do artigo 2.°, o Estado-Membro em causa deve assegurar que o período total dos dois procedimentos não exceda 180 dias. Este prazo pode ser prorrogado em conformidade com o artigo 2.° ou suspenso nos termos do parágrafo anterior.

2)    Qualquer decisão de não inclusão de uma especialidade farmacêutica na lista dos produtos aprovados pelo sistema nacional de seguro de saúde deve conter uma justificação das razões baseadas em critérios objectivos verificáveis, incluindo eventualmente opiniões ou recomendações de peritos em que as decisões se fundamentam. Além disso, o requerente deve ser informado dos recursos de que dispõe ao abrigo das leis em vigor, e dos prazos concedidos para a apresentação de tais recursos.

[...]».

4.
    Por força do artigo 11.°, n.° 1, da directiva:

«Os Estados-Membros adoptarão as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente directiva o mais tardar em 31 de Dezembro de 1989. [...]».

5.
    As obrigações previstas pela directiva aplicam-se à República da Áustria desde a sua entrada na Comunidade Europeia, ocorrida em 1 de Janeiro de 1995.

B - O direito nacional

6.
    O regime nacional de seguro de doença austríaco prevê o direito de o segurado obter a comparticipação de todo e qualquer medicamento considerado necessário e adequado com base no diagnóstico do médico responsável. Mais precisamente, os §§ 116 e 122, n.° 1, da Allgemeines Sozialversicherungsgesetz (lei geral relativa à segurança social, a seguir «ASVG») dispõem que cada segurado tem direito, para si e para os membros da sua família, às prestações do regimenacional de seguro de doença que compreendem, nomeadamente, um tratamento médico suficiente e adequado, incluindo os medicamentos, na medida em que estes forem necessários (§ 133 da ASVG).

7.
    O § 350 da ASVG reconhece o direito à comparticipação de um medicamento, se este for receitado por um médico convencionado com o organismo de segurança social no qual está inscrito o paciente e se se tratar de um medicamento que o referido médico possa prescrever livremente, isto é, inscrito no registo dos medicamentos publicado pela Hauptverband der Österreichischen Sozialversicherungsträger (federação central dos organismos de segurança social austríacos, a seguir «federação») (2). Em alternativa, é possível obter a comparticipação de um medicamento não incluído no referido registo, quando a necessidade e a adequação do seu emprego relativamente às condições de saúde do paciente sejam reconhecidas por um médico de controlo do organismo de segurança social competente, o qual deve, em tal caso, dar a sua autorização prévia.

8.
    Por força dos §§ 31, n.° 3, ponto 12, e 133, n.° 2, da ASVG a federação deve manter um registo (a seguir «registo»), contendo a lista de medicamentos que podem ser receitados de maneira geral ou em certas condições (por exemplo, para certas categorias de pacientes ou para certas faixas etárias, ou em certas quantidades ou sob certas formas).

9.
    O processo de inscrição de um medicamento no registo é definido num regulamento que só foi adoptado recentemente (Soziale Sicherheit, n.° 11/98, de 27 de Novembro de 1998, comunicação n.° 104/1998, p. 853, a seguir «Regulamento sobre o processo de inscrição») e comunicado à Comissão em 3 de Março de 1999, por ocasião da resposta ao parecer fundamentado de 30 de Dezembro de 1998.

10.
    O pedido de inscrição no registo deve ser dirigido a um serviço especial da federação, que procede a um primeiro exame (§ 2, n.° 1, do Regulamento sobre o processo de inscrição). O resultado do exame é comunicado simultaneamente a um pequeno conselho técnico («kleiner Fachbeirat») e ao requerente (§ 2, n.° 2). O pequeno conselho técnico emite uma recomendação a este respeito [§ 2, n.° 3, alínea a)], que é comunicada ao requerente.

