Language of document : ECLI:EU:C:2006:154

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

DÁMASO RUIZ‑JARABO COLOMER

apresentadas em 7 de Março de 2006 1(1)

Processo C‑48/05

Adam Opel AG

contra

Autec AG

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht Nürnberg‑Fürth (Alemanha)]

«Marca – Uso ilícito – Miniaturas de automóveis»





I –    Introdução

1.        O Landgericht Nürnberg‑Fürth (tribunal regional competente em matéria civil e penal) pretende saber se os modelos em miniatura que reproduzem os automóveis de um conhecido fabricante alemão violam o direito à marca, protegido nos termos do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 89/104/CEE (2), por ostentarem na grelha o respectivo logótipo. A titulo subsidiário, interroga‑se sobre a excepção prevista no artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da referida norma comunitária.

2.        A dúvida explica‑se pelo facto de a protecção do sinal controvertido, que foi inicialmente registado para os verdadeiros veículos motorizados, ter sido posteriormente estendida aos brinquedos. Razão pela qual o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber qual o alcance da protecção do logótipo da sociedade produtora de automóveis face à sua utilização em miniaturas por terceiros.

3.        Nas conclusões que apresentou no processo na origem do acórdão IHMI/Zapf Creation (3), o advogado‑geral F. G. Jacobs, referiu com razão que «constitui uma característica essencial de muitos brinquedos [...] representarem qualquer coisa». Eu acrescentaria que constitui a essência do brinquedo recriar os objectos e os acontecimentos da história do mundo para os adaptar à mentalidade infantil ou à de quem necessita de um contacto mais imaginativo com os seus postulados para superar as contingências das privações e do sofrimento de que às vezes padece a existência humana. Uma expedição anglo‑americana descobriu, antes da segunda guerra mundial, na cidade caldeia de Ur, o túmulo de uma criança falecida quatro mil anos antes de Cristo e no qual tinha sido colocado um pequeno barco em prata. Há mais de seis mil anos, havia já vestígios destes instrumentos que têm acompanhado as ilusões dos que se iniciam na aventura da vida. No presente pedido de decisão a título prejudicial, há, pois, que apreciar se a reprodução de uma marca também registada para brinquedos que imitam a realidade viola os direitos do respectivo proprietário ou se, pelo contrário, esta hipótese pode ser entendida como correspondendo a um dos seus limites.

II – O quadro jurídico

4.        Para dirimir o litígio, o órgão jurisdicional de reenvio solicita a interpretação do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), e do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 89/104, equivalentes ao § 14, n.° 2, primeiro período, e ao § 23, segundo período, da Markengesetz (4) (lei alemã sobre as marcas), que, por isso, não é necessário transcrever.

5.        O artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da directiva, com o título «Direitos conferidos pela marca», dispõe:

«1. A marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo. O titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na vida comercial:

a)      De qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada;

[...]»

6.        De epígrafe «Limitação dos efeitos da marca», o artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da mesma directiva refere:

«1.      O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir a terceiros o uso, na vida comercial:

a) [...]

b) de indicações relativas à espécie, à qualidade, à quantidade, ao destino, ao valor, à proveniência geográfica, à época de produção do produto ou da prestação do serviço ou a outras características dos produtos ou serviços;

[...]

desde que esse uso seja feito em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial.

[...]»

III – Os factos do processo principal e as questões prejudiciais

7.        A demandante no processo principal, a sociedade Adam Opel AG (a seguir «Opel AG»), figura entre as maiores empresas da indústria automóvel europeia, sendo uma das mais conhecidas (5). Utiliza desde há muitos anos o denominado «relâmpago Opel» («Opel‑Blitz») como logótipo e é titular da marca figurativa n.° 1157264, que reproduz este logótipo da seguinte forma:

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8.        Este emblema foi inscrito no registo alemão em 10 de Abril de 1990 para vários produtos, incluindo os «brinquedos». A demandante utiliza, pois, a marca para miniaturas de automóveis, embora as faça fabricar a detentores de licenças, comercializando‑as igualmente através da sua rede de distribuição de acessórios.

