Language of document : ECLI:EU:C:2017:505

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 29 de junho de 2017 (1)

Processo C598/15

Banco Santander, SA,

contra

Cristobalina Sánchez López

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Juzgado de Primera Instancia de Jerez de la Frontera (Tribunal de Primeira Instância de Jerez de la Frontera, Espanha)]

«Reenvio prejudicial — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas nos contratos de crédito celebrados com os consumidores — Poderes do juiz nacional para apreciar oficiosamente o caráter abusivo de uma cláusula contratual de um contrato de hipoteca no âmbito de um procedimento simplificado de reconhecimento dos direitos inscritos no registo predial»






1.        O presente pedido de decisão prejudicial, que tem, em substância, por objeto a interpretação dos artigos 3.o, 6.o e 7.o da Diretiva 93/13/CEE (2), convida o Tribunal de Justiça a fazer determinadas precisões quanto aos poderes que devem ser reconhecidos ao juiz nacional para efeitos da efetividade da proteção dos consumidores garantida por esta diretiva.

2.        O presente processo, que se inscreve na sequência de diversos precedentes jurisprudenciais relativos ao processo espanhol de execução hipotecária (3), diz respeito, mais concretamente, a um processo de execução dito «simplificado», que dá seguimento à instauração, junto de notário, de um processo extrajudicial de execução hipotecária. Resulta do direito espanhol aplicável aos factos do processo principal que este processo simplificado se destina a proteger e a executar os direitos reais inscritos, designadamente, no registo predial. A questão que se coloca é, assim, a de saber se a efetividade da proteção dos consumidores que decorre da Diretiva 93/13 exige que o juiz nacional possa fiscalizar o eventual caráter abusivo de cláusulas contidas num contrato hipotecário numa fase muito posterior à da transmissão da propriedade do bem que foi hipotecado.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3.        O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 prevê o seguinte:

«Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.»

4.        O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 enuncia o seguinte:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

5.        Nos termos do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, “[o]s Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.”

 Direito espanhol

6.        A Ley 1/2000, de Enjuiciamento Civil (Código do Processo Civil), de 7 de janeiro de 2000 (4) prevê, no seu artigo 250.o, n.o 1, o seguinte:

«Serão decididas em audiência, seja qual for o respetivo valor, as seguintes ações:

[…]

7° As que, intentadas pelos titulares de direitos reais inscritos no registo predial, reivindiquem esses direitos contra quem a eles se oponha ou perturbe o respetivo exercício, sem dispor de título registado que legitime essa oposição ou perturbação.»

7.        Por força do artigo 444.o, n.o 2, da LEC, a parte demandada deve, a pedido da parte requerente, prestar a caução que o tribunal determine para poder opor‑se à ação intentada no âmbito do processo do artigo 250.o, n.o 1, ponto 7, da LEC. Por outro lado, os fundamentos de oposição que a parte demandada tem o direito de invocar estão enumerados de forma taxativa no artigo 444.o, n.o 2, da LEC. Não faz parte dos mesmos nenhum fundamento relativo à existência de cláusulas abusivas no contrato de mútuo hipotecário que está na origem da venda extrajudicial.

8.        Por força do artigo 440.o, n.o 2, da LEC, se a parte demandada não comparecer em juízo, ou se comparecer sem ter prestado a caução, o juiz, depois de a ter ouvido, deve proferir sentença que ordene a restituição da posse do imóvel e o despejo do seu ocupante.

9.        A execução extrajudicial de um direito hipotecário está, designadamente, regulada no artigo 41.o da Ley Hipotecaria (Lei hipotecária, a seguir «LH») (5). Esta disposição previa, na sua versão aplicável aos factos em apreço no processo principal, o seguinte:

«As ações de reivindicação com base em direitos registados podem ser exercidas através do procedimento simplificado regulado [na LEC] contra aqueles que, sem título registado, se oponham àqueles direitos ou perturbem o seu exercício. Estas ações, que assentam na legitimação da inscrição no registo que reconhece o artigo 38.o, exigem que seja sempre atestada a validade, sem qualquer contradição, da inscrição correspondente, por certificação do conservador do registo.»

10.      O artigo 129.o da LH dispõe que «[a] ação hipotecária pode ser intentada diretamente sobre os bens hipotecados, nos termos do disposto [na LEC] […]. Além disso, na escritura de constituição da hipoteca pode acordar‑se a venda extrajudicial do bem hipotecado […] no caso de incumprimento da obrigação garantida. A venda extrajudicial será efetuada por intermédio de um notário, segundo as formalidades previstas no Regulamento hipotecário.»

11.      O Decreto por el que se aprueba el Regulamento Hipotecario (Regulamento Hipotecário) de 14 de fevereiro de 1947, que aprova a nova redação oficial da LH (6), fixa a tramitação do processo de venda extrajudicial.

12.      Segundo o artigo 234.o do RH:

“1.      A tramitação da execução extrajudicial prevista pelo artigo 129.o da [LH] exige que na escritura de constituição de hipoteca tenha sido estipulada a sujeição das partes a este procedimento, devendo ainda especificar‑se:

1)      o valor atribuído ao imóvel pelos interessados, para efeitos de fixação do valor de base na hasta pública;

2)      o domicílio indicado por quem constitui a hipoteca para requerimentos e notificações;

3)      a pessoa que, em caso de venda extrajudicial, deve assinar a escritura de venda do imóvel em representação de quem constitui a hipoteca, podendo designar‑se o próprio credor para esse efeito.