11.
    Se a recomendação for negativa, o requerente tem um prazo de seis semanas para apresentar uma reclamação escrita à federação, juntando eventualmente novos documentos, para além dos apresentados com o pedido de inscrição [§ 2, n.° 4, alínea a)]. A reclamação é então novamente examinada pelopequeno conselho técnico, que pode solicitar ao requerente mais informações [§ 2, n.° 4, alínea b)]. No caso de o pequeno conselho técnico não emitir uma recomendação favorável ao requerente, transmite a reclamação, as novas informações, se as houver, e eventualmente as suas próprias observações ao grande conselho técnico («grosser Fachbeirat»). Este último, depois de verificar se a recomendação é «razoável» («nachvollziehbar») ou se deve, pelo contrário, ser modificada (§ 2, n.° 5), emite por sua vez uma recomendação num prazo de seis meses a contar da reclamação.

12.
    A federação deve sempre decidir, no prazo de 180 dias a contar da apresentação do pedido, se o defere e em que condições [§ 2, n.° 7, alínea a)]. O prazo é, todavia, suspenso se a federação pedir à empresa requerente ulteriores esclarecimentos sobre as informações de carácter técnico ou administrativo previstas no Anexo I do Regulamento sobre o processo de inscrição [§ 2, n.° 7, alínea a)] e pode ser prorrogado por 60 dias em caso de sobrecarga dos serviços da federação, hipótese que se considera ocorrer se forem apresentados mais de 100 pedidos de registo de medicamentos no decurso de um período de três meses [§ 2, n.° 7, alínea b)], mas que não pode ser invocado mais de três vezes no período de dois anos [§ 2, n.° 7, alínea b)].

III - Análise jurídica

A - Observações preliminares

13.
    A Comissão faz uma dupla censura à República da Áustria: o Regulamento sobre o processo de inscrição fixa em 180 dias o prazo dentro do qual a federação é obrigada a decidir dos pedidos de inscrição de um medicamento no registo, enquanto o artigo 6.°, n.° 1, da directiva, como se viu, impõe 90 dias; e que a reclamação contra o parecer negativo do pequeno conselho técnico não pode ser considerado um recurso, na acepção do artigo 6.°, n.° 2, último período, da directiva.

14.
    O governo demandado objecta, a título principal, que o registo previsto no § 133, n.° 2, da ASVG não constitui uma «lista positiva» na acepção do artigo 6.°, da directiva e que, portanto, tal disposição não se aplica pura e simplesmente ao sistema austríaco; e, a título subsidiário, que os prazos e meios de recurso previstos no Regulamento sobre o processo de inscrição respeitam a previsão do referido artigo 6.°

15.
    Na sua petição inicial, a Comissão abandonou uma terceira censura, deduzida no parecer fundamentado de 30 de Dezembro de 1998, relativa à omissão da obrigação de fundamentar as decisões negativas dos pedidos de inscrição no registo, obrigação imposta pelo artigo 6.°, n.° 2, da directiva. Com efeito, o artigo 2.°, n.° 3, do Regulamento sobre o processo de inscrição prevê agora que afederação deve motivar por escrito as suas decisões e, portanto, a Comissão abandonou esta censura.

16.
    Um último pormenor antes de passar ao mérito da acção: a Comissão pede ao Tribunal que declare que a República da Áustria não cumpriu as obrigações que lhe são impostas pelo Tratado CE ao não comunicar ou ao não adoptar todas as medidas de transposição da directiva. Da petição inicial resulta, todavia, que, por ocasião da sua resposta ao parecer fundamentado, o Governo austríaco informou a Comissão da adopção do Regulamento sobre o processo de inscrição e enviou o texto do mesmo, mostrando, pelo menos implicitamente, que considerava cumpridas as suas obrigações. Seja ou não o caso, parece-me que, de qualquer forma, depois da transmissão do Regulamento sobre o processo de inscrição não se pode dizer que a República da Áustria não comunicou à Comissão as medidas necessárias à transposição do artigo 6.° da directiva. De resto, na audiência a demandante não insistiu sobre esse ponto. Limitar-me-ei a seguir, a examinar a censura sobre a não conformidade com a directiva das medidas de transposição comunicadas pelo Governo austríaco à Comissão.

