Language of document : ECLI:EU:C:2013:358

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

30 de maio de 2013 (*)

«Cooperação policial e judiciária em matéria penal ― Decisão‑Quadro 2002/584/JAI ― Artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c) ― Mandado de detenção europeu e procedimentos de entrega entre Estados‑Membros ― Regra da especialidade ― Pedido de ampliação do mandado de detenção europeu que motivou a entrega ou pedido de entrega posterior a outro Estado‑Membro ― Decisão da autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução que dá o consentimento ― Recurso suspensivo ― Admissibilidade»

No processo C‑168/13 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Conseil constitutionnel (França), por decisão de 4 de abril de 2013, entrado no Tribunal de Justiça em 9 de abril de 2013, no processo

Jeremy F.

contra

Premier ministre,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: R. Silva de Lapuerta (relatora), presidente de secção, G. Arestis, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev e J. L. da Cruz Vilaça, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: V. Tourrès, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 7 de maio de 2013,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação de J. F., por C. Waquet, avocate,

¾        em representação do Governo francês, por E. Belliard, B. Beaupère‑Manokha e G. de Bergues, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo alemão, por J. Kemper e T. Henze, na qualidade de agentes,

¾        em representação da Irlanda, por E. Regan, na qualidade de agente, 

¾        em representação do Governo neerlandês, por C. Schillemans, na qualidade de agente,

¾        em representação da Comissão Europeia, por W. Bogensberger e R. Troosters, na qualidade de agentes,

ouvido o advogado‑geral,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO L 81, p. 24, a seguir «decisão‑quadro»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de uma questão prioritária de constitucionalidade submetida pela Cour de cassation (França), no âmbito de um recurso interposto por J. F. do acórdão de 15 de janeiro de 2013 da chambre de l’instruction de la cour d’appel de Bordeaux (França), que deu consentimento a um pedido de ampliação de entrega, apresentado pelas autoridades judiciárias do Reino Unido, por uma infração cometida antes da entrega de J. F., diferente daquela que havia fundamentado o mandado de detenção europeu inicial contra ele emitido pela Crown court at Maidstone (Reino Unido).

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        Sob o título «Direito à liberdade e à segurança», o artigo 5.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), dispõe:

«1.      Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal:

[…]

f)      Se se tratar de prisão ou detenção legal de uma pessoa para lhe impedir a entrada ilegal no território ou contra a qual está em curso um processo de expulsão ou de extradição.

2.      Qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela.

[…]

4.      Qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.

[…]»

4        O artigo 13.° da CEDH, intitulado «Direito a um recurso efetivo», enuncia:

«Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso efetivo perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que atuem no exercício das suas funções oficiais.»

 Direito da União

5        Resulta da Informação sobre as declarações da República Francesa e da República da Hungria sobre a sua aceitação da jurisdição do Tribunal de Justiça para decidir, a título prejudicial, sobre os atos referidos no artigo 35.° do Tratado da União Europeia, publicada no Jornal Oficial da União Europeia de 14 de dezembro de 2005 (JO L 327, p. 19), que a República Francesa emitiu uma declaração ao abrigo do n.° 2 deste artigo, por meio da qual aceitou a jurisdição do Tribunal de Justiça para decidir segundo as modalidades previstas no artigo 35.°, n.° 3, alínea b), UE.

6        Em conformidade com o disposto no artigo 9.° do Protocolo (n.° 36) relativo às disposições transitórias, anexo ao Tratado FUE, os efeitos jurídicos dos atos das instituições, órgãos e organismos da União adotados com base no Tratado UE antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa são preservados enquanto esses atos não forem revogados, anulados ou alterados em aplicação dos Tratados. Em conformidade com o artigo 10.°, n.° 1, do mesmo protocolo, as competências do Tribunal de Justiça conferidas nos termos do título VI do Tratado UE, na sua versão anterior ao Tratado de Lisboa, permanecerão inalteradas no que diz respeito aos atos da União que tenham sido adotados antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, inclusivamente nos casos em que tenham sido aceites nos termos do n.° 2 do artigo 35.° UE.

7        Os considerandos 5, 7, 8, 10 e 12 da decisão‑quadro têm a seguinte redação:

«(5)      O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos atuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

[…]

(7)      Como o objetivo de substituir o sistema de extradição multilateral baseado na Convenção europeia de extradição de 13 de dezembro de 1957 não pode ser suficientemente realizado pelos Estados‑Membros agindo unilateralmente e pode, pois, devido à sua dimensão e aos seus efeitos, ser melhor alcançado ao nível da União, o Conselho pode adotar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade referido no artigo 2.° do Tratado da União Europeia e no artigo 5.° do Tratado que institui a Comunidade Europeia. Em conformidade com o princípio da proporcionalidade estabelecido neste último artigo, a presente decisão‑quadro não excede o necessário para atingir aquele objetivo.

(8)      As decisões sobre a execução do mandado de detenção europeu devem ser objeto de um controlo adequado, o que implica que deva ser a autoridade judiciária do Estado‑Membro onde a pessoa procurada foi detida a tomar a decisão sobre a sua entrega.

[…]

(10)      O mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.° 1 do artigo 6.° do Tratado da União Europeia, verificada pelo Conselho nos termos do n.° 1 do artigo 7.° do mesmo Tratado e com as consequências previstas no n.° 2 do mesmo artigo.

