Language of document : ECLI:EU:C:2012:286

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

10 de maio de 2012 (*)

«Artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE — Organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (OICVM) — Diferença de tratamento entre os dividendos pagos aos OICVM não residentes, sujeitos a uma retenção na fonte, e os dividendos pagos aos OICVM residentes, não sujeitos a uma tal retenção — Necessidade, para apreciar a conformidade da medida nacional com a livre circulação de capitais, de ter em conta a situação dos detentores de participações — Inexistência»

Nos processos apensos C‑338/11 a C‑347/11,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentados pelo tribunal administratif de Montreuil (França), por decisões de 1 de julho de 2011, entrados no Tribunal de Justiça em 4 de julho de 2011, nos processos

Santander Asset Management SGIIC SA, em nome da FIM Santander Top 25 Euro Fi (C‑338/11),

contra

Directeur des résidents à l’étranger et des services généraux

e

Santander Asset Management SGIIC SA, em nome da Cartera Mobiliaria SA SICAV (C‑339/11),

Kapitalanlagegesellschaft mbH, em nome da Alltri Inka (C‑340/11),

Allianz Global Investors Kapitalanlagegesellschaft mbH, em nome da DBI‑Fonds APT n.° 737 (C‑341/11),

SICAV KBC Select Immo (C‑342/11),

SGSS Deutschland Kapitalanlagegesellschaft mbH (C‑343/11),

International Values Series of the DFA Investment Trust Co. (C‑344/11),

Continental Small Co. Series of the DFA Investment Trust Co. (C‑345/11),

SICAV GA Fund B (C‑346/11),

Generali Investments Deutschland Kapitalanlagegesellschaft mbH, em nome da AMB Generali Aktien Euroland (C‑347/11),

contra

Ministre du Budget, des Comptes publics, de la Fonction publique et de la Réforme de l’État,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts (relator), presidente de secção, J. Malenovský, G. Arestis, T. von Danwitz e D. Šváby, juízes,

advogado‑geral: J. Mazák,

secretário: R. Şereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 16 de fevereiro de 2012,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Santander Asset Management SGIIC SA, em nome da FIM Santander Top 25 Euro Fi, e da Santander Asset Management SGIIC SA, em nome da Cartera Mobiliaria SA SICAV, por C. Charpentier, N. Gelli, P. Van den Perre e C. Profitos, avocats,

–        em representação da Kapitalanlagegesellschaft mbH, em nome da Alltri Inka, da International Values Series of the DFA Investment Trust Co., da Continental Small Co. Series of the DFA Investment Trust Co. e da Generali Investments Deutschland Kapitalanlagegesellschaft mbH, em nome da AMB Generali Aktien Euroland, por Y. Robert e S. Lauratet, avocats,

–        em representação da Allianz Global Investors Kapitalanlagegesellschaft mbH, em nome da DBI‑Fonds APT n.° 737, por P. Schultze e A. Feger, avocats,

–        em representação da SICAV KBC Select Immo, por V. Louvel e S. Defert, avocats,

–        em representação da SGSS Deutschland Kapitalanlagegesellschaft mbH, por A. Lagarrigue e B. Hardeck, avocats,

–        em representação da SICAV GA Fund B, por P. Le Roux e L. Bogey, avocats,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues e J.‑S. Pilczer, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por C. Soulay e W. Roels, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação dos artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE.

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (OICVM) não residentes às autoridades fiscais francesas, a propósito da uma retenção na fonte efetuada sobre os dividendos de origem nacional distribuídos aos referidos OICVM.

 Quadro jurídico nacional

3        Em direito francês, os OICVM agrupam as sociedades de investimento de capital variável (SICAV) e os fundos comuns de investimento (FCI). Por força do artigo 208.°, 1° bis A, do Código Geral dos Impostos (code général des impôts, a seguir «CGI»), as SICAV estão isentas do imposto sobre as sociedades em relação aos lucros realizados no âmbito do seu objeto legal. Quanto aos FCI, a sua qualidade de copropriedade coloca‑os de pleno direito fora do âmbito de aplicação do imposto sobre as sociedades.