B - Quanto à qualificação do registo previsto no § 133, n.° 2, da ASVG de «lista positiva» na acepção do artigo 6.° da Directiva

1. Os argumentos das partes

17.
    Como se viu, a República da Áustria opõe à acção da Comissão uma excepção de carácter preliminar e geral, isto é, objecta que o registo mantido pela federação não constitui de forma alguma uma «lista positiva» na acepção do artigo 6.° da directiva e que, por conseguinte, não se verificam no caso vertente nem as condições de aplicação de tal disposição nem, por maioria de razão, as obrigações nela previstas, cuja violação é invocada pela Comissão

18.
    Em apoio de tal argumentação, o Governo austríaco insiste sobretudo na letra do artigo 6.° e, em especial, da sua parte introdutória. Com efeito, segundo o demandado, resulta claro dessa disposição que uma lista de medicamentos constitui uma «lista positiva» nos casos em que a inclusão nessa lista constitua o único meio para admitir a comparticipação de um medicamento pelo regime nacional de seguro de doença.

19.
    No sistema austríaco, pelo contrário, até mesmo os custos de um medicamento excluído do registo mantido pela federação podem ser comparticipados, desde que o paciente obtenha autorização do próprio organismo de segurança social; e, por outro lado, a prescrição de um medicamento inscrito no registo, não garante a comparticipação, porque esta será excluída se se verificar que o medicamento não corresponde ou é desproporcionado às exigências efectivasde um tratamento médico necessário e apropriado (3). Além disso, a possibilidade de obter a comparticipação também para os medicamentos não incluídos no registo não é, segundo o Governo austríaco, puramente teórica, uma vez que cerca de 15% das despesas assumidas pelo regime nacional de segurança social quanto à comparticipação das despesas médicas corresponde a tal hipótese. Isto, sem contar os medicamentos administrados nos hospitais e para os quais não existe qualquer condição de inscrição no registo.

20.
    Em suma, segundo o governo demandado, o registo mantido pela federação não contém nenhuma lista exaustiva da gama de medicamentos comparticipados pelo regime nacional de seguro de doença. A sua utilidade consiste em servir de instrumento de trabalho, constituindo uma espécie de prontuário para os médicos convencionados, que lhes permite verificar com maior facilidade, entre os medicamentos que podem prescrever, os que são comparticipados pelo organismo de segurança social a que pertence o seu paciente, sem necessidade de autorização prévia. Por outro lado, continua o Governo austríaco, tal permite reduzir as despesas do sistema nacional de segurança social porque obriga as empresas farmacêuticas, em contrapartida da inclusão de um medicamento no registo, a praticarem descontos sobre o custo do mesmo, ao ponto de tais empresas terem quase mais interesse na não inscrição do que na inscrição do medicamento no registo (mas pergunto se, por acaso, tal «sacrifício» não será compensado pela maior difusão do produto garantida pela inscrição).

21.
    Em termos ainda mais gerais, o Governo austríaco objecta que ao pretender qualificar o registo de «lista positiva» na acepção da directiva, desvirtuando a sua natureza e a sua função, a Comissão tenta interferir na organização de um sistema nacional de segurança social e na determinação das condições do direito às prestações. Tal constitui evidentemente uma ingerência ilegítima da Comunidade numa matéria que é reservada à competência exclusiva dos Estados-Membros, como definido, há muito, pela jurisprudência do Tribunal de Justiça (4), e como foi explicitamente confirmado pelo artigo 152.°, n.° 5, CE na versão resultante doTratado de Amsterdão (5), sendo igualmente este princípio recordado, no caso vertente, pela própria directiva (sexto considerando).

22.
    Por seu turno, a Comissão insiste na aplicabilidade do artigo 6.° da directiva, salientando que todas as suas condições de aplicação se encontram plenamente preenchidas. Em primeiro lugar a federação austríaca deve ser considerada uma das «autoridades competentes» de que fala essa disposição. Para além disso, o registo dos medicamentos deve ser assimilado à «lista positiva» prevista na directiva, uma vez que, normalmente, os medicamentos aí enumerados são comparticipados pelo regime nacional de seguro de doença. Pouco importa que um medicamento não inscrito no registo possa também ser comparticipado, já que, como se viu, tal só é possível com uma autorização especial de um médico para esse efeito habilitado pelo organismo de segurança social. Ora, segundo a Comissão, os critérios de outorga dessa autorização - isto é, que o medicamento seja adequado e necessário às condições de saúde do segurado - são de tal modo vagos que não é possível efectuar previamente um juízo seguro sobre a possibilidade de comparticipação de um medicamento não inscrito no registo, com o resultado de só se poder ter a certeza da comparticipação quando existe tal inscrição; ora, esta é exactamente a condição prevista no artigo 6.° para que se possa falar de «lista positiva» e, portanto, aplicar essa mesma disposição.