[…]

(12)      A presente decisão‑quadro respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.° do Tratado da União Europeia e consignados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [a seguir «Carta»], nomeadamente o seu capítulo VI. Nenhuma disposição da presente decisão‑quadro poderá ser interpretada como proibição de recusar a entrega de uma pessoa relativamente à qual foi emitido um mandado de detenção europeu quando existam elementos objetivos que confortem a convicção de que o mandado de detenção europeu é emitido para mover procedimento contra ou punir uma pessoa em virtude do sexo, da sua raça, da sua religião, da sua ascendência étnica, da sua nacionalidade, da sua língua, da sua opinião política ou da sua orientação sexual, ou de que a posição dessa pessoa possa ser lesada por alguns desses motivos.

A presente decisão‑quadro não impede que cada Estado‑Membro aplique as suas normas constitucionais respeitantes ao direito a um processo equitativo, à liberdade de associação, à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão noutros meios de comunicação social.»

8        O artigo 1.° da decisão‑quadro dispõe:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro [de uma] pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.° do Tratado da União Europeia.»

9        Os artigos 3.°, 4.°, 4.°‑A, 5.°, 8.° e 9.° da decisão‑quadro preveem, respetivamente, os motivos de não execução obrigatória e facultativa do mandado de detenção europeu, as garantias a fornecer pelo Estado‑Membro de emissão, quando o arguido não tenha estado presente e noutros casos específicos, bem como o conteúdo, a forma e a transmissão do mandado de detenção europeu. O artigo 6.° da decisão‑quadro determina quais são as autoridades judiciárias competentes para emitir e executar o mandado de detenção europeu.

10      Sob o título «Consentimento na entrega», o artigo 13.° da decisão‑quadro dispõe, nos seus n.os 1 e 4:

«1.      Se a pessoa detida declarar que consente na sua entrega, esse consentimento e, se for caso disso, a renúncia expressa ao benefício da ‘regra da especialidade’ a que se refere o n.° 2 do artigo 27.° devem ser declarados perante a autoridade judiciária de execução, em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro de execução.

[…]

4.      O consentimento é em princípio irrevogável. Cada Estado‑Membro pode prever que o consentimento e, eventualmente, a renúncia podem ser revogados, de acordo com as regras aplicáveis em direito nacional. Neste caso, o período compreendido entre a data do consentimento e a da sua revogação não é tido em conta para a determinação dos prazos previstos no artigo 17.° Os Estados‑Membros que desejarem recorrer a esta possibilidade devem informar do facto o Secretariado‑Geral do Conselho aquando da aprovação da presente decisão‑quadro e indicar as modalidades que permitem a revogação do consentimento, bem como qualquer alteração das mesmas.»

11      O artigo 15.° da decisão‑quadro, intitulado «Decisão sobre a entrega», tem a seguinte redação:

«1.      A autoridade judiciária de execução decide da entrega da pessoa nos prazos e nas condições definidos na presente decisão‑quadro.

2.      Se a autoridade judiciária de execução considerar que as informações comunicadas pelo Estado‑Membro de emissão são insuficientes para que possa decidir da entrega, solicita que lhe sejam comunicadas com urgência as informações complementares necessárias, em especial, em conexão com os artigos 3.° a 5.° e o artigo 8.°, podendo fixar um prazo para a sua receção, tendo em conta a necessidade de respeitar os prazos fixados no artigo 17.°

3.      A autoridade judiciária de emissão pode, a qualquer momento, transmitir todas as informações suplementares úteis à autoridade judiciária de execução.»

12      O artigo 17.° da decisão‑quadro, intitulado «Prazos e regras relativos à decisão de execução do mandado de detenção europeu», prevê:

«1.      Um mandado de detenção europeu deve ser tratado e executado com urgência.

2.      Nos casos em que a pessoa procurada consinta na sua entrega, a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 10 dias a contar da data do consentimento.

3.      Nos outros casos, a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 60 dias após a detenção da pessoa procurada.

4.      Em casos específicos, quando o mandado de detenção europeu não possa ser executado dentro dos prazos previstos nos n.os 2 ou 3, a autoridade judiciária de execução informa imediatamente a autoridade judiciária de emissão do facto e das respetivas razões. Neste caso, os prazos podem ser prorrogados por mais 30 dias.

5.      Enquanto não for tomada uma decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária de execução, [esta] deve zelar por que continuem a estar reunidas as condições materiais necessárias para uma entrega efetiva da pessoa.

6.      Qualquer recusa de execução de um mandado de detenção europeu deve ser fundamentada.

7.      Sempre que, em circunstâncias excecionais, um Estado‑Membro não possa observar os prazos fixados no presente artigo, deve informar a Eurojust do facto e das razões do atraso. Além disso, um Estado‑Membro que tenha sofrido, por parte de outro Estado‑Membro, atrasos repetidos na execução de mandados de detenção europeus deve informar o Conselho do facto, com vista à avaliação, a nível dos Estados‑Membros, da aplicação da presente decisão‑quadro.»

13      O artigo 20.° da decisão‑quadro, intitulado «Privilégios e imunidades», dispõe, no seu n.° 1:

«Quando a pessoa procurada beneficiar de um privilégio ou de uma imunidade de jurisdição ou de execução no Estado‑Membro de execução, os prazos a que se refere o artigo 17.° só começam a correr a partir do dia em que a autoridade judiciária de execução tiver sido informada de que tal privilégio ou imunidade foi levantado.

Quando a pessoa deixar de beneficiar de tal privilégio ou imunidade, o Estado‑Membro de execução deve zelar por que estejam reunidas as condições materiais necessárias a uma entrega efetiva.»