9.        A sociedade AUTEC AG, demandada no Landgericht Nürnberg‑Fürth, produz modelos de automóveis a escala reduzida telecomandados, que comercializa sob a marca «Cartronic».

10.      No início de 2004, a Opel AG descobriu no mercado retalhista do seu país miniaturas telecomandadas de veículos à escala 1:24, a um preço de nove euros por unidade, entre as quais se encontrava uma reprodução do Opel Astra V8 Coupé e em cuja grelha tinha sido colocada a marca protegida como no modelo original do veículo de referência.

11.      Da decisão de reenvio depreende‑se que na parte interior da folha de rosto do manual de utilização, que acompanha a embalagem, é claramente visível o sinal «Cartronic®» e, na parte exterior, «AUTEC® AG» e «Autec AG Daimler Strasse 61 D‑90441 Nürnberg». De igual modo, na parte da frente do comando à distância foi colocado o sinal «Cartonic®» e, por detrás, foi aposto um autocolante com a indicação «AUTEC® AG D 90441 Nürnberg».

12.      A Opel AG considera que a presença do seu logótipo nos exemplares da outra litigante viola os direitos decorrentes da sua propriedade industrial. Na sua opinião, a demandada utiliza‑o da mesma forma para produtos idênticos, a saber, os brinquedos, pelo que pediu a sua condenação numa sanção pecuniária compulsória de até 250 000 euros, substituível por uma pena de prisão, e a retirar o sinal controvertido do mercado, reclamando uma indemnização por perdas e danos e ainda a proibição da venda das cópias à escala reduzida dos veículos com o referido sinal. Exige, além disto, a destruição de todas as miniaturas de automóveis que contenham o seu logótipo (6).

13.      A demandada no processo principal e a interveniente em seu apoio, a associação alemã da indústria do brinquedo (Deutscher Verband der Spielwaren‑Industrie e. V.), pedem que a acção seja julgada improcedente.

14.      Por entender que a resolução do litígio depende da interpretação das referidas disposições de direito comunitário, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1. O uso de uma marca registada designadamente para ‘brinquedos’ constitui um uso como marca, na acepção do artigo 5.°, n.°1, alínea a), da Directiva 89/104 quando o fabricante de uma miniatura de um automóvel reproduz e comercializa à escala reduzida uma cópia de um modelo realmente existente, incorporando a marca do titular?

2. Caso a resposta à primeira questão seja afirmativa:

O uso da marca da forma descrita na primeira questão é uma indicação da espécie ou da qualidade da miniatura do veículo, na acepção do artigo 6.°, n.°1, alínea b), da Directiva 89/104?

3.Caso a resposta à segunda questão seja afirmativa:

Quais são os critérios relevantes nestes casos para determinar se o uso da marca é feito em conformidade com as práticas honestas em matéria comercial ou industrial?

Estamos especialmente perante um caso destes quando o fabricante da miniatura dum veículo coloca na embalagem e numa parte acessória necessária para a utilização do brinquedo um sinal reconhecível para o comércio como marca própria, bem como a sua denominação social e a indicação da sua sede?»

IV – O processo no Tribunal de Justiça

15.      A decisão de reenvio foi registada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 8 de Fevereiro de 2005.

16.      Apresentaram observações escritas, no prazo fixado pelo artigo 20.° do Estatuto (CE) do Tribunal de Justiça, a Opel AG, a AUTEC AG, a Deutscher Verband der Spielwaren‑Industrie e. V., bem como os Governos francês e do Reino Unido e a Comissão das Comunidades Europeias.

17.      Na audiência, celebrada no dia 2 de Fevereiro de 2006, compareceram, para formular oralmente as suas alegações, as partes no processo principal, a interveniente e os representantes do Governo do Reino Unido e da Comissão.

V –    Análise das questões prejudiciais

A –    Quanto à primeira questão

18.      Com a sua primeira questão, o Landgericht Nürnberg‑Fürth pretende saber se, nas circunstâncias do processo principal, o uso do logótipo da Opel AG foi feito «como marca», em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Há, pois, que proceder a uma análise pormenorizada de algumas conclusões e acórdãos à luz dos quais se devem apreciar os factos do processo.