23.
    Quanto às objecções do Governo austríaco, sobre a presumida ingerência comunitária num sector reservado à competência dos Estados, a Comissão replica que a directiva não tem nem este objectivo nem este resultado. A mesma propõe-se somente impor algumas regras mínimas de transparência para as medidas nacionais destinadas a restringir a gama de medicamentos comparticipados ou reembolsados pelo regime nacional de seguro de saúde (artigo 1.°). E isto, em especial, a fim de evitar possíveis medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas às importações ou às exportações.

2. Apreciação

24.
    Observarei desde já que, sobre este último ponto, parece-me difícil não dar razão à Comissão. Com efeito, a presente acção não põe em causa, nem as escolhas políticas, nem as competências da República da Áustria em matéria de segurança social, nem tão pouco a actual organização do seu sistema de assistência médica, que a própria Comissão abertamente louvou, nem, ainda menos, as condições do direito à comparticipação dos medicamentos. As censuras da Comissão não dizem respeito, nem à estrutura do sistema nem aos princípios e critérios que orientam o seu funcionamento; a sua aceitação não tem nenhuma influência, nem sobre a existência e funcionamento do registo, nem sobre a inclusãoou não inclusão de um medicamento no mesmo, nem sobre a possibilidade de reembolso de um medicamento. Em jogo, na presente causa, estão somente - invariavelmente - algumas modalidades específicas de funcionamento do mesmo, destinadas a garantir o respeito de princípios gerais de objectividade e transparência, para atingir os fins claramente enunciados na directiva, isto é , como mencionei, para «[...] garantir que todos os interessados possam confirmar que as medidas nacionais [que regem os sistemas nacionais de seguro de doença] não constituem restrições quantitativas às importações ou exportações ou medidas de efeito equivalente» (sexto considerando).

25.
    Deve-se sublinhar, a este propósito, que a própria directiva, embora lembrando que a prossecução dos seus objectivos não deve afectar a política dos Estados-Membros em matéria de instauração dos sistemas de segurança social, não exclui todavia que tal possa ocorrer «na medida em que sejam necessários certos processos para alcançar a transparência na acepção da presente directiva» (sexto considerando).

26.
    Com efeito, foi o próprio legislador comunitário a colocar-se nessa perspectiva, na medida em que, embora respeitando as políticas nacionais na matéria, preocupou-se precisamente em assegurar progressivamente, através de normas de coordenação e não de harmonização, a conformidade com o direito comunitário das medidas nacionais para controlar as despesas a cargo dos serviços de saúde, mediante restrições da gama dos medicamentos comparticipados pelos regimes de seguro de doença. A directiva em causa insere-se precisamente nessa orientação, apresentando-se como «primeiro passo» para a «harmonização ulterior de tais medidas» (sexto e sétimo considerandos) e a progressiva eliminação das disparidades existentes que «podem impedir ou distorcer o comércio intracomunitário de especialidades farmacêuticas e afectar, por esse motivo, o comércio intracomunitário de especialidades farmacêuticas» (quarto considerando).

27.
    Acresce que as ditas preocupações, que são, repita-se, mais do legislador comunitário que da Comissão, parecem perfeitamente de acordo com o princípio, constantemente recordado pelo Tribunal de Justiça, segundo o qual, no exercício do poder de organização dos seus próprios sistemas de segurança social os Estados-Membros devem respeitar o direito comunitário (6). Mais precisamente ainda, as mesmas correspondem à orientação do acórdão Duphar e o., que justamente inspirou a adopção da directiva (7), no qual o Tribunal - com referência aos critérios fixados por um Estado-Membro para a inclusão das especialidades farmacêuticas reembolsáveis numa lista limitativa - afirmou claramente que o direito comunitário, nesse caso o artigo 30.° do Tratado CE (que passou, apósalteração, a artigo 28.° CE), exige que, para evitar todo o risco de discriminação em detrimento dos produtos importados, esses critérios sejam objectivos e controláveis (8).

