Language of document : ECLI:EU:C:2010:13

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 14 de Janeiro de 2010 1(1)

Processo C‑340/08

M (FC) e o.

contra

Her Majesty’s Treasury

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela House of Lords (Reino Unido)]

«Medidas restritivas contra pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al‑Qaida e aos talibãs – Proibição de colocar fundos à disposição de pessoas e entidades incluídas no Anexo I do Regulamento (CE) n.° 881/2002 – Prestações de segurança social e previdência pagas ao cônjuge de uma pessoa incluída no referido anexo»





I –    Introdução

1.        Por despacho de 30 de Abril de 2008, a House of Lords (Reino Unido) submeteu ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, um pedido de decisão a título prejudicial relativo à interpretação do Regulamento (CE) n.° 881/2002 do Conselho, de 27 de Maio de 2002, que institui certas medidas restritivas específicas contra determinadas pessoas e entidades associadas a Osama Bin Laden, à rede Al‑Qaida e aos talibã[s], e que revoga o Regulamento (CE) n.° 467/2001 que proíbe a exportação de certas mercadorias e de certos serviços para o Afeganistão, reforça a proibição de voos e prorroga o congelamento de fundos e de outros recursos financeiros aplicável aos talibã do Afeganistão (2) (a seguir «Regulamento n.° 881/2002» ou «regulamento»).

2.        O Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se sobre o alcance do artigo 2.°, n.° 2, desse regulamento, no âmbito de um processo que opõe as Sr.as M, A e MM (a seguir «recorrentes») ao Her Majesty’s Treasury (Ministério do Tesouro britânico, a seguir «Treasury»), relativamente à aplicabilidade das proibições previstas nessa disposição às prestações de segurança social e previdência respeitantes ao cônjuge de uma pessoa inscrita na lista elaborada pelo Comité de Sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas em conformidade com a Resolução 1267 (1999).

II – Enquadramento legal de referência

A –    As resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas

3.        Em 16 de Janeiro de 2002, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (a seguir «Conselho de Segurança») adoptou a Resolução 1390 (2002), que determina as medidas a aplicar contra Osama Bin Laden, os membros da organização Al‑Qaida e os talibãs e outras pessoas, grupos, empresas e entidades àqueles associadas, que estão incluídos na lista elaborada em conformidade com as Resoluções 1267 (1999) e 1333 (2000) do mesmo Conselho de Segurança e actualizada regularmente pelo Comité de Sanções do Conselho de Segurança (a seguir «comité de sanções») instituído nos termos da Resolução 1267 (1999).

4.        Nos termos do n.° 2, alínea a), da Resolução 1390 (2002), todos os Estados devem:

«Congelar sem demora os fundos e demais activos financeiros ou recursos económicos dessas pessoas, grupos, empresas e entidades, incluindo os fundos derivados de bens que sejam sua propriedade ou que sejam controlados, directa ou indirectamente, por eles ou por pessoas que actuem em seu nome ou sob a sua direcção, e assegurar que, nem esses fundos nem quaisquer outros fundos, activos financeiros ou recursos económicos sejam colocados à disposição, directa ou indirectamente, dessas pessoas, pelos seus nacionais ou por pessoas que se encontrem no seu território» (3).

5.        Em 20 de Dezembro de 2002, o Conselho de Segurança adoptou a Resolução 1452 (2002), pela qual foram autorizadas derrogações específicas, para fins humanitários, às medidas restritivas impostas pela Resolução 1390 (2002).

6.        O n.° 1 da Resolução 1452 (2002) prevê que a obrigação de congelar os fundos não se aplica, designadamente:

«aos fundos e outros activos financeiros ou recursos económicos que o(s) Estado(s) competente(s) tenha(m) determinado ser: a) necessários para as despesas básicas […] após a notificação pelo Estado ou Estados competentes ao Comité […] da intenção de autorizar, quando necessário, o acesso a esses fundos, activos ou recursos […]».

