Language of document : ECLI:EU:C:2008:512

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

M. POIARES MADURO

apresentadas em 18 de Setembro de 2008 1(1)

Processo C‑161/07

Comissão das Comunidades Europeias

contra

República da Áustria

«Requisitos do registo de sociedades – Nacionais de países terceiros»





1.        O presente processo diz respeito a derrogações à liberdade de circulação dos trabalhadores, autorizadas durante o período transitório em relação aos Estados‑Membros que aderiram à União Europeia em 2004 (a seguir «novos» Estados‑Membros), e à questão de saber até que ponto podem afectar a liberdade de estabelecimento, ponto esse a partir do qual tais derrogações deixam de ser autorizadas.

2.        Beneficiando desse período transitório, a Áustria continuou a aplicar a praticamente todos os trabalhadores por conta de outrem dos «novos» Estados‑Membros a mesma legislação que aplica aos trabalhadores de países terceiros. Para evitar que a aplicação da legislação fosse contornada, presume‑se que todos os sócios de uma sociedade de pessoas e os sócios de sociedades de responsabilidade limitada com uma participação inferior a 25% (a seguir «sócios minoritários») são trabalhadores por conta de outrem. Enquanto não ilidirem essa presunção, não podem exercer actividades nem registar as suas sociedades na Áustria.

3.        A Comissão considera que, ao aplicar esta legislação a sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros, a Áustria restringiu a liberdade de estabelecimento. Por conseguinte, trata‑se de determinar os limites a que os Estados‑Membros estão sujeitos para salvaguardar as derrogações autorizadas à liberdade de circulação dos trabalhadores.

I –    Matéria de facto e quadro jurídico

4.        Como se sabe, em 1 de Maio de 2004, aderiram à União Europeia a República Checa, a Estónia, Chipre, a Letónia, a Lituânia, a Hungria, Malta, a Polónia, a Eslovénia e a Eslováquia.

5.        O artigo 24.° do acto de adesão autoriza medidas transitórias, especificadas em vários anexos, entre as quais se incluem derrogações à liberdade de circulação dos trabalhadores: durante um período de cinco anos posterior à data da adesão, os «antigos» Estados‑Membros podem continuar a aplicar medidas nacionais destinadas a regular o acesso de trabalhadores por conta de outrem provenientes dos «novos» Estados‑Membros aos respectivos mercados de trabalho (2). Muitos dos «antigos» Estados‑Membros, incluindo a Áustria, fizeram uso desse período transitório (3).

6.        A lei austríaca relativa ao trabalho de estrangeiros (Ausländerbeschäftigungsgesetz, a seguir «AuslBG») regula o acesso ao mercado de trabalho na Áustria (4). Visa os trabalhadores de países terceiros e, em princípio, não é aplicável aos trabalhadores da Comunidade. No entanto, uma disposição transitória determina a sua aplicabilidade aos trabalhadores dos «novos» Estados‑Membros, com excepção de Chipre e de Malta (5).

7.        A AuslBG define o conceito de «emprego», a fim de determinar quem pode ser considerado trabalhador por conta de outrem e, consequentemente, integrar o respectivo âmbito de aplicação. Começa por declarar, em termos bastante genéricos, que emprego é o exercício de uma actividade «no âmbito de uma relação laboral» ou «de uma relação quase laboral» (6). Previne igualmente que, ao apreciar essas relações, «o que é determinante é o conteúdo económico real da actividade e não a sua aparência exterior» (7).

8.        No entanto, presume‑se que existe emprego numa situação específica: os sócios de uma sociedade de pessoas e os sócios minoritários de uma sociedade de responsabilidade limitada são considerados trabalhadores por conta de outrem caso exerçam actividades para a sua sociedade. O § 2, n.° 4, da AuslBG determina:

«[…] Emprego [conforme acima definido] existe em especial:

1. quando um sócio de uma sociedade de pessoas, a fim de prosseguir o objecto social da sociedade, ou

2. um sócio numa sociedade de responsabilidade limitada com uma participação inferior a 25%

fornece para essa sociedade prestações típicas de uma relação de trabalho.»

