Language of document : ECLI:EU:C:2012:524

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NIILO JÄÄSKINEN

apresentadas em 6 de setembro de 2012 (1)

Processo C‑483/10

Comissão Europeia

contra

Reino de Espanha

«Ação por incumprimento — Diretiva 2001/14/CE — Repartição de capacidade da infraestrutura ferroviária — Aplicação de taxas de utilização de infraestrutura ferroviária — Artigo 4.°, n.° 1 — Determinação das taxas — Função do gestor da infraestrutura — Independência da gestão — Artigo 11.° — Estabelecimento de um regime de melhoria do desempenho — Artigo 13.°, n.° 2 — Direito de utilização de capacidades específicas da infraestrutura — Artigo 14.°, n.° 1 — Quadro para a repartição da capacidade da infraestrutura — Repartição equitativa e não discriminatória»





I —    Introdução

1.        Através da presente ação por incumprimento, a Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que o Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 4.°, n.° 1, 11.°, 13.°, n.° 2, e 14.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14/CE (2), conforme alterada pela última vez pela Diretiva 2007/58/CE (3) (a seguir, «Diretiva 2001/14»). O Reino de Espanha pede que a ação seja julgada improcedente.

2.        O presente processo insere‑se num conjunto de ações por incumprimento (4), intentadas pela Comissão em 2010 e em 2011, que têm por objeto a aplicação pelos Estados‑Membros da Diretiva 91/440 (5), conforme alterada pela Diretiva 2001/12/CE (6) (a seguir «Diretiva 91/440»), e da Diretiva 2001/14, em especial no que diz respeito ao acesso das empresas ferroviárias à infraestrutura, a saber, à rede ferroviária. Estas ações são inéditas porque dão pela primeira vez ao Tribunal de Justiça a oportunidade de se pronunciar sobre a liberalização dos caminhos de ferro na União Europeia e, designadamente, de interpretar o denominado «primeiro pacote ferroviário».

II — Quadro jurídico

A —    Direito da União

3.        O artigo 4.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2001/14 dispõe:

«1. Os Estados‑Membros devem definir um quadro para a tarificação, respeitando todavia a independência de gestão prevista no artigo 4.° da Diretiva [91/440].

Sob a mesma condição de independência de gestão, os Estados‑Membros devem proceder também ao estabelecimento de regras de tarificação específicas, ou delegar essas funções no gestor da infraestrutura. A determinação das taxas de utilização da infraestrutura e a cobrança dessas taxas é da responsabilidade do gestor da infraestrutura.

2. Se o gestor da infraestrutura não for independente das empresas de transporte ferroviário, no plano jurídico, organizativo e decisório, as funções descritas no presente capítulo, com exceção da cobrança de taxas, serão desempenhadas por um organismo de tarificação independente, no plano jurídico, organizativo e decisório, das empresas de transporte ferroviário.»

4.        O artigo 11.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14 tem a seguinte redação:

«Os regimes de tarificação da utilização da infraestrutura devem incentivar as empresas de transporte ferroviário e o gestor da infraestrutura a minimizar as perturbações e a melhorar o desempenho da rede ferroviária, através da instituição de um regime de melhoria do desempenho. Esse regime pode incluir sanções para atos que perturbem o funcionamento da rede, compensações para as empresas afetadas pelas perturbações e prémios para os desempenhos superiores às previsões.»

5.        Nos termos do artigo 13.°, n.° 2, desta mesma diretiva:

«O direito de utilização de uma capacidade de infraestrutura específica na forma de um traçado pode ser concedido aos candidatos por um período máximo correspondente ao período de vigência de um horário de serviço.

O gestor da infraestrutura e um candidato podem celebrar um acordo‑quadro, conforme previsto no artigo 17.°, para a utilização da capacidade na infraestrutura ferroviária em causa, de duração superior ao período de vigência de um horário de serviço.»

6.        O artigo 14.°, n.° 1, da referida diretiva prevê:

«Os Estados‑Membros podem definir um quadro para a repartição da capacidade de infraestrutura, respeitando todavia a independência de gestão prevista no artigo 4.° da Diretiva [91/440]. Devem ser fixadas regras específicas de repartição da capacidade. O gestor da infraestrutura deve cumprir os procedimentos de repartição da capacidade e garantir em especial que a capacidade de infraestrutura seja repartida de forma equitativa e não discriminatória e segundo o direito comunitário.»

7.        A redação do artigo 30.° da mesma diretiva é a seguinte:

«1.      […] os Estados‑Membros devem instituir uma entidade reguladora. Esta entidade, que pode ser o Ministério dos Transportes ou outra instância, será independente, a nível de organização, de financiamento das decisões e a nível jurídico e decisório, de qualquer gestor da infraestrutura, organismo de tarificação, organismo de repartição ou candidato. […]

[…]

3.      A entidade reguladora deve garantir que as taxas fixadas pelo gestor da infraestrutura cumprem o disposto no capítulo II e não são discriminatórias. […]»

B —    Direito espanhol

8.        A Lei 39/2003, relativa ao setor ferroviário (Ley 39/2003 del Setor Ferroviario) (7), de 17 de novembro de 2003 (a seguir «LSF») enumera, no artigo 21.°, as competências e as funções do gestor da infraestrutura ferroviária, entre as quais figura a cobrança das taxas de utilização da infraestrutura ferroviária.

9.        Por força do artigo 73.°, n.° 5, da LSF, é possível tomar em consideração, para a fixação do montante das taxas ferroviárias, de acordo com a exploração eficaz da rede ferroviária de interesse geral, considerações que refletem o nível de congestionamento da infraestrutura, o desenvolvimento de novos serviços de transporte ferroviário e a necessidade de favorecer a utilização de linhas subutilizadas, garantindo, em quaisquer circunstâncias, uma concorrência ótima entre as empresas de transporte ferroviário.

10.      Esta mesma lei dispõe, no artigo 77.°, n.° 1, que a fixação dos montantes da taxa de utilização das linhas de caminhos de ferro pertencentes à rede ferroviária de interesse geral e da taxa de exploração das estações e outras instalações ferroviárias é efetuada por decreto ministerial.

