Language of document : ECLI:EU:C:2013:447

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

4 de julho de 2013 (*)

«Legislação fiscal — Impostos das sociedades — Dedução relativa ao capital de risco — Juros fictícios — Diminuição do montante dedutível pelas sociedades que dispõem de estabelecimentos no estrangeiro que geram lucros isentos em virtude de convenções destinadas a evitar a dupla tributação»

No processo C‑350/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo rechtbank van eerste aanleg te Antwerpen (Bélgica), por decisão de 24 de junho de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 4 de julho de 2011, no processo

Argenta Spaarbank NV

contra

Belgische Staat,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, M Ilešič, E. Levits (relator), J.‑J. Kasel e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 12 de julho de 2012,

vistas as observações apresentadas:

―        em representação do Argenta Spaarbank NV, por K. Morbée, K. Van Duyse e F. Smet, advocaten,

―        em representação do Governo belga, por M. Jacobs e J.‑C. Halleux, na qualidade de agentes,

―        em representação da Comissão Europeia, por W. Mölls e W. Roels, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 19 de setembro de 2012,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 49.° TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Argenta Spaarbank NV (a seguir «Argenta») ao Belgische Staat, relativamente ao cálculo da dedução relativa ao capital de risco a título do exercício de tributação correspondente ao ano de 2008.

 Quadro jurídico

 Direito belga

3        A dedução relativa ao capital de risco foi introduzida no regime aplicável ao imposto sobre os rendimentos pela Lei de 22 de junho de 2005 que cria uma dedução fiscal relativa ao capital de risco (Moniteur belge de 30 de junho de 2005, p. 30077). Esta dedução consta dos artigos 205.° bis a 205.° nonies e 236.° do Código do imposto sobre o rendimento de 1992 (a seguir «CIR 1992»).

4        Resulta da exposição de motivos desta lei que a mesma tem por objetivo, nomeadamente, atenuar a diferença de tratamento fiscal entre o financiamento das sociedades com capitais tomados de empréstimo, cuja remuneração é totalmente dedutível fiscalmente, e o financiamento com capitais próprios (capitais de risco), cuja remuneração era inteiramente tributada, e aumentar o rácio de solvabilidade das sociedades, inserindo‑se a criação da dedução de capitais de risco no quadro do objetivo geral que consiste em melhorar a competitividade da economia belga.

5        A dedução relativa ao capital de risco, também chamada de «dedução dos juros fictícios», consiste em deduzir da matéria coletável do imposto das sociedades uma percentagem dos capitais próprios da sociedade em causa.

6        Nos termos do artigo 205.° quater, n.° 1, do CIR 1992, a dedução relativa ao capital de risco é igual ao capital de risco, determinado em conformidade com o artigo 205.° ter do CIR 1992, multiplicado pela taxa fixada nos números seguintes deste artigo 205.° quater.

7        O artigo 205.° ter, n.° 1, primeiro parágrafo, do CIR 1992 prevê que, para determinar a dedução relativa ao capital de risco para um período tributável, o capital de risco a tomar em consideração corresponde, sem prejuízo das disposições dos n.os 2 a 7 desse artigo 205.° ter, ao montante dos capitais próprios da sociedade, no final do exercício anterior, determinados de acordo com a legislação relativa à contabilidade e às contas anuais que figuram no balanço. Os referidos n.os 2 a 7 preveem as hipóteses em que os capitais próprios devem ser objeto de correções para servir de base de cálculo para constatar o montante da dedução relativa ao capital de risco.

8        Em particular, nos termos do artigo 205.° ter, n.° 2, do CIR 1992, do capital de risco, determinado nos termos do artigo 205.° ter, n.° 1, do CIR 1992, é deduzido o valor líquido dos ativos dos estabelecimentos estáveis cujos rendimentos são isentos ao abrigo de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação.

9        O artigo 205.° quinquies do CIR 1992 prevê que, na falta de lucros num exercício em que a dedução relativa ao capital de risco pode ser deduzida, a isenção não concedida em relação a este exercício é reportada sucessivamente nos lucros dos sete anos seguintes.

