Language of document : ECLI:EU:C:2011:339

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

24 de Maio de 2011 (*)

«Incumprimento de Estado – Artigo 43.° CE – Liberdade de estabelecimento – Notários – Requisito da nacionalidade – Artigo 45.° CE – Actividades ligadas ao exercício da autoridade pública – Directivas 89/48/CEE e 2005/36/CE»

No processo C‑54/08,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 12 de Fevereiro de 2008,

Comissão Europeia, representada por H. Støvlbæk e G. Braun, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

apoiada por:

Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por S. Behzadi‑Spencer, na qualidade de agente,

interveniente,

contra

República Federal da Alemanha, representada por M. Lumma, J. Kemper, U. Karpenstein e J. Möller, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

apoiada por:

República da Bulgária, representada por T. Ivanov e E. Petranova, na qualidade de agentes,

República Checa, representada por M. Smolek, na qualidade de agente,

República da Estónia, representada por L. Uibo, na qualidade de agente,

República Francesa, representada por G. de Bergues e B. Messmer, na qualidade de agentes,

República da Letónia, representada por L. Ostrovska, K. Drēviņa e J. Barbale, na qualidade de agentes,

República da Lituânia, representada por D. Kriaučiūnas e E. Matulionytė, na qualidade de agentes,

República da Hungria, representada por R. Somssich, K. Veres e M. Fehér, na qualidade de agentes,

República da Áustria, representada por E. Riedl, G. Holley e M. Aufner, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

República da Polónia, representada por M. Dowgielewicz, C. Herma e D. Lutostańska, na qualidade de agentes,

República da Eslovénia, representada por V. Klemenc e Ž. Cilenšek Bončina, na qualidade de agentes,

República Eslovaca, representada por J. Čorba e B. Ricziová, na qualidade de agentes,

intervenientes,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev (relator) e J.‑J. Kasel, presidentes de secção, R. Silva de Lapuerta, E. Juhász, G. Arestis, M. Ilešič, C. Toader e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: M.‑A. Gaudissart, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 27 de Abril de 2010,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de Setembro de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        Através da sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao impor um requisito de nacionalidade para o acesso à profissão de notário e ao não ter transposto, relativamente a esta profissão, a Directiva 89/48/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, relativa a um sistema geral de reconhecimento dos diplomas de ensino superior que sancionam formações profissionais com uma duração mínima de três anos (JO 1989, L 19, p. 16), conforme alterada pela Directiva 2001/19/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Maio de 2001 (JO L 206, p. 1, a seguir «Directiva 89/48»), e/ou a Directiva 2005/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Setembro de 2005, relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais (JO L 255, p. 22), a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.° CE e 45.° CE e por força destas directivas.

 Quadro jurídico

 Direito da União

2        O considerando 12 da Directiva 89/48 enunciava que «o sistema geral de reconhecimento de diplomas do ensino superior em nada prejudica a aplicação do artigo [45.° CE]».

3        O artigo 2.° da Directiva 89/48 tinha a seguinte redacção:

«A presente directiva aplica‑se aos nacionais de um Estado‑Membro que desejem exercer, como independentes ou assalariados, uma profissão regulamentada num Estado‑Membro de acolhimento.

A presente directiva não se aplica às profissões que sejam objecto de uma directiva específica que institua o reconhecimento mútuo de diplomas entre os Estado‑Membros.»

4        A profissão de notário não foi objecto de regulamentação do tipo da visada no referido artigo 2.°, segundo parágrafo.

5        A Directiva 89/48 previa um prazo de transposição que expirava, em conformidade com o disposto no seu artigo 12.°, em 4 de Janeiro de 1991.

6        A Directiva 2005/36 revogou, nos termos do seu artigo 62.°, a Directiva 89/48, com efeitos a partir de 20 de Outubro de 2007.

7        O considerando 9 da Directiva 2005/36 tem a seguinte redacção:

«No que se refere à liberdade de estabelecimento, sem deixar de manter os princípios e as garantias subjacentes aos diferentes sistemas de reconhecimento em vigor, as regras destes sistemas deveriam ser melhoradas à luz da experiência. Além disso, as directivas pertinentes foram alteradas por diversas vezes, sendo necessária uma reorganização, bem como uma racionalização do que nelas se encontra disposto através da uniformização dos princípios aplicáveis. Para tal, é necessário substituir as Directivas 89/48/CEE [...]»

8        O considerando 14 desta directiva enuncia:

«O mecanismo de reconhecimento estabelecido [pela Directiva 89/48] mantém‑se inalterado. [...]»

9        Nos termos do considerando 41 da Directiva 2005/36, esta «não prejudica a aplicação do n.° 4 do artigo 39.° [CE] e do artigo 45.° [CE], designadamente no que diz respeito aos notários».

 Legislação nacional

 Organização geral da profissão de notário

10      A actividade de notário, na ordem jurídica alemã, com excepção do Land de Bade‑Wurtemberg, é exercida no âmbito de uma profissão liberal. A organização da profissão de notário é regulada pelo Código Federal do Notariado (Bundesnotarordnung) de 24 de Fevereiro de 1961 (BGBl. 1961 I, p. 97), conforme alterado pela Sexta Lei de Alteração do Código Federal do Notariado (Sechstes Gesetz zur Änderung der Bundesnotarordnung) de 15 de Julho de 2006 (BGBl. 2006 I, p. 1531, a seguir «BNotO»).

11      Os notários são nomeados pelos Länder, em conformidade com o disposto no § 1 do BNotO, na qualidade de funcionários públicos independentes, encarregados da autenticação de actos jurídicos e de outras funções no domínio da «administração preventiva da justiça».

12      O § 4, primeiro período, do BNotO prevê que o número de notários a nomear é o que corresponde às necessidades de uma boa administração da justiça.

13      É atribuído ao notário, em conformidade com o disposto no § 10, n.os 1, primeiro período, e 2, primeiro período, do BNotO, um determinado lugar como sede das suas actividades, onde é obrigado a ter o seu escritório. Em princípio, o exercício das suas actividades é circunscrito, em conformidade com o disposto nos §§ 10a e 11 do BNotO, a uma determinada área territorial.

14      Nos termos do § 17, n.° 1, primeiro período, do BNotO, o notário recebe como contrapartida da sua actividade os honorários previstos na lei.

15      Em conformidade com o disposto no § 19, n.° 1, do BNotO, o notário é o único responsável pelos actos desempenhados no âmbito da sua actividade profissional, estando, a este respeito, excluída a responsabilidade do Estado.

16      No Land de Bade‑Wurtemberg, em conformidade com a possibilidade prevista no § 115, n.° 1, do BNotO, a função notarial é exercida, no território de Bade, por «Notare im Landesdienst» (notários ao serviço do Land), que são funcionários empregados pelo Land. No restante território da República Federal da Alemanha, e consoante os Länder, o notário exerce a sua profissão, nos termos do § 3 do BNotO, a título exclusivo ou juntamente com a profissão de advogado («Anwaltsnotare»).

17      A função de notário só pode ser exercida, nos termos do § 5 do BNotO, por um nacional alemão.

 Actividades notariais

18      Em conformidade com o disposto no § 20, n.° 1, primeiro período, do BNotO, o notário é competente para proceder a qualquer tipo de autenticação, para reconhecer assinaturas e sinais manuscritos e para certificar cópias. A intervenção do notário pode ser obrigatória ou facultativa, em função do acto que seja chamado a autenticar. Quando intervém, o notário verifica se estão reunidos todos os requisitos legalmente exigidos para a realização do acto em causa assim como a capacidade jurídica e a capacidade para agir das partes em causa.

