Language of document : ECLI:EU:C:2018:335

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

29 de maio de 2018 (*)

«Reenvio prejudicial — Proteção do bem‑estar dos animais no momento da occisão — Métodos especiais de abate prescritos por ritos religiosos — Festa muçulmana do Sacrifício — Regulamento (CE) n.o 1099/2009 — Artigo 2.o, alínea k) — Artigo 4.o, n.o 4 — Obrigação de proceder ao abate ritual num matadouro que cumpra os requisitos do Regulamento (CE) n.o 853/2004 — Validade — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 10.o — Liberdade de religião — Artigo 13.o TFUE — Respeito dos costumes nacionais em matéria de ritos religiosos»

No processo C‑426/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas, Bélgica), por decisão de 25 de julho de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 1 de agosto de 2016, no processo

Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen VZW e o.

contra

Vlaams Gewest,

sendo interveniente:

Global Action in the Interest of Animals (GAIA) VZW,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano (relator), vice‑presidente, R. Silva de Lapuerta, M. Ilešič, J. Malenovský e E. Levits, presidentes de secção, E. Juhász, A. Borg Barthet, C. Lycourgos, M. Vilaras e E. Regan, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 18 de setembro de 2017,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen VZW e o., por J. Roets, advocaat,

–        em representação da Vlaams Gewest, por J.‑F. De Bock e V. De Schepper, advocaten,

–        em representação da Global Action in the Interest of Animals (GAIA) VZW, por A. Godfroid e Y. Bayens, advocaten,

–        em representação do Governo estónio, por N. Grünberg, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo neerlandês, por M. Bulterman e B. Koopman, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por G. Brown, na qualidade de agente, assistida por A. Bates, barrister,

–        em representação do Conselho da União Europeia, por E. Karlsson, S. Boelaert e V. Piessevaux, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por A. Bouquet, H. Krämer e B. Eggers, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 30 de novembro de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão (JO 2009, L 303, p. 1, e retificação no JO 2014, L 326, p. 5), lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k, do mesmo regulamento.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe diversas associações muçulmanas e organizações que reúnem mesquitas, com atividade no território da Vlaams Gewest (Região da Flandres, Bélgica), a esta última região, a respeito da decisão adotada pelo Vlaamse minister van Mobiliteit, Openbare Werken, Vlaamse Rand, Toerisme en Dierenwelzijn (ministro da Região da Flandres, que tutela a Mobilidade, Obras Públicas e Bem‑Estar Animal, a seguir «ministro da Região da Flandres») de deixar de autorizar, durante a Festa muçulmana do Sacrifício, a partir de 2015, o abate ritual de animais sem atordoamento nos locais de abate temporários existentes nos municípios da Região da Flandres.

 Direito da União

 Regulamento n.o 853/2004

3        O considerando 18 do Regulamento (CE) n.o 853/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece regras específicas de higiene aplicáveis aos géneros alimentícios de origem animal (JO 2004, L 139, p. 55, e retificação no JO 2013, L 160, p. 15), enuncia:

«(18)      É adequado que os requisitos estruturais e de higiene estabelecidos no presente regulamento sejam aplicáveis a todos os tipos de estabelecimentos, incluindo as pequenas empresas e os matadouros móveis.»

4        O artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento dispõe:

«Os operadores das empresas do setor alimentar só podem colocar no mercado produtos de origem animal fabricados na [União Europeia] que tenham sido preparados e manipulados exclusivamente em estabelecimentos que:

a)      Cumpram os requisitos aplicáveis do Regulamento (CE) n.o 852/2004 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo à higiene dos géneros alimentícios (JO 2004, L 139, p. 1)], dos Anexos II e III do presente regulamento e outros requisitos pertinentes da legislação relativa aos géneros alimentícios;

e

b)      Tenham sido registados pela autoridade competente ou por ela aprovados, quando requerido nos termos do n.o 2.»

 Regulamento n.o 1099/2009

5        O Regulamento n.o 1099/2009 estabelece as regras comuns para a proteção do bem‑estar dos animais no momento do abate ou occisão na União.

6        Os considerandos 4, 8, 15, 18, 43 e 44 deste regulamento enunciam:

«(4)      O bem‑estar dos animais é um princípio [da União] consagrado no Protocolo n.o 33 relativo à proteção e ao bem‑estar dos animais, anexo ao Tratado que institui a Comunidade Europeia [a seguir “Protocolo (n.o 33)”]. A proteção dos animais no momento do abate ou occisão é um tema que preocupa o público e influencia a atitude dos consumidores em relação aos produtos agrícolas. Por outro lado, reforçar a proteção dos animais no momento do abate contribui para melhorar a qualidade da carne e, indiretamente, tem efeitos positivos ao nível da segurança no trabalho nos matadouros.