28.
    Parece-me, portanto, para concluir sobre este ponto, que a objecção não é justificada. De resto, o próprio governo demandado se deve ter dado conta disso, visto que adoptou, no decurso da fase pré-contenciosa, o Regulamento sobre o processo de inscrição, que parece exactamente ditado pelo intento de assegurar a conformidade do sistema austríaco de seguro de doença com os princípios de objectividade e transparência.

29.
    Afastada esta excepção de princípio, passarei ao argumento principal invocado pelo governo demandado, isto é, ao argumento de que o registo mantido pela federação em aplicação do § 133, n.° 2, da ASVG não pode ser considerado uma «lista positiva» na acepção do artigo 6.° da directiva.

30.
    Como já foi visto, o Governo austríaco apoia-se sobretudo no teor literal do artigo 6.° da directiva, que reproduzimos novamente para maior comodidade: «As seguintes disposições só serão aplicáveis se uma especialidade farmacêutica for abrangida pelo sistema nacional de seguro de saúde, mas só depois de as autoridades competentes terem decidido incluir a especialidade farmacêutica em causa numa lista positiva de especialidades farmacêuticas abrangidas pelo sistema nacional de seguro de saúde» (o sublinhado é nosso). Segundo o governo demandado, daí resultaria que a disposição só é aplicável aos sistemas nacionais de segurança social, nos quais o reembolso ou a comparticipação dos medicamentos é unicamente possível relativamente aos que estejam inscritos numa lista prevista para esse efeito. Se assim não fosse, porque, como ocorre no caso austríaco, em determinadas condições podem ser reembolsados os custos de medicamentos não incluídos na lista, não se verificaria a hipótese contemplada no artigo 6.°

31.
    Não tenho dificuldade alguma em reconhecer que o texto da disposição em causa não é dos mais felizes; não creio, porém, que o mesmo autorize as deduções feitas pelo Governo austríaco. Parece-me, pelo contrário evidente que a lógica da disposição e a finalidade da directiva demonstram que o artigo 6.° faz referência a todos os casos em que a inserção de um medicamento numa lista implica o seu reembolso automático. O facto de, num Estado-Membro, haver um registo e não uma «lista positiva» ou o facto de, em certas condições, o reembolso ser permitido mesmo relativamente aos medicamentos não incluídos na lista, em nada afecta o único dado relevante: isto é, que a inclusão de um medicamento na referida lista implica normalmente a sua comparticipação automática. Tal constitui precisamente o pressuposto de aplicação da directiva e designadamente da obrigação, nela prevista para atingir os fins enunciados no já tão referido sexto considerando, degarantir que a inscrição na lista se processa com a maior objectividade e transparência possíveis.

32.
    Creio que esta é a única interpretação da disposição em causa que permite manter a coerência entre a sua discutível redacção e a finalidade declarada da directiva. Esta é, de resto, também confirmada pelo teor do artigo 1.°, n.° 1, da directiva, segundo o qual: «Os Estados-Membros devem assegurar a concordância entre toda e qualquer medida nacional, seja ela estabelecida por lei, por regulamento ou por um acto administrativo, destinada [...] a limitar a variedade de especialidades farmacêuticas abrangidas pelos respectivos sistemas nacionais de seguro de saúde com os requisitos da presente directiva» (o sublinhado é nosso).

33.
    Mas, sobretudo, parece-me decisivo o facto de se estar aqui em presença de uma disposição destinada a garantir um dos pilares do ordenamento jurídico comunitário, ou seja, a livre circulação de mercadorias. Tal impõe, segundo uma jurisprudência bem consolidada, que se privilegie uma interpretação lata da norma em causa, uma interpretação que não restrinja o seu alcance e que não prejudique o seu efeito útil (9). Ora, é justamente a este resultado que chegaríamos, se seguíssemos a tese austríaca, porque tal levaria a subtrair ao campo de aplicação do artigo 6.° sistemas nacionais de seguro de doença que satisfazem, todavia, todos os pressupostos enunciados nessa disposição, com o risco de, além disso, encorajar os Estados-Membros a subtraírem-se com esquemas formais e nominais às obrigações impostas pela directiva e, por conseguinte, de prejudicar o seu efeito útil.