19      Em conformidade com o § 17, n.° 1, da Lei relativa à autenticação dos documentos (Beurkundungsgesetz) de 28 de Agosto de 1969 (BGBl. 1969 I, p. 1513), conforme alterada pela Lei de 23 de Julho de 2002 (BGBl. 2002 I, p. 2850), o notário deve procurar determinar qual é a vontade das partes interessadas, clarificar os factos, informar as partes sobre o alcance jurídico do acto em questão e reproduzir por escrito as suas declarações, de forma clara e inequívoca, para evitar erros ou dúvidas e que uma parte inexperiente seja prejudicada.

20      Nos termos do § 4 desta lei, conforme alterada, o notário deve recusar a autenticação quando esta não seja conciliável com os deveres da sua função, em especial quando a sua intervenção seja solicitada para participar na prossecução de um objectivo manifestamente ilícito ou desonesto.

21      O § 286 do Código de Processo Civil (Zivilprozessordnung), na sua versão publicada em 5 de Dezembro de 2005 (BGBl. 2005 I, p. 3202, e rectificações no BGBl. 2006 I, p. 431, e no BGBl. 2007 I, p. 1781, a seguir «ZPO»), consagra o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.

22      O § 415, n.° 1, do ZPO, que figura no título 9, «Provas documentais», do capítulo 1 do livro 2 deste código, prevê que os documentos exarados, de acordo as formalidades prescritas, por uma autoridade pública no âmbito das suas competências ou por uma pessoa investida de fé pública no âmbito da esfera de actividades que lhe é confiada, a saber, os actos autênticos, fazem prova plena e integral, quando são elaborados relativamente a uma declaração feita perante a autoridade ou a pessoa habilitada a exarar o documento, do evento autenticado pela autoridade ou pela pessoa em causa. Segundo o § 415, n.° 2, do ZPO, é, em princípio, admissível a prova de que este evento foi autenticado de forma incorrecta.

23      Do mesmo modo, o §  418, n.° 1, do ZPO prevê que os actos autênticos que tenham um conteúdo diferente dos referidos no § 415 fazem prova plena e integral dos factos que certificam, se o testemunho for baseado na percepção pessoal da autoridade pública ou da pessoa que beneficia da fé pública. Segundo o § 418, n.° 2, do ZPO, é, em princípio, admissível a prova de que os factos comprovados são incorrectos.

24      Em direito civil, o § 125 do Código Civil (Bürgerliches Gesetzbuch), na sua versão publicada em 2 de Janeiro de 2002 (BGBl. 2002 I, p. 42, e rectificações no BGBl. 2002 I, p. 2909, e no BGBl. 2003 I, p. 738), prevê que a inobservância da forma prescrita por lei para a realização de um acto jurídico provoca a nulidade deste.

25      Neste contexto, certas transacções devem ser celebradas por acto notarial, sob pena de nulidade. Trata‑se, nomeadamente, dos contratos relativos à aquisição e à transferência do direito de propriedade sobre um terreno e à transferência de um património actual, das promessas de doação, das convenções antenupciais, dos pactos sucessórios e dos contratos relativos ao repúdio de sucessão ou à legítima.

26      Os notários com sede no Land da Baviera podem, nos termos do § 1, n.° 1, primeiro período, da Lei de execução da lei relativa às relações duradouras formalmente registadas (Gesetz zur Ausführung des Lebenspartnerschaftsgesetzes) de 26 de Outubro de 2001 (Bayerisches GVBl., p. 677), conforme alterada pela Lei de 10 de Dezembro de 2005 (Bayerisches GVBl., p. 586, a seguir «AGLPartG»), autenticar os actos por meio dos quais é constituída uma relação duradoura formalmente registada entre pessoas do mesmo sexo. De acordo com as disposições do § 2 da AGLPartG, o notário comunica a constituição dessa relação duradoura à Conservatória do Registo Civil competente, que fica encarregada de a inscrever no registo civil por si administrado.

27      Em direito das sociedades, os §§ 23, n.° 1, primeiro período, 30, n.° 1, e 130, n.° 1, primeiro período, da Lei relativa às sociedades anónimas (Aktiengesetz) de 6 de Setembro de 1965 (BGBl. 1965 I, p. 1089), conforme alterada pela Lei de 22 de Setembro de 2005 (BGBl. 2005 I, p. 2802), estabelecem a exigência de autenticação notarial para os estatutos de uma sociedade anónima, para a nomeação do primeiro conselho de supervisão de uma nova sociedade anónima e para as deliberações da assembleia geral dessa sociedade. Os §§ 2, n.° 1, primeiro período, e 53, n.° 2, primeiro período, da Lei relativa às sociedades de responsabilidade limitada (Gesetz betreffend die Gesellschaften mit beschränkter Haftung, RGBl. 1898, p. 846), conforme alterada pela Lei de 4 de Julho de 1980 (BGBl. 1980 I, p. 836), impõem a forma notarial para a celebração e a alteração de um contrato que cria uma sociedade de responsabilidade limitada. Do mesmo modo, todas as transformações de pessoas colectivas ou de entidades através de fusão, cessão de activos ou alteração da forma jurídica devem ser feitas através de documento notarial, nos termos dos §§ 6, 163, n.° 3, e 193, n.° 3, primeiro período, da Lei relativa às transformações das sociedades (Umwandlungsgesetz) de 28 de Outubro de 1994 (BGBl. 1994 I, p. 3210, e rectificação no BGBl. 1995 I, p. 428).

28      Nos termos do § 794, n.° 1, ponto 5, do ZPO, a execução coerciva tem por base, quando estejam reunidos certos requisitos, actos autênticos exarados por um notário alemão de acordo com a forma prescrita no âmbito das suas competências se, no acto autêntico, o devedor se tiver sujeitado, relativamente ao direito em causa, a uma execução coerciva imediata.

29      Nos termos do § 797, n.° 2, do ZPO, o notário que conserva o acto autêntico entrega cópias executórias.

30      A impugnação contra a aposição da fórmula executória prevista no § 797, n.° 3, do ZPO permite que sejam invocados fundamentos formais e materiais contra a aposição desta fórmula. Do mesmo modo, o § 797, n.° 4, do ZPO permite pôr em causa, no âmbito de um processo de oposição à execução coerciva, o direito confirmado no acto autêntico em causa.

 Procedimento pré‑contencioso

31      Foi apresentada à Comissão uma queixa relativa ao requisito de nacionalidade para o acesso à profissão de notário na Alemanha. Depois de ter examinado esta queixa, a Comissão, por carta de 8 de Novembro de 2000, enviou à República Federal da Alemanha uma notificação para cumprir, para que esta, no prazo de dois meses, lhe apresentasse as suas observações a propósito, nomeadamente, por um lado, da conformidade do referido requisito de nacionalidade com o artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE e, por outro, da não transposição da Directiva 89/48, no que respeita à profissão de notário.

32      Por carta de 20 de Março de 2001, a República Federal da Alemanha respondeu à referida notificação para cumprir.

33      Em 10 de Julho de 2002, a Comissão enviou a este Estado‑Membro uma notificação para cumprir complementar, na qual o acusava de não ter cumprido as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.° CE e 45.°, primeiro parágrafo, CE e da Directiva 89/48.

34      O referido Estado‑Membro respondeu a esta notificação para cumprir complementar, por carta de 31 de Outubro de 2002.