11.      O artigo 81.° da LSF prevê designadamente que a fixação ou, se for o caso, a alteração do montante das taxas de utilização da infraestrutura ferroviária são da competência do Ministério do Equipamento e dos Transportes.

12.      Os artigos 88.° e 89.° da LSF classificam entre as infrações administrativas suscetíveis de dar lugar à aplicação de sanções, determinados comportamentos «relacionados com as perturbações do funcionamento da rede».

13.      O Decreto Real 2395/2004, de 30 de dezembro de 2004, aprova o Estatuto da empresa pública gestora da infraestrutura ferroviária (Real decreto 2395/2004 por el que se aprueba el Estatuto de la entidad pública empresarial Administrador de Infraestructuras Ferroviarias) (8). O artigo 1.° do referido estatuto dispõe que o gestor da infraestrutura ferroviária (Administrador de Infraestructuras Ferroviarias, a seguir «ADIF») é um organismo público, equiparável à categoria das empresas públicas. A ADIF é tutelada pelo Ministério do Equipamento e dos Transportes, que é responsável pela direção estratégica, avaliação e controlo da sua atividade.

14.      O estatuto da ADIF enumera, no seu artigo 3.°, as competências e as funções desta entidade, entre as quais figura a cobrança das taxas de utilização da infraestrutura ferroviária.

15.      Resulta dos artigos 14.°, 15.° e 23.° do referido estatuto que a gestão da ADIF é assegurada pelo Conselho de Administração e pelo presidente, que é também presidente do Conselho de Administração. Este mesmo artigo 15.° dispõe que os membros do Conselho de Administração são livremente nomeados ou destituídos das suas funções pelo Ministro do Equipamento e dos Transportes. Nos termos do artigo 23.°, n.° 1, do mesmo estatuto, o presidente da ADIF é designado pelo Conselho de Ministros, mediante proposta do referido ministro.

16.      O Decreto Real 2396/2004, de 30 de dezembro de 2004, aprova o Estatuto da empresa pública RENFE‑Operadora (Real decreto 2396/2004 por el que se aprueba el Estatuto de la entidad pública empresarial RENFE‑Operadora) (9). O artigo 1.° do referido estatuto dispõe que, à semelhança da ADIF, a RENFE‑Operadora é um organismo público, equiparável à categoria das empresas públicas, legalmente tutelado pelo Ministério do Equipamento e dos Transportes, que é responsável pela direção estratégica, avaliação e controlo da sua atividade.

17.      Nos termos dos artigos 7.° e 8.° do estatuto da RENFE‑Operadora, a gestão desta é assegurada pelo Conselho de Administração e pelo presidente, que é também presidente do Conselho de Administração. O artigo 8.°, n.° 1, deste mesmo estatuto dispõe que os membros do Conselho de Administração são livremente nomeados ou destituídos das suas funções pelo Ministro do Equipamento e dos Transportes. O presidente é designado pelo Conselho de Ministros, mediante proposta do referido ministro, em conformidade com o artigo 16.°, n.° 1, deste mesmo estatuto.

18.      O despacho do Ministério do Desenvolvimento FOM/898/2005 fixa os montantes das taxas ferroviárias previstas pelos artigos 74.° e 75.° da Lei 39/2003 (Orden del Ministerio de Fomento FOM/898/2005 por la que se fijan las cuantίas de las cánones ferroviarios establecidos en los artίculos 74 y 75 de la Ley 39/2003) (10), de 8 de abril de 2005.

19.      O despacho do Ministério do Desenvolvimento FOM/897/2005, relativo à declaração sobre a rede e ao processo de repartição da capacidade de infraestrutura ferroviária (Orden del Ministerio del Fomento FOM/897/2005 relativa a la declaración sobre la red y al procedimiento de adjudicación de capacidad de infraestructura ferroviaria) (11), de 7 de abril de 2005 (a seguir «Despacho FOM/897/2005»), no artigo 11.°, dispõe:

«[A ADIF] reparte as capacidades da infraestrutura requeridas do seguinte modo:

a)      […]

b)      Se existir uma sobreposição de pedidos para um mesmo traçado horário ou se a rede tiver sido declarada congestionada, serão tomadas em consideração as seguintes prioridades para a repartição, por ordem decrescente:

1.      As eventualmente fixadas pelo Ministério do Equipamento e dos Transportes para os diferentes tipos de serviços em cada linha, tendo especialmente em conta os serviços de transporte de mercadorias;

[…]

4.      A repartição e utilização efetiva pelo requerente de horários de serviço anteriores aos traçados horários cuja utilização é requerida;

[…]»

III — Procedimento pré‑contencioso e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

20.      Em 15 de junho de 2007, a Comissão enviou às autoridades espanholas um questionário relativo à aplicação das Diretivas 91/440, 95/18/CE (12) e 2001/14.

21.      Na sequência de uma troca de correspondência com as autoridades espanholas, a Comissão, por carta de 27 de junho de 2008, notificou o Reino de Espanha, manifestando‑lhe dúvidas acerca da compatibilidade de determinados aspetos da regulamentação espanhola em matéria ferroviária com as Diretivas 91/440 e 2001/14.

22.      Por carta de 16 de outubro de 2008, o Reino de Espanha respondeu à notificação para cumprir. Forneceu informações complementares à Comissão por cartas de 5 de fevereiro e de 13 de julho de 2009.

23.      Por carta de 9 de outubro de 2009, a Comissão enviou ao Reino de Espanha um parecer fundamentado no qual declarava que a regulamentação em causa não estava em conformidade com as Diretivas 91/440 e 2001/14. Por carta de 16 de dezembro de 2009, este Estado‑Membro respondeu ao parecer fundamentado.

24.      Não satisfeita com a resposta do Reino de Espanha, a Comissão decidiu intentar a presente ação, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de outubro de 2010.

25.      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 16 de fevereiro de 2011, a República Checa foi autorizada a intervir em apoio dos pedidos do Reino de Espanha. Por despacho de 8 de setembro de 2011, a República Francesa foi autorizada a intervir em apoio dos pedidos do Reino de Espanha.