[…]

(8)      […] [A] legislação comunitária em matéria de segurança alimentar aplicável aos matadouros foi profundamente alterada com a aprovação do [Regulamento (CE) n.o 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo à higiene dos géneros alimentícios (JO 2004, L 139, p. 1),] e do Regulamento [n.o 853/2004]. Os referidos regulamentos dão particular ênfase à responsabilidade dos operadores das empresas do setor alimentar de garantir a segurança dos alimentos. Os matadouros estão igualmente sujeitos a um procedimento de aprovação prévia nos termos do qual a construção, a configuração e o equipamento são examinados pela autoridade competente a fim de garantir que cumprem as regras técnicas aplicáveis em matéria de segurança dos alimentos. É necessário integrar em maior medida os aspetos de bem‑estar animal nos matadouros e na sua construção e configuração, bem como no equipamento neles utilizado.

[…]

(15)      O Protocolo [(n.o 33)] salienta também a necessidade de respeitar as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados‑Membros nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional ao definir e aplicar as políticas [da União] no domínio da agricultura e do mercado interno, entre outros. Importa, por conseguinte, excluir os eventos culturais do âmbito de aplicação do presente regulamento, quando a observância dos requisitos de bem‑estar dos animais afete negativamente a própria natureza de tais eventos.

[…]

(18)      A Diretiva 93/119/CE [do Conselho, de 22 de dezembro de 1993, relativa à proteção dos animais no abate e/ou occisão (JO 1993, L 340, p. 21)], previa uma derrogação à obrigação de atordoamento no caso de abate religioso realizado em matadouros. Visto que as disposições [do direito da União] aplicáveis ao abate religioso foram transpostas de modo diferente em função dos contextos nacionais, e considerando que as regras nacionais têm em conta dimensões que transcendem o objetivo do presente regulamento, é importante manter a derrogação à exigência de atordoamento dos animais antes do abate, deixando, no entanto, um certo nível de subsidiariedade a cada Estado‑Membro. Assim, o presente regulamento respeita a liberdade de religião e o direito de manifestar a sua religião ou crença através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos, consagrados no artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

[…]

(43)      No abate sem atordoamento deverá ser praticada uma incisão precisa na garganta com uma faca afiada, para minimizar o sofrimento. Além disso, se os animais não forem imobilizados mecanicamente após a incisão, o processo de sangria pode ser mais demorado, o que prolongará desnecessariamente o sofrimento dos animais. Os bovinos, ovinos e caprinos são as espécies mais frequentemente abatidas através deste procedimento. Por conseguinte, os ruminantes abatidos sem atordoamento deverão ser imobilizados individualmente e mecanicamente.

(44)      No âmbito da manipulação e imobilização dos animais nos matadouros, registam‑se constantemente progressos científicos e técnicos. É, pois, importante que a Comunidade autorize a Comissão a alterar os requisitos aplicáveis em matéria de manipulação e imobilização dos animais antes do abate, assegurando um nível elevado e uniforme de proteção dos animais.

[…]»

7        O artigo 1.o do Regulamento n.o 1099/2009, sob a epígrafe «Objeto e âmbito de aplicação», dispõe, no seu n.o 3:

«O presente regulamento não é aplicável:

a)      Se os animais forem mortos:

[…]

iii)      em manifestações culturais ou desportivas;

[…]»

8        O artigo 2.o deste regulamento, sob a epígrafe «Definições», tem a seguinte redação:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

f)      “Atordoamento”, qualquer processo intencional que provoque a perda de consciência e sensibilidade sem dor, incluindo qualquer processo de que resulte a morte instantânea;

g)      “Rito religioso”, uma série de atos relacionados com o abate de animais, prescritos por uma religião;

[…]

k)      “Matadouro”, qualquer estabelecimento utilizado para o abate de animais terrestres e que seja abrangido pelo Regulamento […] n.o 853/2004;

[…]»

9        O artigo 4.o do Regulamento n.o 1099/2009, sob a epígrafe «Métodos de atordoamento», dispõe:

«1.      Os animais só podem ser mortos após atordoamento efetuado em conformidade com os métodos e requisitos específicos relacionados com a aplicação desses métodos especificados no Anexo I. A perda de consciência e sensibilidade é mantida até à morte do animal.

[…]

4.      Os requisitos previstos no n.o 1 não se aplicam aos animais que são objeto dos métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos, desde que o abate seja efetuado num matadouro.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

10      Conforme resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, a Festa muçulmana do Sacrifício (a seguir «Festa do Sacrifício») é uma celebração organizada anualmente durante três dias pelos muçulmanos praticantes, a fim de cumprir um preceito religioso específico.

11      Resulta do pedido de decisão prejudicial que um elevado número de muçulmanos praticantes na Bélgica considera que é seu dever religioso abater ou mandar abater, de preferência no primeiro dia dessa festa, um animal cuja carne é depois parcialmente comida em família e parcialmente partilhada com pessoas carenciadas, vizinhos e parentes afastados.

12      Parece existir um consenso entre a maioria da comunidade muçulmana na Bélgica, expresso pelo Conselho dos Teólogos no Executivo dos Muçulmanos deste Estado‑Membro, no sentido de considerar que esse abate deve ser feito sem atordoamento prévio dos animais e tendo em conta as outras prescrições do rito associado ao referido abate (a seguir «abate ritual»).