34.
    Concluo que as disposições do artigo 6.° da directiva se aplicam ao caso de uma lista como o registo previsto no § 133, n.° 2, da ASVG, que garante a comparticipação pelo regime nacional de seguro de doença dos medicamentos nele inscritos, mesmo se tal regime permite além disso, em condições especiais, o reembolso de medicamentos não inscritos na lista.

C - Sobre o prazo em que a federação deve adoptar uma decisão sobre um pedido de inclusão de um medicamento no registo previsto no § 133, n.° 2, da ASVG

35.
    Abordando agora as duas censuras específicas da Comissão, começarei por aquela que respeita à disparidade dos prazos - fixados, respectivamente, pelo artigo 6.°, n.° 1, da directiva (90 dias) e pelo § 2, n.° 7, alínea a), do Regulamento sobreo processo de inscrição (180 dias) - dentro dos quais deve ser adoptada a decisão relativa ao pedido de inclusão de um medicamento, respectivamente, na lista positiva ou no registo.

36.
    Na contestação, a República da Áustria sustentou que o prazo de 180 dias previsto pelo Regulamento sobre o processo de inscrição deve considerar-se conforme à directiva, quando, no decurso do exame conduzido pela federação para decidir sobre a inscrição do produto no registo, seja também controlado o preço pelo qual o produto é proposto aos segurados. Ora, o próprio artigo 6.°, n.° 1, da directiva admite a possibilidade de prorrogar por 90 dias o prazo nele fixado (atingindo um total de 180 dias), «se a decisão sobre o preço de uma especialidade farmacêutica e a decisão quanto à sua inclusão na lista de especialidades abrangidas pelo sistema nacional de seguro de saúde forem tomadas na sequência de um simples procedimento administrativo».

37.
    Na audiência, o representante do governo demandado confirmou que este era de facto o caso no sistema austríaco, dado que, com o pedido de inscrição de um medicamento, a federação examina também o preço do mesmo. A Comissão manifestou dúvidas sobre a razoabilidade de tal afirmação, mas não conseguiu demonstrar nem que o exame do preço do medicamento e o exame relativo à inscrição do mesmo no registo não são simultâneos, nem que essa simultaneidade se verifica apenas ocasionalmente.

38.
    Ora, é sabido que, nas acções intentadas ao abrigo do artigo 226.° CE, «incumbe à Comissão [...] fazer prova da existência do alegado incumprimento e fornecer ao Tribunal de Justiça os elementos necessários à verificação por este da existência desse incumprimento» (10). Como tal não aconteceu neste caso concluo portanto, que o pedido da Comissão não é procedente.

39.
    Pelo contrário, parece-me demonstrada e fundada a censura suscitada pela Comissão na audiência, relativa às disposições do Regulamento sobre o processo de inscrição que admite a prorrogação por 60 dias do referido prazo de 180 dias no caso de sobrecarga dos serviços da federação [§ 2, n.° 7, alínea b)] daquele regulamento. Com efeito, por um lado, a directiva não prevê essa possibilidade e, por outro, o motivo da prorrogação não é susceptível de justificar uma derrogação ao prazo máximo fixado pela directiva. Com efeito, como é bem sabido, segundo a jurisprudência do Tribunal, um Estado-Membro não pode invocar disposições,práticas ou situações da sua ordem jurídica interna para justificar a inobservância das obrigações fixadas por uma directiva (11).

40.
    Todavia, a realidade é que a Comissão só suscitou esta censura na audiência; não o fez evidentemente no parecer fundamentado, visto que não dispunha ainda do Regulamento austríaco sobre o processo de inscrição, mas também o não fez na petição inicial nem durante a fase escrita do processo. Trata-se, portanto, de uma censura evidentemente intempestiva que, à luz do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça (artigo 42.°, n.° 2), não pode ser tomada em consideração. Esta acusação de incumprimento deve, portanto, ser declarada inadmissível.

D - Sobre as vias de recurso contra as decisões relativas aos pedidos de inclusão de medicamentos no registo previsto no § 133, n.° 2, da ASVG

41.
    Como já foi dito, a Comissão objecta, por último, que o sistema austríaco não prevê uma verdadeira protecção jurisdicional dos interessados, apesar de o artigo 6.°, n.° 5, da directiva dispor que qualquer «decisão» de exclusão de uma especialidade farmacêutica da lista positiva deverá conter «uma justificação das razões baseadas em critérios objectivos e verificáveis [...], incluindo, se necessário, qualquer parecer técnico que lhe sirva de base»; e que o requerente «será informad(o) dos recursos à sua disposição de acordo com a legislação em vigor [...]».