26.      Por requerimento entrado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 26 de março de 2012, a Comissão anunciou que, na sequência da adoção pelo Reino de Espanha da Lei 2/2011, relativa à economia sustentável (Ley 2/2011 de Economia Sostenible) (13), desistia das terceira e quarta acusações da sua ação, relativas, respetivamente, à violação do artigo 30.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14 e do artigo 10.°, n.° 7, da Diretiva 91/440 (14).

27.      A Comissão, o Governo espanhol e o Governo francês estiveram representados na audiência de 23 de maio de 2012.

IV — Análise da ação por incumprimento

A —    Quanto à primeira acusação, relativa à violação do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14

1.      Argumentação das partes

28.      A Comissão alega que a legislação espanhola não é compatível com o artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14, na medida em que o montante das taxas é inteiramente determinado por despacho ministerial, com a consequência de a única função atribuída à ADIF ser a cobrança das taxas. Com efeito, a ADIF limita‑se a calcular o montante da taxa em cada caso concreto, aplicando uma fórmula fixada previamente e de maneira exaustiva pelas autoridades nacionais. Assim, esta entidade não dispõe de nenhuma margem de discricionariedade para adaptar o montante da taxa em cada caso concreto.

29.      Segundo a Comissão, a regulamentação espanhola também não cumpre a exigência de respeito da autonomia de gestão do gestor da infraestrutura, uma vez que, ao atribuir apenas às autoridades nacionais a fixação do montante das taxas, priva o referido gestor de um instrumento de gestão essencial.

30.      O artigo 6.°, n.° 2, da referida diretiva, ao dispor que o gestor da infraestrutura terá acesso a incentivos conducentes à redução dos custos de fornecimento da infraestrutura e do nível das taxas de acesso à mesma, implica obrigatoriamente que o montante das taxas seja fixado pelo gestor da infraestrutura e não pelos Estados‑Membros.

31.      Segundo a Comissão, o controlo das taxas fixadas pelo gestor da infraestrutura previsto no artigo 30.°, n.° 3, desta mesma diretiva é desprovido de sentido, se o montante das mesmas for fixado inteiramente pelas autoridades dos Estados‑Membros.

32.      O Governo espanhol sustenta que as taxas foram definidas como impostos. Segundo a legislação espanhola, trata‑se portanto de impostos cujo facto gerador é a utilização privativa do domínio público ferroviário. Assim, os elementos essenciais destas taxas devem ser regulados pela lei e, por sua vez, o seu montante concreto deve ser fixado por uma norma administrativa geral, a saber, pelo menos, um despacho ministerial.

33.      O Governo espanhol refere que a ADIF, o gestor da infraestrutura no território espanhol, é uma empresa pública que, segundo a legislação nacional, deve necessariamente ser tutelada por um ministério e, consequentemente, não está habilitada a adotar disposições legislativas, dado que esta competência pertence ao ministério que a tutela. O artigo 76.° da LSF atribui à ADIF a gestão das referidas taxas, o que abrange certas funções de controlo, de liquidação e de fixação da taxa devida em cada caso concreto bem como a sua cobrança. A ADIF pode, além disso, propor ao Ministério do Equipamento e dos Transportes que sejam aplicados outros tipos de taxas quando da reclassificação de uma linha ou de uma estação ferroviária.

34.      O Governo espanhol não partilha a interpretação que a Comissão faz do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14 e sustenta que a expressão «determinar» nele utilizada não exige necessariamente a fixação do montante das taxas. Com efeito, quando esta disposição indica que a determinação das taxas é da responsabilidade do gestor da infraestrutura, deve entender‑se que se refere unicamente à fixação da taxa concreta devida a título da utilização da infraestrutura em cada caso específico.

35.      Dado que o próprio artigo 4.° se refere à determinação e à cobrança das taxas, há que distinguir entre, por um lado, a determinação das taxas de maneira geral, que estabelecem de modo definitivo o quadro e o sistema de tarificação correspondentes às mesmas, e a determinação dos sistemas de tarificação da infraestrutura, que são da responsabilidade do Ministro do Equipamento e dos Transportes e, por outro lado, a fixação da taxa concreta correspondente a cada caso específico, que incumbe à ADIF.

36.      Com base nesta distinção, o Governo espanhol considera que a interpretação que preconiza do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14 é conforme com as outras disposições desta mesma diretiva.

37.      Com efeito, resulta claramente do artigo 6.°, n.° 2, da Diretiva 2001/14 que incumbe ao Estado, e não ao gestor da infraestrutura, a redução do montante das taxas de acesso à rede ferroviária.

38.      O disposto no artigo 9.°, n.° 3, da Diretiva 2001/14, segundo o qual os gestores da infraestrutura podem introduzir regimes de descontos, figura expressamente no artigo 73.°, n.° 5, da LSF. O facto de esta disposição estar redigida de modo genérico não implica que os descontos não possam existir.

39.      A referência às taxas fixadas pelo gestor, no artigo 30.°, n.° 3, da Diretiva 2001/14 remete para as taxas aplicadas pelo gestor num determinado momento, no caso concreto. A utilização da expressão «fixar» não pode referir‑se à fixação de modo genérico das taxas e dos seus montantes, que é da competência do Ministério do Equipamento e dos Transportes.

40.      Por último, a República Checa salienta que, quando do estabelecimento do quadro para a tarificação, os Estados‑Membros têm a obrigação de assegurar, em aplicação do artigo 4.° da Diretiva 91/440, «que as empresas de transporte ferroviário sejam dotadas de um estatuto autónomo» e não o responsável da infraestrutura ferroviária. Daí conclui que a intervenção do Estado em causa através da fixação das tarificações específicas é um instrumento aceitável do ponto de vista do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14.

2.      Análise da primeira acusação

41.      Com esta acusação, a Comissão sustenta, no essencial, que a legislação espanhola não é conforme com o artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14, na medida em que é o Ministério do Equipamento e dos Transportes que fixa o montante das taxas mediante despacho ministerial. Assim, o gestor da infraestrutura é unicamente responsável pela cobrança das taxas. Por esta razão, a legislação nacional em causa não é compatível com a exigência de respeito da autonomia de gestão do gestor.