13      Em aplicação do artigo 16.o, n.o 2, da Lei de 14 de agosto de 1986, relativa à proteção e ao bem‑estar dos animais (Belgisch Staatsblad, 3 de dezembro de 1986, p. 16382), o Decreto Real de 11 de fevereiro de 1988, relativo a determinados abates prescritos por um rito religioso (Belgisch Staatsblad, 1 de março de 1988, p. 2888), previa que, na Bélgica, os abates prescritos por um rito religioso só podiam ser efetuados em matadouros regularmente autorizados (a seguir «matadouros aprovados») ou «em estabelecimentos aprovados pelo ministro com o pelouro da agricultura, em concertação com o ministro com o pelouro da saúde pública» (a seguir «locais de abate temporários»).

14      Com base nesta legislação, desde 1998 que o ministro federal belga aprovou anualmente locais de abate temporários que, com os matadouros aprovados, permitiram assegurar os abates rituais na Festa do Sacrifício, colmatando assim a falta de capacidade destes últimos matadouros associada ao aumento da procura durante esse período.

15      Após concertação com a comunidade muçulmana, o Serviço público federal da Saúde Pública, Segurança Alimentar e Ambiente publicou em diversas datas, até 2013, um «guia» relativo à organização da Festa do Sacrifício, que continha recomendações para a abertura e exploração de locais de abate temporários.

16      Na sequência da Sexta Reforma do Estado, a competência relativa ao bem‑estar dos animais foi transferida para as Regiões a partir de 1 de julho de 2014. Assim, para gerir a organização da Festa do Sacrifício de 2014 no seu território, a Região da Flandres adotou, por seu turno, um guia, semelhante ao guia federal de 2013, que indicava que os locais de abate temporários podiam ser autorizados individualmente pelo ministro competente para um período determinado, desde que se verificasse uma capacidade de abate insuficiente a uma distância razoável nos matadouros aprovados, e os referidos locais respeitassem um conjunto de requisitos em matéria de equipamento e de obrigações operacionais.

17      Todavia, em 12 de setembro de 2014, o ministro da Região da Flandres anunciou que, a partir de 2015, deixaria de conceder autorizações relativas a locais de abate temporários em que fosse possível fazer o abate ritual durante a Festa do Sacrifício, alegando que tais autorizações são contrárias ao disposto no Regulamento n.o 1099/2009 e, em especial, à regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, deste regulamento, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, por força da qual os animais que sejam objeto de métodos especiais de abate prescritos por determinados ritos religiosos não podem ser abatidos sem atordoamento em matadouros que cumpram os requisitos do Regulamento n.o 853/2004.

18      Em 4 de junho de 2015, o referido ministro enviou uma circular aos presidentes de câmara das cidades e municípios da Flandres, informando‑os de que a partir de 2015 todos os abates de animais sem atordoamento, incluindo os abates rituais realizados no contexto da Festa do Sacrifício, deviam ser efetuados unicamente em matadouros aprovados, em cumprimento dos requisitos do Regulamento n.o 853/2004 (a seguir «circular controvertida»).

19      O ministro da Região da Flandres referiu‑se, concretamente, a um documento da Direção‑Geral (DG) «Saúde e Segurança Alimentar» da Comissão Europeia de 30 de julho de 2015, intitulado «Auditoria efetuada na Bélgica, entre 24 de novembro e 3 de dezembro de 2014, destinado a avaliar os controlos relativos ao bem‑estar dos animais durante o abate e operações conexas» [DG(SANTE) 2014‑7059 — RM]. Com efeito, este documento indicava que «a occisão de animais sem atordoamento para ritos religiosos fora de um matadouro não respeita o regulamento [n.o 1099/2009]».

20      Foi neste contexto que, em 5 de fevereiro de 2016, as demandantes no processo principal intentaram uma ação contra a Região da Flandres, no Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas, Bélgica).

21      As demandantes contestam, a título principal, a aplicabilidade do Regulamento n.o 1099/2009 ao abate ritual, com o fundamento de que o seu artigo 1.o, n.o 3, alínea a), iii), exclui do âmbito de aplicação deste último o abate de animais «em manifestações culturais ou desportivas». A título subsidiário, as referidas demandantes impugnam a validade da regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, na medida em que, por um lado, viola a liberdade de religião protegida pelo artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e pelo artigo 9.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), e, por outro, não respeita os costumes belgas relativos a ritos religiosos da Festa do Sacrifício, garantidos pelo artigo 13.o TFUE.

22      O órgão jurisdicional de reenvio observa, antes de mais, que o abate ritual efetuado no âmbito da Festa do Sacrifício recai no âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1099/2009, dado que esta prática corresponde ao conceito de «rito religioso», na aceção do seu artigo 2.o, alínea g), e, consequentemente, é objeto da regra prevista no artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento.