9.        Esta presunção tem por finalidade, segundo a Áustria, combater a prática que consiste em contornar a aplicação da AuslBG através da criação de sociedades. Por exemplo, a Áustria alega que «têm sido criadas muitas sociedades de responsabilidade limitada com um grande número de sócios que, na realidade, actuam como trabalhadores por conta de outrem no exercício das suas actividades, uma vez que executam essas actividades sob a autoridade de um sócio – regra geral, austríaco – que beneficia de uma influência dominante por força dos estatutos da sociedade».

10.      Para ilidir essa presunção de emprego, o sócio deve pedir ao Arbeitsmarktservice local (a seguir «serviço de emprego») que declare que «exerce pessoalmente» uma «influência significativa» na gestão da sociedade, cabendo ao sócio o ónus da prova (8).

11.      Se o serviço de emprego não tomar uma decisão no prazo de três meses, o sócio pode exercer a sua actividade (9). Pressupõe‑se que o sócio pode igualmente fazê‑lo se o pedido for deferido antes de decorrido esse prazo.

12.      Inversamente, se o pedido for indeferido, o sócio fica impedido de exercer a sua actividade até lhe ser concedido o acesso ao mercado de trabalho austríaco na qualidade de trabalhador por conta de outrem, segundo os requisitos gerais da AuslBG. Com efeito, um indeferimento, mesmo depois de decorrido o prazo, obriga o sócio a pôr termo à sua actividade no prazo de uma semana (10).

13.      A Comissão alegou, sem que a Áustria o tivesse contestado, que a presunção de emprego torna mais complexo o registo das sociedades ao abrigo da lei austríaca.

14.      Quando um nacional de um «novo» Estado‑Membro requer o registo de uma sociedade, as autoridades austríacas exigem a declaração acima referida do serviço de emprego, ou um certificado de dispensa. Para obter este certificado, o nacional em questão deve ter ocupado um emprego autorizado na Áustria, durante, pelo menos, cinco dos últimos oito anos e deve estar legalmente estabelecido – requisitos que raramente estão preenchidos (11).

15.      No entanto, resultou da audiência que as autoridades austríacas responsáveis pelo registo dispõem de algum poder discricionário na aplicação da AuslBG. Verifica‑se que nem sempre exigem os documentos atrás referidos e que se concentram em certos sectores, em especial no sector da construção. Daqui resulta que o número de declarações relativas à qualidade de trabalhador independente emitidas pelo serviço de emprego parece ser reduzido (12).

II – Procedimento pré‑contencioso

16.      Por carta de 16 de Março de 2005, a Comissão informou a Áustria de que considerava que a qualificação dos sócios de sociedades de pessoas e dos sócios minoritários de sociedades de responsabilidade limitada como trabalhadores por conta de outrem, nos termos da AuslBG, resultava numa restrição à liberdade de estabelecimento à luz do artigo 43.° CE. Convidou a Áustria a apresentar observações no prazo de dois meses.

17.      Em 19 de Maio de 2005, a Áustria respondeu contestando a existência dessa restrição à liberdade de estabelecimento. A qualificação como trabalhadores por conta de outrem destinava‑se a evitar que fosse contornada a aplicação da AuslBG, que é uma medida nacional autorizada ao abrigo da derrogação transitória à liberdade de circulação dos trabalhadores. Por conseguinte, essa qualificação era justificada e proporcionada.

18.      Em 4 de Julho de 2006, a Comissão emitiu um parecer fundamentado no qual rejeitava a justificação apresentada pela Áustria e lhe fixava o prazo de dois meses para tomar as medidas necessárias para pôr termo à alegada restrição à liberdade de estabelecimento.

19.      Na sua resposta de 7 de Setembro de 2006, a Áustria manteve a posição de que a restrição dizia respeito à liberdade de circulação dos trabalhadores e que a mesma se justificava pela necessidade de salvaguardar o correcto funcionamento do mercado de trabalho.