42.      Deve desde já observar‑se que a primeira acusação suscita a mesma problemática que a segunda acusação formulada no processo Comissão/Hungria (C‑473/10), relativa à independência da tarificação, mas numa perspetiva inversa. Neste último processo, com efeito, a referida acusação tem mais especificamente por objeto a interpretação da expressão «cobrança», uma função que não é abrangida pelo conceito de «função essencial», na aceção do artigo 6.°, n.° 3, da Diretiva 91/440, devendo obrigatoriamente ser exercida por um gestor da infraestrutura independente das sociedades ferroviárias (15). Esta última questão coloca‑se igualmente em termos ligeiramente diferentes no processo Comissão/República Checa (C‑545/10).

43.      Recordo que, por força do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14, os Estados‑Membros devem definir um quadro para a tarificação. A este respeito, podem igualmente estabelecer regras de tarificação específicas, respeitando a independência do gestor da infraestrutura. Cabe a este último determinar a taxa para efeitos da utilização da infraestrutura. Além disso, deve ser responsável pela cobrança da referida taxa. Portanto, esta última função não constitui uma função essencial que possa assim ser delegada aos operadores não independentes ou a qualquer outra entidade. Acrescente‑se que os artigos 4.°, n.os 4 e 5, 8.°, n.° 1, e 11.° desta diretiva utilizam o conceito de «regime[s] de tarificação».

44.      O argumento principal aduzido pelo Governo espanhol para contestar esta acusação baseia‑se na interpretação da expressão «[a] determinação das taxas», constante do artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14. Segundo este Governo, a referida expressão refere‑se unicamente à fixação das taxas concretas devidas pela utilização da infraestrutura em cada caso específico.

45.      Este argumento não pode ser acolhido. A Diretiva 2001/14 estabelece uma distinção entre, por um lado, o quadro para a tarificação e, por outro, a determinação da taxa. Tendo em conta esta distinção, é necessário, como sugere a Comissão, atribuir à expressão «determinação» um sentido mais amplo do que à expressão «liquidação», que é apenas uma etapa no processo de cobrança e que deve ser considerada abrangida pela expressão «cobrança». Esta interpretação é confirmada pela análise do contexto regulamentar da disposição controvertida e dos objetivos da diretiva em causa.

46.      Neste contexto, importa estabelecer um paralelismo com a argumentação do Governo húngaro no processo Comissão/Hungria (C‑473/10). Segundo este Governo, pode fazer‑se uma distinção entre, por um lado, a formação das taxas, a fixação efetiva destas e a sua cobrança. A primeira corresponde ao estabelecimento das diferentes regras de tarificação, que é efetuado pelo Estado‑Membro ou pelo gestor da infraestrutura. Por sua vez, a segunda visa a fixação das diferentes taxas individuais que uma determinada empresa de transporte ferroviário deve pagar numa situação concreta, em função dos serviços que solicitou. Quanto à terceira, designa o ato concreto de pagamento da taxa, cujas condições foram previamente fixadas, ao gestor da infraestrutura.

47.      No presente processo, a Comissão critica o Reino de Espanha pelo facto de o montante das taxas ser integralmente fixado por despacho ministerial, de modo que só a cobrança das taxas é da responsabilidade da ADIF.

48.      É certo que importa admitir que o artigo 8.°, primeiro parágrafo, da Diretiva 91/440 prevê que, após terem consultado o gestor da infraestrutura em causa, «os Estados‑Membros definirão as condições de fixação desta taxa». A este respeito, o sexto considerando da referida diretiva afigura‑se ainda mais unívoco. Nos termos deste último, «na falta de regras comuns relativas à repartição dos custos de infraestrutura, os Estados‑Membros, após consulta do gestor da infraestrutura, devem estabelecer as modalidades que hão de reger os pagamentos das taxas de utilização da infraestrutura ferroviária efetuados pelas empresas de transporte ferroviário e pelos agrupamentos dessas empresas».

49.      Contudo, resulta do décimo segundo considerando da Diretiva 2001/14 que, no quadro estabelecido pelos Estados‑Membros, os regimes de tarificação e de repartição de capacidade devem encorajar os gestores das infraestruturas ferroviárias a otimizar a utilização da sua infraestrutura. Esta otimização pela tarificação não me parece possível, a não ser que, no âmbito do sistema de tarificação, seja conferida uma certa margem de manobra ao gestor da infraestrutura e o papel deste último for além de um simples cálculo das taxas. As mesmas considerações são aplicáveis em relação às competências do gestor da infraestrutura referidas nos artigos 8.°, n.° 2, e 9.° da Diretiva 2001/14, no que respeita ao aumento ou à redução das taxas.

50.      Com efeito, a Diretiva 2001/14 estabelece um domínio de tarificação reservado ao gestor da infraestrutura. Em relação ao Estado, o limite superior do referido domínio resulta da exigência de uma margem de manobra no quadro de tarificação destinado a permitir utilizá‑la como instrumento de gestão. A fim de garantir o objetivo de gestão independente, só o quadro normativo e financeiro pode ser definido pelo Estado. Em relação aos operadores não independentes, o limite inferior deste domínio — abaixo do qual há apenas uma «cobrança» — corresponde à distinção entre, por um lado, o simples cálculo da taxa de base dos dados e dos critérios objetivos e, por outro, as decisões que exigem escolhas e apreciações relativas aos fatores incluídos nesses cálculos. Esta última distinção é a que é determinante para efeitos da apreciação da necessidade da existência de um organismo de tarificação independente, na aceção do artigo 4.°, n.° 2, da Diretiva 2001/14, no caso de o gestor da infraestrutura não ser independente no plano jurídico, organizativo ou decisório.

51.      Esta interpretação encontra de resto apoio na economia geral da Diretiva 2001/14 e no contexto da disposição controvertida no regime estabelecido pela referida diretiva. Deve‑se recordar, a este respeito, que, nos termos do artigo 6.°, n.° 2, da Diretiva 2001/14, o gestor da infraestrutura é encorajado por medidas de incentivo à redução dos custos de fornecimento da infraestrutura e do nível das taxas de acesso à mesma. A leitura do artigo 9.°, n.° 2, da mesma diretiva mostra que o gestor pode autorizar descontos nas taxas cobradas a uma empresa de transporte ferroviário. Por último, o artigo 30.°, n.os 2 e 3, da referida diretiva, demonstra que a margem de discricionariedade que o gestor da infraestrutura deve possuir abrange designadamente os critérios incluídos nas especificações de rede, o processo de repartição e os seus resultados, o regime de tarificação e o nível ou a estrutura das taxas de utilização da infraestrutura.