2.      A cláusula nos termos da qual as partes que subscrevem o mútuo e garantem a hipoteca aceitam ficar sujeitas ao procedimento de execução extrajudicial da hipoteca deve figurar separadamente das outras estipulações da escritura.”

13.      O artigo 236.o, alínea l, do RH enuncia:

«1.      Uma vez verificada a melhor proposta ou a adjudicação, e, se for o caso, o preço consignado, o notário procede à inscrição da escritura na lista anual de documentos que são por si autenticados e o melhor proponente ou o adjudicatário, por um lado, e o proprietário da casa de habitação, por outro, dão o seu acordo sob autenticação.

[…]

3.      A escritura autêntica constitui título bastante para a inscrição (no registo predial) a favor do melhor proponente ou do adjudicatário […].»

14.      O artigo 236.o, alínea m, do RH dispõe:

«O adjudicatário pode reivindicar a posse dos bens adquiridos no Tribunal de Primeira Instância do lugar onde se encontrem situados.»

15.      O artigo 236.o, alínea n, do RH prevê:

«1.      O notário só suspende as diligências se for feita prova documental [da existência de um processo penal que tenha por objeto a eventual falsidade do título constitutivo da hipoteca ou se o conservador do registo predial comunicar a apresentação posterior de uma certidão de cancelamento da hipoteca] […].

2.      Verificada alguma das circunstâncias previstas no número anterior, o notário ordena a suspensão da execução até terminarem, respetivamente, o processo criminal ou o procedimento de registo. A execução será retomada, a pedido do exequente, caso a falsificação não seja declarada ou o cancelamento da hipoteca não seja registado.»

16.      Nos termos do artigo 236.o, alínea o, do RH:

«No que respeita às demais exceções suscetíveis de serem invocadas pelo devedor, os terceiros detentores, e as outras pessoas interessadas, devem cumprir‑se os últimos cinco números do artigo 132.o da [LH], desde que este seja aplicável.»

17.      A Quinta Disposição Transitória da Ley 1/2013, de medidas para reforzar la protección a los deudores hipotecarios, reestructuración de deuda y alquiler social (Lei 1/2013, relativa às medidas que visam reforçar a proteção dos devedores hipotecários, a restruturação da dívida e o alojamento social), de 14 de maio de 2013 (7) alterou, em diversos aspetos, o artigo 129.o da LH. Esta disposição precisa que estas alterações se aplicam às vendas extrajudiciais de bens hipotecados cujo processo tenha sido iniciado após a entrada em vigor da presente lei, independentemente da data em que tenha sido assinada a escritura de constituição da hipoteca. No que se refere às vendas extrajudiciais iniciadas antes da entrada em vigor da Lei 1/2013 e às vendas em que não se tenha verificado a adjudicação do bem hipotecado, o notário decidirá suspender a execução quando, no prazo de preclusão de um mês a contar do dia seguinte à entrada em vigor da Lei 1/2013, uma das partes fizer prova de que intentou, no órgão jurisdicional competente, em conformidade com o artigo 129.o da LH, uma ação relativa ao caráter abusivo de uma das cláusulas do contrato de mútuo hipotecário que está na origem da venda extrajudicial ou de uma cláusula que fixe o montante exigível.

 Factos na origem do litígio, questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

18.      Em 21 de dezembro de 2004, C. Sánchez López celebrou com o Banco Español de Crédito S.A., atualmente Banco Santander S.A., um contrato de mútuo para a aquisição de uma casa de habitação com garantia hipotecária.

19.      A cláusula 11.a deste contrato, intitulada «processo extrajudicial», estipula, designadamente, que as partes acordam na possibilidade de instaurar um processo extrajudicial para a execução da hipoteca. Esta cláusula também atribui poderes ao banco para representar o devedor hipotecário no dia da outorga da escritura pública de venda.

20.      Em 24 de março de 2011, o Banco Santander iniciou, junto de notário, um processo extrajudicial de execução da garantia hipotecária. Este processo terminou, em 15 de dezembro de 2011, com a adjudicação da casa de habitação hipotecada ao credor sem valor de base previamente definido, tendo o bem sido vendido por um montante correspondente a 59,7% do valor pelo qual tinha sido avaliado para efeitos da constituição da garantia hipotecária. Consequentemente, a devedora continuava a dever um montante de 13 482,97 EUR.

21.      Em 23 de fevereiro de 2012, o notário lavrou a escritura pública de compra e venda da casa de habitação a favor do credor, sem intervenção do devedor, representado nesse ato pelo credor, em conformidade com a cláusula 11.a do contrato de mútuo hipotecário. Esta escritura foi inscrita no registo predial em 12 de abril de 2012.

22.      Posteriormente, o Banco Santander apresentou, em 23 de setembro de 2014, um pedido para iniciar um procedimento simplificado nos termos do artigo 250.o, n.o 1, ponto 7, da LEC, para a obtenção de uma decisão jurisdicional que ordenasse o despejo de C. Sánchez López, e a restituição da posse da casa de habitação ao banco.

23.      Além disso, o Banco Santander fixou em 10 000 euros a caução a prestar pela devedora para poder deduzir oposição ao seu pedido.

24.      No âmbito deste processo, C. Sánchez López não compareceu no órgão jurisdicional de reenvio, o Juzgado de Primera Instancia de Jerez de la Frontera (Tribunal de Primeira Instância de Jerez de la Frontera, Espanha).