20.      Em consequência, a Comissão intentou a presente acção, ao abrigo do artigo 226.° CE. A Lituânia pediu para intervir em apoio da Comissão.

21.      A Comissão pede que o Tribunal de Justiça se digne «declarar que a República da Áustria violou o artigo 43.° CE, na medida em que sujeita o registo de sociedades […] requerido por nacionais dos novos Estados‑Membros da União Europeia – com excepção de Malta e de Chipre – a uma declaração relativa à sua qualidade de trabalhadores independentes emitida pelo serviço de emprego ou a apresentação de um certificado de dispensa, verificando‑se que a declaração relativa à qualidade de trabalhadores independentes […] está sujeita a um procedimento de declaração […] durante o qual a actividade por conta própria não pode ser exercida».

III – Apreciação

22.      Vários aspectos do regime austríaco podem suscitar questões de direito comunitário: a) visa os nacionais dos «novos» Estados‑Membros, b) impedindo‑os de registar as suas sociedades, c) proibindo‑os de exercerem uma actividade, d) devido à sua qualificação como trabalhadores por conta de outrem, e) a qual é objecto de uma presunção que, para ser ilidida, impõe um procedimento de declaração pelo serviço de emprego. Estes elementos consubstanciam restrições ao direito de estabelecimento que, além do mais, são impostas apenas a alguns nacionais da Comunidade.

23.      Apesar do seu carácter discriminatório, estas restrições podem ser justificadas se forem necessárias para garantir a eficácia das restrições à liberdade de circulação dos trabalhadores provenientes dos «novos» Estados‑Membros, permitidas durante o período transitório. Por conseguinte, trata‑se de estabelecer a fronteira entre as restrições à liberdade de circulação dos trabalhadores, que, neste caso, devem ser admitidas, e a liberdade de estabelecimento garantida pelo Tratado, que deve ser salvaguardada.

24.      A Comissão centrou‑se nos requisitos impostos pelas autoridades austríacas aos nacionais dos «novos» Estados‑Membros para o registo de uma sociedade. Esses requisitos de registo são seguramente restritivos da liberdade de estabelecimento (13). Porém, são igualmente indissociáveis de uma outra restrição, isto é, a proibição de os sócios exercerem uma actividade.

25.      Segundo a lei austríaca, os sócios de sociedades de pessoas e os sócios minoritários de sociedades de responsabilidade limitada provenientes de «novos» Estados‑Membros não podem exercer a sua actividade até que o serviço de emprego declare que não são parte numa relação de emprego ou até obterem um certificado de dispensa. Independentemente dos requisitos do registo, esta proibição restringe a liberdade de estabelecimento desses sócios (14).

26.      A estas medidas restritivas está subjacente a presunção, segundo a lei austríaca, de que esses sócios devem ser qualificados de trabalhadores por conta de outrem. Tal qualificação impede‑os de exercerem as suas actividades e de registar as suas sociedades e obriga‑os, para poderem fazê‑lo, a provarem ao serviço de emprego que «exercem pessoalmente» uma «influência significativa» na gestão da sociedade ou da empresa. A presunção de emprego e as condições em que esta pode ser ilidida constituem o aspecto fulcral das restrições ao direito de estabelecimento.

27.      A Áustria alega que tais restrições são necessárias para controlar o acesso ao seu mercado de trabalho. O acto de adesão autoriza a Áustria a manter medidas nacionais de regulação desse acesso durante o período transitório. Isto suscita a primeira questão, sobre a qual me debruçarei na secção A: pode a proibição de os sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros exercerem uma actividade até ilidirem a presunção de emprego, que os impede de registar as suas sociedades, ser justificada?

28.      No entanto, esta questão coloca‑se numa situação inabitual. Os beneficiários da liberdade de estabelecimento nos termos do Tratado podem ser qualificados de trabalhadores por conta de outrem segundo a lei austríaca. Isto conduz necessariamente a uma segunda questão, que analisarei na secção B: essa qualificação como trabalhadores por conta de outrem será legal nos termos do direito comunitário?