52.      No presente processo, é o Ministério pertinente, a saber, o Ministério do Equipamento e dos Transportes, que atua como entidade reguladora em Espanha. No entanto, o referido ministério tem uma dupla função no funcionamento do regime de tarificação ao determinar também as taxas. Embora seja verdade que o artigo 30.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14 admite a designação de um Ministério competente como entidade reguladora, em contrapartida, a mesma disposição exige a independência do referido organismo. Para efeitos do desempenho da sua função reguladora, designadamente assegurando a legalidade das taxas fixadas pela ADIF, o Ministério espanhol não pode paralelamente determinar as referidas taxas, como acontece atualmente em Espanha (16).

53.      Por conseguinte, ainda que o Estado‑Membro possa fixar os elementos e critérios que devem ser aplicados na determinação do montante da taxa, incumbe ao gestor da infraestrutura determinar, no respeito do quadro normativo e financeiro estabelecido pelo Estado, as taxas em casos individuais de uma maneira que vá além de um simples cálculo da taxa com base numa fórmula predeterminada pelo Estado, o que acontece em Espanha. A este respeito, a ADIF não dispõe de nenhuma margem de discricionariedade para efeitos da determinação do montante da taxa nos casos individuais, o que é contrário ao artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14.

54.      Por último, observo que, segundo jurisprudência constante, um Estado‑Membro não pode invocar disposições, práticas ou situações da sua ordem jurídica interna para justificar a inobservância das obrigações e dos prazos estabelecidos por uma diretiva (17). Resulta ainda da jurisprudência que isto é igualmente válido quando as disposições internas em causa se situam ao nível constitucional (18).

55.      Por conseguinte, as normas relativas à determinação das taxas e à natureza jurídica da ADIF como empresa pública invocadas pelo Governo espanhol não influenciam a análise do incumprimento no presente processo.

56.      Daqui concluo que a primeira acusação da Comissão deve ser julgada procedente.

B —    Quanto à segunda acusação, relativa à violação do artigo 11.° da Diretiva 2001/14

1.      Argumentos das partes

57.      A Comissão afirma que a legislação espanhola não contém nenhuma medida suscetível de aplicar o artigo 11.° da Diretiva 2001/14. Com efeito, o artigo 11.° do despacho FOM/897/2005 fixa critérios para a repartição das capacidades da infraestrutura e não faz parte do «regime de tarificação», contrariamente ao que é exigido pelo artigo 11.° da Diretiva 2001/14.

58.      Também não fazem parte do «regime de tarificação» os artigos 88.° e 89.° da LSF, que qualificam certas infrações à regulamentação ferroviária de «graves» ou «muito graves». As coimas a que estas infrações podem dar lugar são sanções de natureza administrativa. Estas disposições permitem aplicar sanções a empresas de transporte ferroviário, e não à ADIF.

59.      A Comissão acrescenta que o artigo 73.°, n.° 5, da LSF não basta, em si, para aplicar o regime de melhoria do desempenho referido no artigo 11.° da Diretiva 2001/14, na medida em que se limita a prever a possibilidade de instituir esse regime. Ora, a instituição desse regime não é uma prerrogativa cujo exercício seja deixado à discricionariedade dos Estados‑Membros, mas sim uma exigência imposta pela Diretiva 2001/14.

60.      Por último, a Comissão observa que a ADIF apresenta a instituição do regime de medidas de incentivo como uma mera possibilidade, e não como uma obrigação imposta pelo artigo 11.° da Diretiva 2001/14.

61.      O Governo espanhol contesta a inexistência, na sua legislação nacional, de disposições que transponham o artigo 11.° da Diretiva 2001/14.

62.      Em primeiro lugar, alega que o artigo 73.°, n.° 5, da LSF prevê a possibilidade de ter em conta, para a fixação do montante das taxas ferroviárias, considerações que reflitam o grau de saturação da infraestrutura, o desenvolvimento de novos serviços de transporte ferroviário e a necessidade de favorecer a utilização de linhas subutilizadas, garantindo, em quaisquer circunstâncias, uma concorrência ótima entre as empresas de transporte ferroviário.

63.      Em segundo lugar, os artigos 88.° e 89.° da LSF qualificam de infrações administrativas determinados comportamentos relacionados com as falhas da rede e que, quando praticados, são objeto de sanção mediante a aplicação de coimas.

64.      Em terceiro lugar, o Governo espanhol afirma que a ADIF procura fidelizar as empresas de transporte ferroviário que respeitam as capacidades de infraestruturas atribuídas tendo por objetivo, designadamente, incentivar a redução ao mínimo dos incidentes na rede.

65.      Por último, sustenta que qualquer empresa de transporte ferroviário que requeira um traçado horário e o obtenha deve pagar uma taxa de reserva no momento da sua atribuição, antes da utilização efetiva do traçado. O pagamento desta taxa implica um compromisso da parte da empresa de transporte ferroviário de proceder à utilização da rede que solicitou, sem o que perde a taxa paga.

66.      O Governo francês considera que o artigo 11.° da Diretiva 2001/14 deve ser interpretado no sentido de que fixa um objetivo e impõe aos Estados‑Membros uma obrigação de meios a aplicar para tentar alcançar este objetivo. Na sua opinião, os Estados‑Membros continuam a dispor de liberdade de escolha dos meios estabelecidos neste quadro. Como o Governo espanhol, o Governo francês considera que estas medidas não têm de se inscrever no quadro de um regime independente de melhoria do desempenho para poderem respeitar as exigências do artigo 11.° da Diretiva 2001/14.

2.      Análise da segunda acusação

67.      Observo, desde já, que, como resulta do artigo 11.° da Diretiva 2001/14, os regimes de tarificação da infraestrutura devem incentivar as empresas de transporte ferroviário e o gestor da infraestrutura a minimizarem as perturbações e a melhorarem o desempenho da rede ferroviária, através da instituição de um «regime de melhoria do desempenho».