25.      Foi nestas circunstâncias que o Juzgado de Primera Instancia de Jerez de la Frontera (Tribunal de Primeira Instância de Jerez de la Frontera) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      É contrária [às referidas disposições] da [Diretiva 93/13] e aos [seus] objetivos uma legislação nacional […], que estabelece um processo como o do artigo 250.o, n.o 1, ponto 7, da [LEC], que obriga o juiz nacional a decidir que a casa de habitação [hipotecada] deve ser entregue àquele que obteve a respetiva adjudicação num processo de execução extrajudicial, no qual, devido ao regime em vigor contido no artigo 129.o da Lei hipotecária (Ley Hipotecaria), na redação dada pela Lei 1/2000, de 7 de janeiro e nos artigos 234.o a 236.o‑o, do Regulamento hipotecário (Reglamento Hipotecario), na redação dada pelo Real Decreto 290/1992, não foi possível efetuar a fiscalização judicial oficiosa de cláusulas abusivas nem a dedução de oposição eficaz do devedor com base neste fundamento, quer no âmbito da execução extrajudicial quer num processo judicial autónomo?

2)      É contrária [às referidas disposições] preceitos da [Diretiva 93/13] e aos [seus] objetivos uma legislação, como a Quinta Disposição Transitória da Lei 1/2013, que só permite que o notário suspenda um processo de execução hipotecária extrajudicial iniciado aquando da entrada em vigor da Lei 1/2013 se o consumidor fizer prova de que intentou uma ação fundada no caráter abusivo de alguma das cláusulas do contrato de mútuo hipotecário com base no qual se tenha procedido à venda extrajudicial ou que fixe o montante exigível em caso de execução, desde que essa ação autónoma tenha sido intentada pelo consumidor no prazo de um mês a contar da publicação da Lei 1/2013, sem que o consumidor tenha sido pessoalmente notificado do prazo e sempre antes de o notário declarar a adjudicação?

3)      Devem [as referidas disposições] da [Diretiva 93/13], o objetivo [prosseguido pela mesma] e a obrigação [que impõe] aos juízes nacionais de fiscalizar oficiosamente o caráter abusivo das cláusulas [nos] contratos celebrados com os consumidores, independentemente de requerimento do consumidor, ser interpretados no sentido de que permitem ao juiz nacional, em processos como o previsto no artigo 250.o, n.o 1, ponto 7, da [LEC] ou no processo de “venda extrajudicial” regulada no artigo 129.o da [LH], não aplicar o direito nacional quando o mesmo não prevê esta fiscalização judicial oficiosa, tendo em conta a clareza das disposições da diretiva e [a jurisprudência constante do] [Tribunal de Justiça] quanto à obrigação de os juízes nacionais fiscalizarem oficiosamente a existência de cláusulas abusivas em litígios que tenham por objeto contratos celebrados com os consumidores?

4)      É contrária [às referidas disposições] da [Diretiva 93/13] e aos [seus] objetivos uma legislação nacional, como o artigo 129.o da [LH] na redação dada pela Lei 1/2013, que prevê como única solução eficaz para a proteção dos direitos dos consumidores que a diretiva estabelece, e relativamente aos processos de execução hipotecária extrajudicial em que intervenham consumidores, um mero poder de advertência por parte do notário quanto à existência de cláusulas abusivas, ou a possibilidade de o devedor consumidor executado extrajudicialmente intentar uma ação judicial autónoma antes de o notário adjudicar o imóvel executado?

5)      É contrária [às referidas disposições] da [Diretiva 93/13] e aos [seus] objetivos uma legislação nacional, como o artigo 129.o da [LH] na redação dada pela Lei 1/2013 e os artigos 234.o a 236.o do [RH] na redação dada pelo Real Decreto 290/1992, que institui um processo de execução extrajudicial de mútuos hipotecários celebrados entre profissionais e consumidores no qual não existe qualquer possibilidade de fiscalização judicial oficiosa de cláusulas abusivas?»

26.      Apresentaram observações escritas o Banco Santander, o Governo espanhol e a Comissão.

27.      Em 25 de abril de 2017, teve lugar uma audiência, à qual assistiram o Banco Santander, o Governo espanhol e a Comissão.

 Análise

 Inadmissibilidade manifesta da segunda, quarta e quinta questões

28.      Conforme salientaram, no essencial, as partes interessadas que apresentaram observações escritas, as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio são de dois tipos.

29.      A primeira e terceira questões referem‑se à compatibilidade do regime legal do procedimento simplificado que resulta do artigo 250.o, n.o 1, da LEC em vigor no momento dos factos no processo principal e às consequências que se devem extrair de uma possível incompatibilidade desse regime com a Diretiva 93/13, designadamente quanto às competências que o juiz nacional, deve exercer oficiosamente.

30.      Por seu turno, a segunda, quarta e quinta questões dizem respeito, à compatibilidade do artigo 129.o da LH, conforme alterado pela Lei 1/2013 e das suas disposições de aplicação, com as disposições da Diretiva 93/13.

31.      Ora, este último regime legal não é aplicável aos factos no processo principal.

32.      Com efeito, a Lei 1/2013 prevê, na sua Quinta Disposição Transitória, que as modificações que introduz se aplicam às vendas extrajudiciais de bens hipotecados cujo procedimento tenha sido iniciado após a sua entrada em vigor (a saber, em 15 de maio de 2013), independentemente da data em que a escritura de constituição da hipoteca tenha sido outorgada. Uma vez que o procedimento de execução extrajudicial em causa no processo principal terminou muito antes desta data, isto é, em 23 de fevereiro de 2012, esta lei não se aplica ratione temporis ao litígio no processo principal, como, de resto, parece indicar o órgão jurisdicional nacional.