4        O artigo 119.° bis, n.° 2, do CGI dispõe:

«Os [dividendos] dão lugar à aplicação de uma retenção na fonte cuja taxa é fixada pelo artigo 187.° quando sejam obtidos por pessoas que não têm o seu domicílio fiscal ou a sua sede em França […]»

5        Nos termos do artigo 187.° do CGI:

«1.      A taxa de retenção na fonte prevista no artigo 119.° bis é fixada:

[…]

–      em 25% para todos os outros rendimentos.»

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

6        Os recorrentes nos processos principais são OICVM belgas (processos C‑342/11 e C‑346/11), alemães (processos C‑340/11, C‑341/11, C‑343/11 e C‑347/11), espanhóis (processos C‑338/11 e C‑339/11) e dos Estados Unidos (processos C‑344/11 e C‑345/11), que investem designadamente em ações de sociedades francesas e recebem a esse título dividendos. Estes dividendos estão, em aplicação dos artigos 119.° bis, n.° 2, e 187.°, n.° 1, do CGI, sujeitos a uma retenção na fonte em França à taxa de 25%.

7        O órgão jurisdicional de reenvio considera que a regulamentação nacional em causa nos processos principais introduz uma diferença de tratamento fiscal em detrimento dos OICVM não residentes, na medida em que os dividendos de origem francesa que estes organismos recebem estão sujeitos a uma retenção na fonte, ao passo que os dividendos da mesma origem pagos a OICVM residentes não são sujeitos a uma tal retenção. Esta diferença de tratamento constitui, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, uma restrição à liberdade de circulação de capitais na aceção do artigo 63.° TFUE, que só pode ser admitida, atendendo ao artigo 65.° TFUE, se a diferença de tratamento disser respeito a situações não objetivamente comparáveis ou se a restrição se justificar por uma razão imperiosa de interesse geral. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, para efeitos de apreciar a comparabilidade das situações, a questão de saber se a situação dos detentores de participações deve ser tida em conta, juntamente com a dos OICVM, é essencial.

8        O órgão jurisdicional de reenvio explica que, se fosse apenas tida em conta a situação dos OICVM, dever‑se‑ia constatar que estes, quer sejam residentes em França quer sejam residentes noutro Estado‑Membro, se encontram numa situação objetivamente comparável. Nesta hipótese, a diferença de tratamento também não poderia ser considerada justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.

9        Em contrapartida, na hipótese de, tendo em conta, por um lado, o objetivo exclusivo dos OICVM, que é o de assegurar, como simples intermediários, não necessariamente dotados de personalidade jurídica, investimentos por conta de investidores, e, por outro, a tributação efetiva dos dividendos que, seja diretamente por força do regime fiscal dos OICVM residentes seja indiretamente em virtude da retenção na fonte aplicada aos OICVM não residentes, onera os detentores de participações, independentemente de serem ou não residentes, se dever tomar em consideração não apenas a situação dos OICVM mas também a dos seus detentores de participações, a conformidade da retenção na fonte com o princípio da livre circulação de capitais poderia ser admitida em todos os casos em que as situações não pudessem, atendendo ao regime fiscal aplicável no seu conjunto, ser consideradas como sendo objetivamente comparáveis ou em que uma razão imperiosa de interesse geral relativa à eficácia dos controlos fiscais justificasse a diferença de tratamento.

10      Nestas condições, o tribunal administratif de Montreuil decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A situação dos detentores de participações deve ser tida em conta juntamente com a situação dos OICVM?

2)      Em tal hipótese, que requisitos devem estar preenchidos para que se possa considerar que a retenção na fonte controvertida está em conformidade com o princípio da livre circulação de capitais?»

11      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 4 de agosto de 2011, os processos C‑338/11 a C‑347/11 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão.

 Quanto às questões prejudiciais

12      A título liminar, importa precisar que, mesmo se os artigos 119.° bis, n.° 2, e 187.° do CGI se aplicam, de modo geral, às pessoas que não têm o seu domicílio fiscal ou a sua residência em França, as questões submetidas referem‑se unicamente ao tratamento fiscal dos OICVM resultante da aplicação das referidas disposições.