14      O artigo 21.° da decisão‑quadro, intitulado «Obrigações internacionais concorrentes», enuncia:

«A presente decisão‑quadro não prejudica as obrigações do Estado‑Membro de execução sempre que a pessoa procurada tenha sido extraditada para esse Estado‑Membro a partir de um Estado terceiro e esteja protegida por disposições em matéria de especialidade do acordo ao abrigo do qual foi extraditada. O Estado‑Membro de execução toma todas as medidas necessárias para solicitar imediatamente o consentimento do Estado de onde a pessoa procurada foi extraditada, por forma a que esta possa ser entregue ao Estado‑Membro de emissão. Os prazos a que se refere o artigo 17.° só começam a correr a partir da data em que essas regras de especialidade deixarem de se aplicar. Enquanto se aguardar a decisão do Estado de onde foi extraditada a pessoa procurada, o Estado‑Membro de execução deve zelar por que estejam reunidas as condições materiais necessárias a uma entrega efetiva.»

15      Sob o título «Eventuais procedimentos penais por outras infrações», o artigo 27.° da decisão‑quadro tem a seguinte redação:

«1.      Cada Estado‑Membro tem a faculdade de notificar ao Secretariado‑Geral do Conselho que, nas suas relações com os outros Estados‑Membros que tenham apresentado a mesma notificação, se presume dado o consentimento para a instauração de procedimento penal, a condenação ou a detenção, para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração praticada antes da sua entrega, diferente daquela por que foi entregue, salvo se, num caso específico, a autoridade judiciária de execução declarar o contrário na sua decisão de entrega.

2.      Exceto nos casos previstos nos n.os 1 e 3, uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

3.      O n.° 2 não se aplica nos seguintes casos:

[…]

g)      Quando a autoridade judiciária de execução que entregou a pessoa tenha dado o seu consentimento nos termos do n.° 4.

4.      O pedido de consentimento é apresentado à autoridade judiciária de execução, acompanhado das informações referidas no n.° 1 do artigo 8.° e de uma tradução conforme indicado no n.° 2 do artigo 8.° O consentimento deve ser dado sempre que a infração para a qual é solicitado dê ela própria lugar a entrega em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro. O consentimento deve ser recusado pelos motivos referidos no artigo 3.°, podendo ainda, a não ser assim, ser recusado apenas pelos motivos referidos no artigo 4.° A decisão deve ser tomada no prazo máximo de 30 dias a contar da data de receção do pedido.

Em relação às situações referidas no artigo 5.°, o Estado‑Membro de emissão deve dar as garantias aí previstas.»

16      Nos termos do artigo 28.° da decisão‑quadro, intitulado «Entrega ou extradição posterior»:

«1.      Cada Estado‑Membro tem a faculdade de notificar o Secretariado‑Geral do Conselho de que, nas suas relações com os outros Estados‑Membros que tenham apresentado a mesma notificação, se presume dado o consentimento para a entrega de uma pessoa a outro Estado‑Membro que não o Estado‑Membro de execução por força de um mandado de detenção europeu emitido por uma infração praticada antes da sua entrega, salvo se, num caso específico, a autoridade judiciária de execução declarar o contrário na sua decisão de entrega.

2.      Em qualquer caso, uma pessoa que tenha sido entregue ao Estado‑Membro de emissão por força de um mandado de detenção europeu pode, sem o consentimento do Estado‑Membro de execução, ser entregue a outro Estado‑Membro que não o Estado‑Membro de execução por força de um mandado de detenção europeu emitido por uma infração praticada antes da sua entrega, nos seguintes casos:

[…]

c)      Quando a pessoa procurada não beneficiar da regra da especialidade, nos termos das alíneas a), e), f) e g) do n.° 3 do artigo 27.°

3.      A autoridade judiciária de execução consente na entrega da pessoa interessada a outro Estado‑Membro de acordo com as seguintes regras:

a)      O pedido de consentimento é apresentado em conformidade com o artigo 9.°, acompanhado das informações referidas no n.° 1 do artigo 8.° e de uma tradução em conformidade com o n.° 2 do artigo 8.°;

b)      O consentimento deve ser dado sempre que a infração para a qual é solicitado dê ela própria lugar a entrega em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro;

c)      A decisão deve ser tomada no prazo máximo de 30 dias a contar da data de receção do pedido;

d)      O consentimento deve ser recusado pelos motivos referidos no artigo 3.°, podendo ainda, a não ser assim, ser recusado apenas pelos motivos referidos no artigo 4.°

Em relação às situações referidas no artigo 5.°, o Estado‑Membro de emissão deve dar as garantias aí previstas.

[…]»

17      O artigo 31.° da decisão‑quadro, intitulado «Relações com outros instrumentos jurídicos», enuncia, no segundo e terceiro parágrafos do seu n.° 2: 

«Os Estados‑Membros podem celebrar acordos ou convénios bilaterais ou multilaterais após a entrada em vigor da presente decisão‑quadro, na medida em que estes permitam aprofundar ou alargar o teor da mesma e contribuam para simplificar ou facilitar ainda mais os processos de entrega das pessoas sobre as quais recaia um mandado de detenção europeu, nomeadamente fixando prazos mais curtos do que os fixados no artigo 17.°, alargando a lista das infrações previstas no n.° 2 do artigo 2.°, limitando os motivos de recusa previstos nos artigos 3.° e 4.° ou reduzindo o limiar previsto no n.° 1 ou no n.° 2 do artigo 2.°

Os acordos e convénios a que se refere o segundo parágrafo não podem em caso algum afetar as relações com os Estados‑Membros que não sejam neles partes.»

 Direito francês

18      O artigo 695‑46 do Código de Processo Penal (code de procédure pénale), conforme alterado pela Lei n.° 2009‑526, de 12 de maio de 2009, de simplificação e de clarificação do direito e de simplificação dos processos (loi n° 2009‑526, du 12 mai 2009, de simplification et de clarification du droit et d’allègement des procédures; JORF de 13 de maio de 2009, p. 7920), visa transpor para o direito francês os artigos 27.° e 28.° da decisão‑quadro. Este artigo 695‑46 tem a seguinte redação:

«São submetidos à chambre de l’instruction perante a qual compareceu a pessoa procurada todos os pedidos emanados das autoridades competentes do Estado‑Membro de emissão a fim de obter o consentimento para instaurar procedimentos penais ou para executar uma pena ou uma medida de segurança que tenham sido decretadas relativamente a infrações diferentes daquelas que motivaram a entrega e que foram cometidas antes desta.