19.      A doutrina é unânime na qualificação dos direitos do titular de um sinal registado como «direitos exclusivos» (7), que lhe permitem proibir a utilização da marca por terceiros sem o seu consentimento.

20.      A exegese do artigo 5. °, n.° 1, alínea a), da Directiva 89/104 inicia‑se no acórdão BMW (8), cujo n.° 38 delimitou o respectivo âmbito de aplicação em função da questão de saber se o uso da marca é feito a fim de distinguir os produtos ou os serviços em causa como provenientes de uma empresa determinada, ou seja, como marca, ou se o uso é feito com outros fins.

21.      Por conseguinte, o estudo dos princípios enunciados pelo Tribunal de Justiça neste domínio tem que se centrar nestas duas vertentes: o uso do sinal como marca e a sua utilização visando outros objectivos.

22.      Nas observações apresentadas a este Tribunal de Justiça não se discutem os factos, pelo que se dão como provados para efeitos do exercício do ius prohibendi pelo titular do direito de propriedade industrial a que se refere o artigo 5.°, n.° 1, da Directiva 89/104 e cuja comprovação fáctica incumbe, aliás, ao órgão jurisdicional nacional. Algo semelhante se verifica com os «produtos», na acepção da própria disposição, pois que se faz claramente referência no processo principal a objectos fabricados (9).

1.      O uso de um sinal como marca registada

23.      Partindo do referido acórdão BMW, os contornos do direito exclusivo conferido pelo artigo 5.°, n.° 1, da Directiva 89/104 foram sendo traçados ao correr de algumas decisões posteriores.

24.      Neste contexto, o acórdão Arsenal, já referido, assume uma importância decisiva. Nas conclusões que apresentei no processo na sua origem, afirmei que, quando a directiva confere nos casos de identidade uma protecção absoluta, deve entender‑se que, tendo em conta a finalidade do direito de marca, o termo «absoluto» significa que a protecção é dada ao titular, independentemente do risco de confusão, porque nessas situações existe uma presunção de que isso se verifica e não, pelo contrário, que a protecção seja conferida ao proprietário contra todos e em todas as circunstâncias. Portanto, nos casos de identidade, o artigo 5.°, n.° 1, alínea a), estabelece uma presunção iuris tantum (10).

25.      No mesmo sentido, os acórdãos do Tribunal de Justiça que se centraram numa interpretação teleológica das disposições controvertidas declararam que o direito exclusivo previsto no artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 89/104 foi conferido para permitir ao titular da marca proteger os seus interesses específicos, a fim de que a marca possa cumprir as suas funções próprias e, em especial, a de garantir aos consumidores a proveniência do produto (11).

26.      Nos termos de uma jurisprudência reiterada, a função essencial das marcas consiste em garantir ao consumidor final a identidade de origem do produto ou do serviço, para os distinguir sem confusão possível de outros que tenham proveniência diversa, confirmando que foram fabricados ou prestados por uma única empresa, responsável pela sua qualidade (12).

27.      No processo principal, está assente que as miniaturas ostentam o logótipo da Opel na carroçaria, independentemente de terem sido fabricadas por um dos licenciados da empresa ou por um terceiro, com uma semelhança tão grande que, em princípio, deixa transparecer a identidade dos produtos a que se refere a disposição em causa. Contudo, cabe ao juiz nacional proceder a esta determinação, como referi nas conclusões que apresentei no processo na origem do acórdão Arsenal (13).

28.      Por último, este mesmo acórdão traçou os limites ao exercício dos direitos que o artigo 5.°, n.° 1, da Directiva 89/104 confere ao titular de um sinal, não lhe permitindo proibir o uso de um sinal idêntico se este uso não puder prejudicar os seus direitos como titular da marca, pelo que determinados usos com fins puramente descritivos estão excluídos do âmbito de aplicação deste preceito (14).