35      Não tendo ficado convencida com os argumentos invocados pela República Federal da Alemanha, a Comissão, em 18 de Outubro de 2006, enviou a este Estado‑Membro um parecer fundamentado, no qual concluiu que este não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.° CE e 45.°, primeiro parágrafo, CE e da Directiva 89/48. Esta instituição convidou o referido Estado‑Membro a adoptar as medidas necessárias para dar cumprimento ao parecer fundamentado no prazo de dois meses a contar da sua recepção.

36      Por carta de 18 de Dezembro de 2006, a República Federal da Alemanha apresentou os motivos pelos quais considerava que a posição defendida pela Comissão não era procedente.

37      Foi nestas condições que a Comissão decidiu intentar a presente acção.

 Quanto à acção

 Quanto ao primeiro fundamento

 Argumentos das partes

38      Através do seu primeiro fundamento, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao reservar o acesso à profissão de notário unicamente aos seus próprios nacionais, a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.° CE e 45.°, primeiro parágrafo, CE.

39      Esta instituição sublinha, a título preliminar, que o acesso à profissão de notário não está sujeito a nenhum requisito de nacionalidade em certos Estado‑Membros e que este requisito foi eliminado por outros Estados‑Membros, como o Reino de Espanha, a República Italiana e a República Portuguesa.

40      Em primeiro lugar, a Comissão recorda que o artigo 43.° CE constitui uma das disposições fundamentais do direito da União que visa garantir o direito ao tratamento nacional a todos os nacionais de um Estado‑Membro que se estabeleçam noutro Estado‑Membro, mesmo que a título secundário, para aí exercerem uma actividade não assalariada, e proíbe qualquer discriminação em razão da nacionalidade.

41      Esta instituição e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte alegam que o artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE deve ser objecto de uma interpretação autónoma e uniforme (acórdão de 15 de Março de 1988, Comissão/Grécia, 147/86, Colect., p. 1637, n.° 8). Na parte em que prevê uma excepção à liberdade de estabelecimento para as actividades ligadas ao exercício da autoridade pública, este artigo deve, além disso, ser interpretado de forma estrita (acórdão de 21 de Junho de 1974, Reyners, 2/74, Colect., p. 325, n.° 43).

42      A excepção prevista no artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE deve assim ser restringida às actividades que, em si próprias, constituem a participação directa e específica no exercício do poder público (acórdão Reyners, já referido, n.os 44 e 45). Segundo a Comissão, o conceito de poder público decorre de um poder de decisão que extravase do direito comum, que se traduz na capacidade de agir independentemente da vontade de outros sujeitos ou mesmo contra essa vontade. Em especial, a autoridade pública manifesta‑se, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, através do exercício de poderes para impor obrigações (acórdão de 29 de Outubro de 1998, Comissão/Espanha, C‑114/97, Colect., p. I‑6717, n.° 37).

43      A Comissão e o Reino Unido são de opinião de que as actividades que estão ligadas ao exercício da autoridade pública devem ser distinguidas das que são exercidas no interesse geral. Com efeito, são atribuídas a diversas profissões competências específicas no interesse geral, que não são suficientes para conferir à sua actividade a natureza de exercício da autoridade pública.

44      Também ficam excluídas do âmbito de aplicação do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE as actividades que constituem assistência ou colaboração no funcionamento da autoridade pública (v., neste sentido, acórdão de 13 de Julho de 1993, Thijssen, C‑42/92, Colect., p. I‑4047, n.° 22).

45      Além disso, a Comissão e o Reino Unido recordam que o artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE visa, em princípio, actividades determinadas, e não uma profissão na sua totalidade, a menos que as actividades em causa não sejam destacáveis do conjunto das que são exercidas no âmbito da referida profissão.

46      A Comissão procede, em segundo lugar, ao exame das diferentes actividades exercidas pelo notário na ordem jurídica alemã.

47      No que respeita à autenticação dos actos e das convenções, a Comissão alega que o notário se limita a testemunhar a vontade das partes, depois de as ter aconselhado, e a conferir efeitos jurídicos a essa vontade. No exercício desta actividade, o notário não dispõe de poder decisório relativamente às partes.

48      O facto de esta actividade ser considerada na legislação alemã como pertencente ao domínio da «justiça preventiva» não põe em causa esta análise, uma vez que a actividade dos notários não está ligada ao exercício da autoridade pública, na medida em que não têm poder para impor decisões.

49      Assim, a autenticação efectuada pelo notário mais não é do que a confirmação de um acordo prévio entre as partes. O facto de certos actos deverem obrigatoriamente ser autenticados não é relevante, uma vez que vários procedimentos têm carácter obrigatório, sem, no entanto, constituírem a manifestação do exercício da autoridade pública.

50      Sucede o mesmo com as especificidades do regime da prova respeitante aos actos notariais, sendo também conferida força probatória comparável a outros actos que não estão abrangidos pelo exercício da autoridade pública, como os autos levantados pelos guardas‑rurais, pelos guardas‑florestais, pelos guardas‑florestais auxiliares e pelos guarda‑rios ajuramentados. O facto de o notário se responsabilizar no momento em que são lavrados os actos notariais também não é pertinente. Com efeito, é o que acontece com a maioria dos profissionais independentes, como os advogados, os arquitectos ou os médicos.

51      Quanto à força executória dos actos autênticos, a Comissão considera que a aposição da fórmula executória antecede a execução propriamente dita, sem dela fazer parte. Deste modo, esta força executória não confere aos notários o poder para impor obrigações. Por outro lado, as eventuais impugnações são decididas não pelo notário mas pelo juiz.

52      A actividade de consultor jurídico, ligada, regra geral, à actividade de autenticação, exercida pelo notário na ordem jurídica alemã, também não constitui uma actividade ligada ao exercício da autoridade pública.

53      A Comissão é da opinião de que, diversamente do que sucede com os conservadores do registo civil, os notários são, regra geral, encarregados, não da constituição e da alteração do estado civil mas da regulação da partilha dos bens entre parceiros. As funções confiadas, na Baviera, aos notários em matéria de parcerias duradouras formalmente registadas entre pessoas do mesmo sexo não permite fazer nenhuma dedução no que respeita à apreciação, à luz do direito da União, da intervenção qualificada dos notários no exercício da autoridade pública.

54      Em terceiro lugar, a Comissão considera, à semelhança do Reino Unido, que as regras do direito da União que contêm referências à actividade notarial não prejudicam a aplicação dos artigos 43.° CE e 45.°, primeiro parágrafo, CE a esta actividade.

55      Com efeito, no que respeita ao Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), e ao Regulamento (CE) n.° 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados (JO L 143, p. 15), a Comissão considera que estes regulamentos se limitam a prever a obrigação de os Estados‑Membros reconhecerem e conferirem força executória a actos recebidos e executórios noutro Estado‑Membro.

56      Além disso, o Regulamento (CE) n.° 2157/2001 do Conselho, de 8 de Outubro de 2001, relativo ao estatuto da sociedade europeia (SE) (JO L 294, p. 1), o Regulamento (CE) n.° 1435/2003 do Conselho, de 22 de Julho de 2003, relativo ao Estatuto da Sociedade Cooperativa Europeia (SCE) (JO L 207, p. 1), e a Directiva 2005/56/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro de 2005, relativa às fusões transfronteiriças das sociedades de responsabilidade limitada (JO L 310, p. 1), não são pertinentes para a resolução do presente litígio, uma vez que se limitam a atribuir aos notários, bem como a outras autoridades competentes designadas pelos Estados‑Membros, a função de certificar a realização de certos actos e formalidades prévios à transferência de sede, à constituição e à fusão de sociedades.