 Convenção destinada a evitar a dupla tributação celebrada entre o Reino da Bélgica e o Reino dos Países Baixos

10      O artigo 7.°, n.os 1 a 3, da Convenção de 5 de junho de 2001 entre o Reino da Bélgica e o Reino dos Países Baixos destinada a evitar a dupla tributação e a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento e sobre o património (Moniteur belge de 20 de dezembro de 2002, p. 57533, a seguir «convenção belgo‑neerlandesa») estipula:

«1. Os lucros de uma empresa de um Estado contratante são tributados unicamente nesse Estado, a menos que a empresa exerça a sua atividade no outro Estado contratante, através de um estabelecimento estável nele situado. Se a empresa exercer a sua atividade nos termos referidos neste último caso, os lucros da empresa podem ser tributados no outro Estado, mas unicamente na medida em que sejam imputáveis a esse estabelecimento estável.

2.      Sem prejuízo das disposições do n.° 3, quando uma empresa de um Estado contratante exerce a sua atividade no outro Estado por intermédio de um estabelecimento estável que aí está situado, são tributados a esse estabelecimento estável, em cada Estado, os lucros que esse estabelecimento teria podido realizar se tivesse constituído uma empresa distinta que exercesse atividades idênticas ou análogas em condições idênticas ou análogas e que se relacionasse com total independência com a empresa da qual constitui um estabelecimento estável.

3.      Para determinar os lucros de um estabelecimento estável, são dedutíveis as despesas suportadas com a prossecução dos objetivos desse estabelecimento estável, incluindo as despesas de gestão e as despesas gerais de administração, quer no Estado em que está situado esse estabelecimento estável quer noutro lugar.»

11      O artigo 23.°, n.° 1, da convenção belgo‑neerlandesa prevê:

«No caso da Bélgica, a dupla tributação é evitada do seguinte modo:

a)      Quando um residente na Bélgica aufere rendimentos, que não dividendos, juros ou rendas referidos no artigo 12.°, n.° 5, ou possui ativos patrimoniais que são tributados nos Países Baixos nos termos das disposições da presente convenção, a Bélgica isenta esses rendimentos ou ativos patrimoniais de imposto, mas pode, para calcular o montante dos impostos a cobrar pelos demais rendimentos ou património desse residente, aplicar a mesma taxa que aplicaria se os rendimentos ou ativos patrimoniais em questão não tivessem sido isentos.

[...]»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

12      O Argenta é uma sociedade residente na Bélgica, sujeita ao imposto sobre as sociedades nesse Estado‑Membro. Possui um estabelecimento estável nos Países Baixos, cujos rendimentos estão isentos na Bélgica, por força da convenção belgo‑neerlandesa.

13      Para o exercício de tributação correspondente ao ano de 2008, o Argenta solicitou, ao abrigo dos artigos 205.° bis a 205.° nonies do CIR 1992, o benefício da dedução relativa ao capital de risco.

14      Em 19 de novembro de 2008, foi calculado o imposto sobre as sociedades para o referido exercício de tributação a pagar pelo Argenta. No âmbito do cálculo deste imposto, com base no artigo 205.° ter, n.° 2, do CIR 1992, a Administração Fiscal belga não teve em conta o valor líquido dos ativos do estabelecimento estável do Argenta situado nos Países Baixos para a determinação do capital de risco que serve de base à dedução relativa ao capital de risco.

15      A reclamação que, em 20 de maio de 2009, o Argenta apresentou contra esta tributação de imposto foi indeferida pela referida Administração em 7 de setembro de 2009.

16      Considerando que o artigo 205.° ter, n.° 2, do CIR 1992 constitui um entrave à liberdade de estabelecimento prevista no artigo 49.° TFUE, na medida em que os investimentos realizados num estabelecimento estável situado num Estado‑Membro com o qual a Bélgica concluiu uma convenção destinada a evitar a dupla tributação não conferem o direito à dedução relativa ao capital de risco, quando investimentos idênticos efetuados num estabelecimento situado na Bélgica conferem o direito a esta dedução, o Argenta interpôs, em 4 de dezembro de 2009, um recurso dessa decisão no órgão jurisdicional de reenvio.