23      Assim sendo, o referido órgão jurisdicional considera no entanto que, ao aplicar a regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, a circular controvertida estabelece uma limitação do direito à liberdade de religião e infringe os costumes belgas em matéria de ritos religiosos. Salienta que, de facto, esta circular obriga os muçulmanos praticantes a efetuar o abate ritual durante a Festa do Sacrifício em matadouros aprovados, que cumpram os requisitos técnicos em matéria de construção, de configuração e de equipamento previstos pelo Regulamento n.o 853/2004. Contudo, no território da Região da Flandres, o número de matadouros que cumprem esses requisitos não é suficiente para responder ao aumento da procura de carne «halal» que ocorre, em geral, durante a Festa do Sacrifício. Assim, a obrigação de proceder ao abate ritual em matadouros aprovados impede muitos muçulmanos praticantes de cumprir o seu dever religioso de, no primeiro dia da Festa do Sacrifício, abater ou mandar abater um animal segundo as prescrições do rito.

24      Além disso, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, essa limitação não é pertinente nem proporcionada à luz dos objetivos legítimos de proteção do bem‑estar dos animais e da saúde pública que prossegue. Com efeito, por um lado, os locais de abate temporários autorizados entre 1998 e 2014 conseguiram garantir um nível suficiente de prevenção do sofrimento dos animais e de respeito da saúde pública. Por outro lado, a transformação destes locais de abate temporários em matadouros que cumpram os requisitos técnicos em matéria de construção, configuração e equipamento exigidos pelo Regulamento n.o 853/2004 requer investimentos financeiros muito elevados que seriam desproporcionados face à natureza temporária do abate ritual que aí é praticado.

25      À luz destas considerações, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento.

26      Nestas condições, o Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 4.o, n.o 4, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do Regulamento [n.o 1099/2009] é inválido por violação do artigo 9.o da [CEDH] e do artigo 10.o da [Carta] e/ou do artigo 13.o [TFUE], porquanto determina que o abate de animais segundo métodos especiais exigidos por ritos religiosos, sem atordoamento, só pode ser efetuado num matadouro abrangido pelo Regulamento [n.o 853/2004], ao passo que, na Região [da Flandres], não existe suficiente capacidade nesses matadouros para dar resposta à procura do abate ritual sem atordoamento de animais que se verifica todos os anos por ocasião da Festa do Sacrifício […], e os encargos para converter os estabelecimentos de abate temporários, controlados e acreditados pelo Estado, com vista à referida festa, em matadouros abrangidos pelo Regulamento [n.o 853/2004], não parecem ser pertinentes para alcançar os objetivos prosseguidos do bem‑estar dos animais e da saúde pública e, portanto, não parecem ser proporcionados?»

 Quanto à questão prejudicial

 Quanto à admissibilidade

27      A Região da Flandres, os Governos neerlandês e do Reino Unido, o Conselho da União Europeia e a Comissão sustentam que a questão prejudicial é inadmissível.

28      Por um lado, a Região da Flandres e o Governo do Reino Unido contestam a pertinência da questão prejudicial devido à sua formulação. Com efeito, alegam que a eventual limitação do direito à liberdade de religião poderia resultar, se for o caso, unicamente do Regulamento n.o 853/2004, na medida em que é este regulamento que fixa as condições de aprovação dos matadouros em que a circular controvertida exige que seja efetuado o abate ritual na Festa do Sacrifício. Assim, a referida questão não está relacionada com o litígio no processo principal, na medida em que tem por objeto a validade não do Regulamento n.o 853/2004, mas do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento.

29      Por outro lado, a Região da Flandres, os Governos neerlandês e do Reino Unido, o Conselho e a Comissão manifestam dúvidas quanto à utilidade da questão prejudicial. Alegam, designadamente, que esta questão se baseia em circunstâncias factuais internas desprovidas de conexão com o Regulamento n.o 1099/2009, pelo que não podem afetar a validade do mesmo. Sustentam que, com efeito, o problema na origem do litígio no processo principal decorre unicamente da insuficiente capacidade de abate dos matadouros aprovados na Região da Flandres para fazer face à procura durante a Festa do Sacrifício e da importância do investimento financeiro necessário para permitir que os locais de abate temporários sejam transformados em matadouros que cumpram os requisitos do Regulamento n.o 853/2004.

30      A este respeito, há que recordar desde já que compete apenas ao juiz nacional, ao qual o litígio foi submetido e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência da questão que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, quando a questão submetida for relativa à interpretação ou à validade de uma norma de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir (Acórdãos de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 24, e de 4 de maio de 2016, Philbox 38, C‑477/14, EU:C:2016:324, n.o 15).

31      Daqui se conclui que uma questão prejudicial relativa ao direito da União goza de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre essa questão se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400, n.o 25).

32      No caso em análise, no que respeita, por um lado, ao argumento relativo à falta de pertinência da questão submetida para dirimir o litígio no processo principal, importa salientar que é verdade que os requisitos de aprovação dos matadouros a que a circular controvertida impõe que se recorra, a partir de 2015, para efeitos do abate ritual durante a Festa do Sacrifício são fixados pelo Regulamento n.o 853/2004. No entanto, resulta claramente dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que essa circular foi adotada especificamente com base na regra prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, que exige que o abate ritual seja efetuado nos matadouros aprovados, que cumprem os requisitos técnicos estabelecidos pelo Regulamento n.o 853/2004.