57      Por seu turno, a Resolução do Parlamento Europeu de 23 de Março de 2006 sobre as profissões jurídicas e o interesse geral no funcionamento da ordem jurídica (JO C 292E, p. 105, a seguir «Resolução de 2006») constitui um acto puramente político, cujo conteúdo é ambíguo porque, por um lado, no n.° 17 desta resolução, o Parlamento Europeu afirmou que o artigo 45.° CE se deve aplicar à profissão de notário, quando, por outro, no seu n.° 2, confirmou a posição formulada na sua Resolução de 18 de Janeiro de 1994 sobre a situação e organização do notariado nos doze Estados‑Membros da Comunidade (JO C 44, p. 36, a seguir «Resolução de 1994»), na qual manifestava o desejo de que o requisito da nacionalidade para o acesso à profissão de notário, previsto na regulamentação de vários Estados‑Membros, fosse eliminado.

58      A Comissão e o Reino Unido acrescentam que o processo que deu origem ao acórdão de 30 de Setembro de 2003, Colegio de Oficiales de la Marina Mercante Española (C‑405/01, Colect., p. I‑10391), ao qual vários Estados‑Membros se referem nas suas observações escritas, dizia respeito ao exercício, por parte dos capitães e dos imediatos de navios mercantes, de um vasto conjunto de funções de manutenção da segurança, de poderes de polícia, bem como de competências em matéria notarial e de registo civil. Deste modo, o Tribunal de Justiça não teve a ocasião de examinar em pormenor as diferentes actividades exercidas pelos notários, à luz do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE. Por conseguinte, este acórdão não é suficiente para se concluir pela aplicação desta disposição aos notários.

59      Por outro lado, contrariamente ao que afirma a República Federal da Alemanha, a jurisprudência do Tribunal de Justiça distingue os notários das autoridades públicas, quando reconhece que um acto autêntico pode ser elaborado por uma autoridade pública ou qualquer outra autoridade para isso habilitada (acórdão de 17 de Junho de 1999, Unibank, C‑260/97, Colect., p. I‑3715, n.os 15 e 21).

60      A República Federal da Alemanha, apoiada pela República da Bulgária, pela República Checa, pela República da Estónia, pela República Francesa, pela República da Letónia, pela República da Lituânia, pela República da Hungria, pela República da Áustria, pela República da Polónia, pela República da Eslovénia e pela República Eslovaca, alega que as actividades dos notários estão ligadas ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE.

61      A República Federal da Alemanha considera, à semelhança da Comissão, que o conceito de «autoridade pública», na acepção do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE, deve ser interpretado de forma autónoma e que este conceito deve ser objecto de interpretação estrita. Este Estado‑Membro, a República da Estónia, a República da Polónia e a República Eslovaca consideram, contudo, que o exercício de prerrogativas exorbitantes e de poderes de coerção assim como a existência de uma relação hierárquica com os cidadãos não constituem as únicas formas de exercício da autoridade pública. Do mesmo modo, a República da Letónia observa que as actividades ligadas ao exercício da autoridade pública não se limitam apenas às actividades de tomada de decisões independentemente da vontade dos interessados.

62      Segundo a República Federal da Alemanha, outras actividades podem também fazer parte do conceito de exercício da autoridade pública, quando se caracterizem por atribuições especiais relativamente aos cidadãos, quando não sejam simplesmente preparatórias ou de natureza técnica, mas vinculativas relativamente à autoridade que toma as decisões, e quando não sejam apenas esporádicas.

63      Este Estado‑Membro considera que as actividades atribuídas aos notários na ordem jurídica alemã fazem parte da «administração preventiva da justiça», que tem uma função complementar da justiça contenciosa. No âmbito das suas actividades, os notários conservam uma atitude tão objectiva e independente relativamente às partes como um tribunal comum, quando é chamado a dirimir um litígio.

64      Todas as actividades atribuídas aos notários na ordem jurídica alemã são actividades que produzem efeitos relativamente aos cidadãos. Além disso, as actividades ligadas ao exercício da autoridade pública não são esporádicas, antes constituindo a parte essencial das actividades dos notários.

65      A missão de «justiça preventiva» é assim transferida pelo Estado para os notários, a fim de aliviar os órgãos jurisdicionais, com excepção do Land de Bade‑Wurtemberg, onde o próprio Estado continua a desempenhar essa missão. Ao proceder à autenticação de um acto ou de uma convenção, o notário decide de forma definitiva e vinculativa a questão de saber se a celebração do acto jurídico sujeito a um requisito formal respeitou as condições pretendidas pelas partes. Antes de proceder à autenticação, o notário verifica se estão reunidos os requisitos gerais e informa com imparcialidade as partes sobre as consequências jurídicas do acto. Também controla a licitude dos acordos celebrados pelas partes.

66      Além disso, o acto notarial tem força probatória, que vincula, segundo a República Federal da Alemanha, os órgãos jurisdicionais, na sua apreciação das provas.

67      No que respeita à elaboração de títulos executivos e à atribuição de fórmula executória, este Estado‑Membro alega que os contratos celebrados perante notário são, na ordem jurídica alemã, títulos executivos cuja execução coerciva pode ser obtida com base numa fórmula executória aposta pelo notário, sem intervenção de um órgão jurisdicional.

68      Segundo o referido Estado‑Membro, a autenticação de um acto ou de uma convenção dá origem a um título vinculativo que, caso nesse acto ou convenção o devedor se tenha submetido a uma execução coerciva imediata, equivale a uma decisão judicial que adquiriu força de caso julgado.

69      Além disso, no âmbito da execução coerciva desencadeada com base num acto notarial e numa fórmula executória notarial, a autoridade de execução está vinculada pelas constatações relativas ao crédito constantes do referido acto e pela fórmula executória.  A elaboração de um título executivo e a aposição da fórmula executória comportam, assim, o exercício de poderes especiais relativamente aos cidadãos, independentemente da vontade destes, podendo as partes, no entanto, pedir a extinção da execução e contestar a licitude da aposição da referida fórmula.

70      Além disso, a República Federal da Alemanha alega que, na Baviera, os notários são competentes para celebrar parcerias duradouras formalmente registadas entre pessoas do mesmo sexo.

71      Por outro lado, os actos do direito da União mencionados nos n.os 55 e 56 do presente acórdão colocam os actos notariais ao mesmo nível das decisões judiciais.

72      A República Federal da Alemanha, a República da Estónia, a República da Letónia, a República da Lituânia, a República da Áustria, a República da Polónia e a República da Eslovénia também alegam que, no seu acórdão Colegio de Oficiales de la Marina Mercante Española, já referido, o Tribunal de Justiça qualificou, para efeitos do artigo 39.°, n.° 4, CE, as funções notariais dos capitães dos navios espanhóis como actividades ligadas ao exercício da autoridade pública. Além disso, resulta do acórdão Unibank, já referido, que a elaboração de actos autênticos por um funcionário público como o notário constitui uma actividade que está ligada directa e especificamente ao exercício da autoridade pública.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

–       Considerações preliminares

73      Através do seu primeiro fundamento, a Comissão acusa a República Federal da Alemanha de criar obstáculos ao estabelecimento, com vista ao exercício da profissão de notário, dos nacionais dos outros Estados‑Membros no seu território, reservando o acesso a esta profissão aos seus próprios nacionais, em violação do artigo 43.° CE.

74      Este fundamento tem assim por objecto apenas o requisito de nacionalidade, exigido pela legislação alemã em causa, para o acesso à referida profissão, à luz do artigo 43.° CE.

75      Por conseguinte, há que precisar que o referido fundamento não tem por objecto o estatuto e a organização do notariado na ordem jurídica alemã nem os requisitos de acesso, para além do que se refere à nacionalidade, à profissão de notário neste Estado‑Membro.