29.      O acórdão Anheuser‑Busch (15) indicou o método a utilizar para determinar o eventual prejuízo, ao referir que o mesmo ocorre quando o uso de um sinal por parte de um terceiro faz crer na existência de uma conexão material na vida comercial entre os seus produtos e os do titular da marca, havendo que verificar se os consumidores visados podem interpretar o sinal, tal como é utilizado pelo terceiro, como designando a empresa titular do registo (16). Seguidamente, reitera que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio proceder a esta comprovação à luz das circunstâncias concretas do processo principal (17).

2.      Os usos alheios à função própria das marcas

30.      O uso de um sinal segundo os cânones descritos no acórdão BMW, já referido, é o único, na sistemática da Directiva 89/104, que escapa aos direitos conferidos ao titular de uma marca pelo artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 89/104.

31.      As excepções do artigo 6.°, em especial as previstas na alínea b) do seu n.° 1, aplicam‑se quando o sinal registado desempenha a função típica da marca, mas, por razões de interesse público, se autoriza que terceiros, em determinadas situações, se possam aproveitar das suas vantagens.

32.      Em conformidade com esta jurisprudência, não correspondem a um uso como marca as referências a sinais registados feitas com intuitos puramente descritivos, uma vez que, nestas situações, não se ofende nenhum dos interesses que o referido artigo 5.°, n.° 1, visa proteger (18).

33.      Nas conclusões apresentadas no processo na origem do acórdão Arsenal, defendi uma posição que nestas abrange os usos não comerciais, entre os quais incluí os usos privados, os de símbolos que não reúnem as condições para serem registados ou os educativos (19). Antes, no entanto, ao passo que confiava ao juiz nacional a determinação do momento a partir do qual o uso da marca o é enquanto tal, salientei a necessidade de ponderar outros elementos, em especial, a natureza dos bens em causa, a estrutura do mercado ou a implantação da marca (20).

34.      Em suma, os usos alheios à função própria da marca integram uma categoria aberta que deve ser preenchida paulatinamente e de forma casuística, pelo que, contrariamente às hipóteses previstas no artigo 6.°, n.° 1, da Directiva 89/104, não exigem uma interpretação restritiva, pois não constituem excepções, mas sim limites ao gozo do ius prohibendi.

3.      Conexão com os factos do processo principal

35.      Uma vez esboçado o quadro jurisprudencial pertinente, a tarefa seguinte, com vista a proporcionar ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta útil, deve centrar‑se na busca de pautas hermenêuticas adequadas às particularidades dos factos na origem das questões prejudiciais.

36.      No caso em apreço, a colocação do logótipo «relâmpago Opel» nos brinquedos pertence ao tipo de uso que é estranho à função da marca por duas séries de motivos:

a)      A natureza do produto controvertido

37.      Desde 1898 que é habitual na indústria dos brinquedos o fabrico e a comercialização de automóveis à escala reduzida dos originais existentes, acontecendo o mesmo com os outros meios de transporte (comboios, aviões e barcos). Os carros em tamanho reduzido converteram‑se na «madalena de Proust» dos adultos que, de certa maneira, revivem as suas experiências pueris em calções (21), dando rédea solta aos seus sonhos.

38.      Se, no início, se procurava reproduzir a realidade em miniatura em benefício de um público muito concreto, que eram as crianças, para lhes aproximar, à dimensão do seu tamanho, o mundo dos mais velhos (22), com o decorrer do tempo alargou‑se o círculo dos destinatários, para incluir também o coleccionador adulto. Provavelmente este último sector aumentou as exigências no que diz respeito à qualidade da reprodução, exigindo uma maior fidelidade da miniatura. Daí que já não se conceba este tipo de artigos sem se reproduzir, não apenas as suas características mais significativas mas ainda as mais insignificantes.

39.      Tem razão a Comissão quando refere que o fabricante destas cópias só poderá satisfazer os desejos do cliente quanto à imitação fidedigna do original se lhe for permitido respeitar em altíssimo grau todos os pormenores, incluindo as indicações que figuram no modelo verdadeiro, como, por exemplo, nos seus catálogos.