17      Nestas condições, o referido o órgão jurisdicional decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo [49.° TFUE] opõe‑se a uma legislação fiscal nacional […] nos termos da qual uma sociedade sujeita a tributação pela globalidade dos seus rendimentos na Bélgica não pode aplicar, no cálculo dos respetivos lucros tributáveis, a dedução relativa ao capital de risco até ao montante da diferença positiva entre, por um lado, o valor contabilístico líquido dos ativos dos estabelecimentos que o sujeito passivo detém noutro Estado‑Membro da União [Europeia] e, por outro lado, o total dos passivos que sejam imputáveis a estes estabelecimentos, ao passo que lhe é permitido aplicar essa dedução relativa ao capital de risco se a diferença positiva puder ser imputada a um estabelecimento estável situado na Bélgica?»

 Quanto à questão prejudicial

18      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 49.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual, para o cálculo de uma dedução concedida a uma sociedade sujeita a tributação pela globalidade dos seus rendimentos num Estado‑Membro, o valor líquido dos ativos de um estabelecimento estável situado noutro Estado‑Membro não é tido em conta, quando os lucros do referido estabelecimento estável não são tributáveis no primeiro Estado‑Membro por força de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação, ao passo que são tidos em conta para esse efeito os ativos atribuídos a um estabelecimento estável situado no território desse primeiro Estado‑Membro.

19      Como resulta de jurisprudência constante, a liberdade de estabelecimento, que o artigo 49.° TFUE reconhece aos nacionais da União e que lhes confere o acesso às atividades não assalariadas e ao respetivo exercício, bem como a constituição e a gestão de empresas, nas condições definidas pela legislação do Estado‑Membro de estabelecimento para os seus próprios nacionais, inclui, em conformidade com o artigo 54.° TFUE, para as sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado‑Membro e que tenham a sede estatutária, a administração central ou estabelecimento principal no interior da União, o direito de exercerem a sua atividade no Estado‑Membro em causa por intermédio de uma filial, de uma sucursal ou de uma agência (v. acórdão de 15 de setembro de 2011, Accor, C‑310/09, Colet., p. I‑8115, n.° 39 e jurisprudência aí referida).

20      Embora, de acordo com o seu teor, as disposições do Tratado FUE relativas à liberdade de estabelecimento visem assegurar o benefício do tratamento nacional no Estado‑Membro de acolhimento, as mesmas opõem‑se igualmente a que o Estado‑Membro de origem coloque entraves ao estabelecimento noutro Estado‑Membro de um dos seus nacionais ou de uma sociedade constituída em conformidade com a sua legislação (acórdão Accor, já referido, n.° 40 e jurisprudência aí referida).

21      Estas considerações são igualmente aplicáveis quando uma sociedade estabelecida num Estado‑Membro opera noutro Estado‑Membro através de um estabelecimento estável (acórdão de 15 de maio de 2008, Lidl Belgium, C‑414/06, Colet., p. I‑3601, n.° 20).

22      No processo principal, é dado assente que, para efeitos do cálculo da dedução relativa ao capital de risco, a legislação em causa institui uma diferença de tratamento entre os ativos dos estabelecimentos estáveis situados num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica, cujos rendimentos não são tributáveis na Bélgica, e os ativos dos estabelecimentos estáveis situados neste último Estado‑Membro.

23      Com efeito, os ativos atribuídos aos estabelecimentos estáveis situados num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica e cujos rendimentos não são tributáveis na Bélgica não são tidos em conta quando do cálculo do capital de risco que serve de base de cálculo à dedução em causa no processo principal, uma vez que os ativos atribuídos aos estabelecimentos estáveis situados na Bélgica são tidos em conta para este efeito.

24      Como sublinhou o advogado‑geral no n.° 33 das suas conclusões, a tomada em consideração de ativos de um estabelecimento estável para o cálculo da dedução relativa ao capital de risco de uma sociedade sujeita a imposto sobre as sociedades na Bélgica constitui um benefício fiscal, dado que essa tomada em consideração contribui para reduzir a taxa efetiva de imposto sobre as sociedades que essa sociedade deve pagar no referido Estado‑Membro.

25      Ora, um tal benefício fiscal é recusado quando o estabelecimento estável da sociedade residente na Bélgica está situado noutro Estado‑Membro e beneficia de uma isenção dos seus rendimentos, por força de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação celebrada entre o Reino da Bélgica e esse outro Estado‑Membro.

