Language of document : ECLI:EU:C:2012:176

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

VERICA TRSTENJAK

de 28 de março de 2012 (1)

Processo C‑171/11

Fra.bo SpA

contra

Deutsche Vereinigung des Gas‑ und Wasserfaches eV (DVGW) – Technisch‑Wissenschaftlicher Verein

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht Düsseldorf (Alemanha)]

«Artigo 34.° TFUE — Livre circulação de mercadorias — Efeito direto horizontal contra terceiros da livre circulação de mercadorias — Elaboração de normas técnicas por parte de uma associação de direito privado — Certificação de produtos pela referida associação — Presunção legal de que os produtos certificados satisfazem os requisitos aplicáveis à sua utilização — Capacidade muito limitada de comercialização de produtos não providos de certificados»





I —    Introdução

1.        No presente processo, o Oberlandesgericht Düsseldorf (Alemanha) pede, em primeiro lugar, que se esclareça se uma associação de direito privado que estabelece, designadamente, normas técnicas para produtos no setor do abastecimento de água potável e que certifica ou manda certificar produtos com base nessas normas técnicas, também está obrigada, no exercício destas atividades, a respeitar a livre circulação de mercadorias nos casos em que se presume, por força da lei, que os produtos providos dos referidos certificados satisfazem os requisitos aplicáveis à utilização destes produtos, no domínio do abastecimento de água potável. Desta forma, o órgão jurisdicional de reenvio aborda a questão controvertida do efeito direto horizontal contra terceiros das liberdades fundamentais em termos gerais e da livre circulação de mercadorias, em particular. Caso seja negado o efeito direto horizontal contra terceiros da livre circulação de mercadorias numa situação como a do processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, subsidiariamente, se a atividade da associação técnico‑científica em causa pode ser abrangida pela proibição dos cartéis enunciada no artigo 101.° TFUE.

2.        Em seguida, começarei por analisar a questão de saber se as atividades normativas e de certificação de uma associação de direito privado, em causa no processo principal, podem estar sujeitas à livre circulação de mercadorias. Uma vez que considero que se deve responder afirmativamente a esta questão relativa ao efeito direto horizontal contra terceiros da livre circulação de mercadorias num caso como o do processo principal, não analisarei a segunda questão prejudicial, colocada a título subsidiário.

II — Direito nacional

3.        O § 1, primeiro parágrafo, do Verordnung über Allgemeine Bedingungen für die Versorgung mit Wasser de 20 de junho de 1980 (regulamento alemão relativo às condições gerais de abastecimento de água, a seguir «AVBWasserV») (2) estabelece o seguinte:

«Às empresas de abastecimento de água que utilizem modelos de contratos ou condições contratuais para a ligação à rede pública de abastecimento de água e para o abastecimento público de água que tenham sido previamente elaborados para uma multiplicidade de contratos (condições gerais de abastecimento), aplicam‑se os §§ 2 a 34. Estes fazem parte integrante do contrato de abastecimento, a menos que o parágrafo 3 e o § 35 prevejam o contrário.»

4.        O § 12 do AVBWasserV, na redação em vigor até 27 de janeiro de 2010, com a epígrafe «Instalação do cliente», prevê o seguinte:

«1.      O beneficiário da ligação é responsável pela instalação, pela ampliação, pela alteração e pela manutenção da instalação desde o ramal de ligação individual, com exceção dos contadores da companhia de abastecimento de água. Se este tiver arrendado a instalação ou partes da instalação a um terceiro ou de outro modo lhe tiver cedido a utilização dos mesmos, é responsável em conjunto com este último.

2.      A instalação só pode ser montada, ampliada, alterada ou mantida em conformidade com as disposições do presente regulamento e com outras disposições legais ou administrativas e tendo em conta as regras reconhecidas da técnica. [...]

[...]

4.      Só podem ser utilizados materiais e aparelhos que tenham sido produzidos de acordo com as regras reconhecidas da técnica. A marca de homologação de um organismo de controlo reconhecido (por exemplo DIN‑DVGW, DVGW ou GS) certifica que estes requisitos se encontram preenchidos.

[...]»

5.        O regulamento de 13 de janeiro de 2010 introduziu as seguintes alterações ao § 12, n.° 4, do AVBWasserV, com efeitos a partir de 28 de janeiro de 2010:

«Só podem ser utilizados materiais e aparelhos em conformidade com as regras reconhecidas da técnica. Presume‑se que os requisitos do primeiro período foram preenchidos quando exista uma marcação CE atestando expressamente a conformidade para a utilização no domínio da água potável. Se a referida marcação CE não for exigida, a mesma presunção será feita se o produto ou o aparelho tiver aposta uma marca de homologação de uma entidade certificadora acreditada no setor, em particular a marca DIN‑DVGW ou a marca DVGW. Os produtos e os aparelhos que

1.      tenham sido legalmente fabricados noutro Estado‑Membro do Espaço Económico Europeu ou

2.      tenham sido legalmente fabricados ou comercializados noutro Estado‑Membro da União Europeia ou na Turquia

e que não correspondam às especificações das marcas de homologação nos termos do terceiro período, serão considerados equivalentes, incluindo os ensaios e inspeções realizados nos referidos Estados, quando permitam atingir o nível de proteção exigido na Alemanha de maneira igualmente duradoura.»

III — Processo principal e questões prejudiciais

6.        A recorrente no processo principal é uma empresa com sede em Itália que fabrica e comercializa ligações em cobre. Estas ligações em cobre unem duas partes de condutas cujas extremidades, para garantir que se mantêm estanques, são revestidas de elastómero.

7.        A recorrida no processo principal é a Deutsche Vereinigung des Gas‑ und Wasserfaches e.V. (a seguir «DVGW»), uma associação registada de direito alemão cuja finalidade, nos termos dos seus estatutos, é promover os setores do gás e da água. A DVGW elabora normas técnicas para produtos nos setores do gás e da água, através de um processo formalizado. À utilização das ligações (fittings) produzidas pela recorrente no processo principal no setor do abastecimento de água potável aplica‑se como norma técnica a ficha técnica DVGW W534 elaborada pela DVGW.

8.        Em finais de 1999, a recorrente no processo principal apresentou à DVGW um pedido de certificação das suas ligações em cobre para o setor da água. A DVGW encarregou a Materialprüfungsanstalt Darmstadt, por ela reconhecida (a seguir «MPA Darmstadt»), de realizar os correspondentes ensaios nos termos da ficha técnica DVGW W534. A MPA Darmstadt subcontratou a empresa Cerisie Laboratorio, em Itália, que está reconhecida não pela DVGW, mas pelos organismos italianos correspondentes. A DVGW atribuiu à recorrente, em novembro de 2000, um certificado, por um período de cinco anos, para o setor da água.