76      De resto, importa sublinhar, como a Comissão indicou na audiência, que o primeiro fundamento também não se refere à aplicação das disposições do Tratado CE relativas à livre prestação de serviços.

77      Do mesmo modo, não sendo a aplicação das disposições do Tratado relativas à livre circulação dos trabalhadores objecto do presente fundamento, este não tem por objecto a função notarial exercida pelos «Notare im Landesdienst» no Land de Bade‑Wurtemberg, que são funcionários empregados pelo Land.

–       Quanto ao mérito

78      Há que recordar, em primeiro lugar, que o artigo 43.° CE constitui uma das disposições fundamentais do direito da União (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão Reyners, já referido, n.° 43).

79      O conceito de estabelecimento, na acepção desta disposição, é um conceito muito amplo, que implica a possibilidade de um nacional da União participar, de modo estável e contínuo, na vida económica de um Estado‑Membro diferente do seu Estado‑Membro de origem, e de dela tirar proveito, favorecendo assim a interpenetração económica e social no interior da União Europeia no domínio das actividades não assalariadas (v., nomeadamente, acórdão de 22 de Dezembro de 2008, Comissão/Áustria, C‑161/07, Colect., p. I‑10671, n.° 24).

80      A liberdade de estabelecimento reconhecida aos nacionais de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro comporta, nomeadamente, o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício nas mesmas condições que as definidas pela legislação do Estado‑Membro de estabelecimento para os seus próprios nacionais (v., nomeadamente, acórdão de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, 270/83, Colect., p. 273, n.° 13, e, neste sentido, acórdão Comissão/Áustria, já referido, n.° 27). Por outras palavras, o artigo 43.° CE proíbe que cada Estado‑Membro preveja na sua legislação, para as pessoas que exercem a liberdade de nele se estabelecer, requisitos para o exercício das suas actividades diferentes dos definidos para os seus próprios nacionais (acórdão Comissão/Áustria, já referido, n.° 28).

81      O artigo 43.° CE visa, assim, garantir o direito ao tratamento nacional a todos os nacionais de um Estado‑Membro que se estabeleçam noutro Estado‑Membro para aí exercerem uma actividade não assalariada e proíbe qualquer discriminação em razão da nacionalidade, resultante das legislações nacionais, enquanto restrição à liberdade de estabelecimento (acórdão Comissão/França, já referido, n.° 14).

82      Ora, no presente caso, a legislação nacional controvertida reserva o acesso à profissão de notário aos cidadãos alemães, consagrando assim uma diferença de tratamento em razão da nacionalidade, proibida, em princípio, pelo artigo 43.° CE.

83      A República Federal da Alemanha alega, no entanto, que as actividades notariais não são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 43.° CE, porque estão ligadas ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE. Assim, num primeiro momento, há que examinar o alcance do conceito de exercício da autoridade pública na acepção desta última disposição e, num segundo momento, verificar se as actividades confiadas aos notários na ordem jurídica alemã são abrangidas por este conceito.

84      Relativamente ao conceito de «exercício da autoridade pública» na acepção do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE, importa sublinhar que a apreciação deste deve tomar em consideração, segundo jurisprudência constante, o carácter, próprio ao direito da União, dos limites impostos por esta disposição às excepções permitidas ao princípio da liberdade de estabelecimento, para evitar que o efeito útil do Tratado em matéria de liberdade de estabelecimento seja neutralizado por disposições unilaterais adoptadas pelos Estados‑Membros (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Reyners, n.° 50, e Comissão/Grécia, n.° 8; e acórdão de 22 de Outubro de 2009, Comissão/Portugal, C‑438/08, Colect., p. I‑10219, n.° 35).

85      É também jurisprudência constante que o artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE constitui uma derrogação à regra fundamental da liberdade de estabelecimento. Como tal, esta derrogação deve ser objecto de uma interpretação que limite o seu alcance ao estritamente necessário para salvaguardar os interesses que esta disposição permite aos Estados‑Membros proteger (acórdãos, já referidos, Comissão/Grécia, n.° 7, e Comissão/Espanha, n.° 34; acórdão de 30 de Março de 2006, Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, C‑451/03, Colect., p. I‑2941, n.° 45; acordãos de 29 de Novembro de 2007, Comissão/Áustria, C‑393/05, Colect., p. I‑10195, n.° 35, e Comissão/Alemanha, C‑404/05, Colect., p. I‑10239, n.os 37 e 46; e acórdão Comissão/Portugal, já referido, n.° 34).

86      Além disso, o Tribunal de Justiça já sublinhou repetidamente que a derrogação prevista no artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE se deve restringir apenas às actividades que, consideradas em si mesmas, apresentem uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública (acórdãos, já referidos, Reyners, n.° 45; Thijssen, n.° 8; Comissão/Espanha, n.° 35; Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, n.° 46; Comissão/Alemanha, n.° 38; e Comissão/Portugal, n.° 36).

87      A este respeito, o Tribunal de Justiça já teve ocasião de considerar que estão excluídas da derrogação prevista no artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE certas actividades que são auxiliares ou preparatórias relativamente ao exercício da autoridade pública (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Thijssen, n.° 22; Comissão/Espanha, n.° 38; Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, n.° 47; Comissão/Alemanha, n.° 38; e Comissão/Portugal, n.° 36), ou certas actividades cujo exercício, embora comporte contactos, ainda que regulares e orgânicos, com autoridades administrativas ou judiciárias, ou uma contribuição, mesmo que obrigatória, para o seu funcionamento, deixe intactos os poderes de apreciação e de decisão das referidas autoridades (v., neste sentido, acórdão Reyners, já referido, n.os 51 e 53), ou ainda certas actividades que não comportam o exercício de poderes decisórios (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Thijssen, n.os 21 e 22; de 29 de Novembro de 2007, Comissão/Áustria, n.os 36 e 42; Comissão/Alemanha, n.os 38 e 44; e Comissão/Portugal, n.os 36 e 41), de poderes para impor obrigações (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão Comissão/Espanha, já referido, n.° 37) ou de poderes de coerção (v., neste sentido, acórdão de 30 de Setembro de 2003, Anker e o., C‑47/02, Colect., p. I‑10447, n.° 61, e acórdão Comissão/Portugal, já referido, n.° 44).

88      Há que verificar, à luz das considerações precedentes, se as actividades confiadas aos notários na ordem jurídica alemã têm uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública.

89      Para este efeito, há que tomar em consideração a natureza das actividades exercidas pelos membros da profissão em causa (v., neste sentido, acórdão Thijssen, já referido, n.° 9).

90      A República Federal da Alemanha e a Comissão estão de acordo sobre o facto de que a actividade principal dos notários na ordem jurídica alemã, que há que examinar em primeiro lugar, consiste em lavrar, com as formalidades exigidas, actos autênticos. Para tal, o notário deve verificar, nomeadamente, se estão reunidos todos os requisitos legalmente exigidos para a realização do acto. Além disso, o acto autêntico goza de força probatória e de força executória.

91      A este respeito, há que sublinhar que são objecto de autenticação, por força da legislação alemã, os actos ou as convenções a que as partes livremente aderiram. Com efeito, estas decidem, dentro dos limites impostos por lei, do alcance dos respectivos direitos e obrigações e escolhem livremente as estipulações a que se querem submeter quando apresentam para autenticação ao notário um acto ou uma convenção. A intervenção deste pressupõe, assim, a existência prévia de um consentimento ou de um acordo de vontade entre as partes.

92      Além disso, o notário não pode alterar unilateralmente a convenção que é chamado a autenticar, sem ter previamente obtido o consentimento das partes.