42.
    Segundo a Comissão, a reclamação contra a primeira recomendação do «pequeno conselho técnico» previsto no § 2, n.° 4, alínea a), do Regulamento sobre o processo de inscrição, não constitui uma via de recurso apta a garantir aos interessados uma tutela real e eficaz. E esta condição não se pode considerar satisfeita pelo facto de, em caso de um segundo parecer negativo do pequeno conselho técnico o pedido de inscrição poder ser submetido ao reexame de um «grande conselho técnico». Apesar de, como objecta o Governo austríaco, tal órgão ser também composto, como o pequeno conselho técnico, por técnicos e profissionais totalmente independente dos organismos de segurança social, nomeados em parte por um período determinado e em parte por um período ilimitado, não deixa de ser um facto que estes conselhos são sempre instâncias de controlo pertencentes à federação e não verdadeiros órgãos jurisdicionais independentes e que, além disso, não dispõem de um autêntico poder de decisão, visto que só podem formular recomendações.

43.
    O Governo austríaco respondeu, insistindo sobretudo na competência técnica e na independência dos membros do grande conselho técnico, e evocou, naaudiência, se bem o compreendemos, a tradição austríaca vigente no sector da segurança social de prever, dada a natureza técnica destas questões, recursos internos para órgãos de tipo administrativo, compostos de profissionais, em vez de recursos jurisdicionais.

44.
    Devo, no entanto, objectar que o artigo 6.° da directiva, quando prescreve a obrigação de informar o interessado sobre os «recursos», quer evidentemente referir-se a um meio que garanta a plena e efectiva tutela dos direitos dos sujeitos interessados, isto é, a um meio de natureza jurisdicional. Parece-me que até a previsão, na mesma norma, de uma obrigação de fundamentação das decisões de incluir ou não um produto na lista pressupõe que a decisão possa ser submetida a uma fiscalização jurisdicional.

45.
    Mas, para além disso, parece-me decisivo recordar a jurisprudência do Tribunal segundo a qual, quando uma disposição comunitária impõe aos Estados-Membros, como aqui acontece, a previsão de vias de recurso contra as decisões das autoridades nacionais para garantir a protecção dos direitos conferidos pelas normas comunitárias, deve entender-se que essa disposição, embora deixe ao Estado-Membro a liberdade de escolher as modalidades de cumprimento dessa obrigação que lhe parecerem apropriadas, refere-se a um autêntico «sistema de fiscalização jurisdicional», em tribunais independentes, e não a reclamações administrativas ou de igual natureza (12). Por sua vez, tal jurisprudência é apenas a expressão de uma orientação mais geral do Tribunal de Justiça, baseada na convicção de que «a exigência de controlo jurisdicional de qualquer decisão de uma autoridade nacional constitui um princípio geral de direito comunitário que decorre das tradições constitucionais comuns dos Estados-Membros e que teve a sua consagração nos artigos 6.° e 13.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem» (13).

46.
    Dificilmente se pode conciliar com tal jurisprudência um sistema como o austríaco, que prevê unicamente a possibilidade de interpor recurso para um órgão sem natureza jurisdicional, nem poder de decisão, visto que só pode emitir recomendações e que a decisão final é reservada à federação.

47.
    Daqui se conclui que, neste ponto, a República da Áustria não respeitou as obrigações impostas pelo artigo 6.°, n.° 2, da directiva e que, portanto, ainda que seja por essa razão limitada, a acção da Comissão deve ser julgada procedente.

IV - Quanto às despesas

48.
    Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo em conta que a Comissão o pediu e considerando o que ficou dito supra sobre a procedência da acção, concluo que este pedido deve ser acolhido.

V - Conclusões

49.
    À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal que decida da seguinte maneira:

«1)    Ao não adoptar todas as disposições legislativas, regulamentares e administrativas para a transposição exaustiva da Directiva 89/105/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, relativa à transparência das medidas que regulamentam a formação do preço das especialidades farmacêuticas para uso humano e a sua inclusão nos sistemas nacionais de seguro de saúde, a República da Áustria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Tratado CE;

2)    A República da Áustria é condenada nas despesas.»