26      O Governo belga invoca, a este respeito, que a diferença de tratamento que decorre da legislação nacional em causa no processo principal não constitui, no entanto, uma restrição à liberdade de estabelecimento, uma vez que, por um lado, esta diferença de tratamento não conduziria a consequências desfavoráveis para a sociedade que dispõe de um estabelecimento estável num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica e que, por outro, caso se verificassem tais consequências desfavoráveis, as mesmas seriam devidas ao exercício paralelo da sua competência fiscal por parte de vários Estados‑Membros.

27      Assim, esse governo considera que, mesmo tendo em conta os ativos do estabelecimento estável situado num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica, o resultado fiscal da sociedade principal residente não poderia ser aliviado. Com efeito, segundo o referido governo, no que respeita aos estabelecimentos estáveis estrangeiros não isentos por força de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação, a dedução relativa ao capital de risco é calculada de forma separada, em relação aos ativos atribuídos ao estabelecimento estável, e prioritariamente aplicada aos lucros realizados por este estabelecimento. O Governo belga daí conclui, por analogia, que, caso se deva ter em conta os ativos do estabelecimento estável situado num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica e cujos rendimentos são isentos por força desta convenção, a dedução relativa ao capital de risco deve abranger os lucros atribuídos a este estabelecimento. Ora estes não são tributados na Bélgica.

28      O Argenta e a Comissão contestaram esta interpretação do direito belga, alegando que, no que respeita aos estabelecimentos estáveis estrangeiros, cujos rendimentos não são isentos de imposto na Bélgica, a dedução relativa ao capital de risco é calculada com base nos rendimentos globais e é aplicável ao conjunto dos rendimentos tributáveis da sociedade em causa.

29      A este respeito, importa recordar que, como resulta de jurisprudência constante, quando o Tribunal de Justiça responde a uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro em conformidade com o disposto no artigo 267.° TFUE, não é competente para interpretar o direito interno desse Estado‑Membro, incumbindo esta tarefa aos órgãos jurisdicionais nacionais (v., designadamente, acórdãos de 12 de outubro de 1993, Vanacker e Lesage, C‑37/92, Colet., p. I‑4947, n.° 7; de 14 de fevereiro de 2008, Gysen, C‑449/06, Colet., p. I‑553, n.° 17; e de 17 de janeiro de 2013, Zakaria, C‑23/12, n.° 29).

30      Todavia, há que sublinhar que o Governo belga admitiu na audiência que, mesmo que a dedução relativa ao capital de risco fosse separadamente calculada em relação aos ativos do estabelecimento estável, e devesse ser prioritariamente aplicada aos lucros deste estabelecimento, um eventual excedente seria deduzido dos lucros da sociedade principal. Assim, não resulta da argumentação invocada pelo referido governo que a sociedade principal residente não podia beneficiar, para efeitos da redução da matéria coletável, da dedução relativa ao capital de risco calculada tendo em conta os ativos do estabelecimento estável situado num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica.

31      Além disso, como salientou o advogado‑geral no n.° 40 das suas conclusões, o Governo belga não contestou a tese do Argenta segundo a qual uma sociedade belga dotada de capitais próprios pode beneficiar da dedução relativa ao capital de risco ainda que apenas o seu estabelecimento estável estrangeiro, desprovido de capitais próprios, obtenha lucros, os quais serão definitivamente imputados à referida sociedade, por força da legislação belga, para efeitos de cálculo da referida dedução.

32      Por conseguinte, a impossibilidade de uma sociedade que dispõe de um estabelecimento estável num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica beneficiar, para efeitos da redução da sua matéria coletável, da dedução relativa ao capital de risco calculada tendo em conta os ativos do referido estabelecimento estável representa uma desvantagem para esta sociedade.

33      Contrariamente ao que afirma o Governo belga, este tratamento desvantajoso decorre não da circunstância de o Estado‑Membro no qual está situado o estabelecimento estável não prever uma dedução relativa ao capital de risco, mas exclusivamente da opção efetuada pela legislação belga de recusar a tomada em consideração dos ativos dos referidos estabelecimentos estáveis. O referido tratamento desvantajoso não pode, pois, ser consequência do exercício paralelo por vários Estados‑Membros da sua competência fiscal.