13      Com a suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional, como a que está em causa nos processos principais, que sujeita os dividendos de origem nacional distribuídos a OICVM a um tratamento fiscal diferente em função do lugar de residência do organismo beneficiário. Em particular, pretende saber se, tratando‑se da tributação dos dividendos distribuídos por sociedades residentes a OICVM não residentes, a comparação de situações a fim de determinar se existe uma diferença de tratamento constitutiva de um entrave em relação à livre circulação de capitais deve ser efetuada apenas ao nível do veículo de investimento ou deve igualmente ter em conta a situação dos detentores de participações.

14      A este respeito, importa recordar, antes de mais, que, de acordo com jurisprudência assente, embora a fiscalidade direta seja da competência dos Estados‑Membros, estes devem, todavia, exercer essa competência no respeito do direito da União (acórdãos de 4 de março de 2004, Comissão/França, C‑334/02, Colet., p. I‑2229, n.° 21; de 20 de janeiro de 2011, Comissão/Grécia, C‑155/09, Colet., p. I‑65, n.° 39; e de 16 de junho de 2011, Comissão/Áustria, C‑10/10, Colet., p. I‑5389, n.° 23).

15      Resulta igualmente de jurisprudência assente que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são de molde a dissuadir os não residentes de investirem num Estado‑Membro ou a dissuadir os residentes desse Estado‑Membro de investirem noutros Estados (acórdãos de 25 de janeiro de 2007, Festersen, C‑370/05, Colet., p. I‑1129, n.° 24; de 18 de dezembro de 2007, A, C‑101/05, Colet., p. I‑11531, n.° 40; e de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, C‑436/08 e C‑437/08, Colet., p. I‑305, n.° 50).

16      Quanto à questão de saber se uma regulamentação de um Estado‑Membro como a que está em causa nos processos principais constitui uma restrição aos movimentos de capitais, deve recordar‑se que, por força desta regulamentação, os dividendos distribuídos por uma sociedade residente a um OICVM não residente, quer este tenha sede num outro Estado‑Membro quer num Estado terceiro, são tributados à taxa de 25%, por aplicação de uma retenção na fonte, enquanto tais dividendos não são tributados quando são pagos a um OICVM residente.

17      Uma tal diferença de tratamento fiscal entre OICVM em função do seu lugar de residência é suscetível de dissuadir, por um lado, os OICVM não residentes de procederem a investimentos em sociedades com sede em França e, por outro, os investidores que residem em França de adquirirem participações em OICVM não residentes.

18      Por conseguinte, a referida regulamentação constitui uma restrição à livre circulação de capitais, a qual é, em princípio, proibida pelo artigo 63.° TFUE.

19      Todavia, cumpre examinar se essa restrição pode ser justificada à luz das disposições do Tratado FUE.

20      Para esse efeito, importa recordar que, em conformidade com o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, «[o] artigo 63.° [TFUE] não prejudica o direito de os Estados‑Membros […] aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido».

21      Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, deve ser objeto de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes, em função do lugar onde residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais, é automaticamente compatível com o Tratado (v. acórdãos de 11 de setembro de 2008, Eckelkamp e o., C‑11/07, Colet., p. I‑6845, n.° 57; de 22 de abril de 2010, Mattner, C‑510/08, Colet., p. I‑3553, n.° 32; e Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, já referido, n.° 56).

22      Com efeito, a própria derrogação prevista na referida disposição é limitada pelo disposto no artigo 65.°, n.° 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.° 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.°».

23      Assim, as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE devem ser distinguidas das discriminações proibidas pelo n.° 3 desse mesmo artigo. Ora, resulta da jurisprudência que, para que uma regulamentação fiscal nacional como a que está em causa nos processos principais possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento diga respeito a situações não comparáveis objetivamente ou se justifique por razões imperiosas de interesse geral (v. acórdãos de 6 de junho de 2000, Verkooijen, C‑35/98, Colet., p. I‑4071, n.° 43; de 7 de setembro de 2004, Manninen, C‑319/02, Colet., p. I‑7477, n.° 29; e de 1 de dezembro de 2011, Comissão/Bélgica, C‑250/08, Colet., p. I‑12341, n.° 51).