33      Nestas condições, a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, na medida em que tem por objeto a validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, está manifestamente relacionada com a realidade e o objeto do litígio no processo principal e, por conseguinte, é inteiramente pertinente para o dirimir.

34      No que respeita, por outro lado, ao argumento relativo à inutilidade da questão prejudicial, na medida em que se baseia em circunstâncias factuais internas que são alheias à eventual invalidade do Regulamento n.o 1099/2009, cumpre sublinhar que, como salientou o advogado‑geral nos n.os 39 a 42 das suas conclusões, esse argumento deve ser apreciado no âmbito do exame de mérito do presente pedido de decisão prejudicial.

35      Com efeito, tal argumento visa, na realidade, contestar a própria possibilidade de declarar inválida, à luz do direito primário da União e, em particular, das disposições da Carta e do Tratado FUE, a regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, sustentando que a obrigação, decorrente dessa regra, de efetuar abates rituais em matadouros aprovados não pode constituir, em si mesma, uma limitação ao exercício da liberdade de religião e dos costumes nacionais em matéria de ritos religiosos.

36      Resulta do que precede que a questão submetida é admissível.

 Quanto ao mérito

37      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que aprecie a validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, à luz do artigo 10.o da Carta, do artigo 9.o da CEDH e do artigo 13.o TFUE, na medida em que as referidas disposições do Regulamento n.o 1099/2009 têm por efeito exigir que o abate ritual por ocasião da Festa do Sacrifício seja efetuado em matadouros aprovados que cumpram os requisitos técnicos estabelecidos pelo Regulamento n.o 853/2004.

 Quanto à validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, à luz do artigo 10.o da Carta e do artigo 9.o da CEDH

38      A título preliminar, há que recordar que a União é uma União de Direito cujas instituições estão sujeitas à fiscalização da conformidade dos seus atos, nomeadamente com os Tratados, com os princípios gerais do direito e com os direitos fundamentais (Acórdão de 6 de outubro de 2015, Scherms, C‑362/14, EU:C:2015:650, n.o 60 e jurisprudência aí referida).

39      Em primeiro lugar, no que respeita ao direito à liberdade de religião objeto da questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio refere‑se à proteção que lhe é conferida tanto pelo artigo 10.o da Carta como pelo artigo 9.o da CEDH.

40      A este respeito, importa precisar que, embora, como confirma o artigo 6.o, n.o 3, TUE, os direitos fundamentais reconhecidos pela CEDH façam parte do direito da União, enquanto princípios gerais, e o artigo 52.o, n.o 3, da Carta disponha que os direitos nela contidos que correspondam aos direitos garantidos pela CEDH têm o mesmo sentido e o mesmo âmbito que os que lhes são conferidos pela referida Convenção, esta não constitui, enquanto a União não aderir à mesma, um instrumento jurídico formalmente integrado na ordem jurídica da União (Acórdãos de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 44; de 3 de setembro de 2015, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Comissão, C‑398/13 P, EU:C:2015:535, n.o 45; e de 15 de fevereiro de 2016, N., C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84, n.o 45).

41      Por consequência, o exame da validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, solicitado pelo órgão jurisdicional de reenvio, deve ser realizado à luz do artigo 10.o da Carta (v., por analogia, Acórdão de 15 de fevereiro de 2016, N., C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84, n.o 46 e jurisprudência aí referida).

42      Há, em seguida, que verificar se os métodos especiais de abate prescritos por ritos religiosos, na aceção do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

43      A este propósito, cumpre recordar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião protegido no artigo 10.o, n.o 1, da Carta implica designadamente a liberdade de qualquer pessoa de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou coletivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de diferentes ritos daquela (v., neste sentido, Acórdãos de 14 de março de 2017, G4S Secure Solutions, C‑157/15, EU:C:2017:203, n.o 27, e de 14 de março de 2017, Bougnaoui e ADDH, C‑188/15, EU:C:2017:204, n.o 29).

44      Além disso, há que salientar que a Carta atribui uma aceção ampla ao conceito de «religião» que prevê, suscetível de abranger quer o forum internum, isto é, o facto de ter convicções, quer o forum externum, ou seja, a manifestação em público da fé religiosa (v., neste sentido, Acórdãos de 14 de março de 2017, G4S Secure Solutions, C‑157/15, EU:C:2017:203, n.o 28, e de 14 de março de 2017, Bougnaoui e ADDH, C‑188/15, EU:C:2017:204, n.o 30).

45      Daqui resulta que os métodos específicos de abate prescritos por ritos religiosos na aceção do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 10.o, n.o 1, da Carta (v., por analogia, TEDH, 27 de junho de 2000, Cha’are Shalom Ve Tsedek c. França, CE:ECHR:2000:0627JUD002741795, §74).

46      Cumpre, por último, verificar se, como salientou o órgão jurisdicional de reenvio, o abate ritual em causa no processo principal é efetivamente abrangido pela regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009.