B –    A legislação da União Europeia e da Comunidade Europeia

7.        A fim de dar execução à Resolução 1390 (2002) do Conselho de Segurança, o Conselho adoptou, em 27 de Maio de 2002, a Posição Comum 2002/402/PESC, relativa a medidas restritivas contra Osama [B]in Laden, os membros da organização Al‑Qaida e os [talibãs], bem como contra outros indivíduos, grupos, empresas e entidades a eles associados e que revoga as Posições Comuns 96/746/PESC, 1999/727/PESC, 2001/154/PESC e 2001/771/PESC (4).

8.        Nos termos do seu artigo 1.°, a Posição Comum 2002/402 «é aplicável a Osama [B]in Laden, aos membros da organização Al‑Qaida e aos [talibãs], bem como a outros indivíduos, grupos, empresas e entidades a eles associados, referidos na lista criada […] de acordo» com as Resoluções 1267 (1999) e 1333 (2000) do Conselho de Segurança. No artigo 3.° prevê o seguinte:

«A Comunidade Europeia, actuando nos limites das competências que lhe são conferidas pelo Tratado que institui a Comunidade Europeia:

–        deve determinar o congelamento de fundos e outros activos financeiros ou recursos económicos dos indivíduos, grupos, empresas e entidades referidos no artigo 1.°,

–        deve assegurar que os fundos, os activos financeiros ou os recursos económicos não sejam, directa ou indirectamente, colocados à disposição nem utilizados em benefício de indivíduos, grupos, empresas e entidades referidos no artigo 1.°»

9.        Na sequência da Posição Comum 2002/402, o Conselho adoptou, em 27 de Maio de 2002, o Regulamento n.° 881/2002, que, como decorre dos seus considerandos, em particular do primeiro ao quarto, tem em vista promover a aplicação da Resolução 1390 (2002) no que respeita ao território da Comunidade.

10.      Nos termos do seu artigo 1.°, para efeitos do regulamento entende‑se por:

«1.      ‘Fundos’, activos financeiros e vantagens económicas de qualquer tipo, nomeadamente, mas não exclusivamente, numerário, cheques, direitos sobre numerário, saques, ordens de pagamento e outros instrumentos de pagamento; depósitos em instituições financeiras ou outras entidades, saldos de contas, dívidas e obrigações de dívida; valores mobiliários e instrumentos de dívida de negociação aberta ao público ou restrita, incluindo títulos de capital e acções, certificados representativos de valores mobiliários, obrigações, promissórias, warrants, cédulas, contratos sobre instrumentos derivados; juros, dividendos ou outros rendimentos sobre activos ou mais valias provenientes de activos ou por eles gerados; créditos, direitos de compensação, garantias, obrigações de boa execução ou outros compromissos financeiros; cartas de crédito, conhecimentos de embarque, recibos de venda; documentos que comprovem um interesse em fundos ou recursos financeiros e quaisquer outros instrumentos de financiamento de exportações;

2.      ‘Recursos económicos’, activos de qualquer tipo, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, que não sejam fundos mas que podem ser utilizados na obtenção de fundos, bens ou serviços;

[…]»

11.      O artigo 2.° do regulamento dispõe:

«1.      São congelados todos os fundos e recursos económicos que sejam propriedade das pessoas singulares ou colectivas, grupos ou entidades designados pelo [c]omité de [s]anções e enumerados no [A]nexo I, ou que por eles sejam possuídos ou detidos.

2.      Os fundos não devem ser, directa ou indirectamente, colocados à disposição nem utilizados em benefício de pessoas singulares ou colectivas, grupos ou entidades designados pelo [c]omité de [s]anções e enumerados no [A]nexo I.

3.      Os recursos económicos não devem ser, directa ou indirectamente, colocados à disposição nem utilizados em benefício de pessoas singulares ou colectivas, grupos ou entidades designados pelo [c]omité de [s]anções e enumerados no [A]nexo I, de forma a que essas pessoas, grupos ou entidades possam vir a beneficiar de fundos, bens ou serviços.»