A chambre de l’instruction é igualmente competente para se pronunciar, após a entrega da pessoa procurada, sobre qualquer pedido das autoridades competentes do Estado‑Membro de emissão a fim de obter o consentimento para proceder à entrega da pessoa procurada a outro Estado‑Membro, para o exercício de procedimentos penais ou com vista à execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade que tenham origem num qualquer facto anterior à entrega e que seja diferente da infração que fundamentou essa medida.

Nos dois casos, é igualmente transmitida pelas autoridades competentes do Estado‑Membro de emissão e submetida à chambre de l’instruction uma ata que consigne as declarações feitas pela pessoa entregue. Sendo caso disso, estas declarações podem ser completadas pelas observações feitas por um advogado da sua escolha ou, caso tal escolha não tenha sido feita, por um advogado nomeado oficiosamente pelo bastonário da Ordem dos Advogados.

A chambre de l’instruction pronuncia‑se por meio de decisão irrecorrível, depois de ter verificado que o pedido contém igualmente as informações previstas no artigo 695‑13 e de, sendo caso disso, ter obtido garantias à luz das disposições do artigo 695‑32, no prazo de trinta dias contado a partir da data de receção do pedido.

O consentimento é dado quando os atos para os quais ele é requerido constituam uma das infrações referidas no artigo 695‑23 e entrem no âmbito de aplicação do artigo 695‑12.

O consentimento é recusado quando se verifique um dos motivos referidos nos artigos 695‑22 e 695‑23 e pode ser recusado quando se verifique um dos motivos mencionados no artigo 695‑24.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

19      Em 25 de setembro de 2012, a Crown court at Maidstone emitiu um mandado de detenção europeu contra o recorrente no processo principal, nacional do Reino Unido, no âmbito de um procedimento penal desencadeado contra este último por factos cometidos neste Estado‑Membro, que podem ser qualificados, no direito inglês, de rapto de criança, infração para a qual é prevista uma pena máxima de sete anos de prisão.

20      Interpelado em França, em 28 de setembro de 2012, o recorrente no processo principal declarou expressamente, no mesmo dia, ao procureur général près la cour d’appel de Bordeaux, que aceitava a sua entrega às autoridades judiciárias do Reino Unido, sem, no entanto, renunciar à regra da especialidade. Tal declaração foi reiterada por este recorrente, que foi assistido por um intérprete, na presença do seu advogado, na audiência que decorreu na chambre de l’instruction de la cour d’appel de Bordeaux.

21      Por acórdão de 4 de outubro de 2012, a chambre de l’instruction de la cour d’appel de Bordeaux ordenou a entrega do recorrente no processo principal às referidas autoridades judiciárias, para efeitos dos procedimentos penais acima referidos. Este foi entregue em 10 de outubro de 2012 e, desde então, está preso no Reino Unido.

22      Em 22 de outubro de 2012, o procureur général près la cour d’appel de Bordeaux recebeu um pedido das autoridades judiciárias do Reino Unido, a fim de obter o consentimento da chambre de l’instruction deste órgão jurisdicional, para efeitos do procedimento penal do recorrente no processo principal por factos cometidos no Reino Unido antes da sua entrega, que podem constituir uma infração diferente daquela que motivou essa entrega.

23      Segundo as referidas autoridades, aquando do regresso da jovem que foi objeto do pretenso rapto, esta terá declarado ter tido relações sexuais com o recorrente no processo principal, em diversas ocasiões, durante o período que decorreu entre 1 de julho e 20 de setembro de 2012. Na medida em que tais factos podem ser qualificados, no direito inglês, de crime de atividade sexual com menor de dezasseis anos, passível de uma pena máxima de catorze anos de prisão, estas autoridades judiciárias decidiram, assim, agir penalmente contra o recorrente no processo principal, por esta infração.

24      O pedido das autoridades judiciárias do Reino Unido foi concretizado em 16 de novembro de 2012, através de um mandado de detenção europeu que visava os crimes que estão na origem do novo procedimento penal.

25      Após a audiência de 18 de dezembro de 2012, a chambre de l’instruction de la cour d’appel de Bordeaux decidiu, por acórdão de 15 de janeiro de 2013, dar o seu consentimento ao pedido de ampliação da entrega com vista a desencadear novo procedimento penal, contra o recorrente no processo principal, assente em factos de atividade sexual com menor de dezasseis anos praticados durante o período acima referido.

26      Tendo o recorrente no processo principal interposto recurso do referido acórdão de 15 de janeiro de 2013 na Cour de cassation, esta submeteu ao Conseil constitutionnel uma questão prioritária de constitucionalidade relativa ao artigo 695‑46 do code de procédure pénale, no que se refere, nomeadamente, ao princípio da igualdade perante a justiça e ao direito a um recurso jurisdicional efetivo.

27      Foi neste contexto que o Conseil constitutionnel decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os artigos 27.° e 28.° da Decisão‑Quadro […] devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que os Estados‑Membros prevejam um recurso que suspenda a execução da decisão da autoridade judiciária que decide, num prazo de trinta dias a contar da receção do pedido, quer no sentido de dar o seu consentimento à instauração contra uma pessoa de um procedimento penal, à sua condenação ou à sua detenção com vista à execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração cometida antes da sua entrega em execução de um mandado de detenção europeu, diferente daquela que motivou a sua entrega, quer de entregar a pessoa a um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de execução, ao abrigo de um mandado de detenção europeu, emitido por uma infração cometida antes da sua entrega?»