34      Esse tratamento desvantajoso é suscetível de dissuadir uma sociedade belga de exercer as suas atividades através de um estabelecimento estável situado num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica e constitui, consequentemente, uma restrição que, em princípio, é proibida pelas disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento.

35      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma restrição à liberdade de estabelecimento só pode ser admitida caso se justifique por razões imperiosas de interesse geral. Mas é ainda necessário, nesta hipótese, que seja adequada para garantir a realização do objetivo em causa e que não ultrapasse o que é necessário para atingir esse objetivo (v. acórdão Lidl Belgium, já referido, n.° 27 e jurisprudência aí referida).

36      A este respeito, o Governo belga invoca razões atinentes à necessidade de assegurar a coerência do sistema fiscal belga e a repartição equilibrada dos poderes de tributação entre os Estados‑Membros, em conjunto.

37      Assim, em primeiro lugar, o regime de dedução relativa ao capital de risco é perfeitamente simétrico existindo um nexo direto, pessoal e material entre o benefício fiscal, calculado relativamente aos ativos, e a tributação dos lucros gerados por esses ativos.

38      Este nexo é comparável ao existente entre os juros dedutíveis de um empréstimo destinado à aquisição de um ativo e o lucro tributável gerado por esse ativo, na medida em que a lei que institui a dedução em causa no processo principal tem por objetivo, como resulta da sua exposição de motivos, tratar, no plano fiscal, os capitais próprios do mesmo modo que os capitais tomados de empréstimo. Apesar de a dedução relativa ao capital de risco ser calculada forfetariamente, relativamente aos capitais próprios da sociedade, e não proporcionalmente aos lucros tributáveis desta, o montante calculado da dedução deve representar os juros que a sociedade teria pagado se tivesse pedido um empréstimo para constituir os ativos adquiridos com o auxílio dos seus capitais próprios.

39      Em segundo lugar, segundo o Governo belga, ao recusar ter em conta os ativos de um estabelecimento estável situado num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica e cujos lucros não são tributáveis na Bélgica, o referido Estado‑Membro exerce a sua competência fiscal no respeito do princípio da territorialidade e em conformidade com a repartição dos poderes de tributação, como decorre da convenção belgo‑neerlandesa.

40      A faculdade de ter em conta os encargos contabilísticos ou extracontabilísticos relativos aos ativos e passivos afetados a um estabelecimento estável e de conceder as deduções atinentes a esses ativos ou a esses passivos é concedida ao Estado‑Membro ao qual a convenção destinada a evitar a dupla tributação confere o direito de tributar os lucros do estabelecimento estável. Tal repartição, instituída pela convenção belgo‑neerlandesa, é, aliás, conforme com o modelo de convenção fiscal relativa ao rendimento e ao património, elaborado pela Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE).

41      Quanto à primeira justificação invocada pelo Governo belga, há que recordar que o Tribunal de Justiça já admitiu que a necessidade de preservar a coerência de um sistema fiscal pode justificar uma restrição ao exercício das liberdades de circulação garantidas pelo Tratado (acórdãos de 28 de janeiro de 1992, Bachmann, C‑204/90, Colet., p. I‑249, n.° 28; de 7 de setembro de 2004, Manninen, C‑319/02, Colet., p. I‑7477, n.° 42; de 23 de fevereiro de 2006, Keller Holding, C‑471/04, Colet., p. I‑2107, n.° 40; e de 27 de novembro de 2008, Papillon, C‑418/07, Colet., p. I‑8947, n.° 43).

42      Todavia, para que um argumento baseado em tal justificação possa ser acolhido, exige‑se, segundo uma jurisprudência assente, que esteja demonstrada a existência de um nexo direto entre o benefício fiscal em causa e a compensação deste benefício por uma determinada imposição fiscal (acórdãos, já referidos, Manninen, n.° 42, e Keller Holding, n.° 40), devendo o caráter direto deste nexo ser apreciado à luz do objetivo da regulamentação em causa (acórdãos Manninen, já referido, n.° 43; de 28 de fevereiro de 2008, Deutsche Shell, C‑293/06, Colet., p. I‑1129, n.° 39; e Papillon, já referido, n.° 44).