33.      Daqui decorre que a segunda, quarta e quinta questões prejudiciais devem ser declaradas manifestamente inadmissíveis, dado que não dizem respeito a uma interpretação do direito da União que responda a uma necessidade objetiva para a decisão que o órgão jurisdicional de reenvio deve proferir (8).

 Análise do mérito da primeira e terceira questões

34.      A primeira e terceira questões prejudiciais, que estão intimamente ligadas, referem‑se ao alcance dos poderes do juiz para efeitos da efetividade da Diretiva 93/13 no âmbito de um procedimento de execução de direitos reais imobiliários que já estejam inscritos no registo predial.

35.      Devo começar por manifestar a minha perplexidade quanto à formulação das questões colocadas — e, consequentemente, quanto à admissibilidade formal das mesmas — e quanto às conclusões que o juiz de reenvio parece retirar da jurisprudência relativa à efetividade da proteção decorrente da Diretiva 93/13.

36.      A originalidade do presente processo reside efetivamente na circunstância de a cláusula supostamente abusiva, ou seja, a que permite recorrer ao procedimento extrajudicial, com as consequências que daí decorrem, ser precisamente a que, em meu entender, permitiu, em definitivo, ao juiz de reenvio ser efetivamente chamado a pronunciar‑se no processo principal, vários anos após a conclusão desse procedimento no âmbito do procedimento simplificado previsto no artigo 41.o da LH e regulado pelo artigo 250.o, n.o 1, ponto 7, da LEC.

37.      Por outro lado, no que respeita à ligação existente entre o processo principal e a aplicação da Diretiva 93/13, cabe observar que o juiz nacional não é, no âmbito deste procedimento simplificado, propriamente chamado a pronunciar‑se sobre a validade de um contrato de mútuo hipotecário que esgotou todos os seus efeitos, mas unicamente sobre um título de propriedade inscrito no registo predial. Resulta das informações fornecidas nas observações escritas que o contrato em causa só foi junto aos autos na sequência da instauração de uma ação nesse sentido.

38.      Com a primeira e terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio põe em causa, de forma no mínimo inédita, a regulamentação nacional aplicável ao procedimento destinado ao exercício de um direito de propriedade legalmente registado.

39.      Com efeito, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a legislação espanhola em vigor no momento dos factos — e, em especial, o artigo 250.o, n.o 1, ponto 7, da LEC e o artigo 129.o da LH —, que obriga o juiz nacional a decidir que a casa de habitação adquirida pelo estabelecimento financeiro deve ser entregue no âmbito de um processo de execução extrajudicial previsto no artigo 129.o da LH, é conforme ou não aos artigos 3.o, n.os 1 e 2, 6.o, n.o 1, e 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13. O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, nem durante o processo de execução extrajudicial de hipoteca nem durante o processo judicial posterior que visava a atribuição ao executante da posse pacífica do bem imóvel, teria existido possibilidade de controlo jurisdicional das cláusulas abusivas, e que o consumidor não procedeu a qualquer diligência de oposição eficaz e em tempo útil.

40.      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende determinar as consequências de uma eventual declaração da incompatibilidade da regulamentação nacional aplicável. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em especial, se o juiz pode, por força da sua obrigação de fiscalização do caráter abusivo das cláusulas contidas nos contratos com consumidores, não aplicar a regulamentação nacional controvertida.

41.      Num primeiro momento, recordarei brevemente os ensinamentos da jurisprudência do Tribunal de Justiça quanto ao alcance dos poderes conferidos ao juiz e quanto às garantias que devem ser oferecidas aos consumidores para efeitos da efetividade da Diretiva 93/13 no âmbito muito particular dos processos de execução extrajudicial de hipotecas. Num segundo momento, explicarei, por que razões a intervenção do juiz no sentido preconizado pelo juiz nacional para efeitos da efetividade da Diretiva 93/13, não me parece, no caso em apreço, nem exigida, nem necessariamente oportuna.

 Ensinamentos da jurisprudência sobre o alcance dos poderes do juiz e sobre as garantias que devem ser oferecidas aos consumidores no âmbito dos processos de execução extrajudicial de hipotecas

42.      Segundo jurisprudência assente (9), o sistema de proteção instituído pela Diretiva 93/13 assenta na ideia de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade relativamente ao profissional, quer no que respeita ao poder de negociação, quer ao nível de informação, situação que o leva a aderir às condições redigidas previamente pelo profissional, sem poder influenciar o respetivo conteúdo.

43.      Em primeiro lugar, o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 estabelece a regra segundo a qual o consumidor não pode ficar vinculado pelas cláusulas abusivas contidas nos contratos.

44.      Tendo em conta a situação de inferioridade em que se encontra o consumidor, o artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva, disposição imperativa de ordem pública (10) destinada a restabelecer a igualdade entre os contraentes, foi interpretado no sentido de autorizar — e até obrigar, desde que disponha dos elementos de direito e de facto necessários — o juiz nacional a apreciar oficiosamente o caráter abusivo de uma cláusula contratual contida num contrato que liga um consumidor a um profissional (11).