93      Assim, a actividade de autenticação confiada aos notários não está, em si mesma, directa e especificamente ligada ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE.

94      O facto de certos actos ou certas convenções deverem obrigatoriamente ser objecto de autenticação, sob pena de nulidade, não é susceptível de pôr em causa esta conclusão. Com efeito, é frequente que a validade dos actos mais diversos seja submetida, nas ordens jurídicas nacionais e segundo as modalidades previstas, a requisitos formais ou ainda a procedimentos obrigatórios de validação. Esta circunstância não é, assim, suficiente para sustentar a tese defendida pela República Federal da Alemanha.

95      A obrigação de os notários verificarem, antes de procederem à autenticação de um acto ou de uma convenção, que estão reunidos todos os requisitos legalmente exigidos para a realização desse acto ou dessa convenção e, se tal não suceder, de recusarem proceder a essa autenticação também não é susceptível de pôr em causa a conclusão acima exposta.

96      É certo que, como sublinha a República Federal da Alemanha, o notário exerce essa verificação, prosseguindo um objectivo de interesse geral, isto é, garantir a legalidade e a segurança jurídica dos actos celebrados entre particulares. No entanto, a mera prossecução desse objectivo não pode justificar que as prerrogativas necessárias para esse fim estejam reservadas apenas aos notários nacionais do Estado‑Membro em causa.

97      O facto de agir prosseguindo um objectivo de interesse geral não basta, por si só, para que se considere que uma determinada actividade está directa e especificamente ligada ao exercício da autoridade pública. Com efeito, é ponto assente que as actividades exercidas no âmbito de diversas profissões regulamentadas implicam frequentemente, nas ordens jurídicas nacionais, para as pessoas que as exercem, a obrigação de prosseguirem esse objectivo, sem que essas actividades façam parte, no entanto, do exercício dessa autoridade.

98      Contudo, o facto de as actividades notariais prosseguirem objectivos de interesse geral, que visam, nomeadamente, garantir a legalidade e a segurança jurídica dos actos celebrados entre particulares, constitui uma razão imperiosa de interesse geral que permite justificar eventuais restrições ao artigo 43.° CE, decorrentes das especificidades próprias da actividade notarial, como sejam o enquadramento de que os notários são objecto através dos processos de recrutamento que lhes são aplicáveis, a limitação do seu número e das suas competências territoriais ou ainda o seu regime de remuneração, de independência, de incompatibilidades e de inamovibilidade, desde que essas restrições permitam alcançar os referidos objectivos e sejam necessárias para esse efeito.

99      Também é verdade que o notário deve recusar autenticar um acto ou uma convenção que não preencha os requisitos legalmente exigidos, fazendo‑o independentemente da vontade das partes. No entanto, na sequência dessa recusa, estas são livres de corrigir a ilegalidade constatada, de alterar as estipulações do acto ou da convenção em causa, ou ainda de renunciar a esse acto ou a essa convenção.

100    Relativamente à força probatória e à força executória de que o acto notarial beneficia, não se pode contestar que estas conferem aos referidos actos efeitos jurídicos importantes. No entanto, o facto de uma determinada actividade comportar a elaboração de actos dotados de tais efeitos não basta para que se considere que essa actividade está directa e especificamente ligada ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE.

101    Com efeito, no que respeita, em especial, à força probatória de que goza um acto notarial, há que precisar que esta decorre do regime probatório consagrado por lei na ordem jurídica em causa. Assim, os §§ 415 e 418 do ZPO, que estabelecem a força probatória do acto autêntico, fazem parte do título 9, «Das provas documentais», do capítulo 1 do livro 2 deste código. A força probatória conferida por lei a um determinado acto não tem, portanto, incidência directa na questão de saber se a actividade ao abrigo da qual esse acto é lavrado, considerada em si mesma, tem uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública, como exigido pela jurisprudência (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Thijssen, n.° 8, e Comissão/Espanha, n.° 35).

102    Além disso, como decorre, em especial, dos §§ 415, n.° 2, e 418, n.° 2, do ZPO, é, em princípio, admissível a prova de que o evento que foi objecto de autenticação foi autenticado de forma incorrecta ou de que os factos comprovados estão errados.

103    Não se pode assim alegar que o acto notarial, devido à sua força probatória, vincula incondicionalmente o juiz, no exercício do seu poder de apreciação, uma vez que está assente que este toma a sua decisão de acordo com a sua convicção pessoal, tomando em consideração todos os factos e provas recolhidos durante o processo judicial. O princípio da livre apreciação das provas pelo juiz está, por outro lado, consagrado no § 286 do ZPO.

104    No que respeita à força executória do acto autêntico, há que indicar, como alega a República Federal da Alemanha, que permite que a obrigação contida nesse acto seja executada sem a intervenção prévia do juiz.

105    No entanto, a força executória do acto autêntico não se traduz, para o notário, em poderes que têm uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública. Com efeito, como decorre do § 794, n.° 1, ponto 5, do ZPO, a força executória do acto notarial depende, nomeadamente, de o devedor aceitar sujeitar‑se a uma eventual execução coerciva desse acto, sem necessidade de desencadear um procedimento prévio. Daqui resulta que o acto notarial não goza de força executória sem o acordo do devedor. Deste modo, embora a aposição, pelo notário, da fórmula executória no acto autêntico confira a este força executória, esta assenta na vontade de as partes celebrarem um acto ou uma convenção, depois de o notário verificar a respectiva conformidade com a lei, e de lhes conferirem a referida força executória.

106    As considerações que precedem aplicam‑se, mutatis mutandis, aos actos que devem ser celebrados através de acto notarial, sob pena de nulidade, como, nomeadamente, os contratos relativos à aquisição e à transferência do direito de propriedade sobre um terreno e à transferência de património actual, as promessas de doação, as convenções antenupciais, os pactos sucessórios bem como os contratos relativos ao repúdio de sucessão ou à legítima.

107    Estas mesmas considerações impõem‑se, aliás, no que respeita à intervenção do notário em matéria de direito das sociedades, descrita no n.° 27 do presente acórdão.

108    A República Federal da Alemanha também não pode basear a sua tese na competência, conferida unicamente aos notários no Land da Baviera, para autenticar os actos por meio dos quais é constituída uma relação duradoura formalmente registada entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que, para além do que se afirmou, resulta das disposições do § 2 da AGLPartG que essa relação deve, além disso, para produzir os seus efeitos, ser inscrita na Conservatória do Registo Civil pelo conservador do registo civil, que, aliás, é responsável pela administração do referido registo.

109    Em segundo lugar, no que se refere ao estatuto específico dos notários na ordem jurídica alemã, basta recordar, como resulta dos n.os 86 e 89 do presente acórdão, que é à luz da natureza das actividades em causa, consideradas em si mesmas, e não à luz desse estatuto enquanto tal, que há que verificar se essas actividades são abrangidas pela derrogação prevista no artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE.

110    Impõem‑se, no entanto, duas precisões a este respeito. Primeiro, é ponto assente que, em princípio, as partes são livres de escolher o notário. Embora seja verdade que os honorários dos notários são fixados por lei, não deixa de ser verdade que a qualidade dos serviços fornecidos pode variar de um notário para outro, em função, nomeadamente, das aptidões profissionais das pessoas em causa. Daqui resulta que, nos limites das respectivas competências territoriais, os notários exercem a sua profissão, como salientou o advogado‑geral no n.° 18 das suas conclusões, em condições de concorrência, o que não constitui uma característica do exercício da autoridade pública.