68.      Resulta dos elementos do processo submetido ao Tribunal de Justiça que a legislação espanhola pertinente inclui medidas para a repartição das capacidades da infraestrutura ou das sanções em caso de infração à regulamentação ferroviária.

69.      No entanto, importa referir que as medidas e as sanções a que o Governo espanhol faz referência não constituem um regime, na aceção do artigo 11.° da Diretiva 2001/14. As referidas medidas e sanções, que, de resto, não fazem parte do regime de tarificação e permitem unicamente impor sanções às empresas de transporte ferroviário, e não ao gestor da infraestrutura, não constituem um conjunto coerente e transparente, pelo que não podem ser qualificadas de «regime de melhoria do desempenho» que respeite as exigências da Diretiva 2001/14. Pelo contrário, trata‑se de medidas e de sanções pontuais e independentes umas das outras.

70.      Noutros termos, os Estados‑Membros têm a obrigação de estabelecer um regime de melhoria do desempenho que faça parte dos regimes de tarificação da infraestrutura, em conformidade com o artigo 11.° da Diretiva 2001/14. Seguidamente, no que respeita às medidas de incentivo, os Estados‑Membros continuam a dispor de liberdade para escolher as medidas adequadas, desde que respeitem as exigências da referida diretiva e designadamente a do seu artigo 11.°, que requer a instituição de um regime de melhoria do desempenho, mas que deixa margem de manobra no que respeita às medidas concretas constantes do referido regime.

71.      Acresce que resulta dos elementos do processo submetido ao Tribunal de Justiça que a ADIF apresenta a instituição do regime de incentivo previsto no artigo 11.° da Diretiva 2001/14 como uma mera possibilidade e não como uma obrigação que as autoridades espanholas são obrigadas a respeitar. À semelhança da Comissão, considero que a simples referência à possibilidade de instituição desse regime não basta para garantir o respeito do artigo 11.° da referida diretiva, cuja redação, aliás, não confirma de modo nenhum a interpretação desta disposição proposta pelo Governo espanhol.

72.      Daqui concluo que a segunda acusação da Comissão deve ser julgada procedente.

C —    Quanto à quinta acusação, relativa à violação dos artigos 13.°, n.° 2, e 14.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14

1.      Argumentação das partes

73.      A Comissão alega que a primeira prioridade de repartição de capacidade da infraestrutura referida no artigo 11.°, alínea b), ponto 1, do despacho FOM/897/2005 é contrária ao artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14, na medida em que deixa ao ministro em causa uma margem de discricionariedade excessiva, apesar de o referido artigo 14.° dispor que devem ser fixadas regras específicas de repartição de capacidade.

74.      O Governo espanhol contesta que a primeira prioridade de repartição de capacidade seja contrária ao artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14. Com efeito, este critério de repartição deixa aberta a possibilidade de, em circunstâncias especiais ou excecionais, ser dada prioridade a outro tipo de serviços, diferente dos serviços de transporte de mercadorias, a fim de evitar um congestionamento da rede ferroviária.

75.      Este mesmo Governo especifica que, desde a entrada em vigor do despacho FOM/897/2005, o Ministério do Equipamento e dos Transportes nunca utilizou esta possibilidade, o que demonstra a ausência de qualquer poder discricionário na matéria.

76.      No que respeita à primeira prioridade de repartição, a Comissão observa que a interpretação proposta pelo Governo espanhol não encontra nenhum fundamento na redação do artigo 11.°, alínea b), ponto 1, do despacho FOM/897/2005. Na sua opinião, esta última disposição não faz qualquer referência à existência de circunstâncias excecionais ou específicas como as referidas pelo Governo espanhol. A Comissão acrescenta que a simples existência da primeira prioridade constitui, em si, uma fonte de insegurança jurídica para os operadores, pelo que a alegada prática das autoridades espanholas, que consiste em abster‑se de fixar prioridades suplementares, salvo em caso de circunstâncias excecionais, não pode ser considerada como suficiente para efeitos da execução do artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14.

77.      O Governo espanhol salienta, a este propósito, que o artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14 não trata de forma explícita a situação segundo a qual circunstâncias excecionais imponham que se modifiquem as prioridades previamente fixadas, mas também não proíbe que essa situação seja tida em conta. Por conseguinte, a interpretação do referido artigo 14.° proposta pelo Governo espanhol não pode ser considerada contrária à Diretiva 2001/14.

78.      A Comissão sustenta igualmente que a quarta prioridade de repartição de capacidade da infraestrutura referida no artigo 11.°, alínea b), ponto 4, do despacho FOM/897/2005 é contrária aos artigos 13.°, n.° 2, e 14.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14.

79.      Por um lado, a Comissão considera que esta quarta prioridade de repartição viola o artigo 13.°, n.° 2, da referida diretiva, na medida em que, na prática, pode levar a que uma empresa de transporte ferroviário beneficie do direito de utilizar um traçado de maneira indefinida. Tal prática priva de efeito útil a proibição estabelecida no referido artigo 13.°, segundo a qual os traçados podem ser concedidos por um período máximo correspondente ao período de vigência de um horário de serviço.

80.      Por outro lado, a Comissão considera que a quarta prioridade de repartição não respeita o artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14, na medida em que, na prática, pode impedir o acesso a traçados mais atrativos para os novos utilizadores (geralmente, empresas de outros Estados‑Membros) e manter as vantagens dos utilizadores habituais (geralmente, empresas espanholas), o que é discriminatório.

81.      No contexto da quarta prioridade de repartição, a Comissão salienta que o artigo 12.° da Diretiva 2001/14 prevê expressamente a possibilidade de os gestores da infraestrutura aplicarem uma taxa de reserva a fim de rentabilizar ao máximo a exploração do sistema ferroviário. Embora não se opondo à tomada em consideração, entre outros critérios de repartição, do histórico de utilização dos operadores, a Comissão considera no entanto que, para que o utilizador habitual de um traçado horário não seja favorecido de maneira discriminatória face aos novos utilizadores, é preciso ter em conta não só o histórico do traçado horário objeto de cada processo de repartição, mas também do histórico de utilização dos outros operadores em traçados comparáveis.