45.      No que respeita à compatibilidade de uma legislação processual com a Diretiva 93/13, e, em especial, de um processo relativo à execução de garantias ou à execução por parte dos notários de garantias que acompanham contratos de mútuo celebrados com consumidores (12), importa recordar que as modalidades de mecanismos nacionais de execução coerciva e de intervenção dos notários neste âmbito decorrem da ordem jurídica interna dos Estados‑Membros por força do princípio da autonomia processual, sob reserva do respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade (13).

46.      Quanto ao princípio da efetividade, o único verdadeiramente posto em causa no processo em apreço (14), o Tribunal de Justiça, chamado, em especial, a pronunciar‑se sobre as disposições processuais de execução de hipotecas, sublinhou que, na ausência de controlo eficaz do caráter potencialmente abusivo das cláusulas do contrato que constituem o título a executar, o respeito dos direitos conferidos pela Diretiva 93/13 não pode estar garantido (15).

47.      No que se refere às regulamentações nacionais de execução extrajudicial de hipotecas, o Tribunal de Justiça identificou determinados elementos que podem revelar‑se necessários para garantir a proteção dos consumidores prevista nesta diretiva.

48.      Assim, em primeiro lugar e em relação a disposições processuais eslovacas, foi reconhecida ao juiz nacional, chamado a pronunciar‑se no decurso de um processo extrajudicial, a faculdade de suspender a execução de uma venda imobiliária. Contudo, as disposições da Diretiva 93/13 foram interpretadas no sentido de que não se opunham a uma regulamentação nacional que permite exigir o pagamento de um crédito, baseado em cláusulas contratuais eventualmente abusivas, através da execução extrajudicial de um bem imóvel dado em garantia pelo consumidor, na medida em que essa legislação não impossibilite na prática ou dificulte excessivamente a salvaguarda dos direitos conferidos ao consumidor por esta diretiva (16).

49.      Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça considerou que, na medida em que, por um lado, o notário pode mesmo desempenhar um papel de prevenção do caráter abusivo das cláusulas deste contrato, e que é, por outro lado, expressamente chamado a garantir, através do seu aconselhamento, a igualdade de tratamento em todos os processos da sua competência com vista a chamar a atenção dos consumidores para o caráter eventualmente abusivo de uma cláusula, e que, na medida em que, por outro lado, o consumidor disponha da faculdade de impugnar a validade do contrato cuja execução é pedida, a efetividade da proteção prevista na referida diretiva está, em princípio, garantida (17).

50.      Contudo, importa sublinhar que, no que respeita à alegação segundo a qual seria possível a um notário iniciar um processo de execução coerciva de um contrato sem examinar do caráter abusivo das cláusulas contratuais, a jurisprudência relativa à apreciação oficiosa das cláusulas abusivas inscreve‑se no âmbito específico do exercício da função jurisdicional e não pode, face às diferenças fundamentais entre esta e a função notarial, transpor‑se para esta última (18).

51.      Por outro lado, o princípio da efetividade não chegar ao ponto de exigir que um órgão jurisdicional nacional deva, não só compensar uma omissão processual de um consumidor que desconhece os seus direitos, mas também suprir integralmente a passividade total do consumidor em causa, que não participa em nenhuma fase do processo judicial de execução (19).

52.      Finalmente, o Tribunal de Justiça considerou, assim, que o processo de venda extrajudicial de um bem imóvel, não obstante o facto de não permitir ao notário pronunciar‑se quanto à eventual existência de cláusula abusiva, não prejudica a efetividade da Diretiva 93/13, desde que o consumidor tenha beneficiado da possibilidade de intentar uma ação perante um juiz e que esse juiz tenha podido adotar medidas provisórias para suspender as eventuais vendas em hasta pública organizadas pelo notário (20).

53.      Em segundo lugar, no que respeita ao artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, que impõe aos Estados‑Membros a obrigação de implementarem meios eficazes para pôr termo à utilizações de cláusulas abusivas, este artigo não obriga a modificar os processos implementados a nível nacional no seu conjunto. Importa apenas assegurar que as disposições nacionais em causa, analisadas no seu contexto tendo em conta todas as vias de recurso existentes, são suscetíveis de garantir que os meios adequados e eficazes existem de modo a fazer cessar a utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores e que tais cláusulas não os vinculam (21).

54.      Há que observar que, em todos os casos em que o Tribunal de Justiça considerou que uma disposição nacional era contrária à efetividade da Diretiva 93/13, o juiz chamado a pronunciar‑se esteve sempre em condições de invalidar uma cláusula e, assim, de a excluir, ou ainda de pôr em causa o processo de penhora ou de transmissão de um bem ainda não concluído. Estávamos, com efeito, no contexto de um processo de natureza declarativa, no âmbito do qual o juiz perante o qual foi proposta a ação poderia ser levado a interrogar‑se sobre o caráter abusivo de uma cláusula de um contrato celebrado entre um consumidor e um profissional, ou ainda no contexto de um processo de execução coerciva cujo fundamento era um contrato desse tipo que era suscetível de conter uma cláusula abusiva.

55.      Por outras palavras, se se tiver em conta os casos até agora submetidos ao Tribunal de Justiça, é no âmbito de um processo de execução em curso, e tendo em conta a presença verdadeira ou suposta de uma cláusula abusiva no contrato de mútuo hipotecário na origem do litígio, que o juiz chamado a pronunciar‑se solicitava esclarecimentos quanto ao alcance da proteção conferida pela Diretiva 93/13.