24      Para efeitos de apreciar a comparabilidade das situações, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se a situação dos detentores de participações deve ser tida em conta juntamente com a dos OICVM.

25      O Governo francês insiste, a este respeito, no facto de os OICVM não serem investidores em seu próprio nome, mas veículos de investimento coletivo que agem por conta dos seus detentores de participações. Na medida em que, no plano fiscal, a interposição do OICVM é neutra, os dividendos que estes recebem não são tributados. Por conseguinte, importaria igualmente ter em conta a situação dos detentores de participações para efeitos de determinar se a diferença de tratamento reservada aos dividendos pagos aos OICVM não residentes, em relação ao tratamento reservado aos dividendos pagos aos OICVM residentes, diz respeito a situações que não são objetivamente comparáveis.

26      Esta argumentação não pode, porém, ser acolhida.

27      Na verdade, compete a cada Estado‑Membro organizar, com observância do direito da União, o seu sistema de tributação dos lucros distribuídos. Todavia, a partir do momento em que uma regulamentação fiscal nacional estabelece um critério de distinção para a tributação dos lucros distribuídos, a apreciação da comparabilidade das situações deve ser efetuada tendo em conta o referido critério (v., neste sentido, acórdãos de 14 de dezembro de 2006, Denkavit Internationaal e Denkavit France, C‑170/05, Colet., p. I‑11949, n.os 34 e 35; de 18 de junho de 2009, Aberdeen Property Fininvest Alpha, C‑303/07, Colet., p. I‑5145, n.os 51 a 54; de 19 de novembro de 2009, Comissão/Itália, C‑540/07, Colet., p. I‑10983, n.° 43; e de 20 de outubro de 2011, Comissão/Alemanha, C‑284/09, Colet., p. I‑9879, n.° 60).

28      Além disso, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela regulamentação em causa devem ser tidos em conta para efeitos de apreciar se a diferença de tratamento resultante de tal regulamentação reflete uma diferença de situações objetiva. Portanto, quando um Estado‑Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos OICVM beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do caráter discriminatório ou não da referida regulamentação.

29      Quanto à regulamentação fiscal em causa nos processos principais, importa constatar que estabelece um critério de distinção fundado no lugar de residência do OICVM ao submeter apenas os OICVM não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.

30      Acresce que a ligação evocada pelo Governo francês entre a não tributação dos referidos dividendos recebidos pelos OICVM residentes e a tributação dos referidos dividendos aos detentores de participações destes últimos não existe. Com efeito, a isenção fiscal de que beneficiam os OICVM residentes não está subordinada à tributação dos rendimentos distribuídos aos seus detentores de participações.

31      Importa assinalar para este efeito que, tratando‑se dos OICVM que procedem à capitalização dos dividendos recebidos, não se produzirá nenhuma redistribuição dos dividendos suscetível de ulterior tributação a cargo dos detentores de participações. A regulamentação nacional em causa nos processos principais não estabelece assim nenhuma ligação entre o tratamento fiscal dos dividendos de origem nacional recebidos pelos OICVM de capitalização — sejam estes residentes ou não residentes — e a situação fiscal dos seus detentores de participações.

32      Quanto aos OICVM que procedem à distribuição dos dividendos recebidos, a regulamentação em causa também não tem em conta a situação fiscal dos seus detentores de participações.

33      A este respeito, cumpre observar que a argumentação do Governo francês se baseou na premissa segundo a qual os detentores de participações dos OICVM residentes têm eles próprios a sua residência fiscal em França, ao passo que os detentores de participações dos OICVM não residentes têm a sua residência fiscal no Estado em que o OICVM em causa está sedeado. As convenções bilaterais de prevenção da dupla tributação celebradas entre a República Francesa e o Estado‑Membro ou o Estado terceiro em causa garantiriam assim, segundo o Governo francês, um tratamento fiscal similar aos detentores de participações dos OICVM residentes e não residentes.