40.      Mas, foi só recentemente que através do «merchandising» a indústria automóvel se apercebeu do potencial económico destes objectos, explorando‑os como técnica publicitária para granjear a lealdade da clientela, depreendendo‑se das próprias observações da Opel AG, que, no caso desta empresa, o seu logótipo não foi utilizado nos brinquedos até 1990. Portanto, é difícil imaginar uma associação automática por parte do público entre o emblema que figura nos automóveis miniatura e o respectivo fabricante.

41.      Ademais, como alerta a Comissão, há o risco que um monopólio domine o mercado das miniaturas, decorrente de um entendimento excessivamente estrito do âmbito do ius prohibendi, pois que apenas os licenciados ficariam autorizados em condições de exclusividade a imitar minuciosamente os automóveis verdadeiros, restringindo injustificadamente a liberdade empresarial dos seus concorrentes.

b)      A percepção do consumidor

42.      Já foi referido que, conforme se declarou no acórdão Anheuser‑Busch, a comprovação do eventual prejuízo provocado pelo uso de um sinal por parte de um terceiro depende de este ter feito crer na existência de uma conexão material na vida comercial entre os seus produtos e os da empresa titular do registo, havendo que verificar se os consumidores visados podem interpretar este sinal como designando a empresa que o registou.

43.      O órgão jurisdicional de reenvio colocou a questão relativa ao nexo existente entre o logótipo da Opel colocado nas miniaturas e a marca original, convencido de que o público reconhece o brinquedo como um modelo de um genuíno automóvel Opel. Isto é, que associa o protótipo à escala com o veículo real, mas não com as miniaturas fabricadas para a Opel AG pelos seus licenciados.

44.      Entendo, tal como a Comissão, que do exposto não se infere que, no processo principal, se ofende a marca, o que apenas se verificaria se o consumidor associasse o logótipo Opel das miniaturas de terceiros com o que enfeita os modelos comercializados pela Opel AG. Em qualquer caso, o facto de o utilizador relacionar a marca do brinquedo com a do original é a consequência inexorável da reprodução exacta que se pretende atingir para cativar o público, ajustando‑se aos seus desejos (23).

45.      Ademais, entendo que a miniatura e o seu original não pertencem à mesma categoria de bens; não se trata, pois, de produtos idênticos, na acepção do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 89/104.

46.      Vistas as explicações expostas, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira questão prejudicial da seguinte forma:

«A utilização para brinquedos de um sinal registado não constitui um uso como marca, na acepção do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da Directiva 89/104, quando o fabricante de uma miniatura de automóvel reproduz a escala reduzida e comercializa uma réplica de um modelo existente na realidade, nesta incorporando a marca do titular.»

B –    Quanto às segunda e terceira questões

47.      Estas duas questões só foram colocadas para o caso de ser dada resposta afirmativa à primeira questão, pelo que, à luz da resposta que proponho, não seria necessário apreciá‑las. Contudo, a título subsidiário e puramente hipotético, tecerei algumas considerações a seu respeito.

48.      Parto, pois, da suposição de que, no processo principal, se terá violado o direito de marca da Opel AG e se discute a eventual aplicação do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 89/104, enquanto excepção a esta mesma infracção.

49.      O Landgericht Nürnberg‑Fürth só parece aceitar que o uso da marca controvertida possa ser considerado como correspondendo a uma indicação relativa à espécie ou à qualidade do produto, mas não a «outras características» deste, para utilizar os termos do referido artigo.

50.      Este preceito visa estabelecer um equilíbrio entre os interesses monopolísticos do detentor do título de propriedade industrial e os da actividade económica, salvaguardando a liberdade de escolha de conceitos para descrever produtos e serviços (24). Não obstante e como a Comissão correctamente aponta, o seu carácter de excepção face ao disposto no artigo 5.° implica que dele se faça uma interpretação restritiva, pelo que é difícil admitir que a reprodução do sinal Opel na carroçaria dos carros miniatura possa ser qualificada como uma indicação relativa à espécie ou à qualidade do produto.