9.        Devido a objeções de terceiros, a DVGW abriu um processo de controlo no qual a MPA Darmstadt foi novamente encarregada de realizar os ensaios. Entre estes ensaios compreende‑se igualmente a realização do denominado teste de ozono. Em junho de 2005, a DVGW comunicou à recorrente no processo principal que a sua ligação não tinha passado no teste de ozono, mas que esta podia apresentar um relatório de controlo positivo no prazo de três meses. A DVGW não aprovou o relatório de controlo apresentado pela Cerisie Laboratorio, porque a Cerisie Laboratorio não estava reconhecida pela DVGW como laboratório de ensaio.

10.      Entretanto, a ficha técnica DVGW W534 foi alterada através de um processo formalizado, no qual a recorrente no processo principal não participou. Para garantir uma maior longevidade aos produtos a certificar, foi introduzido um denominado teste das 3 000 horas, segundo o qual o material é submetido, durante um período de 3 000 horas, a uma temperatura de 110 graus centígrados dentro de água em ebulição. Segundo as regras da DVGW, os titulares de certificados estão obrigados, dentro de três meses após a entrada em vigor da alteração da ficha técnica que lhes diz respeito, a requerer uma certificação adicional com o objetivo de provar a observância dos requisitos alterados. A recorrente no processo principal não apresentou nenhum requerimento para esse efeito. É pacífico no processo principal que a ligação da recorrente não cumpre as exigências do teste das 3 000 horas.

11.      Em junho de 2005, a DVGW retirou o certificado das ligações em cobre à recorrente no processo principal, com o fundamento de que não lhe tinha sido apresentado nenhum relatório positivo de controlo relativo ao teste das 3 000 horas. A DVGW indeferiu o pedido de prorrogação do certificado com o fundamento de que já não existia nenhum certificado a prorrogar.

12.      A recorrente no processo principal intentou uma ação contra a retirada e a recusa de prorrogação do certificado para as suas ligações em cobre, perante o Landgericht Köln, que negou provimento à ação. A recorrente no processo principal interpôs recurso dessa decisão de indeferimento junto do órgão jurisdicional de reenvio.

13.      Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre se a DVGW deve, no âmbito da sua atividade de estabelecimento de normas e de certificação, observar as disposições do direito da União e, em caso afirmativo, quais, submeteu as seguintes questões ao Tribunal de Justiça, para decisão prejudicial:

«1)      Deve o artigo 28.° CE (atual artigo 34.° TFUE), eventualmente conjugado com o artigo 86.°, n.° 2, CE (artigo 106.°, n.° 2, TFUE), ser interpretado no sentido de que as instituições de direito privado que tenham sido criadas com a finalidade de estabelecerem normas técnicas num setor específico e certificarem produtos com base nessas normas técnicas, estão igualmente obrigadas à observância dessas normas se o legislador nacional considerar expressamente conformes à lei os produtos providos de certificados, sendo, na prática, a comercialização de produtos não providos deste certificado, no mínimo, consideravelmente mais difícil?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão:

Deve o artigo 81.° CE (atual artigo 101.° TFUE) ser interpretado no sentido de que a atividade de uma instituição de direito privado, descrita mais detalhadamente na questão 1, desenvolvida no domínio do estabelecimento de normas técnicas e da certificação de produtos com base nestas normas técnicas, [deve] ser considerada como atividade ‘económica’ se essa instituição for controlada por empresas?

Em caso de resposta afirmativa à parte anterior desta pergunta:

Deve o artigo 81.° CE ser interpretado no sentido de que o estabelecimento de normas técnicas e a certificação feita por uma associação de empresas com base nessas normas podem eventualmente afetar o comércio entre os Estados‑Membros, quando um produto legalmente fabricado e comercializado noutro Estado‑Membro não puder, por essa razão, ser comercializado no Estado‑Membro de importação, ou apenas o puder ser com dificuldades consideráveis, porque não preenche os requisitos da norma técnica e seja praticamente impossível a comercialização sem um certificado deste tipo, dada a predominância no mercado da norma técnica e a existência de uma disposição nacional que prevê um certificado da associação de empresas que comprove o preenchimento dos requisitos legais, e quando a norma técnica, caso tenha sido diretamente adotada pelo legislador nacional, não seja aplicável por violação dos princípios da livre circulação de mercadorias?»

IV — Processo no Tribunal de Justiça

14.      O pedido de decisão prejudicial datado de 30 de março de 2011 deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 11 de abril de 2011. A recorrente no processo principal, a DVGW, a República Federal da Alemanha, o Reino dos Países Baixos, a República Checa, o Órgão de Fiscalização da EFTA e a Comissão Europeia apresentaram observações. Na audiência de 15 de fevereiro de 2012 participaram os representantes da recorrente no processo principal, da DVGW, da República Federal da Alemanha, do Reino dos Países Baixos, do Órgão de Fiscalização da EFTA e da Comissão.

V —    Alegações das partes

15.      Ao responder à primeira questão prejudicial, a recorrente no processo principal, a República Federal da Alemanha, o Reino dos Países Baixos, a República Checa, o Órgão de Fiscalização da EFTA e a Comissão defenderam a vinculação da DVGW à livre circulação de mercadorias num caso como o do processo principal. Contudo, o Governo alemão sublinha que a DVGW, para fundamentar um eventual entrave à livre circulação de mercadorias, poderia invocar a proteção da saúde, na aceção do artigo 36.° TFUE, entendendo que dispõe de uma ampla margem de apreciação a este respeito. A DVGW também salienta, neste contexto, a possibilidade de justificação de entraves à livre circulação de mercadorias por razões de saúde pública.

16.      Apenas a recorrente no processo principal, a DVGW e a Comissão formulam uma proposta de resposta à segunda questão. A recorrente no processo principal e a Comissão concluem que estão preenchidos os critérios da proibição dos cartéis nos termos do artigo 101.° TFUE referidos nesta questão prejudicial. Em contrapartida, a DVGW propõe dar resposta negativa à segunda questão prejudicial.

VI — Apreciação jurídica

A —    Quanto à primeira questão prejudicial

17.      Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se e, em caso afirmativo, em que condições deve uma instituição nacional de direito privado que estabelece normas técnicas para produtos no setor do abastecimento de água potável e que analisa e certifica ou manda certificar produtos com base nessas normas, ter em conta as indicações de direito primário relativas à livre circulação de mercadorias, no exercício destas atividades, quando as normas técnicas das instalações não se limitam a incorporar meros conhecimentos técnicos, mas o cumprimento destas normas técnicas implica a presunção da conformidade legal dos produtos analisados e certificados, pelo que os produtos sem este certificado de fiscalização muito dificilmente serão escoados.

18.      De forma a entender melhor esta questão, começarei por analisar o contexto técnico‑jurídico do pedido de decisão prejudicial. Em seguida, analisarei a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao efeito direto horizontal contra terceiros das liberdades fundamentais. Com base nestas considerações, analisarei, por último, a questão da aplicabilidade da livre circulação de mercadorias à DVGW num caso como o do processo principal.