34      No entanto, pela generalização que contém, tal premissa é inexata. Com efeito, não é inabitual que um detentor de participações de um OICVM não residente em França tenha a sua residência fiscal em França ou que um detentor de participações de um OICVM residente em França tenha a sua residência fiscal noutro Estado‑Membro ou num Estado terceiro.

35      Ora, decorre da regulamentação em causa nos processos principais que os dividendos de origem nacional pagos a um OICVM de distribuição residente serão isentados de imposto mesmo no caso de a República Francesa não exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos redistribuídos por um tal OICVM, designadamente quando são pagos a detentores de participações com residência fiscal noutro Estado‑Membro ou num Estado terceiro.

36      Além disso, os dividendos de origem nacional pagos aos OICVM de distribuição não residentes são tributados a uma taxa de 25% independentemente da situação fiscal dos seus detentores de participações.

37      Quanto aos detentores de participações não residentes de tais OICVM, embora certas convenções bilaterais de prevenção da dupla tributação celebradas entre a República Francesa e o Estado‑Membro ou o Estado terceiro em causa prevejam que o Estado de residência destes detentores de participações tomem em consideração a retenção na fonte efetuada em França, não se pode deduzir daí que a regulamentação em causa nos processos principais tenha em conta a situação fiscal dos referidos detentores de participações. É, pelo contrário, o Estado de residência dos detentores de participações que terá em conta, por força destas convenções, o tratamento fiscal dos dividendos em França ao nível dos OICVM.

38      Ainda que exista, como sustenta o Governo francês, relativamente a um detentor de participações, residente em França, de um OICVM não residente, uma prática administrativa que lhe permite, em certos casos, obter um crédito de imposto pela retenção na fonte operada ao nível de um OICVM não residente, não deixa de ser verdade que a regulamentação em causa nos processos principais prevê a tributação dos dividendos de origem nacional distribuídos aos OICVM não residentes a uma taxa de 25% apenas em razão do lugar de residência destes últimos e, portanto, independentemente da situação fiscal dos detentores de participações dos referidos OICVM.

39      Em relação ao critério de distinção estabelecido por esta regulamentação, fundado unicamente no lugar de residência do OICVM, a apreciação da comparabilidade das situações para fins de determinar o caráter discriminatório ou não da referida regulamentação deve ser realizada apenas ao nível do veículo de investimento.

40      Esta conclusão não é posta em causa pelo facto de, no seu acórdão de 20 de maio de 2008, Orange European Smallcap Fund (C‑194/06, Colet., p. I‑3747), a respeito do regime fiscal neerlandês dos OICVM, o Tribunal de Justiça ter tomado em consideração o regime de tributação aplicável às pessoas singulares detentoras de participações para fins de apreciar a compatibilidade de um regime fiscal, como o que está em causa no referido processo, com a livre circulação de capitais. Com efeito, o referido regime fiscal, e contrariamente ao em causa nos processos principais, sujeitava a isenção fiscal dos OICVM à condição de que a integralidade dos lucros destes organismos seria distribuída aos seus detentores de participações e isto para efeitos de aproximar a carga fiscal sobre o rendimento dos investimentos que transitam por esses organismos da que incide sobre os investimentos realizados diretamente pelos particulares (acórdão Orange European Smallcap Fund, já referido, n.os 8, 33 e 60). Neste último processo, o legislador nacional tomou, portanto, em consideração a situação fiscal dos detentores de participações como critério de distinção do tratamento fiscal aplicável.

41      Em contrapartida, nos processos principais, o critério de distinção do tratamento fiscal aplicável, estabelecido pela regulamentação nacional em causa, não é a situação fiscal do detentor de participações, mas apenas o estatuto do OICVM, consoante este seja ou não residente.

42      Em seguida, como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, em relação a uma regulamentação nacional, como a que está em causa nos processos principais, que pretende evitar a tributação em cadeia dos dividendos distribuídos pelas sociedades residentes, a situação de um OICVM beneficiário residente é comparável à situação de um OICVM beneficiário não residente (v. acórdãos, já referidos, Aberdeen Property Fininvest Alpha, n.os 43 e 44, e Comissão/Alemanha, n.° 58).