56.      Assim, no processo que deu origem do acórdão Aziz (22), a transmissão da propriedade do bem imóvel em causa não tinha ainda tido lugar uma vez que, apesar de ter sido posto à venda em hasta pública, o bem não tinha encontrado comprador e de M. Aziz ter, pouco tempo antes da decisão que ordenava o seu despejo, intentado uma ação declarativa no tribunal nacional competente, em que pedia a anulação de uma cláusula do contrato de mútuo hipotecário.

57.      É à luz destes ensinamentos que se deve analisar, tendo em conta o contexto legislativo em que se inscreve, o processo de reconhecimento de direitos reais colocado em causa no processo principal.

 A faculdade de suscitar oficiosamente o caráter abusivo das cláusulas contidas num contrato não pode estender‑se a um processo de reconhecimento de direitos reais independente do processo de adjudicação de um bem

58.      No caso em apreço, há que observar que não estamos no âmbito de um processo de execução de uma injunção de pagamento, nem no âmbito de um processo de execução coerciva ainda não concluído e no qual é sempre oportuno pronunciar‑se sobre o caráter abusivo das cláusulas do contrato de mútuo hipotecário anteriormente assinado.

59.      O processo pendente perante o órgão jurisdicional de reenvio tem unicamente por objeto tornar efetivo um direito de propriedade legalmente registado. Tal como esse órgão jurisdicional precisou numa resposta a uma pergunta formulada pelo Tribunal de Justiça, este processo destina‑se exclusivamente a proteger direitos reais registados.

60.      No meu entender, importa distinguir corretamente o processo de venda extrajudicial do procedimento simplificado regulado no artigo 41.o da LH.

61.      O processo de venda extrajudicial, que, segundo o artigo 234.o do RH, pressupõe um acordo das partes na escritura de constituição da hipoteca, culmina normalmente com o estabelecimento de um ato público mediante a qual se transfere a propriedade do bem imóvel a favor do adjudicatário, designadamente através da inscrição no registo predial.

62.      O procedimento simplificado de inscrição de direitos reais, no caso em apreço o procedimento regulado no artigo 41.o da LH, que é independente do processo de venda extrajudicial perante notário, visa, pelo contrário, proteger o direito do titular de um direito real inscrito, designadamente — mas não unicamente —, no registo predial. Este processo não tem relação com um eventual contrato celebrado com o consumidor relativamente ao qual o juiz nacional é chamado a pronunciar‑se, mas visa unicamente verificar que existe um direito inscrito, com vista a torná‑lo efetivo.

63.      É certo que, no processo principal, o recurso ao procedimento simplificado decorre incidentalmente da cláusula 11.a do contrato celebrado em 21 de dezembro de 2004 entre C. Sánchez López e o Banco Santander, cláusula que previa, em caso de execução de uma hipoteca, a submissão ao processo extrajudicial notarial.

64.      Contudo, o processo regulado no artigo 41.o da LH, ao qual se referem as primeira e terceira questões prejudiciais, visa a proteção dos direitos reais decorrentes da venda extrajudicial, através da qual o proprietário obtém a posse efetiva do bem imóvel.

65.      Este último processo não se baseia no contrato de mútuo hipotecário controvertido, mas no título de propriedade inscrito no registo predial. Com efeito, no final do processo de venda extrajudicial, o contrato de mútuo hipotecário extingue‑se e o ónus hipotecário desaparece.

66.      No caso em apreço, parece, com efeito, que o procedimento de venda notarial produziu todos os seus efeitos com o processo de venda em hasta pública e a adjudicação do bem imóvel.

67.      Por outras palavras, o procedimento simplificado posto em causa no caso em apreço é, assim, tal como o Governo espanhol sublinhou, independente da venda extrajudicial ou de qualquer outro procedimento de execução hipotecária.

68.      Ora, parece‑me evidente que a Diretiva 93/13 não pode ser declarada aplicável ao procedimento controvertido, que visa o reconhecimento de direitos reais para efeitos de oponibilidade e não a execução de um contrato celebrado entre um consumidor e um profissional.

69.      Além disso, o Tribunal de Justiça recordou, em diversas ocasiões, que cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, na tramitação deste e nas suas particularidades perante as várias instâncias nacionais (23).

70.      Tal como o Governo espanhol sublinhou, afigura‑se que a devedora tinha a possibilidade, durante o procedimento extrajudicial de transmissão do bem hipotecado, de se opor ao mesmo ou de pedir a sua suspensão com fundamento na existência de uma cláusula abusiva no contrato de mútuo hipotecário, requerendo a adoção de medidas provisórias para suspender a venda do bem imóvel de que era proprietária.

71.      Em qualquer caso, importa constatar que o presente caso se distingue daqueles que, até agora, foram trazidos ao conhecimento do Tribunal de Justiça, uma vez que, no caso em apreço, a presente decisão de reenvio não contém nenhum elemento factual que permita estabelecer que o órgão jurisdicional de reenvio considera que uma cláusula do contrato controvertido, diferente da relativa ao procedimento de execução extrajudicial, seria suscetível de revestir caráter abusivo na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13.

72.      Assim, no processo Aziz, a segunda questão prejudicial visava expressamente as cláusulas contratuais relativas ao vencimento antecipado do contrato e ao montante dos juros de mora (24). No processo Finanmadrid EFC, a decisão de reenvio indicava que existiam dúvidas quanto ao caráter eventualmente abusivo de determinadas cláusulas do contrato em causa (25).