1.      Contexto técnico‑jurídico

a)      Indicações do direito da União no contexto das normas harmonizadas e das normas técnicas nacionais relativas aos produtos de construção

19.      A introdução de normas técnicas relativas a produtos, aplicáveis em toda a União, a fiscalização estrita do seu cumprimento e a rotulagem de produtos conformes a estas normas técnicas contribuem de modo importante para alcançar uma elevada medida de segurança dos produtos na União Europeia. Ao mesmo tempo, a substituição de disposições técnicas nacionais divergentes relativas a produtos por disposições técnicas aplicáveis em toda a União fomenta a livre circulação de mercadorias na União Europeia. Neste contexto, a uniformização de normas técnicas relativas a produtos constitui um objetivo importante para o legislador da União. Para esse fim, a partir de meados dos anos 80, adotou um novo método («new approach») no âmbito da harmonização técnica e da normalização. Nas denominadas Diretivas New Approach, o legislador define os requisitos fundamentais a cumprir pelos produtos abrangidos por estas diretivas. Estes requisitos gerais são concretizados através de organizações privadas de normalização que, a pedido da Comissão, elaboram as especificações técnicas que posteriormente poderão ser publicadas pela Comissão como normas harmonizadas no Jornal Oficial da União Europeia. A observação e a aplicação das normas harmonizadas por parte dos fabricantes são facultativas. Contudo, existe uma presunção ilidível de que os produtos que correspondem às normas harmonizadas cumprem igualmente os requisitos fundamentais da diretiva correspondente (3).

20.      No domínio dos produtos de construção, é a Diretiva 89/106/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1988, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros no que respeita aos produtos de construção (4) que aproxima as disposições e as normas técnicas. Esta diretiva diverge da «nova conceção» na medida em que não contém exigências diretas para os produtos de construção, mas estabelece, no anexo I, as exigências essenciais aplicáveis às obras de construção civil e de engenharia civil (5). Estas exigências essenciais influenciam os produtos de construção no sentido de que estes devem permitir que as obras de construção civil e de engenharia civil nas quais os mesmos são aplicados respeitem as exigências essenciais referidas no anexo I da Diretiva 89/106.

21.      As exigências diretas para os produtos de construção resultam das especificações técnicas definidas no artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 89/106 — e, logo, sobretudo das normas europeias harmonizadas (6). Por seu turno, tal significa que as disposições da Diretiva 89/106 cuja aplicabilidade pressupõe a existência de especificações técnicas, normalmente, só podem aplicar‑se a produtos de construção individuais se e na medida em que exista uma norma europeia harmonizada para esses produtos de construção (7). Tal aplica‑se, designadamente, à proibição de colocação de obstáculos estabelecida no artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 89/106 (8).

22.      Porém, a falta de especificações técnicas harmonizadas ou reconhecidas no plano da União relativas a produtos de construção individuais não atribui aos Estados‑Membros uma margem de apreciação ilimitada para adotarem normas técnicas nacionais relativas à introdução desses produtos no mercado. Pelo contrário, um Estado‑Membro só pode sujeitar a introdução no mercado de um produto que não esteja abrangido por especificações técnicas harmonizadas ou reconhecidas no plano da União, no seu território, a disposições nacionais que estejam em conformidade com as obrigações decorrentes do Tratado, em particular, com o princípio da livre circulação de mercadorias consagrado nos artigos 34.° TFUE e 36.° TFUE (9).

b)      Normas técnicas nacionais e harmonizadas relativas a produtos de construção que estão em causa no processo principal

23.      No processo principal, a recorrente alegou que a ligação por ela produzida é abrangida pela norma europeia harmonizada EN 681‑1 para juntas de vedação em elastómero, que se refere aos requisitos essenciais da Diretiva 89/106. Porém, com base nos factos constatados, o órgão jurisdicional de reenvio concluiu que as ligações em causa não estavam abrangidas por nenhuma norma europeia harmonizada.

24.      É pacífico no processo principal que, no plano nacional, a utilização das ligações controvertidas no âmbito do abastecimento de água potável está sujeita a uma norma técnica elaborada pela DVGW, mais concretamente, à denominada ficha técnica DVGW W534.

25.      No que diz respeito ao seu caráter jurídico, as fichas técnicas da DVGW apresentam uma estrutura híbrida. Por um lado, estas normas da DVGW exprimem regras técnicas elaboradas por uma associação de direito privado. Deste ponto de vista, as fichas técnicas da DVGW surgem como a expressão do conhecimento técnico no âmbito do gás e da água, coligido na DVGW. Por outro lado, as normas da DVGW produzem um efeito jurídico considerável no domínio do abastecimento de água potável. Com efeito, nos termos do § 12, n.° 4, do AVBWasserV presume‑se que os produtos destinados à instalação, ampliação, alteração e manutenção de instalações de clientes ligadas à rede pública de abastecimento de água estão em conformidade com as regras reconhecidas da técnica, se estiverem certificados com a marca DVGW. Além disso, o § 12, n.° 4, do AVGWasserV obriga – indiretamente (10) – o beneficiário da ligação, perante a empresa de abastecimento de água, a utilizar na sua instalação, desde o seu ramal de instalação individual, apenas produtos e equipamentos que estejam em conformidade com as regras reconhecidas da técnica. Neste contexto, as regras constantes do § 12, n.° 4, do AVBWasserV, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, levam a que seja praticamente impossível comercializar sistemas de tubagem para abastecimento de água na Alemanha sem a respetiva certificação da DVGW.

26.      A DVGW procede à certificação dos produtos com base nas normas técnicas que elabora, tendo procedido ela própria a esta certificação, até meio de 2007 e fazendo‑o, desde então, por intermédio de uma filial a 100%. Os certificados são válidos durante alguns anos e podem ser retirados antes do decurso do período de validade, se o padrão a satisfazer já não estiver a ser mantido. Durante este período também pode ser iniciado um processo de controlo que pode culminar na retirada do certificado. Segundo as regras da DVGW, as análises necessárias só podem ser realizadas nos laboratórios por ela reconhecidos.

2.      A jurisprudência relativa ao efeito direto horizontal contra terceiros das liberdades fundamentais

27.      No contexto do já referido caráter jurídico híbrido da ficha técnica DVGW W534, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, com a sua primeira questão, se a DVGW, apesar da sua forma jurídica de associação de direito privado, está obrigada a respeitar as exigências de direito primário relativas à livre circulação de mercadorias no âmbito da elaboração da ficha técnica DVGW W534, bem como da certificação de produtos para o abastecimento de água potável com base nesta norma. Deste modo, o órgão jurisdicional de reenvio coloca a questão de saber qual o efeito direto horizontal em relação a terceiros da livre circulação de mercadorias num caso como o do processo principal.