43      O argumento do Governo francês relativo ao acórdão de 22 de dezembro de 2008, Truck Center (C‑282/07, Colet., p. I‑10767, n.° 47), segundo o qual a diferença de tratamento dos OICVM residentes e dos OICVM não residentes reflete apenas a diferença das situações nas quais se encontram os referidos organismos no que diz respeito à cobrança do imposto, deve ser rejeitado. A este respeito, importa recordar que, no processo que deu origem ao acórdão Truck Center, já referido, a regulamentação nacional em causa previa a tributação simultaneamente das sociedades beneficiárias residentes e das sociedades beneficiárias não residentes em certos rendimentos de origem nacional. A referida regulamentação previa unicamente modalidades de cobrança do imposto diferentes em função do local da sede da sociedade beneficiária, que eram justificadas em razão de uma diferença de situação objetiva na qual se encontravam as sociedades residentes e as sociedades não residentes. No entanto, nos processos principais, a regulamentação em causa não se limita a prever modalidades de cobrança do imposto diferentes em função do local de residência do beneficiário dos dividendos de origem nacional. Ao invés, prevê uma tributação dos referidos dividendos apenas aos OICVM não residentes.

44      Portanto, a diferença de tratamento entre os OICVM residentes, que beneficiam de uma isenção fiscal no que respeita aos dividendos de origem nacional que recebem, e os OICVM não residentes, que sofrem uma retenção na fonte sobre tais dividendos, não pode ser justificada por uma diferença de situação pertinente.

45      Importa ainda examinar se a restrição resultante de uma regulamentação nacional, como a que está em causa nos processos principais, se justifica por razões imperiosas de interesse geral (v. acórdão de 11 de outubro de 2007, ELISA, C‑451/05, Colet., p. I‑8251, n.° 79; Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, já referido, n.° 63; e Comissão/Bélgica, já referido, n.° 68).

46      Diferentes razões de justificação foram invocadas perante o Tribunal de Justiça pelo Governo francês, designadamente a necessidade de salvaguardar a repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados‑Membros, a necessidade de garantir a eficácia dos controlos fiscais e a preservação da coerência do regime fiscal em causa nos processos principais. Em particular, quanto às razões de justificação das restrições dos movimentos de capitais em relação a Estados terceiros, o Governo francês apoia‑se, por um lado, na tese de que, nesse contexto particular, as regras em causa são necessárias para garantir a eficácia dos controlos fiscais e, por outro, no artigo 64.°, n.° 1, TFUE.

47      Importa recordar que a necessidade de salvaguardar a repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados‑Membros pode ser aceite, designadamente, quando o regime em causa tenha por objetivo evitar comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades exercidas no seu território (v. acórdãos de 18 de julho de 2007, Oy AA, C‑231/05, Colet., p. I‑6373, n.° 54; de 8 de novembro de 2007, Amurta, C‑379/05, Colet., p. I‑9569, n.° 58; Aberdeen Property Fininvest Alpha, já referido, n.° 66; e Comissão/Alemanha, já referido, n.° 77).

48      No entanto, quando um Estado‑Membro tenha optado por não tributar os OICVM residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OICVM não residentes beneficiários de tais rendimentos (v. acórdãos, já referidos, Amurta, n.° 59; Aberdeen Property Fininvest Alpha, n.° 67; e Comissão/Alemanha, n.° 78).

49      A regulamentação nacional em causa nos processos principais também não pode ser justificada pela necessidade de garantir a eficácia dos controlos fiscais. Com efeito, como assinala, de resto, o órgão jurisdicional de reenvio, a eficácia dos controlos fiscais não pode justificar um imposto que incide única e especificamente sobre os não residentes.

50      Quanto ao argumento relativo à preservação da coerência do regime fiscal francês, há que recordar que o Tribunal de Justiça já decidiu que a necessidade de preservar tal coerência pode justificar uma legislação suscetível de restringir as liberdades fundamentais (v. acórdãos de 28 de janeiro de 1992, Bachmann, C‑204/90, Colet., p. I‑249, n.° 21; de 23 de outubro de 2008, Krankenheim Ruhesitz am Wannsee‑Seniorenheimstatt, C‑157/07, Colet., p. I‑8061, n.° 43; e Comissão/Bélgica, já referido, n.° 70).