73.      Se é verdade que o juiz nacional está obrigado a apreciar oficiosamente o caráter abusivo de todas as cláusulas contratuais abrangidas pelo âmbito de aplicação da referida diretiva, mesmo na ausência de pedido expresso nesse sentido, desde que disponha dos elementos de direito e de facto necessários para o efeito (26), é ainda necessário que existam dúvidas quanto ao caráter eventualmente abusivo de uma outra cláusula do contrato em causa no processo principal.

74.      Com efeito, importa recordar que a Diretiva 93/13 visa evitar que se incluam cláusulas abusivas nos contratos que vinculam os consumidores aos profissionais (quarto considerando), eliminar eventualmente essas cláusulas desses contratos e, por último, evitar que as referidas cláusulas vinculem o consumidor (vigésimo primeiro considerando).

75.      Ora, dado que o contrato que podia conter a cláusula abusiva, que não é o objeto do processo pendente no juiz a quo, já produziu todos os seus efeitos com a transmissão definitiva do bem imóvel em causa no processo principal, já não é oportuno colocar a questão de saber, designadamente, se é necessário evitar ou eliminar a inserção dessa cláusula.

76.      Tendo em conta todas estas considerações, entendo que a proteção conferida pela Diretiva 93/13 não implica que o juiz esteja habilitado a pronunciar‑se sobre o caráter abusivo de uma cláusula inserida num contrato de hipotecário no âmbito de um processo, independente do processo de execução hipotecária, que visa assegurar a efetividade do direito de propriedade do bem imóvel em causa.

77.      Decidir de forma diversa, em meu entender, não seria necessariamente oportuno para o consumidor em causa, nem desejável do ponto de vista do princípio da segurança jurídica e dos direitos de propriedade já adquiridos.

78.      Em primeiro lugar, uma declaração de incompatibilidade do procedimento em causa com a Diretiva 93/13 não parece necessariamente justificar‑se pela proteção do consumidor em causa, proteção que, recordo, constitui o objetivo primordial prosseguido pela Diretiva 93/13.

79.      Embora a decisão de reenvio se revele particularmente incompleta quanto à situação da recorrida no processo principal, resulta dos elementos factuais trazidos ao conhecimento do Tribunal de Justiça pelo Banco Santander e pelo Governo espanhol que, ainda que a adjudicação do bem imóvel em causa tenha sido transcrita por ato notarial em 23 de fevereiro de 2012 e que esta tenha sido inscrita no registo predial em 12 de abril de 2012, C. Sánchez López solicitou ao Banco Santander permissão para permanecer na casa de habitação em causa ao abrigo da Convenção para a Criação de um Fundo Social Imobiliário, implementada a nível nacional em 17 de janeiro de 2013. Em 19 de novembro de 2015, C. Sánchez López e o Banco Santander celebraram um contrato sujeito a esta convenção, que permite, designadamente, a C. Sánchez López permanecer no imóvel na qualidade de locatária, pagando uma renda de um montante de cerca de 90 euros. Assim, afigura‑se que esta não manifestou o desejo de pôr em causa o contrato de mútuo hipotecário que tinha assinado anteriormente, apesar de, com toda a probabilidade, ter tido oportunidade de o fazer. Do mesmo modo, nada permite concluir que o consumidor em causa tenha pretendido impugnar o caráter definitivo da transmissão de propriedade do bem que ocupa, transmissão que resulta da adjudicação ocorrida em 15 de dezembro de 2011 e inscrita no registo predial em 12 de abril de 2012.

80.      Dito de outro modo, não é certo que pôr em causa este procedimento seja suscetível de gerar um «benefício» para o consumidor em causa. A cláusula declarada abusiva não vincula o consumidor, a execução extrajudicial da hipoteca poderia ser invalidada e o consumidor que não cumpriu a obrigação de pagamento ficaria novamente vinculado pelo contrato hipotecário. Com efeito, não podendo ser identificada outra cláusula do contrato eventualmente abusiva, o quadro contratual original estaria de novo em vigor, no caso em apreço, sem alteração das cláusulas relativas ao reembolso. Ora, cabe relembrar que o direito a uma proteção efetiva do consumidor engloba a faculdade de renunciar a invocar os seus direitos (27).

81.      Além disso, não pode excluir‑se que a anulação do contrato hipotecário visado no caso em apreço coloque o consumidor em causa numa situação ainda menos favorável do que a que resultaria da anulação da adjudicação do bem imóvel e, assim, pôr‑se em causa o contrato de locação celebrado posteriormente entre o Banco Santander e C. Sánchez López.

82.      Em segundo lugar, autorizar o juiz a suscitar oficiosamente o eventual caráter abusivo das cláusulas do contrato de mútuo hipotecário anteriormente celebrado e cujos efeitos se esgotaram — o bem hipotecado foi objeto de uma transmissão definitiva — equivaleria a pôr em causa, para efeitos da efetividade da Diretiva 93/13, um direito de propriedade real que não tem o seu fundamento num contrato celebrado com os consumidores, mas no reconhecimento extrajudicial de um título.

83.      No caso em apreço, de salientar que o direito real posto em causa foi objeto de uma inscrição no registo predial cerca de quatro anos antes da decisão de reenvio prejudicial. Embora, no processo principal, se verifique que é o Banco Santander o titular desse direito, esse titular poderia ter sido qualquer outra entidade que adquirisse esse bem após a sua inscrição no registo.