28.      Para responder a esta questão, parece‑me adequado começar por recordar a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao efeito direto horizontal contra terceiros das liberdades fundamentais e à sua aplicação.

a)      Quanto ao efeito direto horizontal contra terceiros das liberdades fundamentais

29.      Os Estados‑Membros são os principais destinatários das liberdades fundamentais, pelo que, em princípio, só as medidas dos Estados‑Membros é que podem ser apreciadas diretamente à luz das liberdades fundamentais (11). Aliás, o Tribunal de Justiça tende, na sua jurisprudência constante, para um entendimento em sentido amplo do conceito de medidas dos Estados‑Membros, não sendo, no entanto, necessária, para que a atuação de uma pessoa ou de uma instituição seja classificada como medida de um Estado‑Membro que está vinculada às liberdades fundamentais, nem uma equiparação formal dessa pessoa ou instituição ao poder público nem que tenha uma forma jurídica de direito público. Assim, o Tribunal de Justiça também fiscaliza a compatibilidade com as liberdades fundamentais das medidas adotadas pelas organizações profissionais, nos casos em que a legislação nacional atribuiu a estas organizações poderes equiparados a poderes públicos (12). Acresce que as medidas de pessoas coletivas organizadas nos termos do direito privado que sejam direta ou indiretamente controladas pelo respetivo Estado‑Membro também são consideradas medidas públicas (13).

30.      Pode igualmente reconhecer‑se uma tendência na jurisprudência do Tribunal de Justiça, relacionada com este entendimento em sentido amplo do conceito de medidas dos Estados‑Membros e com a consequente extensão do conteúdo da definição da limitação dos direitos fundamentais, de estender o âmbito de aplicação das liberdades fundamentais, em determinadas circunstâncias, indiretamente à atuação de particulares, mesmo quando estes não exercem poderes públicos.

31.      O acima exposto também resulta expressamente, designadamente, da jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual os Estados‑Membros, em determinadas circunstâncias, estão obrigados pelas regras da União a proteger o exercício das liberdades fundamentais de restrições indevidas por particulares. Entre os acórdãos mais conhecidos desta linha jurisprudencial contam‑se os acórdãos de 9 de dezembro de 1997, Comissão/França (14) e de 12 de junho de 2003, Schmidberger (15). Estes acórdãos implicam, em última instância, que a atuação de particulares em determinadas circunstâncias pode ser apreciada à luz de uma obrigação que incumbe aos Estados‑Membros de proteção das garantias das liberdades fundamentais e, assim, indiretamente, à luz das liberdades fundamentais (16).

32.      Além desta extensão indireta do âmbito de aplicação das liberdades fundamentais à atuação de particulares, o Tribunal de Justiça também admitiu uma aplicação direta das liberdades fundamentais a determinadas espécies de regulamentações coletivas adotadas por particulares. Assim, o Tribunal de Justiça conclui, em jurisprudência que passou a ser constante, que os artigos 45.° TFUE, 49.° TFUE e 56.° TFUE não se aplicam apenas a atos das autoridades estatais, mas também são extensivos às regulamentações de outra natureza destinadas a disciplinar, de modo coletivo, o trabalho assalariado, o trabalho independente e as prestações de serviços (17).

33.      Esta jurisprudência implica, designadamente, que se possa examinar a compatibilidade com as liberdades fundamentais referidas das regras acordadas entre as partes e estabelecidas numa convenção coletiva (18). Além disso, o Tribunal de Justiça declarou no acórdão fundamental «Viking Line» que não está subtraída ao âmbito de aplicação das disposições de direito primário relativas à liberdade de estabelecimento uma ação coletiva desencadeada por um sindicato ou por um agrupamento de sindicatos, que não constituem entidades de direito público, contra uma empresa privada, a fim de induzir esta última a celebrar uma convenção coletiva cujo conteúdo pode dissuadi‑la do exercício da liberdade de estabelecimento (19).

34.      Uma tal aplicação direta das liberdades fundamentais a determinadas espécies de regulamentações coletivas que não tenham natureza de direito público tem, em última instância, como consequência que as organizações que elaboram tais regulamentações, apesar de não terem natureza de direito público, devem respeitar as liberdades fundamentais no contexto da sua atividade reguladora, na medida em que esta atividade afete o exercício das liberdades fundamentais. Tal é designado, em termos gerais, com a expressão efeito direto horizontal contra terceiros das liberdades fundamentais. Contudo, uma vez que, segundo esta jurisprudência, o efeito direto horizontal apenas afeta os particulares no contexto de uma atividade reguladora bem definida, trata‑se de um efeito direto horizontal contra terceiros limitado.

35.      Todavia, no domínio da livre circulação dos trabalhadores, com o muito considerado acórdão Angonese, o Tribunal de Justiça deu um passo importante no sentido da vinculação dos particulares às liberdades fundamentais fora do âmbito da elaboração de determinados tipos de regulamentações coletivas. Com efeito, neste acórdão, o Tribunal de Justiça concluiu, em termos gerais, que a proibição da discriminação em razão da nacionalidade, estabelecida no artigo 45.° TFUE, se aplica igualmente às pessoas privadas (20). No entanto, até agora, este acórdão só foi expressamente confirmado pelo acórdão Raccanelli (21).

b)      Entraves às liberdades fundamentais por particulares e sua justificação

36.      Se determinadas espécies de regulamentações coletivas que não se rejam pelo direito público forem abrangidas pelo âmbito de aplicação das liberdades fundamentais, cada medida ou regra nelas contida que, embora aplicável sem discriminação, seja suscetível de afetar ou de tornar menos atrativo o exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado, deve ser considerada como um entrave à respetiva liberdade fundamental que, em princípio, é proibido (22).

37.      Para justificar tais entraves às liberdades fundamentais que, em princípio, são proibidos, através de regulamentações coletivas elaboradas por particulares, podem ser invocados os motivos de justificação «escritos», expressamente previstos no TFUE e, por outro lado, as razões imperiosas de interesse geral «não escritas», na aceção da jurisprudência Cassis de Dijon. Tanto os motivos de justificação escritos como a figura geral das razões imperiosas de interesse geral têm em comum o facto de só se poderem aplicar na medida em que os entraves que carecem de justificação resistam a um exame da proporcionalidade (23) e, por conseguinte, parecem adequados, necessários e apropriados para alcançar os objetivos reconhecidos como motivos de justificação nos Tratados ou na jurisprudência do Tribunal de Justiça (24).

38.      Está em larga medida por esclarecer a questão de saber se, além dos motivos de justificação escritos e das razões imperiosas de interesse geral também podem ser invocados outros princípios de justificação para justificar entraves às liberdades fundamentais através de regulamentações coletivas. A este respeito, podem identificar‑se duas tendências na jurisprudência do Tribunal de Justiça. Ao passo que o Tribunal de Justiça, na maioria dos acórdãos, também exige a prova de um motivo de justificação escrito ou de uma razão imperiosa de interesse geral reconhecida para justificar restrições às liberdades fundamentais através de determinados tipos de regulamentações coletivas que não têm natureza de direito público (25), noutros acórdãos não excluiu que tais entraves possam ser justificados por motivos especiais de interesse privado (26).