 Quanto ao pedido de decisão prejudicial

 Quanto à tramitação urgente

28      Por pedido separado de 4 de abril de 2013, entrado na Secretaria do Tribunal de Justiça no mesmo dia, o Conseil constitutionnel pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação urgente prevista no artigo 23.°‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 107.° do Regulamento de Processo deste último.

29      O órgão jurisdicional de reenvio fundamentou o referido pedido, expondo que quer o prazo de três meses no qual tem de se pronunciar sobre a questão prioritária de constitucionalidade que lhe foi submetida quer a privação de liberdade de que o recorrente no processo principal é objeto no procedimento que está na origem dessa questão justificam a aplicação da tramitação prejudicial urgente.

30      A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que o presente reenvio prejudicial tem por objeto a interpretação da decisão‑quadro, que pertence ao domínio que figura na terceira parte do Tratado FUE, título V desta, relativo ao espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Deste modo, é suscetível de ser submetido a tramitação prejudicial urgente.

31      Em segundo lugar, importa constatar, como referido pelo órgão jurisdicional de reenvio, que o recorrente no processo principal se encontra atualmente privado de liberdade e que a solução do litígio no processo principal é suscetível de ter uma incidência não negligenciável na duração de tal privação.

32      À luz do que precede, a Segunda Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 10 de abril de 2013, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente.

 Quanto à questão prejudicial

33      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que os Estados‑Membros prevejam um recurso que suspenda a execução da decisão da autoridade judiciária que decide, no prazo de trinta dias a contar da receção do pedido, a fim de dar o seu consentimento quer à instauração de um procedimento penal contra uma pessoa, à sua condenação ou à sua detenção com vista à execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração cometida antes da sua entrega em execução de um mandado de detenção europeu, diferente daquela que motivou a sua entrega, quer à entrega de uma pessoa a um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de execução, por força de um mandado de detenção europeu emitido por uma infração cometida antes da sua entrega.

34      A título preliminar, há que recordar que a decisão‑quadro, como resulta em especial do seu artigo 1.°, n.os 1 e 2, bem como dos seus considerandos 5 e 7, tem por objetivo substituir o sistema de extradição multilateral entre Estados‑Membros por um sistema de entrega, entre autoridades judiciárias, das pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos da execução de sentenças ou de procedimentos penais, baseando‑se este último sistema no princípio do reconhecimento mútuo (v. acórdãos de 29 de janeiro de 2013, Radu, C‑396/11, n.° 33, e de 26 de fevereiro de 2013, Melloni, C‑399/11, n.° 36).

35      A referida decisão‑quadro pretende, assim, ao instituir um novo sistema simplificado e mais eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal, facilitar e acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, atribuído à União, de se tornar num espaço de liberdade, de segurança e de justiça, baseando‑se no elevado grau de confiança que deve existir entre os Estados‑Membros (acórdãos, já referidos, Radu, n.° 34, e Melloni, n.° 37).

36      O princípio do reconhecimento mútuo, que constitui a «pedra angular» da cooperação judiciária, implica, nos termos do artigo 1.°, n.° 2, da decisão‑quadro, que os Estados‑Membros estejam, em princípio, obrigados a dar seguimento a um mandado de detenção europeu. Com efeito, estes últimos ou estão obrigados a executar ou não podem recusar executar tal mandado, e só podem condicionar a sua execução nos casos enumerados nos artigos 3.° a 5.° desta decisão‑quadro. Do mesmo modo, segundo o artigo 28.°, n.° 3, desta, o consentimento a uma entrega posterior só pode ser recusado nesses mesmos casos (v. acórdão de 28 de junho de 2012, West, C‑192/12 PPU, n.° 55 e jurisprudência referida) e só os referidos casos podem justificar que seja recusado o consentimento à ampliação do mandado de detenção europeu a uma infração cometida antes da entrega da pessoa objeto do procedimento penal, diferente daquela que fundamentou essa entrega, em conformidade com o disposto no artigo 27.°, n.° 4, da decisão‑quadro.

 Quanto à possibilidade de interpor recurso suspensivo

37      No que respeita à possibilidade de interpor recurso suspensivo da decisão de execução do mandado de detenção europeu ou da decisão que dá o consentimento à ampliação deste último ou à entrega posterior, há que constatar que a decisão‑quadro não regulamenta expressamente tal possibilidade.

38      Contudo, tal inexistência de regulamentação expressa não significa que a decisão‑quadro impeça os Estados‑Membros de preverem esse recurso ou lhes imponha instituí‑lo.

39      Com efeito, em primeiro lugar, a própria decisão‑quadro permite assegurar que as decisões relativas ao mandado de detenção europeu gozem de todas as garantias que são específicas a este tipo de decisões.

40      Assim, para começar, o artigo 1.°, n.° 3, da decisão‑quadro recorda expressamente que esta não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais conforme consagrados pelo artigo 6.° do Tratado UE, obrigação que, por outro lado, vincula todos os Estados‑Membros, nomeadamente, tanto o Estado‑Membro de emissão como o de execução.

41      Em seguida, embora respondendo ao objetivo, recordado no n.° 35 do presente acórdão, de facilitar e acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, atribuído à União, de se tornar num espaço de liberdade, de segurança e de justiça, a própria decisão‑quadro, como precisado no primeiro parágrafo do seu considerando 12, respeita igualmente os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.° do Tratado UE e consignados na Carta, nomeadamente no seu capítulo VI, relativamente à pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu.