84.      Por conseguinte, parece contrário ao princípio da segurança jurídica e da propriedade pôr em causa, para efeitos da efetividade da Diretiva 93/13, propriedades adquiridas, mesmo quando já não esteja em causa censurar a existência de uma cláusula abusiva contida num contrato que vincula um profissional a um consumidor que continue a produzir efeitos.

 Conclusão

85.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho responder às questões formuladas pelo Juzgado de Primera Instancia de Jerez de la Frontera (Tribunal de Primeira Instância de Jerez de la Frontera, Espanha) da seguinte forma:

A Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, não se aplica a um procedimento como o previsto nos artigos 41.o da Ley Hipotecaria (Lei Hipotecária) e 250.o, n.o 1, da Ley 1/2000, de Enjuiciamiento Civil (Código de Processo Civil), de 7 de janeiro de 2000, na medida em que este procedimento não tem por objeto a apreciação e/ou a execução de um contrato que vincula um profissional a um consumidor, visando apenas assegurar a efetividade de um direito de propriedade legalmente adquirido e inscrito no registo predial.


1      Língua original: francês.


2      Diretiva do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29)


3      V., designadamente, acórdãos de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164); de 30 de abril de 2014, Barclays Bank (C‑280/13, EU:C:2014:279); de 17 de julho de 2014, Sánchez Morcillo e abril García (C‑169/14, EU:C:2014:2099), e de 21 de janeiro de 2015, Unicaja Banco e Caixabank (C‑482/13, C‑484/13, C‑485/13 e C‑487/13, EU:C:2015:21); despacho de 16 de julho de 2015, Sánchez Morcillo e abril García (C‑539/14, EU:C:2015:508); acórdãos de 29 de outubro de 2015, BBVA (C‑8/14, EU:C:2015:731), e de 26 de janeiro de 2017, Banco Primus (C‑421/14, EU:C:2017:60).


4      BOE n.o 7, de 8 de janeiro de 2000, pp. 575 a 728 (a seguir «LEC»).


5      BOE n.o 58, de 27 de fevereiro de 1946.


6      Regulamento Hipotecário (Reglamento Hipotecario) (BOE n.o 106, de 16 de abril de 1947.


7      BOE n.o 116, de 15 de maio de 2013, p. 36373, a seguir «lei 1/2013».


8      V., neste sentido, acórdão de 5 de março de 2015, Banco Privado Português e Massa Insolvente do Banco Privado Português (C‑667/13, EU:C:2015:151, n.o 41 e jurisprudência aí referida).


9      V., designadamente, acórdãos de 10 de setembro de 2014, Kušionová (C‑34/13, EU:C:2014:2189, n.o 48 e jurisprudência referida), e de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637, n.o 39).


10      V., designadamente, acórdãos de 26 de outubro de 2006, Mostaza Claro (C‑168/05, EU:C:2006:675, n.o 36), e de 26 de janeiro de 2017, Banco Primus (C‑421/14, EU:C:2017:60, n.o 42 e jurisprudência referida).


11      V., neste sentido, acórdãos de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164, n.o 46 e jurisprudência referida), bem como de 21 de dezembro de 2016, Gutiérrez Naranjo e o. (C‑154/15, C‑307/15 e C‑308/15, EU:C:2016:980, n.o 58).


12      V., designadamente, acórdãos de 10 de setembro de 2014, Kušionová (C‑34/13, EU:C:2014:2189, ponto 49), e de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637, n.o 48).


13      V., designadamente, acórdãos de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164, n.o 50 e jurisprudência referida), e de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637, n.o 49).


14      Não disponho, no caso em apreço, de nenhum elemento que possa suscitar dúvidas quanto à conformidade da regulamentação em causa no processo principal com o princípio da equivalência.


15      V., designadamente, acórdãos de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164, n.o 59) e de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC (C‑49/14, EU:C:2016:98, n.o 46).


16      Acórdão de 10 de setembro de 2014, Kušionová (C‑34/13, EU:C:2014:2189, n.os 60 e 68).


17      V., designadamente, acórdão de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637, n.os 57 e 60).


18      V. acórdão de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637, n.o 47).


19      V., neste sentido, acórdãos de 6 de outubro de 2009, Asturcom Telecomunicaciones (C‑40/08, EU:C:2009:615, n.o 47), e de 10 de setembro de 2014, Kušionová (C‑34/13, EU:C:2014:2189, n.o 56).


20      V., neste sentido, acórdão de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637, n.os 59 a 61).


21      V., designadamente, acórdão de 1 de outubro de 2015, ERSTE Bank Hungary (C‑32/14, EU:C:2015:637, n.o 52).


22      Acórdão de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164, n.os 26 e 27).


23      Acórdão de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 49 e jurisprudência referida).


24      Acórdão de 14 de março de 2013, Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164, n.os 65 e segs.).


25      Acórdão de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC (C‑49/14, EU:C:2016:98, n.o 22).


26      V., designadamente, acórdão de 4 de junho de 2009, Pannon GSM (C‑243/08, EU:C:2009:350, n.o 32).


27      V., designadamente, acórdãos de 21 de fevereiro de 2013, Banif Plus Bank (C‑472/11, EU:C:2013:88, n.o 35), e de 14 de abril de 2016, Sales Sinués e Drame Ba (C‑381/14 e C‑385/14, EU:C:2016:252, n.o 25).