29.      Esta questão, que se situa na fronteira entre a liberdade de circulação dos trabalhadores e a liberdade de estabelecimento, tem importância para além do contexto do acto de adesão e das suas medidas transitórias.

A –    Quanto à questão de saber se pode ser justificada a proibição de os sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros exercerem uma actividade até ilidirem a presunção de emprego, que os impede de registar as suas sociedades

30.      Segundo o regime austríaco, os sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros não podem exercer livremente uma actividade ou registar as suas sociedades. Para poderem fazê‑lo, e dadas as difíceis condições de obtenção de um certificado de dispensa que a tal os autorize, devem provar ao serviço de emprego que não têm uma relação de emprego. Este regime é claramente discriminatório e só pode ser justificado com base numa disposição do Tratado.

31.      A Comissão alega que, uma vez que as medidas restringem a liberdade de estabelecimento, a disposição pertinente do Tratado é o artigo 46.° CE e nenhuma das justificações previstas nessa disposição é aplicável. A Áustria afirma que tais medidas podem ser justificadas pela derrogação à liberdade de circulação dos trabalhadores constante do acto de adesão.

32.      O acto de adesão permite que os «antigos» Estados‑Membros, como a Áustria, mantenham em vigor medidas nacionais que regulam o acesso aos seus mercados de trabalho por parte de trabalhadores por conta de outrem provenientes dos «novos» Estados‑Membros. Tal derrogação é obviamente excepcional e deve ser interpretada de modo restritivo. Não pode ser utilizada para regular o acesso a qualquer outra actividade económica, mas apenas ao mercado de trabalho; no entanto, quando esteja em causa o mercado de trabalho deve ser aplicada eficazmente.

33.      Não obstante, é sempre útil recordar que esta derrogação impede que os nacionais dos «novos» Estados‑Membros gozem de uma liberdade fundamental e que, deste modo, usufruam plenamente do estatuto de cidadãos da Comunidade. Deve ter‑se o cuidado especial de não permitir que a derrogação se alargue a outras liberdades fundamentais. Recorrer às derrogações permitidas em relação a nacionais dos «novos» Estados‑Membros para justificar restrições suplementares – em especial a outras liberdades fundamentais – às quais não estão sujeitos outros cidadãos da Comunidade deve ser encarado com as maiores reservas.

34.      Se os sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros exercerem a sua actividade no mercado de trabalho austríaco enquanto trabalhadores por conta de outrem e em concorrência com outros trabalhadores por conta de outrem, a Áustria tem, ao abrigo do Tratado e nos termos do acto de adesão, o direito de proibir essa actividade.

35.      Isto pressupõe que a sua qualificação como trabalhadores por conta de outrem pela lei austríaca é correcta e legal ao abrigo do direito comunitário, questão que abordarei na secção B. Como aí explicarei, se os sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros forem realmente trabalhadores por conta de outrem, não podem invocar a liberdade de estabelecimento quanto ao exercício das suas actividades. É óbvio que, nessa situação, não há que justificar a proibição dessa actividade, uma vez que não está em causa a liberdade de estabelecimento.

36.      Se, ao invés, os sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros não forem trabalhadores por conta de outrem e a qualificação da Áustria não estiver correcta, é aplicável a liberdade de estabelecimento. Será necessária uma justificação para proibir os sócios de exercerem a sua actividade, mas a Áustria deixará de poder invocar a regulamentação do seu mercado de trabalho, como é permitido pelo acto de adesão, uma vez que os sócios não são trabalhadores por conta de outrem (15).

37.      Embora os sócios possam exercer uma actividade como trabalhadores por conta de outrem ou ao abrigo da liberdade de estabelecimento, o mesmo não se verifica no que respeita ao registo das suas sociedades ou empresas. O registo, sendo uma etapa da constituição de uma sociedade noutro Estado‑Membro, está sempre abrangido pela liberdade de estabelecimento (16).