51.      Mas, uma vez que a natureza da actividade de criação de miniaturas consiste essencialmente na reprodução fiel e pormenorizada da realidade, há que considerar que o emblema da marca é um elemento inerente do original que, para melhor informação do consumidor e para que todos os operadores do ramo concorram nas mesmas condições (25), se insere nestas outras características a que alude o artigo 6.°, n.°1, alínea b), da directiva.

52.      Esta solução implica que se qualifique como um tipo de produto cada uma das réplicas à escala de veículos, para o qual existe uma oferta variada.

53.      Uma vez aceite que os factos do processo principal estão compreendidos no âmbito do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 89/104, falta responder à terceira questão, a de saber se o uso da marca Opel respeitou as práticas honestas em matéria industrial ou comercial, o que constitui o segundo requisito para que essa norma possa ser invocada.

54.      A este respeito, a jurisprudência recente do Tribunal de Justiça fornece orientações claras, pelo que é suficiente recordá‑las resumidamente.

55.      Assim, o Tribunal de Justiça reiterou, em primeiro lugar, que a condição segundo a qual o uso da marca se deve fazer em conformidade com as práticas que imperam no mercado constitui a expressão de uma obrigação de lealdade face aos interesses legítimos do titular da marca (26).

56.      Em segundo lugar, o acórdão Gillette Company e Gillett Group Finland (27) facilitou a exegese destes termos, enunciando que o uso da marca não respeita as práticas honestas em matéria industrial ou comercial, especialmente quando se possa dar a impressão de que existe uma relação comercial entre o terceiro e o titular da marca; quando afecta o valor da marca, beneficiando indevidamente o terceiro do seu carácter distintivo ou da sua reputação; quando desacredita ou deprecia a referida marca; ou quando o terceiro apresenta o seu produto como uma imitação ou reprodução do produto de cuja marca não é titular.

57.      A última hipótese não engloba os brinquedos em miniatura, dado que não imitam os modelos dos licenciados da Opel, mas sim o verdadeiro veículo fabricado por esta empresa de automóveis, o Opel Astra V8 Coupé.

58.      No acórdão Anheuser‑Busch, já referido, o Tribunal de Justiça salientou que o respeito do requisito referente à prática honesta deve ser apreciado tendo em conta, por um lado, a medida em que o uso do nome comercial do terceiro pode ser compreendido pelo público visado, ou pelo menos por uma parte significativa deste público, como indicando uma ligação entre os produtos do terceiro e o titular da marca ou de uma pessoa habilitada a utilizá‑la e, por outro, que o terceiro terá de estar consciente disso, tomando‑se ainda em consideração se se trata de uma marca com uma certa fama no Estado‑Membro onde está registada e é pedida a sua protecção e se o terceiro se aproveitará deste prestígio para comercializar os seus produtos (28).

59.      Estes critérios estão à disposição do juiz nacional para os aplicar no processo principal. De facto, o último acórdão referido acrescentou que lhe incumbe proceder a uma apreciação global de todas as circunstâncias pertinentes, a fim de apreciar se se actuou de acordo com as referidas práticas honestas (29).

60.      Por conseguinte, atrevo‑me a sugerir que a forma como a AUTEC apresenta os seus produtos, mostrando de forma visível o seu sinal «Cartronic®» e as referências «AUTEC® AG» e «Autec AG Daimler Strasse 61 D‑90441 Nürnberg», inclusivamente no comando à distância, revela um comportamento íntegro, em perfeita consonância com a prática comercial. Não se vislumbra, portanto, nesta conduta qualquer ofensa à marca Opel, que aparece colocada onde qualquer consumidor espera reconhecê‑la: na grelha do veículo.

61.      À luz das considerações expostas, proponho que Tribunal de Justiça analise, se assim o entender, as segunda e terceira questões em consonância com o anteriormente assinalado.

VI – Conclusão

62.      Vistas as anteriores reflexões, proponho que o Tribunal de Justiça responda ao Landgericht Nürnberg‑Fürth que:

«1.      A utilização para brinquedos de um sinal registado não constitui um uso como marca, na acepção do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), da Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas, quando o fabricante de uma miniatura de um automóvel reproduz a escala reduzida e comercializa uma réplica de um modelo existente na realidade, nesta incorporando a marca do titular.»