39.      O Tribunal de Justiça foi mais longe no acórdão Angonese, ao compensar, em parte, o alargamento nele realizado do âmbito de aplicação da livre circulação de trabalhadores a particulares com um alargamento dos motivos justificativos. Segundo este acórdão, um entrave à livre circulação de trabalhadores por entidades privadas pode ter justificação quando se baseie em considerações objetivas independentes da nacionalidade das pessoas em questão e proporcionadas ao objetivo legitimamente prosseguido (27). No entanto, ainda não foi esclarecido em que medida as «considerações objetivas» também podem ser invocadas para justificar restrições às liberdades fundamentais por determinados tipos de regulamentações coletivas que não tenham natureza de direito público.

3.      Quanto à obrigação da DVGW de respeitar a livre circulação de mercadorias num caso como o do processo principal

40.      Em conclusão, tendo em conta esta análise da jurisprudência relativa ao efeito direto horizontal das liberdades fundamentais, deve responder‑se afirmativamente à primeira questão prejudicial do órgão jurisdicional de reenvio, de saber se a DVGW está obrigada, num caso como o do processo principal, no âmbito da elaboração das suas normas técnicas e da certificação de produtos com base nessas normas, a respeitar a livre circulação de mercadorias.

41.      Para responder à primeira questão prejudicial deve, em primeiro lugar, salientar‑se que o legislador nacional, através do § 12, n.° 4, do AVBWasserV, conferiu à DVGW a faculdade de elaborar um corpo de regras, com efeito de presunção legal, relativas à adequação de produtos para a instalação, ampliação, alteração e manutenção de instalações de clientes. Em relação às ligações em causa no processo principal, a DVGW exerceu essa faculdade com a ficha técnica DVGW W534 e alcançou desse modo a competência de facto para determinar que ligações podem ser oferecidas no mercado dos tubos e acessórios para o abastecimento de água potável na Alemanha. Na verdade, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os efeitos combinados da presunção constante do § 12, n.° 4, do AVBWasserV, e da atividade certificadora da DVGW ou da sua filial a 100%, com base na ficha técnica DVGW W534, leva a que seja praticamente impossível comercializar tubos e acessórios para o abastecimento de água potável na Alemanha sem uma certificação da DVGW (28).

42.      Tendo em conta esta competência de facto da DVGW e da sua filial a 100%, para determinar, no âmbito de uma atividade normativa e de certificação, que produtos para a instalação, ampliação, alteração e manutenção de instalações de água potável de clientes podem ser oferecidos com sucesso no mercado alemão e, por conseguinte, são comercializáveis, esta atividade normativa e de certificação da DVGW e da sua filial a 100% não pode ser excluída do âmbito de aplicação da livre circulação de mercadorias.

43.      Para justificar este efeito direto horizontal contra terceiros da livre circulação de mercadorias, a argumentação desenvolvida pelo Tribunal de Justiça em relação à aplicabilidade dos artigos 45.° TFUE, 49.° TFUE e 56.° TFUE a corpos de regras de outro tipo que se destinam a regular coletivamente a atividade profissional subordinada, o trabalho independente e a prestação de serviços pode ser aplicada per analogiam.

44.      Importa desde logo salientar que o Tribunal de Justiça, no contexto da sua linha jurisprudencial relativa ao limitado efeito direto horizontal contra terceiros da livre circulação de trabalhadores, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, ainda não se pronunciou expressamente quanto à questão de saber se a livre circulação de mercadorias e a livre circulação de capitais são também aplicáveis a regulamentações coletivas que não tenham natureza de direito público. No entanto, em meu entender, deve responder‑se afirmativamente a esta questão. Com efeito, o Tribunal de Justiça justifica a aplicabilidade da livre circulação de trabalhadores, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços a regulamentações coletivas que não tenham natureza de direito público que tenham por objeto a atividade profissional subordinada, o trabalho independente ou a prestação de serviços, essencialmente fazendo referência aos efeitos destas regulamentações coletivas. Deste ponto de vista, se a aplicabilidade direta da livre circulação de trabalhadores, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços em relação a regulamentações coletivas que não tenham natureza de direito público fosse confirmada mediante determinadas condições, dificilmente se conceberia que, em contrapartida, uma tal aplicabilidade direta no âmbito da livre circulação de mercadorias e de capitais fosse categoricamente negada (29).

45.      Neste contexto, não se vislumbram reservas de princípio em relação à transposição da argumentação desenvolvida na jurisprudência a respeito do limitado efeito direto horizontal contra terceiros da livre circulação de trabalhadores, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços para um caso como o presente, no qual está em discussão a aplicabilidade da livre circulação de mercadorias a uma associação de direito privado com competência legislativa de facto.

46.      Como primeiro argumento principal para justificar o efeito direto horizontal contra terceiros dos artigos 45.° TFUE, 49.° TFUE e 56.° TFUE em relação a determinados tipos de regulamentações coletivas que não tenham natureza de direito público, o Tribunal de Justiça sublinha na sua jurisprudência constante que a abolição dos entraves à livre circulação e à livre prestação de serviços entre os Estados‑Membros ficaria comprometida se a supressão das barreiras de origem estatal pudesse ser neutralizada por obstáculos resultantes do exercício da sua autonomia jurídica, por associações ou por organismos que não são de direito público (30).

47.      No contexto do presente processo, esta consideração baseada no effet utile do direito da União pode ser transposta para a atividade normativa e de certificação da DVGW e da sua filial a 100%. Com efeito, conforme resulta do pedido de decisão prejudicial, a DVGW, através da adoção de normas e da certificação de produtos para a instalação, ampliação, alteração e manutenção de instalações de água potável de clientes, pode determinar, de facto, os produtos que poderão ter acesso ao mercado alemão. Em consequência, a DVGW e a sua filial a 100% são perfeitamente capazes de, no âmbito do exercício desta competência de facto, erguer novos obstáculos à livre circulação de mercadorias na União Europeia.

48.      Como segundo argumento principal para justificar o efeito direto horizontal do artigo 45.° TFUE em relação a regulamentações coletivas que regulam a atividade profissional subordinada, o Tribunal de Justiça salienta, na sua jurisprudência constante, que, dado que as condições de trabalho nos diferentes Estados‑Membros são regidas tanto por via de disposições de caráter legislativo ou regulamentar como por convenções coletivas ou outros atos celebrados ou adotados por entidades privadas, limitar as proibições previstas no artigo 45.° TFUE aos atos das autoridades públicas acarretaria o risco de criar desigualdades quanto à sua aplicação (31).