38.      O facto de impedir o registo de uma sociedade constitui, por si só, uma restrição à liberdade de estabelecimento que deve ser justificada. No entanto, esse impedimento resulta igualmente da presunção, nos termos da lei austríaca, de que o sócio que requer o registo é um trabalhador por conta de outrem. Pode isso ser justificado pela derrogação à liberdade de circulação dos trabalhadores constante do acto de adesão?

39.      Ao permitir que a Áustria continue a regular o acesso ao seu mercado de trabalho, o acto de adesão deveria tê‑la igualmente autorizado a criar os mecanismos necessários para dar execução a essa regulamentação. Se os sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros forem, na realidade, trabalhadores por conta de outrem, o facto de impedir o registo das suas sociedades priva‑os dos meios legais de exercerem uma actividade. Porém, esse mecanismo de execução opera de um modo desproporcionado, inadequado e até mesmo arbitrário.

40.      A proibição de registo é desproporcionada porque impede o início da actividade da entidade legal, independentemente de se demonstrar que actuou com o propósito de contornar a lei austríaca. Pressupõe simplesmente que qualquer sociedade com sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros adoptará tal tipo de artifício. Além disso, afigura‑se possível que as autoridades austríacas apreciem ex post se uma pessoa exerce uma actividade específica na qualidade de trabalhador por conta de outrem (17). De facto, essa apreciação será mais fácil e feita com maior precisão depois de a actividade se ter iniciado.

41.      A medida afigura‑se igualmente inadequada porque a qualidade de sócio pode ser alterada assim que o registo permitir ao sócio iniciar a actividade (18). Por último, ao que parece, as autoridades austríacas aplicam a legislação de modo discricionário, reservando‑a a sectores como a construção – provavelmente por razões políticas e económicas que, no entanto, não correspondem a padrões de certeza jurídica, transparência e previsibilidade (19).

42.      Em resumo, o facto de impedir os sócios de registar as suas sociedades, com base na presunção de que têm uma relação de emprego, constitui, em qualquer circunstância, uma restrição injustificada à liberdade de estabelecimento. Por outro lado, proibir os sócios de exercerem uma actividade pode tanto situar‑se fora do âmbito da liberdade de estabelecimento como consubstanciar uma restrição injustificada a essa liberdade, consoante os sócios sejam correctamente qualificados ou não de trabalhadores por conta de outrem. Por esta razão, passarei a analisar esta questão.

B –    Quanto à questão de saber se a qualificação dos sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros como trabalhadores por conta de outrem é legal

43.      No caso presente, os sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros estão proibidos de exercer as suas actividades na Áustria, devido à sua qualificação como trabalhadores por conta de outrem. Daí resulta uma derrogação autorizada à liberdade de circulação dos trabalhadores ou uma restrição injustificada à liberdade de estabelecimento.

44.      Em tal situação, já não é à lei austríaca que cabe determinar quem deve ser qualificado de trabalhador por conta de outrem, devendo essa questão ser apreciada ao nível do direito comunitário. Só é possível dar‑lhe resposta, remetendo para a definição comunitária do conceito de trabalhador por conta de outrem, conforme desenvolvida pelo Tribunal de Justiça através da interpretação das disposições relativas à livre circulação dos trabalhadores.

45.      Uma vez que se trata de definir a fronteira entre a livre circulação dos trabalhadores e a liberdade de estabelecimento, tal apreciação está especificamente relacionada com o conceito de subordinação. Os cidadãos da Comunidade que pretendam exercer actividades noutro Estado‑Membro podem fazê‑lo quer como trabalhadores por conta de outrem, beneficiando da livre circulação dos trabalhadores, quer na qualidade de trabalhadores independentes, ao abrigo da liberdade de estabelecimento (20). Para serem considerados trabalhadores independentes, não podem ter um vínculo de subordinação e devem ser responsáveis pela sua própria actividade (21). Por outro lado, se o vínculo for de subordinação, são considerados trabalhadores por conta de outrem (22).