42      A este respeito, há que notar que, como sucede nos processos de extradição, no processo de entrega instituído pela decisão‑quadro, o direito a um recurso efetivo, enunciado no artigo 13.° da CEDH e no artigo 47.° da Carta, que está em causa no âmbito do litígio no processo principal, reveste especial importância.

43      Deste modo, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou, relativamente a detenções com vista a uma extradição, que o artigo 5.°, n.° 4, da CEDH constitui uma lex specialis face às exigências mais gerais do artigo 13.° desta (v., nomeadamente, TEDH, acórdão Chahal c. Reino Unido de 15 de novembro de 1996, Recueil des arrêts et décisions 1996‑V, § 126). A este respeito, declarou que, quando a decisão privativa de liberdade é proferida por um tribunal que se pronuncia no termo de um processo jurisdicional, a fiscalização pretendida pelo artigo 5.°, n.° 4, da CEDH está incorporada na decisão (v. TEDH, acórdão Khodzhamberdiyev c. Rússia de 5 de junho de 2012, § 103 e jurisprudência referida) e que, além disso, a disposição em causa não obriga os Estados contratantes a instaurarem um duplo grau de jurisdição para o exame da legalidade da detenção e o exame dos pedidos de ampliação (v. TEDH, acórdão Marturana c. Itália de 4 de março de 2008, § 110 e jurisprudência referida).

44      Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de constatar, no âmbito da interpretação da Diretiva 2005/85/CE do Conselho, de 1 de dezembro de 2005, relativa a normas mínimas aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos Estados‑Membros (JO L 326, p. 13; retificação no JO 2006, L 236, p. 36), que o princípio da proteção jurisdicional efetiva assegura ao particular um direito de acesso a um tribunal e não a vários graus de jurisdição (acórdão de 28 de julho de 2011, Samba Diouf, C‑69/10, Colet., p. I‑7151, n.° 69).

45      Ora, há que salientar que, conforme resulta do considerando 8 da decisão‑quadro, as decisões sobre a execução do mandado de detenção europeu devem ser objeto de um controlo adequado, o que implica que deve ser a autoridade judiciária do Estado‑Membro onde a pessoa procurada foi detida a tomar a decisão sobre a sua entrega. Por outro lado, o artigo 6.° da decisão‑quadro prevê que compete a uma autoridade judiciária tomar não apenas esta decisão mas também a decisão relativa à emissão de tal mandado. A intervenção de uma autoridade judiciária é ainda exigida quando esteja em causa o consentimento previsto nos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro, bem como no decurso de outras fases do processo de entrega, como a audição da pessoa procurada, a decisão de manutenção da pessoa em detenção ou a transferência temporária desta.

46      Deste modo, todo o processo de entrega entre Estados‑Membros, previsto na decisão‑quadro, é, em conformidade com esta, levado a cabo sob fiscalização judiciária.

47      Daqui resulta que as próprias disposições da decisão‑quadro já preveem um processo conforme com as exigências do artigo 47.° da Carta, independentemente das modalidades de implementação da decisão‑quadro escolhidas pelos Estados‑Membros.

48      Por último, há que referir que, mesmo no âmbito do procedimento penal ou do processo de execução da pena ou da medida de segurança privativas de liberdade, ou ainda no âmbito do procedimento penal de mérito, que não são abrangidos pelo âmbito de aplicação da decisão‑quadro e do direito da União, os Estados‑Membros continuam a estar submetidos à obrigação de respeitar os direitos fundamentais conforme consagrados na CEDH ou no seu direito nacional, incluindo, se for caso disso, ao direito a um duplo grau de jurisdição das pessoas que um tribunal tenha declarado culpadas de terem cometido uma infração penal.

49      Tal obrigação reforça, precisamente, o elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros e o princípio do reconhecimento mútuo, no qual se baseia o mecanismo do mandado de detenção europeu, e justifica os termos do considerando 10 da decisão‑quadro, segundo os quais a execução do mandado de detenção europeu só poderá ser suspensa em caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.° 1 do artigo 6.° UE, constatada pelo Conselho nos termos do n.° 1 do artigo 7.° UE e com as consequências previstas no n.° 2 deste último artigo.

50      Com efeito, o próprio princípio do reconhecimento mútuo, no qual se baseia o sistema do mandado de detenção europeu, assenta na confiança recíproca, entre os Estados‑Membros, em que as respetivas ordens jurídicas nacionais estão em condições de fornecer uma proteção equivalente e efetiva dos direitos fundamentais, reconhecidos ao nível da União, em particular, na Carta, pelo que é assim na ordem jurídica do Estado‑Membro de emissão que as pessoas que são objeto de um mandado de detenção europeu poderão explorar as eventuais vias de recurso que permitem contestar a legalidade do procedimento penal ou do processo de execução da pena ou da medida de segurança privativas de liberdade, ou ainda do procedimento penal de mérito que conduziu a essa pena ou a essa medida (v., por analogia, acórdão de 22 de dezembro de 2010, Aguirre Zarraga, C‑491/10 PPU, Colet., p. I‑14247, n.os 70 e 71).

51      Em segundo lugar, há contudo que constatar que, independentemente das garantias expressamente previstas na decisão‑quadro, a inexistência de regulamentação nesta última sobre um eventual direito de recurso suspensivo das decisões relativas ao mandado de detenção europeu não impede os Estados‑Membros de preverem esse direito.

52      Com efeito, na falta de maiores esclarecimentos nas próprias disposições da decisão‑quadro e atendendo ao artigo 34.° UE, que atribui às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios necessários para se atingir o resultado pretendido pelas decisões‑quadro, há que constatar que a decisão‑quadro deixa às autoridades nacionais uma margem de apreciação quanto às modalidades concretas de implementação dos objetivos que prossegue, nomeadamente no que respeita à possibilidade de prever um recurso suspensivo das decisões relativas ao mandado de detenção europeu.