49.      Este raciocínio também pode ser transposto para a atividade normativa e certificadora da DVGW e da sua filial a 100%, no âmbito do abastecimento de água potável, num caso como o do processo principal. Conforme já referi, o facto de as ligações aqui em causa não estarem, no domínio do abastecimento de água potável, sujeitas a nenhuma norma harmonizada europeia, não significa que os Estados‑Membros tenham uma margem de apreciação ilimitada para a elaboração de normas técnicas nacionais relativas a essas ligações. Pelo contrário, estão obrigados, no âmbito da elaboração de normas técnicas nacionais, a ter em conta as obrigações decorrentes da livre circulação de mercadorias (32). Se os Estados‑Membros pudessem contornar esta obrigação de observância das liberdades fundamentais na elaboração e aplicação de normas técnicas através de uma transferência – de facto – de competência para associações privadas, tal levaria a uma aplicação desigual do direito da União. Com efeito, nos Estados‑Membros em que a competência normativa e certificadora, como função pública que é, permanece reservada às autoridades, esta competência deveria ser exercida no respeito das liberdades fundamentais. Nos Estados‑Membros em que esta função fosse – de facto – transferida para uma associação de direito privado, as liberdades fundamentais não produziriam qualquer efeito sobre a mesma.

50.      Tendo em conta as considerações precedentes, concluo que deve responder‑se à primeira questão prejudicial que o artigo 34.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que as entidades de direito privado que tenham sido criadas com a finalidade de estabelecerem normas técnicas num setor específico e certificarem produtos com base nessas normas técnicas estão vinculadas ao artigo 34.° TFUE, no exercício da referida atividade normativa e certificadora, se o legislador nacional considerar expressamente conformes à lei os produtos providos de um certificado da referida instituição privada, sendo, na prática, a comercialização de produtos não providos deste certificado praticamente impossível.

4.      Considerações relativas às consequências jurídicas que resultam para a DVGW de uma vinculação à livre circulação de mercadorias

51.      Embora o órgão jurisdicional de reenvio não tenha solicitado expressamente esclarecimentos em relação às consequências jurídicas que num caso como o do processo principal resultam da obrigação da DVGW e da sua filial a 100% de respeitarem a livre circulação de mercadorias no contexto da elaboração da ficha técnica DVGW W534 e da certificação de produtos com base nesta norma técnica, irei, com a brevidade que se impõe, analisar alguns pontos problemáticos importantes que podem surgir no decurso do processo principal, tendo em conta as alegações do órgão jurisdicional de reenvio.

a)      Quanto à obrigação da DVGW de respeitar a livre circulação de mercadorias no âmbito da sua atividade de normalização

52.      Resulta do pedido de decisão prejudicial que a DVGW, após ter emitido o certificado para o setor da água para as ligações da recorrente no processo principal, alterou a ficha técnica DVGW W534 e introduziu o denominado teste das 3 000 horas. Uma vez que a recorrente no processo principal não apresentou nenhum relatório de controlo positivo relativo ao teste das 3 000 horas para as suas ligações, o certificado foi‑lhe retirado em junho de 2005 (33).

53.      Conforme se comprova inequivocamente pelo exemplo das ligações da recorrente no processo principal, a introdução do teste das 3 000 horas na ficha técnica DVGW W534 é suscetível de restringir a realização da liberdade de circulação de mercadorias em relação aos produtos que são abrangidos por esta norma técnica. Uma vez que as ligações da recorrente no processo principal não passaram neste teste – ou não foi apresentada prova cabal – o certificado das ligações foi retirado, de modo que a recorrente no processo principal – estabelecida em Itália – deixou praticamente de poder comercializar de facto estas ligações no mercado alemão.

54.      Deste ponto de vista, a introdução do teste das 3 000 horas na ficha técnica DVGW W534 deve ser classificada como um entrave à livre circulação de mercadorias por parte da DVGW. No entender do órgão jurisdicional de reenvio, não se vislumbra nenhuma justificação para este entrave por nenhum dos motivos «escritos» no artigo 36.° TFUE, tanto mais que o teste das 3 000 horas não se destina a proteger a saúde do consumidor da água potável, mas antes a prolongar o tempo de vida dos tubos (34).

55.      Em contrapartida, está por esclarecer se poderá existir uma razão imperiosa de interesse geral não escrita, reconhecida pela jurisprudência, para justificar este entrave, que também resistisse a um exame da proporcionalidade. Em princípio, tratando‑se de um entrave não discriminatório, poderia ser justificado por razões imperiosas de interesse geral. Se a DVGW conseguisse comprovar um motivo de justificação não escrito que passasse no exame da proporcionalidade, a introdução do teste das 3 000 horas na ficha técnica DVGW W534 deveria ser classificada como uma restrição permitida à liberdade de circulação de mercadorias.

56.      Se a DVGW não conseguisse comprovar um motivo de justificação não escrito reconhecido pela jurisprudência, poderia tentar invocar uma justificação resultante de uma razão imperiosa de interesse geral, destacando a sua natureza de direito privado (35). Fazendo referência ao acórdão Angonese, já referido, a DVGW também poderia eventualmente alegar «considerações objetivas» para justificar o entrave em causa (36). A DVGW poderia também, alegando a sua natureza de organismo de direito privado, invocar a proteção dos direitos fundamentais consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (37), tais como, por exemplo, a liberdade de empresa consagrada no artigo 16.°, e tentar demonstrar a existência de um conflito entre a liberdade de circulação de mercadorias e um ou mais direitos fundamentais, que tivesse de ser resolvido garantindo um equilíbrio justo com base no princípio da proporcionalidade (38).

57.      Se a DVGW invocar, no processo principal, de um modo convincente, razões especiais de interesse privado, «considerações objetivas» ou uma posição protegida pelos direitos fundamentais, para justificar o entrave à liberdade de circulação de mercadorias através da introdução do teste das 3 000 horas na ficha técnica DVGW W534, o órgão jurisdicional de reenvio deverá submeter outro pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça e solicitar detalhadamente esclarecimentos sobre se e, em caso afirmativo, em que condições estes argumentos invocados pela DVGW podem ser válidos num caso como o do processo principal. Em meu entender, à luz do estado atual da jurisprudência relativa ao limitado efeito direto horizontal contra terceiros das liberdades fundamentais e à relação entre liberdades fundamentais e direitos fundamentais, a resposta a estas questões ainda não se pode retirar inequivocamente da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

b)      Quanto à obrigação da DVGW de respeitar a liberdade de circulação de mercadorias no âmbito da sua atividade de certificação

58.      Resulta ainda do pedido de decisão prejudicial que a DVGW, no âmbito do processo de controlo relativo ao certificado já emitido para as ligações em causa, se recusou a ter em conta o relatório de controlo da empresa italiana Cerisie Laboratorio, apresentado pela recorrente, uma vez que a referida empresa não estava reconhecida pela DVGW como laboratório de ensaio. O órgão jurisdicional de reenvio também refere que a Cerisie Laboratorio foi reconhecida pelas autoridades italianas competentes (39).