111    Segundo, há que salientar que, em conformidade com o § 19, n.° 1, da BNotO, o notário é o único responsável pelos actos realizados no âmbito da sua actividade profissional.

112    Em terceiro lugar, o argumento que a República Federal da Alemanha retira de certos actos da União também não é convincente. Com efeito, relativamente aos regulamentos indicados no n.° 55 do presente acórdão, há que salientar que têm por objecto o reconhecimento e a execução de actos autênticos recebidos e executórios num Estado‑Membro e não afectam, por conseguinte, a interpretação do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE. Esta constatação também não é posta em causa pelos actos da União mencionados no n.° 56 do presente acórdão, uma vez que se limitam, como alega correctamente a Comissão, a confiar aos notários, bem como a outras autoridades competentes designadas pelos Estados‑Membros, a função de certificar a realização de certos actos e formalidades prévios à transferência da sede, à constituição e à fusão de sociedades.

113    Quanto às Resoluções de 1994 e de 2006, mencionadas no n.° 57 do presente acórdão, há que sublinhar que não produzem efeitos jurídicos, uma vez que não constituem, por natureza, actos vinculativos. De resto, embora indiquem que a profissão de notário é abrangida pelo artigo 45.° CE, o Parlamento, na Resolução de 1994, manifestou expressamente o desejo de que fossem adoptadas medidas para eliminar o requisito da nacionalidade para o acesso à profissão de notário, tendo esta posição sido de novo implicitamente confirmada na Resolução de 2006.

114    No que respeita, em quarto lugar, ao argumento que a República Federal da Alemanha retira do acórdão Colegio de Oficiales de la Marina Mercante Española, já referido, há que precisar que o processo que deu origem a esse acórdão tinha por objecto a interpretação do artigo 39.°, n.° 4, CE, e não do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE. Além disso, resulta do n.° 42 do referido acórdão que, quando declarou que as funções confiadas aos capitães e aos imediatos de navios constituem uma actividade ligada ao exercício de prerrogativas de poder público, o Tribunal de Justiça tinha em vista todas as funções exercidas por estes. O Tribunal de Justiça não examinou assim a única atribuição em matéria notarial confiada aos capitães e aos imediatos de navios, ou seja, a recepção, o depósito e a entrega de testamentos, separadamente das suas outras competências, como, por exemplo, os poderes de coerção ou de sanção de que estão investidos.

115    Quanto ao acórdão Unibank, já referido, ao qual a República Federal da Alemanha também se refere, há que constatar que o processo que deu origem a esse acórdão não tinha de modo nenhum por objecto a interpretação do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE. Além disso, o Tribunal de Justiça declarou, no n.° 15 do referido acórdão, que, para que um acto seja qualificado de acto autêntico na acepção do artigo 50.° da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1989, L 285, p. 24), é necessária a intervenção de uma autoridade pública ou de qualquer outra autoridade habilitada pelo Estado de origem.

116    Nestas condições, há que concluir que as actividades notariais, conforme definidas no estado actual da ordem jurídica alemã, não estão ligadas ao exercício da autoridade pública na acepção do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE.

117    Por conseguinte, há que declarar que o requisito de nacionalidade exigido pela legislação alemã para o acesso à profissão de notário constitui uma discriminação baseada na nacionalidade, proibida pelo artigo 43.° CE.

118    Atendendo a todas as considerações precedentes, há que julgar o primeiro fundamento procedente.

 Quanto ao segundo fundamento

 Argumentos das partes

119    A Comissão acusa a República Federal da Alemanha de não ter transposto, no que respeita à profissão de notário, a Directiva 89/48, em relação ao período até 20 de Outubro de 2007, e a Directiva 2005/36, a partir dessa data. Segundo esta instituição, o âmbito da Directiva 2005/36 não excede, no que respeita aos notários, o da Directiva 89/48.

120    A Comissão, à semelhança do Reino Unido, considera que a profissão de notário é uma profissão regulamentada na acepção do artigo 1.°, alínea c), da Directiva 89/48 e, por conseguinte, é abrangida pelo seu âmbito de aplicação. O considerando 41 da Directiva 2005/36 não tem por efeito excluir esta profissão do âmbito de aplicação desta directiva, a menos que a referida profissão seja abrangida pelo artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE, o que, no presente caso, é contestado pela Comissão. Além disso, se o legislador da União tivesse pretendido excluir os notários do âmbito de aplicação da referida directiva, tê‑lo ia feito expressamente.

121    A Comissão recorda que as Directivas 89/48 e 2005/36 permitem que os Estados‑Membros prevejam um teste de aptidão ou um estágio de adaptação que sejam susceptíveis de assegurar o elevado nível de qualificação exigido aos notários. Além disso, a aplicação destas directivas não tem por efeito impedir o recrutamento de notários através de concurso, mas apenas permitir o acesso a esse concurso aos nacionais dos outros Estados‑Membros. Tal aplicação também não tem incidência no processo de nomeação dos notários.

122    A República Federal da Alemanha, à semelhança da República da Letónia e da República da Eslovénia, considera que o segundo fundamento da Comissão é inadmissível na medida em que se refere a uma pretensa não transposição tanto da Directiva 89/48 como da Directiva 2005/36.

123    Com efeito, por um lado, a Comissão criticou, no seu parecer fundamentado, a não transposição da Directiva 89/48, quando, à data da emissão do referido parecer fundamentado, a Directiva 2005/36, que revogou a Directiva 89/48, já tinha sido adoptada.

124    Por outro lado, a referência à Directiva 2005/36, feita pela Comissão, pela primeira vez, na petição inicial, teve por efeito alargar o objecto do litígio tal como foi determinado durante o procedimento pré‑contencioso. Com efeito, o alcance desta directiva ultrapassa de longe o da Directiva 89/48.

125    Quanto ao mérito, a República Federal da Alemanha, a República da Bulgária, a República da Letónia, a República da Hungria, a República da Áustria, a República da Polónia, a República da Eslovénia e a República Eslovaca alegam que estas directivas não se aplicam aos notários pelo facto de as actividades exercidas por estes estarem ligadas ao exercício da autoridade pública.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

–       Quanto à admissibilidade

126    É jurisprudência constante que a existência de um incumprimento, no âmbito de uma acção intentada ao abrigo do artigo 226.° CE, deve ser apreciada à luz da legislação da União em vigor no termo do prazo que a Comissão concedeu ao Estado‑Membro em causa para dar cumprimento ao seu parecer fundamentado (v., nomeadamente, acórdãos de 9 de Novembro de 1999, Comissão/Itália, C‑365/97, Colect., p. I‑7773, n.° 32; de 5 de Outubro de 2006, Comissão/Bélgica, C‑275/04, Colect., p. I‑9883, n.° 34; e de 19 de Março de 2009, Comissão/Alemanha, C‑270/07, Colect., p. I‑1983, n.° 49).

127    No presente caso, o referido prazo terminou em 18 de Dezembro de 2006. Ora, nessa data, a Directiva 89/48 ainda estava em vigor, uma vez que a Directiva 2005/36 só a revogou a partir de 20 de Outubro de 2007. Por conseguinte, na medida em que assenta numa pretensa não transposição da Directiva 89/48, o presente fundamento não está desprovido de objecto (v., por analogia, acórdão de 11 de Junho de 2009, Comissão/França, C‑327/08, n.° 23).