53      A este respeito, há que recordar que, desde que não seja posta em causa a aplicação da decisão‑quadro, esta não impede um Estado‑Membro, como salienta o segundo parágrafo do seu considerando 12, de aplicar as suas normas constitucionais respeitantes, nomeadamente, ao respeito do direito a um processo equitativo.

54      Por outro lado, no que respeita à decisão de execução do mandado de detenção europeu, a possibilidade de beneficiar de um direito de recurso decorre implícita mas necessariamente dos termos «decisão definitiva», constantes do artigo 17.°, n.os 2, 3 e 5, da decisão‑quadro, e nada permite considerar que, à luz da redação das disposições desta, tal possibilidade deva ser excluída no âmbito da decisão da autoridade judiciária que se pronuncia para dar o seu consentimento à ampliação de um mandado de detenção ou à entrega posterior a outro Estado‑Membro, em conformidade com o disposto nos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro, tanto mais que, como decorre do processo no litígio principal, esta ampliação ou esta entrega podem ser pedidas para uma infração mais grave do que aquela que tinha motivado a entrega.

55      Daqui resulta que os artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que os Estados‑Membros prevejam um recurso que suspenda a execução da decisão da autoridade judiciária que se pronuncia para dar o seu consentimento quer à instauração de um procedimento penal contra uma pessoa, à sua condenação ou à sua detenção para efeitos do cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração cometida antes da sua entrega em execução de um mandado de detenção europeu, diferente daquela que motivou essa entrega, quer à entrega de uma pessoa a um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de execução, por força de um mandado de detenção europeu emitido por uma infração cometida antes da referida entrega.

 Quanto aos limites a um eventual direito de recurso suspensivo

56      Ainda que a decisão‑quadro não regulamente um eventual direito de recurso suspensivo de decisões relativas ao mandado de detenção europeu, resulta desta que devem ser impostos certos limites à margem de manobra de que os Estados‑Membros dispõem para esse efeito.

57      A este respeito, há que salientar que, como foi recordado nos n.os 34 e 35 do presente acórdão, a decisão‑quadro tem por objetivo substituir o sistema de extradição multilateral entre Estados‑Membros por um sistema de entrega, entre autoridades judiciárias, simplificado e mais eficaz, destinado a facilitar e acelerar a cooperação judiciária. Como resulta do considerando 5 da decisão‑quadro, a instauração de tal sistema de entrega permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos procedimentos de extradição que existiam antes da adoção desta.

58      O referido objetivo de acelerar a cooperação judiciária está presente em vários aspetos da decisão‑quadro, nomeadamente na determinação dos prazos de adoção das decisões relativas ao mandado de detenção europeu.

59      No que respeita aos referidos prazos, há que distinguir entre os previstos para a execução do mandado de detenção europeu, no artigo 17.° da decisão‑quadro, e os previstos nos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), desta, relativos ao consentimento com vista à ampliação do mandado ou a uma entrega posterior. Seja como for, há que notar que o artigo 15.°, n.° 1, da decisão‑quadro prevê, em geral, que a autoridade judiciária de execução decide a entrega da pessoa «nos prazos e nas condições definidos na presente decisão‑quadro».

60      No que respeita, em primeiro lugar, à decisão de execução do mandado de detenção europeu, o artigo 17.°, n.° 1, da decisão‑quadro prevê que este deve ser «tratado e executado com urgência». Os n.os 2 e 3 do mesmo artigo fixam prazos precisos de, respetivamente, dez ou sessenta dias, para tomar a decisão definitiva sobre a execução do referido mandado, consoante a pessoa procurada tenha ou não consentido na sua entrega.

61      Só em casos específicos, quando o mandado de detenção não possa ser executado dentro desses prazos, é que o n.° 4 do referido artigo permite que esses prazos sejam prorrogados por mais 30 dias, obrigando a autoridade judiciária de execução a informar imediatamente a autoridade judiciária de emissão das razões desse atraso. Excetuados esses casos específicos, só circunstâncias excecionais são suscetíveis de permitir a um Estado‑Membro, em conformidade com o disposto no artigo 17.°, n.° 7, da decisão‑quadro, não observar os referidos prazos, devendo esse Estado‑Membro informar igualmente a Eurojust e precisar as razões do atraso.

62      A importância dos prazos fixados no referido artigo 17.° encontra‑se expressa não apenas neste artigo mas também noutras disposições da decisão‑quadro, como os artigos 13.°, n.° 4, 15.°, n.° 2, 20.°, 21.° e 31.°, n.° 2, segundo parágrafo, desta.

63      Por outro lado, embora seja verdade que, ao longo do processo legislativo que levou à adoção da decisão‑quadro, a expressão «a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada», constante do artigo 17.° da decisão‑quadro, foi substituída pela expressão «a decisão [sobre a execução do mandado de detenção europeu] é tomada», constante da Proposta de Decisão‑Quadro do Conselho relativa ao mandado de captura europeu e aos procedimentos de entrega entre Estados‑Membros [COM(2001) 522 final], publicada no Jornal Oficial da União Europeia de 27 de novembro de 2001 (JO C 332 E, p. 305, a seguir «proposta de decisão‑quadro»), o certo é que, ao longo desse processo, também foi aposto o adjetivo «definitiva» à palavra «decisão», e que o prazo único de 90 dias previsto na proposta de decisão‑quadro foi substituído por prazos escalonados mais reduzidos, evocados nos n.os 60 e 61 do presente acórdão.