82.      Especifica que o artigo 22.° da Diretiva 2001/14 só é aplicável no caso de uma infraestrutura congestionada, ao passo que o artigo 11.°, alínea b), ponto 4, do despacho FOM/897/2005 é aplicável não só neste caso, mas também, de maneira geral, desde que exista uma sobreposição de pedidos para um mesmo traçado horário. Em qualquer caso, nenhuma das disposições constantes do referido artigo 22.° permite aos Estados‑Membros adotarem um critério de repartição como o que é objeto da presente acusação.

83.      A possibilidade prevista no artigo 13.°, n.° 2, da Diretiva 2001/14 de celebrar acordos‑quadro e invocada pelo Governo espanhol constitui uma exceção à regra geral, cujo exercício está subordinado às condições previstas no artigo 17.° da Diretiva 2001/14.

84.      O Governo espanhol contesta que a quarta prioridade de repartição seja contrária aos artigos 13.°, n.° 2, e 14.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14.

85.      Com efeito, o critério referido no artigo 11.°, alínea b), ponto 4, do despacho FOM/897/2005 é um mero critério entre outros, para efeitos da repartição de capacidade quando elas não forem suficientes ou quando existam vários pedidos para um mesmo traçado. Segundo o Governo espanhol, este critério implica uma discriminação racional e justa na medida em que é razoável ter em conta o histórico de utilização efetiva da capacidade dos operadores a fim de otimizar a utilização da rede ferroviária.

86.      Neste contexto, o Governo espanhol faz referência ao artigo 22.°, n.° 4, da Diretiva 2001/14, segundo o qual no caso de infraestrutura congestionada os critérios de prioridade devem ter em conta a importância do serviço para a sociedade em relação a qualquer outro serviço que seja excluído em virtude do primeiro.

87.      Segundo este mesmo Governo, o artigo 13.°, n.° 2, da Diretiva 2001/14 não proíbe de maneira absoluta uma empresa de gozar indefinidamente de um traçado horário. Esta interpretação é confirmada pelo facto de a mesma disposição prever a possibilidade de celebrar acordos‑quadro relativos à utilização da capacidade da infraestrutura ferroviária em causa, por um período superior a um único período de vigência do horário de serviço.

88.      O Governo espanhol considera também que o facto de tomar em consideração traçados equivalentes quando é tido em conta o histórico de utilização acrescenta um elemento de insegurança jurídica, na medida em que a natureza equivalente destes não está definida.

89.      Por último, este Governo considera que o argumento da Comissão segundo o qual o artigo 11.°, alínea b), ponto 4, do despacho FOM/897/2005 é aplicável, de maneira geral, em caso de sobreposição de pedidos, é um pouco forçado na medida em que o facto de haver uma sobreposição de pedidos para um mesmo traçado horário o torna congestionado.

2.      Análise da quinta acusação

90.      Em primeiro lugar, no que respeita à primeira prioridade de repartição de capacidade da infraestrutura, estabelecida pelo artigo 11.°, alínea b), ponto 1, do despacho FOM/897/2005, há que observar que o artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14 dispõe expressamente que devem ser fixadas regras específicas de repartição de capacidade pelos Estados‑Membros, os quais podem também definir um quadro para a repartição de capacidade da infraestrutura, respeitando a independência de gestão prevista no artigo 4.° da Diretiva 91/440.

91.      É verdade que, de acordo com os considerandos décimo oitavo e vigésimo da Diretiva 2001/14, esta exige que o gestor da infraestrutura disponha de margem de manobra para efeitos da repartição da infraestrutura. Em contrapartida, a redação da referida diretiva não permite concluir que as regras específicas de repartição de capacidade possam introduzir um elemento discricionário de apreciação política para efeitos da repartição da infraestrutura. Com efeito, a competência para a atribuição da prioridade a determinados serviços é do gestor da infraestrutura que só a pode exercer segundo as condições estritas enumeradas nos artigos 22.°, relativo ao congestionamento da infraestrutura, e 24.°, relativo à infraestrutura especializada, da Diretiva 2001/14.

92.      No caso do Reino de Espanha, a competência discricionária reconhecida ao Ministério não só em caso de circunstâncias excecionais mas a título geral, parece‑me, por maioria de razão, estar em contradição com a Diretiva 2001/14, dado tratar‑se do ministério que desempenha funções de entidade reguladora, na aceção do artigo 30.°, n.° 3, da Diretiva 2001/14.

93.      No que respeita à quarta prioridade de repartição, prevista no artigo 11.°, alínea b), ponto 4, do despacho FOM/897/2005, importa referir que, nos termos do artigo 13.°, n.° 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2001/14, o direito de utilização de uma capacidade de infraestrutura específica na forma de um traçado pode ser concedido por um período máximo correspondente ao período de vigência de um horário de serviço. Nos termos do segundo parágrafo do referido número, uma empresa de transporte ferroviário pode utilizar, por força da celebração de um acordo‑quadro e conforme previsto no artigo 17.° da Diretiva 2001/14, a capacidade da infraestrutura por um período superior ao período de vigência de um horário de serviço.

94.      A este respeito, a legislação espanhola em causa, a saber, o artigo 11.°, alínea b), ponto 4, do despacho FOM/897/2005, não subordina à existência de um acordo‑quadro a tomada em conta da repartição e a utilização efetiva pelo demandante de horários de serviço anteriores aos traçados horários cuja utilização é solicitada, como exige a Diretiva 2001/14. É por essa razão que a regulamentação espanhola em causa não está abrangida pela exceção prevista no artigo 13.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2001/14, que permite a atribuição de direitos de utilização de capacidade determinada da infraestrutura sob a forma de traçados, por um período superior ao período de vigência de um horário de serviço.

95.      Quanto ao caráter discriminatório da quarta prioridade denunciado pela Comissão, observo que o próprio Governo espanhol reconhece que esta prioridade implica uma discriminação entre os utilizadores habituais e os novos. Ora, na minha opinião, tal discriminação está manifestamente em contradição com o objetivo principal da legislação ferroviária da União, a saber, assegurar um acesso não discriminatório à infraestrutura. Este objetivo favorece a abertura dos serviços ferroviários prestados pelos operadores históricos à concorrência pelos novos utilizadores.