43      Como recordado no n.° 24 do presente acórdão, o benefício fiscal em causa no processo principal consiste na possibilidade de ter em conta, para o cálculo da dedução relativa ao capital de risco, os ativos atribuídos a um estabelecimento estável.

44      Ora, esse benefício, que tem por efeito reduzir a taxa efetiva do imposto sobre as sociedades aplicado à sociedade principal, não é compensado, no processo principal, por nenhuma imposição fiscal determinada.

45      Na verdade, o referido benefício só é concedido quando os lucros gerados pelo estabelecimento estável são tributáveis na Bélgica.

46      Todavia, não existe nexo direto, na aceção da jurisprudência recordada no n.° 42 do presente acórdão, entre o benefício calculado tendo em conta os ativos e a tributação do rendimento gerado pelos referidos ativos.

47      Com efeito, a legislação em causa no processo principal apenas exige que os eventuais rendimentos realizados pelo referido estabelecimento estável sejam tributáveis na Bélgica, mas não condiciona a atribuição do benefício em questão à sua realização efetiva, nem à sua tributação efetiva. Assim, o regime em causa no processo principal admite uma situação na qual, caso os rendimentos de um estabelecimento estável sejam tributáveis na Bélgica, mas este estabelecimento não tenha gerado rendimentos, os seus ativos sejam tidos em conta para o cálculo da dedução aplicada à sociedade à qual pertence.

48      Além disso, o artigo 205.° quinquies do CIR 1992 prevê que, na falta de lucros num exercício fiscal em que a dedução relativa ao capital de risco pode ser efetuada, a isenção não concedida para este exercício pode ser reportada sucessivamente sobre os lucros dos sete anos seguintes.

49      Por conseguinte, a recusa de ter em conta os ativos dos estabelecimentos estáveis situados num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica e cujos rendimentos são isentos de tributação na Bélgica por força de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação não pode ser justificada por razões atinentes à necessidade de assegurar a coerência do regime fiscal nacional.

50      Quanto à segunda justificação invocada pelo Governo belga, há que recordar que a preservação da repartição do poder tributário entre os Estados‑Membros é um objetivo legítimo reconhecido pelo Tribunal de Justiça (v., neste sentido, acórdãos de 13 de dezembro de 2005, Marks & Spencer, C‑446/03, Colet., p. I‑10837, n.° 45; de 7 de setembro de 2006, N, C‑470/04, Colet., p. I‑7409, n.° 42; de 18 de julho de 2007, Oy AA, C‑231/05, Colet., p. I‑6373, n.° 51; e Lidl Belgium, já referido, n.° 31). Resulta, além disso, de jurisprudência assente que, na falta de medidas de unificação ou de harmonização adotadas pela União, os Estados‑Membros continuam a ser competentes para determinar, por via convencional ou unilateral, os critérios de repartição do seu poder tributário de modo a, nomeadamente, eliminarem as duplas tributações (acórdãos de 19 de novembro de 2009, Comissão/Itália, C‑540/07, Colet., p. I‑10983, n.° 29, e de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus, C‑371/10, Colet., p. I‑12273, n.° 45).

51      Todavia, a circunstância de um Estado‑Membro ter celebrado uma convenção que se destina a evitar duplas tributações com outro Estado‑Membro e de ter acordado que os lucros imputáveis a um estabelecimento estável situado nesse outro Estado‑Membro apenas são tributáveis neste último Estado‑Membro e de, consequentemente, o primeiro Estado‑Membro não poder exercer a sua competência de tributação sobre os lucros imputáveis ao referido estabelecimento estável não pode justificar sistematicamente toda e qualquer recusa de atribuição de um benefício à sociedade estabelecida no território desse primeiro Estado‑Membro, à qual o referido estabelecimento estável pertence.

52      Tal recusa equivaleria a justificar um tratamento diferenciado apenas com o fundamento de que uma sociedade situada num Estado‑Membro desenvolveu uma atividade económica transnacional que não está vocacionada para gerar receitas fiscais em benefício deste Estado‑Membro (v., neste sentido, acórdãos Marks & Spencer, já referido, n.° 40, e de 29 de março de 2007, Rewe Zentralfinanz, C‑347/04, Colet., p. I‑2647, n.° 43).