64      Daqui resulta que os prazos previstos no artigo 17.° da decisão‑quadro devem ser interpretados no sentido de que exigem que a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada, em princípio, quer nos dez dias a seguir ao consentimento na entrega da pessoa procurada quer, nos outros casos, nos sessenta dias a partir da detenção desta última. Só em casos específicos podem estes prazos ser prorrogados por mais trinta dias e só em circunstâncias excecionais é que um Estado‑Membro pode não respeitar os prazos previstos neste artigo 17.°

65      Por conseguinte, um eventual recurso suspensivo, previsto na regulamentação nacional de um Estado‑Membro, da decisão de execução do mandado de detenção europeu não pode, seja como for, salvo se o órgão jurisdicional competente decidir submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial, violar os prazos mencionados no número anterior para a adoção de uma decisão definitiva.

66      No que se refere, em segundo lugar, à decisão de dar o consentimento com vista à ampliação do mandado ou a uma entrega posterior, em conformidade com o disposto nos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro, há que notar que estas duas disposições preveem que a decisão «é tomada no prazo máximo de 30 dias a contar da data de receção do pedido».

67      O teor destas disposições, as quais, à semelhança da regra da especialidade de que constituem a implementação, não estavam previstas na proposta de decisão‑quadro, teor diferente do do artigo 17.° da decisão‑quadro, corresponde a situações diferentes à luz da decisão que deverá ser tomada.

68      Com efeito, por um lado, a pessoa procurada já não está em situação de detenção no Estado‑Membro de execução do mandado de detenção europeu e já foi entregue ao Estado‑Membro de emissão desse mandado.

69      Por outro lado, a autoridade judiciária de execução, que é aquela que é chamada a dar o consentimento referido nos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro, já dispõe de um certo número de informações que lhe permitem pronunciar‑se com conhecimento de causa, na medida em que, como foi recordado no n.° 36 do presente acórdão, esse consentimento só pode ser recusado nos mesmos casos que, no que respeita às decisões mencionadas no artigo 17.° da decisão‑quadro, permitem recusar a execução do mandado de detenção europeu e, além disso, tal consentimento deve ser dado quando a infração para a qual a ampliação do mandado ou a entrega posterior foi pedida implica, por sua vez, a obrigação de entrega.

70      Contudo, as decisões referidas nos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro dizem respeito quer a uma infração diferente daquela que motivou a entrega quer a um Estado‑Membro que não o Estado‑Membro de emissão do primeiro mandado de detenção europeu, o que justifica que esteja previsto um prazo de trinta dias para dar esse consentimento.

71      Daqui resulta que os artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro devem ser interpretados no sentido de que impõem que as decisões da autoridade judiciária que se pronuncia para dar o seu consentimento quer à instauração de um procedimento penal contra uma pessoa, à sua condenação ou à sua detenção para efeitos do cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração cometida antes da sua entrega em execução de um mandado de detenção europeu, diferente daquela que motivou essa entrega, quer à entrega de uma pessoa a um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de execução, por força de um mandado de detenção europeu emitido por uma infração cometida antes da referida entrega, devem ser tomadas, em princípio, no prazo de trinta dias contado a partir da receção do pedido.

72      No que respeita à possibilidade de os Estados‑Membros preverem, no seu direito nacional, um recurso suspensivo das decisões mencionadas nos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro, há que constatar que estas disposições, ao contrário do artigo 17.° da decisão‑quadro, não fixam prazos para a tomada de «decisão definitiva» e que, deste modo, devem ser interpretadas no sentido de que o prazo que fixam visa apenas a decisão inicial e não abrange os casos em que tal recurso tenha sido previsto.

73      Contudo, seria contrário tanto à lógica subjacente à decisão‑quadro como aos objetivos desta, que visam acelerar os procedimentos de entrega, que os prazos para tomar uma decisão definitiva ao abrigo dos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro fossem superiores aos previstos no artigo 17.° desta.

74      Por conseguinte, para assegurar uma interpretação e uma aplicação coerentes da decisão‑quadro, há que considerar que um eventual recurso suspensivo, previsto na regulamentação nacional de um Estado‑Membro, de decisões mencionadas nos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro deve, seja como for, ser interposto com observância dos prazos previstos no artigo 17.° da decisão‑quadro para a adoção de uma decisão definitiva.

75      À luz do que precede, há que responder à questão submetida que os artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da decisão‑quadro devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que os Estados‑Membros prevejam um recurso que suspende a execução da decisão da autoridade judiciária que se pronuncia, no prazo de trinta dias contado a partir da receção do pedido, para dar o seu consentimento quer à instauração de um procedimento penal contra uma pessoa, à sua condenação ou à sua detenção para efeitos do cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração cometida antes da sua entrega em execução de um mandado de detenção europeu, diferente daquela que motivou essa entrega, quer à entrega de uma pessoa a um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de execução, por força de um mandado de detenção europeu emitido por uma infração cometida antes da referida entrega, desde que a decisão definitiva seja adotada nos prazos mencionados no artigo 17.° da mesma decisão‑quadro.

 Quanto às despesas

76      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

Os artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 3, alínea c), da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que os Estados‑Membros prevejam um recurso que suspenda a execução da decisão da autoridade judiciária que se pronuncia, no prazo de trinta dias contado a partir da receção do pedido, para dar o seu consentimento quer à instauração de um procedimento penal contra uma pessoa, à sua condenação ou à sua detenção para efeitos do cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração cometida antes da sua entrega em execução de um mandado de detenção europeu, diferente daquela que motivou essa entrega, quer à entrega de uma pessoa a um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de execução, por força de um mandado de detenção europeu emitido por uma infração cometida antes da referida entrega, desde que a decisão definitiva seja adotada nos prazos mencionados no artigo 17.° da mesma decisão‑quadro.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.