63.      Caso o Tribunal de Justiça não partilhe da minha opinião no que respeita à primeira questão, proponho‑lhe que responda às segunda e terceira questões da seguinte forma:

«2.      O uso da marca da forma descrita na primeira questão corresponde a uma indicação relativa a outras características da miniatura do automóvel, na acepção do artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 89/104.

3.      Em casos como o do processo principal, os critérios relevantes para apreciar se o uso da marca é feito em conformidade com as práticas honestas em matéria comercial e industrial são os que a jurisprudência do Tribunal de Justiça enunciou no seu acórdão Anheuser‑Busch e no acórdão Gillette Company e Gillette Group Finland, já referidos.

Quando o fabricante da miniatura de um automóvel coloca na embalagem e numa parte acessória necessária para a utilização do brinquedo um sinal reconhecível no comércio como constituindo uma marca própria, bem como a sua denominação social e a indicação da sua sede, actua em conformidade com as práticas honestas em matéria comercial e industrial, sem prejuízo da apreciação global de todas as circunstâncias pertinentes à qual deve proceder o órgão jurisdicional nacional.»


1 – Língua original: espanhol.


2 – Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1).


3 – Em 19 de Fevereiro de 2004 (acórdão de 1 de Dezembro de 2004, C‑498/01 P, Colect., p. I‑11349, n.° 28).


4 – Gesetz über den Schutz von Marken und sonstigen Kennzeichen (MarkenG), de 25 de Outubro de 1994 (BGB1. I, p. 3082).


5 – Alguns dados relativos ao volume de vendas retirados das observações do representante da Opel AG revelam a importância económica desta companhia: em 2004, vendeu 351 955 veículos no mercado alemão e mais de um milhão no mercado europeu; a sua quota de mercado no referido país ascendia, nesse mesmo ano, a 10,24% e o grau de conhecimento da marca rondava os 96%.


6 – O alcance destes pedidos é melhor avaliado à luz dos números apresentados pela Opel AG na audiência. Afirmou que trabalha com 23 licenciados, que asseguram 85% da produção, e que as vendas em 2004 atingiram as 600 000 unidades, tendo as de 2005 rondado as 760 000.


7 – No direito alemão, relativamente ao § 14, n.° 1, da Markengesetz, Ekey, F. L. – Markenrecht, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2003, p. 170, n.° 2; nos direitos espanhol e comunitário, Fernández Nóvoa, C. – Tratado sobre derecho de marcas, Ed. Marcial Pons, Madrid/Barcelona, 2004, p. 433; quanto ao artigo 9.°do Regulamento (CE) n.° 40/94, sobre a marca comunitária [Regulamento do Conselho, de 20 de Dezembro de 1993 (JO 1994, L 11, p. 1), alterado pelo Regulamento (CE) n.° 3288/94 (CE) do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, com vista à aplicação dos acordos concluídos no âmbito do «Uruguay Round» (JO L 349, p. 83), pelo Regulamento (CE) n.° 422/2004 do Conselho, de 19 de Fevereiro de 2004 (JO L 70, p. 1)], que corresponde ao artigo 5.° da Directiva 89/104: Von Mühlendahl, A.; Ohlgart, D. C. – Die Gemeinschaftsmarke, Verlag C. H. Beck/Verlag Stämpfli + Cie AG, Berna/Munique, 1998, pp. 45 e segs.


8 – Acórdão de 23 de Fevereiro de 1999 (C‑63/97, Colect., p. I‑905).


9 – No seguimento da metodologia adoptada no acórdão de 12 de Novembro de 2002, Arsenal Football Club (C‑206/01, Colect., p. I‑10273, n.os 40 e 41, a seguir, acórdão «Arsenal»).


10 – N.os 51 e 52 das conclusões.


11 – N.° 51 do acórdão Arsenal.