128    Relativamente à admissibilidade do presente fundamento, na medida em que se refere à pretensa não transposição da Directiva 2005/36, há que recordar que, como o Tribunal de Justiça já declarou, embora os pedidos contidos na petição inicial não possam, em princípio, ser ampliados para além dos incumprimentos alegados nas conclusões do parecer fundamentado e na notificação para cumprir, na verdade, a Comissão pode procurar obter a declaração de um incumprimento das obrigações que têm origem na versão inicial de um acto da União, posteriormente alterado ou revogado, e que foram mantidas pelas disposições de um novo acto da União. Em contrapartida, o objecto do litígio não pode ser ampliado a obrigações resultantes de novas disposições que não tenham equivalência na versão inicial do acto em questão, sob pena de constituir uma violação das formalidades essenciais da regularidade do processo destinado a declarar o incumprimento (v., a este respeito, acórdão de 9 de Novembro de 1999, Comissão/Itália, já referido, n.° 36; e acórdãos de 12 de Junho de 2003, Comissão/Itália, C‑363/00, Colect., p. I‑5767, n.° 22, e de 10 de Setembro de 2009, Comissão/Grécia, C‑416/07, Colect., p. I‑7883, n.° 28).

129    Por conseguinte, os pedidos contidos na petição inicial da Comissão, que visam obter a declaração de que a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 2005/36, são, em princípio, admissíveis, na condição de as obrigações decorrentes desta directiva serem análogas às que decorrem da Directiva 89/48 (v., por analogia, acórdão de 10 de Setembro de 2009, Comissão/Grécia, já referido, n.° 29).

130    Ora, como resulta do considerando 9 da Directiva 2005/36, embora vise melhorar, reorganizar e racionalizar as disposições existentes, através de uma uniformização dos princípios aplicáveis, esta directiva mantém, no que se refere à liberdade de estabelecimento, os princípios e as garantias subjacentes aos diferentes sistemas de reconhecimento em vigor, como o instaurado pela Directiva 89/48.

131    Do mesmo modo, o considerando 14 da Directiva 2005/36 enuncia que o mecanismo de reconhecimento estabelecido, nomeadamente, pela Directiva 89/48 se mantém inalterado.

132    No presente caso, a acusação que a Comissão faz à República Federal da Alemanha visa, no que se refere à profissão de notário, a falta de transposição, não de uma determinada disposição da Directiva 2005/36 mas desta directiva na sua totalidade.

133    Nestas condições, há que constatar que a pretensa obrigação de transposição da Directiva 2005/36 para a profissão de notário é análoga à que decorre da Directiva 89/48, na medida em que, por um lado, os princípios e as garantias subjacentes ao mecanismo de reconhecimento criado por esta última directiva são mantidos na primeira e, por outro, este mecanismo de reconhecimento não foi alterado depois da adopção da Directiva 2005/36.

134    Por conseguinte, o presente fundamento é admissível.

–       Quanto ao mérito

135    A Comissão acusa a República Federal da Alemanha de não ter transposto as Directivas 89/48 e 2005/36, no que respeita à profissão de notário. Por conseguinte, há que examinar se as referidas directivas são aplicáveis a esta profissão.

136    A este respeito, há que tomar em consideração o contexto legislativo em que estas se inscrevem.

137    Importa assim salientar que o legislador previu expressamente, no considerando 12 da Directiva 89/48, que o sistema geral de reconhecimento de diplomas do ensino superior, criado por esta, «em nada prejudica a aplicação do artigo [45.° CE]». A reserva assim emitida traduz a vontade do legislador de deixar as actividades abrangidas pelo artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE fora do âmbito de aplicação desta directiva.

138    Ora, no momento em que a referida directiva foi adoptada, o Tribunal de Justiça ainda não tinha tido a oportunidade de se pronunciar sobre a questão de saber se as actividades notariais são ou não abrangidas pelo artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE.

139    Nos anos que se seguiram à adopção da Directiva 89/48, o Parlamento, nas suas Resoluções de 1994 e de 2006, mencionadas nos n.os 57 e 113 do presente acórdão, afirmou, por um lado, que o artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE se devia aplicar integralmente à profissão de notário enquanto tal, ao passo que, por outro, manifestou o desejo de que o requisito da nacionalidade para o acesso a esta profissão fosse eliminado.

140    Além disso, no momento da adopção da Directiva 2005/36, que substituiu a Directiva 89/48, o legislador da União teve o cuidado de precisar, no considerando 41 da primeira destas directivas, que esta não prejudica a aplicação do artigo 45.° CE, «designadamente no que diz respeito aos notários». Ora, ao emitir esta reserva, o legislador da União não tomou posição sobre a aplicabilidade do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE, e, por conseguinte, da Directiva 2005/36, às actividades notariais.

141    Este facto é, nomeadamente, comprovado pelos trabalhos preparatórios desta última directiva. Com efeito, o Parlamento tinha proposto, na sua Resolução legislativa sobre uma proposta de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais (JO 2004, C 97E, p. 230), adoptada em primeira leitura, em 11 de Fevereiro de 2004, que fosse expressamente indicado no texto da Directiva 2005/36 que esta não se aplica aos notários. Se esta posição não foi incluída na Proposta alterada de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais [COM(2004) 317 final], nem na Posição Comum (CE) n.° 10/2005, de 21 de Dezembro de 2004, adoptada pelo Conselho, deliberando nos termos do procedimento previsto no artigo 251.° do Tratado que institui a Comunidade Europeia, tendo em vista a adopção de uma directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais (JO 2005, C 58E, p. 1), não foi por a directiva em causa se dever aplicar à profissão de notário, mas, nomeadamente, por «[o] artigo 45.°[, primeiro parágrafo,] do Tratado […] prev[er] uma derrogação ao princípio da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços para as actividades que impliquem uma participação directa e específica no exercício da autoridade pública».

142    A este respeito, atendendo a todas as circunstâncias específicas que caracterizaram o processo legislativo e a situação de incerteza que dele resultou, como decorre do contexto legislativo acima recordado, não é possível constatar que existia, no termo do prazo concedido no parecer fundamentado, uma obrigação suficientemente clara de os Estados‑Membros transporem as Directivas 89/48 e 2005/36, no que respeita à profissão de notário.

143    Por conseguinte, há que julgar improcedente o segundo fundamento.

144    Atendendo a todas as considerações precedentes, há que declarar que, ao impor um requisito de nacionalidade para o acesso à profissão de notário, a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do disposto no artigo 43.° CE e julgar a acção improcedente quanto ao restante.

 Quanto às despesas

145    Nos termos do artigo 69.°, n.° 3, do Regulamento de Processo, se cada parte obtiver vencimento parcial, o Tribunal pode determinar que as despesas sejam repartidas entre as partes ou que cada uma das partes suporte as suas próprias despesas. Na medida em que a acção da Comissão só foi julgada parcialmente procedente, cada parte suportará as suas próprias despesas.

146    Nos termos do artigo 69.°, n.° 4, primeiro parágrafo, deste mesmo regulamento, os Estados‑Membros que intervenham no processo devem suportar as suas próprias despesas. Por conseguinte, a República da Bulgária, a República Checa, a República da Estónia, a República Francesa, a República da Letónia, a República da Lituânia, a República da Hungria, a República da Áustria, a República da Polónia, a República da Eslovénia, a República Eslovaca e o Reino Unido suportarão as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

1)      Ao impor um requisito de nacionalidade para o acesso à profissão de notário, a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do disposto no artigo 43.° CE.

2)      A acção é julgada improcedente quanto ao restante.

3)      A Comissão Europeia, a República Federal da Alemanha, a República da Bulgária, a República Checa, a República da Estónia, a República Francesa, a República da Letónia, a República da Lituânia, a República da Hungria, a República da Áustria, a República da Polónia, a República da Eslovénia, a República Eslovaca e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte suportam as suas próprias despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.