51      No entanto, para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, exige‑se, segundo a jurisprudência assente, que esteja demonstrada a existência um nexo direto entre a vantagem fiscal em causa e a compensação dessa vantagem pela liquidação de um determinado imposto (acórdão Comissão/Bélgica, já referido, n.° 71 e jurisprudência referida), devendo o caráter direto deste nexo ser apreciado à luz do objetivo da regulamentação em causa (acórdãos de 27 de novembro de 2008, Papillon, C‑418/07, Colet., p. I‑8947, n.° 44, e Aberdeen Property Fininvest Alpha, já referido, n.° 72).

52      Ora, como resulta do n.° 30 do presente acórdão, a isenção da retenção na fonte dos dividendos não está submetida à condição de que os dividendos recebidos pelo OICVM em causa sejam redistribuídos por este e que a sua tributação aos detentores de participações do referido OICVM permita compensar a isenção da retenção na fonte.

53      Consequentemente, não existe nexo direto, na aceção da jurisprudência referida no n.° 51 do presente acórdão, entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional recebidos por um OICVM residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações do dito OICVM.

54      Por último, tratando‑se, em particular, das razões de justificação das restrições dos movimentos de capitais em relação a Estados terceiros, cumpre assinalar, por um lado, que o Governo francês se limitou a sustentar que, no âmbito de tais movimentos e na falta de convenções fiscais que prevejam uma assistência administrativa mútua, as restrições controvertidas devem ser justificadas pela necessidade de garantir a eficácia dos controlos fiscais. Na verdade, constitui jurisprudência que estes movimentos de capitais se inscrevem num contexto jurídico diferente do das relações entre Estados‑Membros (acórdão A, já referido, n.° 60). Ora, basta assinalar, a este respeito, que o Governo francês não apresentou elementos que demonstrem as razões pelas quais a eficácia dos controlos fiscais deveria justificar um imposto que incide única e especificamente sobre os OICVM não residentes. Por outro lado, na medida em que os pedidos de decisão prejudicial não visam uma interpretação do artigo 64.°, n.° 1, TFUE, não há que examinar se a restrição aos movimentos de capitais com destino ou provenientes de Estados terceiros que resulta de uma regulamentação nacional, como a que está em causa nos processos principais, poderia ser justificada ao abrigo desta disposição.

55      Atendendo a estas considerações, há que responder às questões submetidas que os artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação de um Estado‑Membro que prevê a tributação, através de uma retenção na fonte, dos dividendos de origem nacional quando são recebidos por OICVM residentes noutro Estado, ao passo que tais dividendos são isentos do imposto a cargo dos OICVM residentes no primeiro Estado.

 Quanto aos efeitos do presente acórdão no tempo

56      Nas suas observações orais, o Governo francês solicitou ao Tribunal de Justiça que limitasse os efeitos do presente acórdão no tempo, caso conclua que uma regulamentação nacional como a que está em causa nos processos principais é incompatível com os artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE.

57      Em apoio do seu pedido, o referido governo, por um lado, chamou a atenção do Tribunal de Justiça para as graves consequências financeiras que resultariam de um acórdão em que se formulasse semelhante conclusão. Por outro lado, alegou que, atendendo ao comportamento da Comissão Europeia e dos outros Estados‑Membros, a República Francesa podia considerar que a regulamentação em causa nos processos principais era conforme com o direito da União.

58      A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, a interpretação que o Tribunal de Justiça faz de uma norma de direito da União, no exercício da competência que lhe confere o artigo 267.° TFUE, esclarece e precisa o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido cumprida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Daqui se conclui que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz mesmo às relações jurídicas surgidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que decida o pedido de interpretação, se também se encontrarem reunidas as condições que permitam submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida norma (v., designadamente, acórdãos de 3 de outubro de 2002, Barreira Pérez, C‑347/00, Colet., p. I‑8191, n.° 44; de 17 de fevereiro de 2005, Linneweber e Akritidis, C‑453/02 e C‑462/02, Colet., p. I‑1131, n.° 41; e de 6 de março de 2007, Meilicke e o., C‑292/04, Colet., p. I‑1835, n.° 34).