47      A este propósito, cabe salientar que o conceito de «rito religioso», previsto nessa disposição, é definido no artigo 2.o, alínea g), do Regulamento n.o 1099/2009 como «uma série de atos relacionados com o abate de animais, prescritos por uma religião».

48      Ora, tal como foi recordado nos n.os 11 e 12 do presente acórdão, resulta do pedido de decisão prejudicial que o abate ritual em causa no processo principal constitui um rito celebrado anualmente por um elevado número de muçulmanos praticantes na Bélgica a fim de cumprir um preceito religioso específico, que consiste na obrigação de abater ou mandar abater, sem atordoamento prévio, um animal cuja carne é depois parcialmente comida em família e parcialmente partilhada com pessoas carenciadas, vizinhos e parentes afastados.

49      Daqui resulta que o referido abate está efetivamente abrangido pelo conceito de «rito religioso», na aceção do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009. Por conseguinte, está abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 10.o, n.o 1, da Carta.

50      Tal consideração não pode ser posta em causa, como salientou o advogado‑geral nos n.os 51 a 58 das suas conclusões, pelo debate teológico, evidenciado pela GAIA nas suas observações escritas e na audiência, que existe nas diferentes correntes religiosas da comunidade muçulmana sobre a natureza absoluta ou não da obrigação de efetuar o abate sem atordoamento prévio dos animais durante a Festa do Sacrifício e sobre a existência correlativa de alegadas soluções alternativas em caso de impossibilidade de cumprir a referida obrigação.

51      Com efeito, a existência de eventuais divergências teológicas sobre este assunto não pode, em si mesma, invalidar a qualificação como «rito religioso» da prática relativa ao abate ritual, conforme descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio no presente pedido de decisão prejudicial.

52      Feitas estas precisões preliminares, importa apreciar se a regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, constitui ou não uma limitação do direito à liberdade de religião garantido pelo artigo 10.o da Carta.

53      O artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009 prevê, como princípio geral, que, na União, os «animais só podem ser mortos após atordoamento». O n.o 4 deste artigo dispõe que «[o]s requisitos previstos no n.o 1 não se aplicam aos animais que são objeto dos métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos, desde que o abate seja efetuado num matadouro».

54      O artigo 2.o, alínea k), do Regulamento n.o 1099/2009 define o conceito de «matadouro», para efeitos deste regulamento, como «qualquer estabelecimento utilizado para o abate de animais terrestres e que seja abrangido pelo [Regulamento n.o 853/2004]».

55      Resulta, pois, da leitura conjugada do artigo 4.o, n.os 1 e 4, do Regulamento n.o 1099/2009 com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento que a prática do abate ritual sem atordoamento prévio é permitida, a título derrogatório, na União, na medida em que esse abate tenha lugar num estabelecimento aprovado pelas autoridades nacionais competentes e que, para tais efeitos, respeite os requisitos técnicos relativos à construção, à configuração e ao equipamento, impostos pelo Regulamento n.o 853/2004.

56      A este respeito, importa precisar que a derrogação autorizada pelo artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 não estabelece nenhuma proibição da prática do abate ritual na União, mas, pelo contrário, concretiza o compromisso positivo do legislador da União de permitir a prática do abate de animais sem atordoamento prévio, a fim de garantir o respeito efetivo da liberdade de religião, designadamente dos praticantes muçulmanos, durante a Festa do Sacrifício.

57      Esta interpretação é confirmada pelo considerando 18 do Regulamento n.o 1099/2009, que enuncia claramente que este regulamento estabelece uma derrogação expressa à exigência de atordoamento dos animais antes do abate, precisamente com o objetivo de garantir o respeito da liberdade de religião e o direito de manifestar a sua religião ou convicções através de práticas e da celebração de ritos, consagrados no artigo 10.o da Carta.

58      Neste contexto, cumpre considerar que, ao estabelecer a obrigação de efetuar o abate ritual num matadouro aprovado, que cumpra os requisitos do Regulamento n.o 853/2004, o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, visa unicamente organizar e enquadrar, de um ponto de vista técnico, o livre exercício do abate sem atordoamento prévio com fins religiosos.

59      Ora, tal enquadramento técnico não é, em si, suscetível de causar uma limitação do direito à liberdade de religião dos muçulmanos praticantes.

60      Com efeito, em primeiro lugar, há que salientar que o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, subordina o abate ritual à observância dos mesmos requisitos técnicos que são aplicáveis, em princípio, a qualquer abate de animais no interior da União, independentemente do método utilizado.

61      Conforme salientou o advogado‑geral no n.o 78 das suas conclusões, a obrigação de recorrer a um matadouro aprovado, conforme com os requisitos técnicos previstos pelo Regulamento n.o 853/2004, visa de maneira geral e indiferenciada todos os organizadores de abates de animais, independentemente de qualquer relação com uma determinada religião, e abrange, assim, de maneira não discriminatória todos os produtores de carne animal na União.