59.      Tal recusa perentória da DVGW de ter em conta o relatório de controlo da Cerisie Laboratorio parece‑me, num caso como o do processo principal, suscetível de impedir a realização da liberdade de circulação de mercadorias relativamente às ligações em causa ou de tornar o seu exercício menos atrativo, pelo que deve ser classificada como uma restrição à liberdade de circulação de mercadorias que, em princípio, é proibida (40).

60.      Relativamente ao tema da justificação desta restrição, permito‑me fazer referência às minhas observações acima expostas nos n.os 54 e segs., devendo, no entanto, ter‑se igualmente em conta a tendência discriminatória desta recusa da DVGW. Esta tendência discriminatória seria particularmente importante se a DVGW baseasse a sua tentativa de justificação numa razão imperiosa de interesse geral. Com efeito, até agora, o Tribunal de Justiça não declarou expressamente se e, em caso afirmativo, em que condições as restrições discriminatórias da liberdade de circulação de mercadorias podem ser justificadas com base em razões imperiosas de interesse geral (41). Se esta questão se vier a colocar in concreto no decurso do processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio deverá submeter um novo pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça e também pedir detalhadamente que lhe sejam prestados esclarecimentos.

B —    A segunda questão prejudicial

61.      Uma vez que a segunda questão prejudicial apenas foi colocada para o caso de resposta negativa à primeira questão prejudicial, torna‑se desnecessário analisar a segunda questão prejudicial, tendo em conta a minha proposta de resposta à primeira questão prejudicial.

VII — Conclusão

62.      Tendo em conta as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma às questões prejudiciais:

«Os organismos de direito privado que tenham sido criados com a finalidade de estabelecerem normas técnicas num setor específico e de certificarem produtos com base nessas normas técnicas estão vinculados ao artigo 34.° TFUE, no exercício da referida atividade de normalização e de certificação, se o legislador nacional considerar expressamente conformes à lei os produtos providos de certificados desses organismos de direito privado, sendo, na prática, impossível a comercialização de produtos não providos de tais certificados.»


1 – Língua original das conclusões: alemão. Língua do processo: alemão.


2 – BGBl. I pp. 750, 1067.


3–      V., a este respeito, as minhas conclusões de 28 de abril de 2010 no processo Latchways e Eurosafe Solutions (C‑185/08, acórdão de 21 de outubro de 2010, Colet., p. I‑9983, n.os 57 e segs.).


4–      JO 1989, L 40, p. 12, na redação alterada pela Diretiva 93/68/CEE do Conselho, de 22 de julho de 1993 (JO L 220, p. 1, «a seguir «Diretiva 89/106»).


5–      Artigo 3.°, n.° 1 da Diretiva 89/106.


6–      V., a este respeito, Jarass, H., «Probleme des Europäischen Bauproduktenrechts», NZBau 2008, pp. 145 e 146.


7–      Idem, p. 147 e segs. Naturalmente, se não existir nenhuma norma europeia harmonizada para um determinado produto, é possível colocar esse produto no âmbito de aplicação das obrigações centrais da Diretiva 89/106 mediante o requerimento de uma aprovação técnica europeia.


8–      O artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 89/106 prevê, no primeiro parágrafo, que os Estados‑Membros não podem levantar obstáculos à livre circulação, à introdução no mercado e à utilização no seu território de produtos que satisfaçam as disposições desta diretiva. Além disso, nos termos do segundo parágrafo desta disposição, os Estados‑Membros garantirão que a utilização de tais produtos para os fins a que se destinam não será impedida por regras ou condições impostas por organismos públicos ou por organismos privados que atuem como empresas públicas ou organismos públicos com base na sua posição de monopólio.


9–      Acórdão de 10 de novembro de 2005, Comissão/Portugal (C‑432/03, Colet., p. I‑9665, n.° 35).


10–      O Governo da República Federal da Alemanha, em resposta a uma questão escrita do Tribunal de Justiça relativa ao círculo de destinatários e à natureza jurídica do dever decorrente do § 12, n.° 4, do AVBWasserV esclareceu, numa carta de 13 de janeiro de 2012, que esta disposição faz parte integrante de um contrato relativo à ligação à rede pública de abastecimento de água celebrado com uma empresa de abastecimento de água, a menos que as partes contratantes estabeleçam o contrário. O § 12, n.° 4, do AVBWasserV fundamenta um dever do beneficiário da ligação relativamente à empresa de abastecimento de água potável.


11–      Em relação à livre circulação de mercadorias, v., por exemplo, acórdãos de 1 de outubro de 1987, van Vlaamse Reisbureaus (311/85, Colet., p. 3801, n.° 30), e de 6 de junho de 2002, Sapod Audic (C‑159/00, Colet., p. I‑5031, n.° 74).


12–      V., por exemplo, acórdão de 18 de maio de 1989, Association of Pharmaceutical Importers e o. (266/87 e 267/87, Colet., p. 1295, n.os 13 e segs.), no qual o Tribunal de Justiça concluiu que as medidas da organização profissional dos farmacêuticos britânicos, tendo particularmente em conta as competências que lhe são atribuídas, podem constituir medidas na aceção do artigo 34.° TFUE. O Tribunal de Justiça chegou à mesma conclusão no acórdão de 15 de dezembro de 1993, Hünermund e o. (C‑292/92, Colet., p. I‑6787, n.° 12 e segs.) em relação a medidas da câmara regional dos farmacêuticos de Baden‑Württemberg.


13–      V. a este respeito, por exemplo, os acórdãos de 5 de novembro de 2002, Comissão/Alemanha (C‑325/00, Colet., p. I‑9977, n.os 14 e segs.), e de 12 de dezembro de 1990, Hennen Olie (C‑302/88, Colet., p. I‑4625, n.os 13 e segs.).


14–      C‑265/95, Colet., p. I‑6959. Neste acórdão concluiu‑se, designadamente, que a República Francesa, ao não tomar todas as medidas necessárias e proporcionadas para impedir atos de violência cometidos por particulares no território francês contra produtos agrícolas originários de outros Estados‑Membros e que entravavam as trocas comerciais intracomunitárias, não cumpriu as disposições de direito primário relativas à livre circulação de mercadorias.


15–      C‑112/00, Colet., p. I‑5659. Neste acórdão, o Tribunal de Justiça examinou se a circunstância de a República da Áustria não ter proibido uma manifestação de particulares na autoestrada de Brenner que teve por efeito bloquear completamente a circulação durante cerca de 30 horas e que, assim, levou a uma restrição considerável da circulação transfronteiriça de mercadorias, era compatível com as disposições de direito primário relativas à livre circulação de mercadorias.