12 – V., designadamente, acórdãos de 23 de Maio de 1978, Hoffman‑La Roche (102/77, Colect., p. 391, n.° 7); de 18 de Junho de 2002, Philips (C‑299/99, Colect., p. I‑5475, n.° 30); de 11 de Março de 2003, Ansul (C‑40/01, Colect., p. I‑2439, n.° 43).


13 – N.os 53 e 54.


14 – N.° 54 do acórdão Arsenal.


15 – Acórdão de 16 de Novembro de 2004 (C‑245/02, Colect., p. I‑10989).


16 – N.° 60 do acórdão referido na nota anterior, que eleva à qualidade de princípio geral as observações expostas pelo Tribunal de Justiça nos n.os 56 e 57 do acórdão Arsenal.


17 – N.° 61.


18 – Acórdão de 14 de Maio de 2002, Hölterhoff (C‑2/00, Colect., p. I‑4187, n.° 16). Versava sobre uma negociação comercial no decurso da qual M. Hölterhoff propôs a um cliente a venda de umas pedras semipreciosas e ornamentais, cuja lapidação proposta se denominava «Spirit Sun» e «Context Cut», ambas marcas registadas em nome de U. Freiesleben. O cliente encomendou a M. Hölterhoff duas pedras de granada com a lapidação «Spirit Sun» e, apesar de na nota de entrega e na factura não ser feita referência a esta marca, o seu titular intentou uma acção contra M. Hölterhoff.


19 – N.os 55 a 64 das conclusões no processo Arsenal.


20 – N.° 53 das conclusões Arsenal.


21 – Defraudat, S. – Majorette, ma voiture miniature préférée, ed. Du May, Boulogne‑Billancourt, p. 8.


22 – A psicologia infantil não é unívoca, existindo muitos exemplos de crianças que se atêm mais à sua própria imaginação do que à imitação dos adultos mais próximos; Ana María Matute, no seu conto «La rama seca», Historias de la Artámila, Ediciones Destino, Barcelona, 1993, pp. 123 e segs., narra de maneira enternecedora a forma como uma menina brinca com a sua «boneca» a que chama «Pipa», que mais não era do que «um ramito seco embrulhado num bocado de tecido atado com um cordel» (p. 125). Vítima de uma doença, a menina vê‑se confinada à sua cama sem o seu brinquedo, perdido irremediavelmente. Perante o presente que lhe oferece a sua vizinha, D.a Clementina, uma «boneca de cabelo encrespado e olhos redondos» (p. 128), a menina exclama decepcionada «Não é a Pipa! Não é a Pipa!» (p. 129) (tradução livre).


23 – Hans‑Christian Andersen na sua história «O soldadinho de chumbo», em Contos de Andersen, Todolibro Ediciones, Madrid, 2000, pp. 64 e segs., mostra a expectativa do consumidor face às réplicas e o seu desapontamento se não são perfeitas, ao escrever: «Quando […] teve a desejada caixa nas suas mãos, subiu ao seu quarto e, aí a sós, fechando a porta, abriu a caixa como num ritual sagrado. O seu coração deu um pulo de alegria. Embrulhados em papel de seda verde, havia soldadinhos de uniformes vistosos, todos reluzentes, com a sua arma brilhante ao ombro. Mas, ó tristeza!, no meio de tantos soldadinhos em sentido e sorridentes, havia um, apenas um, a que faltava uma perna» (tradução livre).


24 – Quanto ao artigo 12.°, primeiro parágrafo, alínea a), do Regulamento (CE) n.° 40/94, sobre a marca comunitária: v. Von Mühlendahl, A.; Ohlgart, D. C. , op.cit., p. 54.


25 – C. Fernandéz‑Nóvoa, op.cit p. 459, chama a atenção para o objectivo de protecção destes interesses que prossegue a referida disposição.


26 – Acórdão BMW, já referido, n.° 61, e acórdão de 7 de Janeiro de 2004, Gerolsteiner Brunnen (C‑100/02, Colect., p. I‑691, n.°24).


27 – Acórdão de 17 de Março de 2005 (C‑228/03, Colect., p. I‑2337).


28 – N.° 83 do acórdão Anheuser‑Busch.


29 – N.° 84 do acórdão referido na nota anterior.