62      Em segundo lugar, importa precisar que, ao ter estabelecido tais requisitos técnicos, o legislador da União conciliou o respeito dos métodos específicos de abate prescritos por ritos religiosos com o das regras essenciais estabelecidas pelos Regulamentos n.o 1099/2009 e n.o 853/2004 quanto à proteção do bem‑estar dos animais no momento da occisão e da saúde de todos os consumidores de carne animal.

63      Com efeito, por um lado, a proteção do bem‑estar dos animais constitui o objetivo principal prosseguido pelo Regulamento n.o 1099/2009 e, em especial, pelo seu artigo 4.o, n.o 4, tal como decorre do próprio título do regulamento e do seu considerando 2.

64      Como o Tribunal de Justiça já declarou, a importância do bem‑estar dos animais traduziu‑se, nomeadamente, pela adoção, pelos Estados‑Membros, do Protocolo (n.o 33), por força do qual a União e os Estados‑Membros devem ter plenamente em conta as exigências do bem‑estar dos animais, quando formulam e executam a sua política (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de junho de 2008, Nationale Raad van Dierenkwekers en Liefhebbers e Andibel, C‑219/07, EU:C:2008:353, n.o 27, e de 23 de abril de 2015, Zuchtvieh‑Export, C‑424/13, EU:C:2015:259, n.o 35).

65      Este é o contexto em que o legislador da União considerou que, para evitar sofrimentos excessivos e inúteis aos animais no momento da occisão sem atordoamento prévio, qualquer abate ritual deve ser efetuado num matadouro que cumpra os requisitos técnicos previstos pelo Regulamento n.o 853/2004. Com efeito, como, em substância, enunciam os considerandos 43 e 44 do Regulamento n.o 1099/2009, apenas neste tipo de matadouro é possível imobilizar «individualmente e mecanicamente» de forma adequada estes animais e ter em conta os «progressos científicos e técnicos» que se registam na matéria, limitando tanto quanto possível o seu sofrimento.

66      Por outro lado, o objetivo de assegurar um nível elevado de proteção da saúde humana levou o legislador da União, conforme resulta do considerando 8 do Regulamento n.o 1099/2009, a responsabilizar os operadores das empresas do setor alimentar por garantir a segurança dos alimentos e a impor a obrigação de todos os abates de animais serem efetuados em matadouros que cumpram os requisitos técnicos relativos à construção, à configuração e ao equipamento que figuram, em especial, no Anexo III do Regulamento n.o 853/2004.

67      Com efeito, como indicou o advogado‑geral nos n.os 64 e 65 das suas conclusões, com a adoção deste último regulamento, o legislador da União pretendeu expressamente garantir, em conformidade com a intenção enunciada no seu considerando 2, que todos os produtos alimentares de origem animal, qualquer que seja o modo de abate escolhido, sejam produzidos e comercializados segundo normas estritas, que permitam assegurar a higiene e a segurança alimentares e evitar perigos para a saúde humana.

68      Resulta das considerações precedentes que a regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, não pode constituir, em si mesma, uma limitação do direito à liberdade de religião dos muçulmanos praticantes, protegida pelo artigo 10.o da Carta, durante a Festa do Sacrifício.

69      O órgão jurisdicional de reenvio considera, no entanto, que a obrigação decorrente dessa regra pode constituir um obstáculo, no território da Região da Flandres, à prática do abate ritual para muitos muçulmanos praticantes e criar uma limitação do seu direito à liberdade de religião.

70      Estas considerações prendem‑se com o facto de os matadouros aprovados, situados no território da Região da Flandres e conformes com os requisitos do Regulamento n.o 853/2004, não terem capacidade de abate suficiente para responder ao aumento da procura da carne «halal» que ocorre durante a Festa do Sacrifício. Ora, a criação, a cargo da comunidade muçulmana, de novos matadouros aprovados ou a transformação em matadouros aprovados dos locais de abate temporários que operaram até 2014 exige investimentos financeiros excessivamente elevados. Além disso, face ao caráter temporário da prática do abate ritual, esses investimentos não são pertinentes para evitar o sofrimento inútil ou excessivo dos animais nem para oferecer melhores garantias em matéria de saúde pública. Poderiam igualmente mostrar‑se desproporcionados relativamente à mais‑valia em matéria de respeito do bem‑estar dos animais e da saúde pública.

71      A este respeito, importa contudo recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a validade de um ato da União deve ser apreciada em função dos elementos de facto e de direito existentes à data de adoção do ato. Quando o legislador da União é levado a apreciar os efeitos futuros de uma regulamentação a adotar quando esses efeitos não podem ser previstos com exatidão, a sua apreciação só pode ser censurada se se afigurar manifestamente errada à luz dos elementos de que dispunha no momento da adoção da regulamentação em causa (Acórdãos de 17 de outubro de 2013, Schaible, C‑101/12, EU:C:2013:661, n.o 50, e de 9 de junho de 2016, Pesce e o., C‑78/16 e C‑79/16, EU:C:2016:428, n.o 50).