16–      A advogada‑geral J. Kokott interpreta esta jurisprudência no sentido de que o comportamento de particulares pode ser imputado a um Estado‑Membro, nos casos em que estes não atuavam sob orientação do Estado, mas o Estado‑Membro tinha uma obrigação positiva de pôr termo a essas ações dos particulares; v. conclusões da advogada‑geral J. Kokott proferidas no processo AGM‑COS.MET (C‑470/03, acórdão de 17 de abril de 2007, Colet., p. I‑2749, n.° 78).


17–      V., neste sentido, acórdão de 11 de dezembro de 2007, International Transport Workers’ Federation e Finnish Seamen’s Union, dito «Viking Line» (C‑438/05, Colet., p. I‑10779, n.° 33). V., ainda, acórdãos de 10 de março de 2011, Casteels (C‑379/09, Colet., p. I‑1379, n.° 19); de 16 de março de 2010, Olympique Lyonnais (C‑325/08, Colet., p. I‑2177, n.° 30); de 18 de julho de 2006, Meca‑Medina e Majcen/Comissão (C‑519/04 P, Colet., p. I‑6991, n.° 24); de 19 de fevereiro de 2002, Wouters e o. (C‑309/99, Colet., p. I‑1577, n.° 120); de 15 de dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, Colet., p. I‑4921, n.° 82); e de 12 de dezembro de 1974, Walrave e Koch (36/74, Colet., p. 595, n.os 16 e segs.).


18–      V., por exemplo, acórdão Casteels, já referido na nota n.° 17 (n.os 17 e segs.).


19–      Acórdão Viking Line, já referido na nota 17 (n.° 37).


20–      Acórdão de 6 de junho de 2000, Angonese (C‑281/98, Colet., p. I‑4139, n.° 36).


21–      Acórdão de 17 de julho de 2008, Raccanelli (C‑94/07, Colet., p. I‑5939, n.° 46).


22–      V., por exemplo, acórdãos Casteels, já referido na nota 17 (n.° 22), e Olympique Lyonnais, já referido na nota 17 (n.os 33 e segs.).


23–      Relativamente aos motivos de justificação escritos do artigo 36.° TFUE, o Tribunal de Justiça declara, em jurisprudência constante, que o princípio da proporcionalidade está na base do artigo 36.°, n.° 2, TFUE; v. acórdãos de 19 de junho de 2008, Nationale Raad van Dierenkwekers en Liefhebbers e Andibel (C‑219/07, Colet., p. I‑4475, n.° 30) e de 14 de dezembro de 2000, Comissão/França (C‑55/99, Colet., p. I‑11499, n.° 29). Além disso, o Tribunal de Justiça declarou, em termos gerais, que uma medida restritiva das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado só pode ser justificada se respeitar o princípio da proporcionalidade. V., por exemplo, acórdãos de 16 de fevereiro de 2006, Öberg (C‑185/04, Colet., p. I‑1453, n.° 19); de 16 de fevereiro de 2006, Rockler (C‑137/04, Colet., p. I‑1441, n.° 22); e de 26 de novembro de 2002, Oteiza Olazabal (C‑100/01, Colet., p. I‑10981, n.° 43).


24–      Embora o Tribunal de Justiça, normalmente, só mencione expressamente a adequação e a necessidade das medidas em análise como partes integrantes do princípio da proporcionalidade, no âmbito da apreciação da proporcionalidade é necessário partir de uma análise em três etapas, que também inclua o exame da proporcionalidade. Em relação a esta estrutura em três etapas, v. por exemplo as minhas conclusões de 8 de março de 2011 proferidas no processo Comissão/Áustria (C‑10/10, acórdão de 16 de junho de 2011, Colet., p. I‑5389, n.os 67 e segs.).


25–      V. acórdãos Casteels, já referido na nota 17 (n.os 30 e segs.), e Viking Line, já referido na nota 17 (n.° 75 e segs.).


26–      V., em particular, acórdão Olympique Lyonnais, já referido na nota 17 (n.os 38 e segs.), no qual o Tribunal de Justiça partiu do princípio de que uma regra da carta de futebol profissional da federação francesa de futebol que restringe a livre circulação de trabalhadores, em princípio, é susceptível de ser justificada pelo objetivo de encorajar o recrutamento e a formação de jovens jogadores, desde que o princípio da proporcionalidade seja respeitado. V., igualmente, acórdão Bosman, já referido na nota 17 (n.os 106 e segs.), no qual o Tribunal de Justiça analisou uma justificação do entrave à livre circulação de trabalhadores pelas regras de transferência das federações de futebol controvertidas à luz do objetivo por elas prosseguido, de garantir a manutenção de um equilíbrio entre os clubes, mediante a manutenção de uma certa igualdade de oportunidades e da incerteza dos resultados, e de promover a contratação e a formação dos jovens jogadores.


27–      Acórdão Angonese, já referido na nota 20 (n.° 42).


28–      V. n.° 25 das presentes conclusões.


29–      Nesse sentido, Forsthoff, U., in Grabitz/Hilf/Nettesheim, Das Recht der Europäischen Union, artigo 45.° TFUE, n.° 176 (46.° suplemento, atualização de outubro de 2011).


30–      Acórdãos de 18 de dezembro de 2007, Laval un Partneri (C‑341/05, Colet., p. I‑11767, n.° 98); Viking Line, já referido na nota 17 (n.° 57); Wouters e o., já referido na nota 17 (n.° 120); Bosman, já referido na nota 17 (n.° 83); e Walrave, já referido na nota 17 (n.os 16 e segs.).


31–      Acórdãos Olympique Lyonnais, já referido na nota 17 (n.° 31), e Bosman, já referido na nota 17 (n.° 84).


32–      V. n.° 22 das presentes conclusões.


33–      V. n.os 8 e segs. das presentes conclusões.


34–      Decisão de reenvio, pp. 11 e segs.


35–      V., a este respeito, n.° 38 das presentes conclusões e os acórdãos já referidos na nota 26.


36–      V., a este respeito, n.° 39 das presentes conclusões.


37–      V. a este respeito, em particular, Forsthoff, já referido na nota 29 (n.° 181).


38–      Quanto à resolução de conflitos entre liberdades fundamentais e direitos fundamentais, v. as minhas conclusões de 14 de abril de 2010 no processo Comissão/Alemanha (C‑271/08, acórdão de 15 de julho de 2010, Colet., p. I‑7087, n.os 178 e segs.).


39–      Decisão de reenvio, p. 4.


40–      V., a este respeito, acórdãos Comissão/Portugal, já referido na nota 9 (n.os 41 e 46), e de 17 de setembro de 1998, Harpegnies (C‑400/96, Colet., p. I‑5121, n.° 35).


41–      Quanto a esta problemática, v. as minhas conclusões de 16 de dezembro de 2010 no processo Comissão/Áustria (C‑28/09, acórdão de 21 de dezembro de 2011, Colet., p. I‑13525, n.os 81 e segs.).