46.      Esta distinção deve ser mantida, nos termos da legislação nacional, quando é aplicada uma restrição autorizada à livre circulação dos trabalhadores. Se a definição nacional aplicável do conceito de trabalhador por conta de outrem for demasiado lata, e incluir os beneficiários da liberdade de estabelecimento, estará na origem de uma restrição injustificada. A questão consiste, pois, em saber até que ponto a lei austríaca preserva essa distinção.

47.      A qualificação como trabalhadores por conta de outrem nos termos da lei austríaca, para efeitos do presente processo, não depende de critérios de subordinação. Quando os nacionais dos «novos» Estados‑Membros são sócios de uma sociedade de pessoas ou sócios minoritários de uma sociedade de responsabilidade limitada, presume‑se que são trabalhadores por conta de outrem se fornecerem à sua sociedade prestações «típicas de uma relação de trabalho».

48.      O âmbito de tal critério, em direito austríaco, é praticamente ilimitado. Uma actividade que pode ser exercida no âmbito de um emprego pode, em princípio, ser igualmente levada a cabo de modo independente. Consequentemente, o critério parece referir‑se ao contexto social na Áustria e à sua tradição de actividades exercidas no âmbito de uma relação de emprego ou de modo independente. Não é de admirar que as autoridades austríacas, quando chamadas a aplicar esta disposição, pareçam dispor da mais ampla discricionariedade.

49.      Por conseguinte, os sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros que exerçam uma actividade que, na Áustria, é tipicamente exercida por pessoas empregadas, são qualificados, nos termos da lei austríaca, de trabalhadores por conta de outrem, independentemente de o fazerem ou não no âmbito de um vínculo de subordinação. Essa qualificação inclui seguramente os sócios que exercem a sua actividade sem um vínculo de subordinação e que, por isso, deveriam beneficiar da liberdade de estabelecimento.

50.      Em tais circunstâncias, entendo que, neste contexto, a qualificação de pessoas como trabalhadores por conta de outrem feita pela lei austríaca conduz a uma restrição injustificada da liberdade de estabelecimento.

51.      O facto de sócios provenientes dos «novos» Estados‑Membros poderem pedir ao serviço de emprego que declare que não têm uma relação de emprego é irrelevante. Em primeiro lugar, a presunção de que são trabalhadores por conta de outrem é, por si só, uma restrição injustificada à liberdade de estabelecimento, à qual não estão sujeitos outros cidadãos da Comunidade. Em segundo lugar, os critérios de concessão dessa declaração e que são susceptíveis de ilidir essa presunção estão, mais uma vez, desligados de qualquer vínculo de subordinação e não garantem que os beneficiários da liberdade de estabelecimento não sejam afectados.

52.      A lei austríaca exige que os sócios provem que «exercem pessoalmente» uma «influência significativa» na gestão da sociedade. Um sócio que exerce a sua actividade sem um vínculo de subordinação pode, no entanto, não ter interesse na gestão e pode delegar actos de gestão noutros sócios, embora continue a assumir os riscos da actividade. Inversamente, o facto de ter um vínculo de subordinação não impede que se possa exercer influência na gestão (23).

IV – Conclusão

53.      Em conclusão, proponho ao Tribunal de Justiça que declare que, ao presumir que os sócios de sociedades de pessoas e os sócios de sociedades de responsabilidade limitada com uma participação inferior a 25%, provenientes dos Estados‑Membros que aderiram à União Europeia em 1 de Maio de 2004, com excepção de Malta e Chipre, têm uma relação de emprego, e ao proibi‑los de exercerem uma actividade, bem como ao impedi‑los de registar as suas sociedades, salvo se ilidirem essa presunção, a Áustria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 43.° CE.


1 – Língua original: inglês.


2 – O artigo 24.° do Acto relativo às condições de adesão da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO 2003, L 236, p. 33, a seguir «acto de adesão»), faz referência ao ponto 2 dos Anexos V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII e XIV do acto de adesão (um para cada «novo» Estado‑Membro).