72      A validade de uma disposição do direito da União é, pois, apreciada em função das características próprias dessa disposição e não pode depender das circunstâncias particulares de um determinado caso concreto (v., neste sentido, Acórdão de 28 de julho de 2016, Ordre des barreaux francophones et germanophone e o., C‑543/14, EU:C:2016:605, n.o 29).

73      Ora, no caso em análise, por um lado, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que a problemática evidenciada pelo órgão jurisdicional de reenvio, e mencionada no n.o 70 do presente acórdão, respeita apenas a um número limitado de municípios da Região da Flandres. Por conseguinte, esta problemática não pode ser considerada como intrinsecamente ligada à aplicação, em toda a União, da regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento.

74      Assim, o mero facto de a aplicação do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, poder limitar a liberdade de praticar os abates rituais numa região de um Estado‑Membro específico não é suscetível de afetar a validade dessa disposição à luz do artigo 10.o da Carta. Com efeito, dado que o Regulamento n.o 1099/2009 tem impacto em todos os Estados‑Membros, a apreciação da sua validade deve ser efetuada tendo em consideração não a situação particular de um único Estado‑Membro, mas a de todos os Estados‑Membros da União (v., por analogia, Acórdão de 4 de maio de 2016, Polónia/Parlamento e Conselho, C‑358/14, EU:C:2016:323, n.o 103 e jurisprudência aí referida).

75      De resto, segundo as indicações que constam dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, os eventuais custos acrescidos evocados pelo órgão jurisdicional de reenvio não impediram que, em 2015, dois dos antigos locais de abate temporários existentes na Região da Flandres e, em 2016, três desses estabelecimentos se adaptassem à regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, ligo em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento.

76      Por outro lado, a problemática associada a esses eventuais custos acrescidos depende de circunstâncias conjunturais puramente internas.

77      Com efeito, a necessidade de criar novos matadouros que cumpram os requisitos do Regulamento n.o 853/2004, com o risco de potenciais custos acrescidos a cargo da comunidade muçulmana, decorre unicamente da alegada falta de capacidade nos matadouros aprovados existente no território da Região da Flandres.

78      Ora, tal problema pontual de capacidade de abate no território de uma região de um Estado‑Membro, associado ao aumento da procura de abates rituais durante alguns dias durante a Festa do Sacrifício, é a consequência de um conjunto de circunstâncias internas que não podem afetar a validade do artigo 4.o, n.o 4, deste regulamento, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento.

79      Decorre do exposto que as dúvidas expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio quanto a uma eventual violação da liberdade de religião devida a um encargo financeiro desproporcionado que recairia sobre as comunidades muçulmanas em causa não têm fundamento e não são suscetíveis de refutar o entendimento que figura no n.o 68 do presente acórdão, segundo o qual a regra estabelecida no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, não constitui, em si mesma, uma limitação do direito à liberdade de religião dos muçulmanos, protegido pelo artigo 10.o da Carta.

80      Resulta das considerações precedentes que a apreciação do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, não mostrou nenhum elemento suscetível de afetar a sua validade à luz do artigo 10.o da Carta.

 Quanto à validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, à luz do artigo 13.o TFUE

81      No que respeita à apreciação da validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, à luz do artigo 13.o TFUE, esta última disposição prevê que a União e os Estados‑Membros terão plenamente em conta os requisitos em matéria de bem‑estar dos animais, respeitando «as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados‑Membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional».

82      A este propósito, cumpre todavia observar, à semelhança da Comissão nas suas observações escritas, que, no caso em apreço, não decorre claramente dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça quais as disposições legislativas e administrativas ou os costumes belgas respeitantes ao rito religioso da Festa do Sacrifício abrangidos pelo artigo 13.o TFUE. Com efeito, a legislação belga em vigor no momento do pedido de decisão prejudicial prevê que o abate ritual deva obrigatoriamente ser praticado num matadouro aprovado, que cumpra os requisitos do Regulamento n.o 853/2004. Devido a tal facto, as únicas disposições de direito nacional em matéria de ritos religiosos que podem ser afetadas pela aplicação da regra prevista no artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, são as que vigoraram até 4 de junho de 2015, data de adoção da circular controvertida.

83      Em qualquer caso, mesmo que fosse necessário considerar que o órgão jurisdicional de reenvio se refere a essas disposições de direito nacional, é certo que, uma vez que se considerou que a regra que decorre da aplicação do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, não implica nenhuma limitação do direito à liberdade de religião dos muçulmanos, garantido pelo artigo 10.o da Carta, nenhum elemento submetido à apreciação do Tribunal de Justiça permite concluir, com base nas considerações tecidas nos n.os 56 a 80 do presente acórdão, que o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, é inválido à luz do artigo 13.o TFUE.

84      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que a análise da questão prejudicial não apresentou nenhum elemento suscetível de afetar a validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, à luz do artigo 10.o da Carta e do artigo 13.o TFUE.

 Quanto às despesas

85      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

A análise da questão prejudicial não apresentou nenhum elemento suscetível de afetar a validade do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea k), do mesmo regulamento, à luz do artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do artigo 13.o TFUE.

Assinaturas


*      Língua do processo: neerlandês.