96.      O Governo espanhol justifica este caráter discriminatório do critério da utilização efetiva da rede, enquanto critério para a repartição de capacidade da infraestrutura, pelo objetivo de garantir uma utilização mais eficaz da rede ferroviária. Esta justificação não pode ser acolhida. O facto de favorecer o operador habitual não conduz automaticamente a uma utilização eficaz da rede.

97.      Acrescento que a Diretiva 2001/14 contém disposições específicas que visam incentivar a utilização eficaz de capacidade da infraestrutura. Este objetivo de incentivo é designadamente visado pelos artigos 12.°, relativo às taxas de reserva de capacidade, 23.°, n.° 2, relativo à necessidade de manter uma reserva de capacidade que permita responder rapidamente aos pedidos ad hoc de capacidade previsíveis, e 27.°, relativo à utilização dos traçados, da Diretiva 2001/14. Ora, o facto de favorecer o operador histórico não figura entre as medidas previstas pela referida diretiva destinadas a promover a utilização eficaz da rede. Por conseguinte, esse critério não é compatível com as exigências da Diretiva 2001/14, designadamente com o seu artigo 13.°, n.° 2.

98.      Daqui concluo que a quinta acusação da Comissão deve ser julgada procedente.

V —    Quanto às despesas

99.      Por força do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

100. Tendo a Comissão pedido a condenação do Reino de Espanha nas despesas, este pedido deverá ser julgado procedente se, como proponho, a ação por incumprimento for julgada integralmente procedente.

101. Em conformidade com o disposto no artigo 69.°, n.° 4, primeiro parágrafo, do Regulamento de Processo, a República Francesa e a República Checa, que pediram para intervir no presente litígio, suportarão as suas próprias despesas.

VI — Conclusão

102. À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça declare o seguinte:

1)      O Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Diretiva 2001/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001, relativa à repartição de capacidade da infraestrutura ferroviária e à aplicação de taxas de utilização da infraestrutura ferroviária, conforme alterada pela Diretiva 2007/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2001, no que respeita

¾        ao artigo 4.°, n.° 1, ao prever a determinação das taxas para a utilização da infraestrutura mediante despacho ministerial;

¾        ao artigo 11.°, ao não adotar medidas necessárias para efeitos da instituição de um regime de melhoria do desempenho;

¾        ao artigo 13.°, n.° 2, ao deixar uma margem de discricionariedade excessiva ao ministro em causa para efeitos da determinação das regras específicas de repartição das capacidades, e

¾        ao artigo 14.°, n.° 1, ao prever que a repartição e a utilização efetiva pelo requerente de horários de serviço anteriores seja tomada em consideração na repartição das capacidades da infraestrutura ferroviária.

2)      O Reino de Espanha é condenado nas despesas.

3)      A República Francesa e a República Checa suportam as suas próprias despesas.


1 —      Língua original: francês.


2 —      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001, relativa à repartição de capacidade da infraestrutura ferroviária, à aplicação de taxas de utilização da infraestrutura ferroviária e à certificação de segurança (JO L 75, p. 29). O título da Diretiva 2001/14 foi alterado pelo artigo 30.° da Diretiva 2004/49/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa à segurança dos caminhos de ferro da Comunidade (JO L 164, p. 44). Atualmente, intitula‑se «Diretiva 2001/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001, relativa à repartição de capacidade da infraestrutura ferroviária e à aplicação de taxas de utilização da infraestrutura ferroviária».


3 —      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007 (JO L 315, p. 44).


4 —      Trata‑se dos processos pendentes no Tribunal de Justiça, Comissão/Hungria (C‑473/10); Comissão/Polónia (C‑512/10); Comissão/Grécia (C‑528/10); Comissão/República Checa (C‑545/10); Comissão/Áustria (C‑555/10); Comissão/Alemanha (C‑556/10); Comissão/Portugal (C‑557/10); Comissão/França (C‑625/10); Comissão/Eslovénia (C‑627/10); Comissão/Itália (C‑369/11), e Comissão/Luxemburgo (C‑412/11).


5 —      Diretiva do Conselho de 29 de julho de 1991, relativa ao desenvolvimento dos caminhos de ferro comunitários (JO L 237, p. 25).


6 —      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2001 (JO L 75, p. 1).


7 —      BOE n.° 276, de 18 de novembro de 2003.


8 —      BOE n.° 315, de 31 de dezembro de 2004.


9 —      BOE n.° 315, de 31 de dezembro de 2004.


10 —      BOE n.° 85, de 9 de abril de 2005.


11 —      BOE n.° 85, de 9 de abril de 2005.


12 —      Diretiva do Conselho, de 19 de junho de 1995, relativa às licenças das empresas de transporte ferroviário (JO L 143, p. 70).


13 —      BOE n.° 55, de 5 de março de 2011.


14 —      No seguimento da desistência parcial da Comissão, uma parte das observações da República Checa, relativas ao artigo 30.°, n.° 1, da Diretiva 2001/14 e ao artigo 10.°, n.° 7, da Diretiva 91/440, ficaram sem objeto.


15 —      Importa especificar, a este respeito, que, em conformidade com o artigo 6.°, n.° 3, da Diretiva 91/440, para assegurar um acesso equitativo e não discriminatório à infraestrutura, as funções essenciais, tal como enumeradas no anexo II desta diretiva, devem ser atribuídas a entidades que não efetuem, elas próprias, serviços de transporte ferroviário.


16 —      Deve‑se acrescentar que a organização estabelecida em Espanha está sob controlo integral do Estado. A ADIF e o operador histórico (RENFE) são empresas públicas tuteladas pelo Ministério do Equipamento e dos Transportes. A entidade reguladora está integrada no referido ministério e as suas decisões são passíveis de recurso para o ministro.


17 —      V., designadamente, acórdão de 25 de fevereiro de 2010, Comissão/Espanha (C‑295/09, n.° 10, e jurisprudência aí referida).


18 —      Acórdão de 6 de maio de 1980, Comissão/Bélgica (102/79, Recueil, p. 1473, n.° 15). V., recentemente, acórdão de 1 de abril de 2008, Gouvernement de la Communauté française e Gouvernement wallon (C‑212/06, Colet., p. I‑1683, n.° 58 e jurisprudência aí referida).