59      Só a título excecional é que o Tribunal de Justiça pode, em aplicação do princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica da União, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição por si interpretada para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa fé. Para que se possa decidir por esta limitação, é necessário que se encontrem preenchidos dois critérios essenciais, ou seja, a boa fé dos meios interessados e o risco de perturbações graves (v., designadamente, acórdãos de 10 de janeiro de 2006, Skov e Bilka, C‑402/03, Colet., p. I‑199, n.° 51, e de 3 de junho de 2010, Kalinchev, C‑2/09, Colet., p. I‑4939, n.° 50).

60      Mais especificamente, o Tribunal de Justiça só recorreu a esta solução em circunstâncias bem precisas, nomeadamente quando existia um risco de repercussões económicas graves devidas em especial ao grande número de relações jurídicas constituídas de boa fé com base na regulamentação que se considerou estar validamente em vigor e quando se verificava que os particulares e as autoridades nacionais tinham sido levados a um comportamento não conforme com o direito da União em virtude de uma incerteza objetiva e importante quanto ao alcance das disposições do direito da União, incerteza para a qual tinham eventualmente contribuído os próprios comportamentos adotados por outros Estados‑Membros ou pela Comissão (v., designadamente, acórdão de 27 de abril de 2006, Richards, C‑423/04, Colet., p. I‑3585, n.° 42, e acórdão Kalinchev, já referido, n.° 51).

61      No que respeita ao argumento do Governo francês relativo à incerteza objetiva e importante quanto ao alcance das disposições do direito da União, o referido governo não precisou em que é que o comportamento adotado pela Comissão e outros Estados‑Membros contribuiu para uma tal incerteza. Em qualquer caso, não se pode considerar que, nos processos principais, se verifique uma incerteza objetiva e importante quanto ao alcance das disposições do direito da União. Com efeito, resulta da jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, referida no n.° 27 do presente acórdão, que, para efeitos de determinar a compatibilidade de uma regulamentação, como a que está em causa nos processos principais, com os artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE, a apreciação da comparabilidade das situações deve ser efetuada ao nível escolhido pelo próprio Estado‑Membro, no caso em apreço, o dos OICVM. Além disso, como observa o órgão jurisdicional de reenvio, a apreciação da compatibilidade com os artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE de uma regulamentação, como a que está em causa nos processos principais, não coloca nenhum problema particular, se a comparação das situações deve ser efetuada ao nível dos OICVM.

62      Quanto à referência do Governo francês às implicações orçamentais consideráveis do presente acórdão do Tribunal de Justiça, importa recordar que é jurisprudência assente que as consequências financeiras que poderiam decorrer, para um Estado‑Membro, de um acórdão proferido a título prejudicial não justificam, em si mesmas, a limitação dos efeitos desse acórdão no tempo (acórdãos de 20 de setembro de 2001, Grzelczyk, C‑184/99, Colet., p. I‑6193, n.° 52; de 15 de março de 2005, Bidar, C‑209/03, Colet., p. I‑2119, n.° 68; e acórdão Kalinchev, já referido, n.° 52). Ora, no caso em apreço, a República Francesa, que só por ocasião da audiência solicitou a limitação dos efeitos do presente acórdão no tempo, não apresentou, nessa audiência, dados que permitissem ao Tribunal de Justiça apreciar se a República Francesa corre efetivamente o risco de sofrer repercussões económicas graves.

63      Resulta destas considerações que não há que limitar no tempo os efeitos do presente acórdão.

 Quanto às despesas

64      Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

Os artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação de um Estado‑Membro que prevê a tributação, através de uma retenção na fonte, dos dividendos de origem nacional quando são recebidos por organismos de investimento coletivo em valores mobiliários residentes noutro Estado, ao passo que tais dividendos são isentos do imposto a cargo dos organismos de investimento coletivo em valores mobiliários residentes no primeiro Estado.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.