53      Em contrapartida, resulta da jurisprudência que a necessidade de salvaguardar a repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados‑Membros pode ser aceite, nomeadamente, quando o regime em causa tenha por objetivo evitar comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro de exercer a sua competência fiscal em relação às atividades exercidas no seu território (v. acórdãos Oy AA, já referido, n.° 54; de 8 de novembro de 2007, Amurta, C‑379/05, Colet., p. I‑9569, n.° 58; de 18 de junho de 2009, Aberdeen Property Fininvest Alpha, C‑303/07, Colet., p. I‑5145, n.° 66; de 20 de outubro de 2011, Comissão/Alemanha, C‑284/09, Colet., p. I‑9879, n.° 77; e de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, n.° 47).

54      Assim, o Tribunal de Justiça declarou que este objetivo se destina, nomeadamente, à salvaguarda da simetria entre o direito de tributar os lucros e a faculdade de deduzir as perdas de um estabelecimento estável, na medida em que o facto de admitir que as perdas de um estabelecimento estável não residente possam ser deduzidas do rendimento da sociedade principal teria como consequência permitir a esta última escolher livremente o Estado‑Membro no qual poderia invocar essas perdas (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Oy AA, n.° 56, e Lidl Belgium, n.° 34).

55      Ora, como o salientou o advogado‑geral no n.° 63 das suas conclusões, a concessão do benefício fiscal em causa no processo principal não comprometeria o direito do Estado‑Membro no território em que a sociedade se encontra estabelecida e à qual pertence o estabelecimento estável nem o direito do Estado‑Membro em cujo território está situado o estabelecimento estável de exercer o poder de tributação sobre as atividades realizadas no seu território e não conduziria ao deslocamento dos rendimentos normalmente tributáveis de um desses Estados‑Membros para o outro.

56      Por último, quanto ao argumento do Governo belga baseado no tratamento paralelo que há que conceder à dedução fiscal dos juros de empréstimos utilizados para constituir ativos imputáveis a um estabelecimento estável, por um lado, e ao tratamento dos capitais próprios atribuídos a um estabelecimento estável, por outro, há que salientar que esse governo admite ele próprio o caráter forfetário da dedução relativa ao capital de risco que é calculada em relação aos capitais próprios da sociedade em causa e não à avaliação proporcional dos lucros tributáveis gerados pelos ativos desta.

57      Por conseguinte, o referido governo não pode alegar que a convenção belgo‑neerlandesa e, em particular, as suas disposições relativas à determinação dos lucros de um estabelecimento estável e à tomada em consideração, para o efeito, das despesas efetuadas para a prossecução dos fins desse estabelecimento se opõem à tomada em consideração, para o cálculo da dedução relativa ao capital de risco, dos ativos atribuídos a um estabelecimento estável cujos rendimentos, por força desta convenção, não são tributáveis na Bélgica.

58      Nestas condições, a restrição instituída pela legislação em causa no processo principal não pode ser justificada por razões atinentes à necessidade de assegurar a repartição equilibrada dos poderes de tributação entre os Estados‑Membros.

59      Em face das considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 49.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual, para o cálculo de uma dedução concedida a uma sociedade sujeita a tributação pela globalidade dos seus rendimentos num Estado‑Membro, não é tido em conta o valor líquido dos ativos de um estabelecimento estável situado noutro Estado‑Membro, quando os lucros do referido estabelecimento estável não forem tributáveis no primeiro Estado‑Membro por força de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação, ao passo que são tidos em conta para esse efeito os ativos atribuídos a um estabelecimento estável situado no território desse primeiro Estado‑Membro.

 Quanto às despesas

60      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 49.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual, para o cálculo de uma dedução concedida a uma sociedade sujeita a tributação pela globalidade dos seus rendimentos num Estado‑Membro, não é tido em conta o valor líquido dos ativos de um estabelecimento estável situado noutro Estado‑Membro, quando os lucros do referido estabelecimento estável não forem tributáveis no primeiro Estado‑Membro por força de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação, ao passo que são tidos em conta para esse efeito os ativos atribuídos a um estabelecimento estável situado no território desse primeiro Estado‑Membro.

Assinaturas


* Língua do processo: neerlandês.