1: -     Língua original: italiano.


2: -    Tendo em conta as relações especiais que os ligam aos organismos de segurança social dos pacientes que tratam, os «médicos convencionados» desempenham de uma certa maneira o papel de representantes destes organismos e podem, por conseguinte, receitar, nas condições indicadas no texto, medicamentos que, se estiverem inscritos no registo, são directamente comparticipados pelo organismo competente (§ 361, n.° 1, da ASVG).


3: -     Tal é confirmado pela jurisprudência do Oberster Gerichtshof, evocada pelo Governo austríaco (v., em especial, acórdão de 13 de Dezembro de 1996, 10 Ob p. 62/94, onde figuram outras referências), a qual considera que, por força do § 133, n.° 1, da ASVG, os inscritos no regime de seguro de doença têm direito à comparticipação de todos os medicamentos de que efectivamente necessitem, independentemente do facto de estes constarem do registo.


4: -     Acórdão de 28 de Abril de 1998, Kohll (C-158/96, Colect., p. I-1931, n.os 17 e 18, com outras referências).


5: -     Na nova versão, com efeito, a disposição enuncia claramente que: «a acção da Comunidade no domínio da saúde pública respeitará plenamente as competências dos Estados-Membros em matéria de organização e prestação de serviços de saúde e de cuidados médicos [...]».


6: -     V., por exemplo, acórdão Kohll, já referido, n.° 19.


7: -     V. o relatório da Comissão que acompanhou a proposta de directiva [COM(86) 765 final, de 23 de Dezembro de 1986, n.° II.1].


8: -     Acórdão de 7 de Fevereiro de 1984, Duphar e o. (238/82, Recueil, p. 523, n.os 17 a 22).


9: -     V., para referir só os acórdãos mais recentes: acórdãos de 10 de Junho de 1999, Braathens (C-346/97, Colect., p. I-3419, n.° 24), e de 9 de Março de 2000, EKV e Wein & Co. (C-437/97, Colect., p. I-1157, n.° 41, onde figuram outras referências). V., também, no mesmo sentido, o parecer consultivo de 24 de Novembro de 1998, do Tribunal da Associação Europeia de Comércio Livre que tem por objecto o artigo 4.° da directiva, relativo a medidas de bloqueio dos preços dos medicamentos (processo E-2/98, FÍS, Rec., p. 1172, especialmente n.os 20 a 22).


10: -     Recentemente, acórdãos de 25 de Novembro de 1999, Comissão/França (C-96/98, Colect., p. I-8531, n.° 36); de 5 de Outubro de 2000, Comissão/França (C-337/98, Colect., p. I-8377, n.° 45); e de 14 de Dezembro de 2000, Comissão/França (C-55/99, Colect., p. I-11499, n.° 30).


11: -     V., por exemplo, acórdãos de 5 de Julho de 1990, Comissão/Bélgica (C-42/89, Colect., p. I-2821, n.° 24), e de 1 de Outubro de 1998, Comissão/Espanha (C-71/97, Colect., p. I-5991, n.° 15).


12: -     V. acórdão de 21 de Janeiro de 1999, Upjohn (C-120/97, Colect., p. I-223, n.° 29), relativo ao artigo 12.° da Directiva 65/65/CEE do Conselho, de 26 de Janeiro de 1965, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitante às especialidades farmacêuticas (JO L 22, p. 369; EE 13 F1 p. 18), que prevê que «As decisões tomadas nos termos dos artigos 5.°, 6.° e 11.° devem ser fundamentadas de maneira precisa e notificadas ao interessado com a indicação dos meios de recurso previstos na legislação em vigor e do prazo dentro do qual o recurso pode ser interposto.»


13: -     Acórdãos de 3 de Dezembro de 1992, Oleificio Borelli/Comissão (C-97/91, Colect., p. I-6313, n.° 14, com outras referências; o sublinhado é nosso); de 11 de Janeiro de 2001, Kofisa Italia (C-1/99, Colect., p. I-0207, n.° 46); e Siples (C-226/99, Colect., p. I-0277, n.° 17).