3 – Além da Áustria, ainda não liberalizaram completamente os seus mercados de trabalho os seguintes Estados‑Membros: Bélgica, Dinamarca, França e Alemanha.


4 – BGBl. 1975/218, com as últimas alterações constantes do BGBl. I 2005/101.


5 – § 1, n.° 2, alíneas l) e m), da AuslBG. Doravante, a expressão «novos» Estados‑Membros deixa de incluir Chipre e Malta.


6 – § 2, n.° 2, alíneas a) e b), da AuslBG.


7 – § 2, n.° 4, da AuslBG.


8 – Idem.


9 – Idem.


10 – Idem.


11 – § 15 da AuslBG.


12 – Na audiência, a Áustria afirmou que num ano foram emitidas 150 declarações positivas, em comparação com as 100 000 autorizações de acesso ao mercado de trabalho austríaco ao abrigo da AuslBG. O número de declarações negativas e o número de sócios que não deram início a um procedimento de declaração depois de serem considerados em situação de emprego não foram facultados.


13 – V. acórdão de 9 de Março de 1999, Centros (C‑212/97, Colect., p. I‑1459, n.° 19).


14 – V. acórdão de 30 de Novembro de 1995, Gebhard (C‑55/94, Colect., p. I‑4165, n.° 23): «[o] direito de estabelecimento […] [c]ompreende […] o acesso no território de qualquer outro Estado‑Membro a todo o tipo de actividades não assalariadas e ao seu exercício».


15 – Não vejo que outra justificação possa ser invocada. A Áustria afirmou igualmente que pretende impedir que aos nacionais dos «novos» Estados‑Membros seja recusado o regime mais favorável da lei laboral nacional devido à tentativa de acesso ao seu mercado de trabalho através da criação de sociedades. Mesmo admitindo que o facto de os proibir de exercer uma actividade constitua uma protecção adequada – o que é duvidoso –, não é claro por que razão só os nacionais dos «novos» Estados‑Membros são visados, ou – formulando em termos mais positivos – necessitam de receber protecção adicional [v. conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo em que foi proferido o acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de Setembro de 2006, Comissão/Áustria (C‑168/04, Colect., p. I‑9041, n.° 62), quanto à necessidade de aplicar de modo geral a protecção do trabalhador]. Além disso, mais uma vez, este argumento pressupõe que tais pessoas sejam, na realidade, trabalhadores por conta de outrem.


16 – V. nota 13.


17 – V. acórdão de 13 de Dezembro de 2007, Comissão/Itália (C‑465/05, Colect., p. I‑11091, n.° 76).


18 – Por exemplo, os sócios com participações superiores a 25% em sociedades de responsabilidade limitada, que não são qualificados de trabalhadores por conta de outrem, podem vender posteriormente uma parte da sua participação.


19 – V. acórdãos do Tribunal de Justiça de 14 de Março de 2006, Comissão/França (C‑177/04, Colect., p. I‑2461, n.° 70), e de 1 de Abril de 2008, Ing. Aigner (C‑393/06, Colect., p. I‑0000, n.° 54).


20 – Conforme acima referido, se pretenderem criar uma empresa, beneficiarão sempre da liberdade de estabelecimento, mas, uma vez que a restrição ao registo de sociedades não é justificada, não é necessário analisar essa situação neste contexto.


21 – V. acórdãos do Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 2001, Jany e o. (C‑268/99, Colect., p. I‑8615, n.os 34, 70 e 71), e de 8 de Junho de 1999, Meeusen (C‑337/97, Colect., p. I‑3289, n.° 15).


22 – V. acórdãos do Tribunal de Justiça de 27 de Junho de 1996, Asscher (C‑107/94, Colect., p. I‑3089, n.° 25), e de 3 de Julho de 1986, Lawrie‑Blum (66/85, Colect., p. 2121, n.° 17).


23 – Por exemplo, em alguns Estados‑Membros, é tradicional a existência de representantes dos trabalhadores nos órgãos de gestão.