12.      O artigo 8.° do regulamento é do teor seguinte:

«A Comissão e os Estados‑Membros devem informar‑se recíproca e imediatamente das medidas adoptadas por força do presente regulamento e comunicar entre si todas as informações pertinentes de que disponham no contexto do presente regulamento […]»

13.      O artigo 10.°, n.° 1, do regulamento prevê que:

«Cada Estado‑Membro determina as sanções a aplicar em caso de violação das disposições do presente regulamento. Essas sanções devem ser eficazes, proporcionais e dissuasivas.»

14.      O Anexo I do regulamento contém a «lista das pessoas, grupos e entidades» referidos no seu artigo 2.°

15.      Em 27 de Fevereiro de 2003, o Conselho adoptou as medidas legislativas necessárias para aplicar as derrogações para fins humanitários previstas na Resolução 1452 (2002) do Conselho de Segurança, mencionada no n.° 5 das presentes conclusões, ou seja, a Posição Comum 2003/140/PESC, relativa às derrogações às medidas restritivas impostas pela Posição Comum 2002/402 (5), e o Regulamento (CE) n.° 561/2003, que altera, no referente às excepções ao congelamento de fundos e de recursos económicos, o Regulamento n.° 881/2002 (6).

16.      O artigo 1.° do Regulamento n.° 561/2003 insere no Regulamento n.° 881/2002 um artigo 2.°‑A, cujos n.os 1 e 2 dispõem:

«1.      O disposto no artigo 2.° não se aplica aos fundos ou recursos económicos quando:

a)      Qualquer uma das autoridades competentes dos Estados‑Membros referidas no [A]nexo II determinar, a pedido de uma pessoa singular ou colectiva interessada, que esses fundos ou recursos económicos:

i)       são necessários para cobrir despesas de base, incluindo os pagamentos de comida, rendas ou empréstimos hipotecários, medicamentos e tratamentos médicos, impostos, apólices de seguro e serviços públicos,

ii)       se destinam exclusivamente ao pagamento de honorários profissionais razoáveis e ao reembolso de despesas associadas com a prestação de serviços jurídicos,

iii)  se destinam exclusivamente ao pagamento de encargos ou taxas de serviços correspondentes à manutenção ou gestão normal de fundos ou de recursos económicos congelados, ou

iv)       são necessários para cobrir despesas extraordinárias; e

b)      Essa determinação tiver sido notificada ao [c]omité de [s]anções e:

c)      i) no caso de uma determinação ao abrigo da subalínea i), ii) ou iii) da alínea a), o [c]omité de [s]anções não tiver, no prazo de 48 horas após a notificação, emitido objecções à determinação; ou

ii) no caso de uma determinação ao abrigo da subalínea iv) da alínea a), o [c]omité de [s]anções tiver aprovado a determinação.

2.      Quem pretenda beneficiar do disposto no n.° 1 deve apresentar um requerimento à autoridade competente do Estado‑Membro referida no [A]nexo II. A autoridade competente referida no [A]nexo II deve notificar rapidamente por escrito o requerente, bem como quaisquer outras pessoas, organismos ou entidades reconhecidos como directamente interessados, de que o requerimento foi ou não deferido. A autoridade competente deve também informar os restantes Estados‑Membros de que o requerimento de isenção foi ou não deferido.»

C –    A legislação nacional relevante

17.      À luz do despacho de reenvio e das observações apresentadas pelas partes no presente processo, a legislação nacional relevante pode ser referida nos seguintes termos.

18.      O Reino Unido transpôs as Resoluções 1390 (2002) e 1490 (2002) do Conselho de Segurança e o Regulamento n.° 881/2002, para a sua ordem jurídica, através do Al‑Qa’ida and Taliban (United Nations Measures) Order 2002 (7) (a seguir «Decreto de 2002»). Este decreto foi alterado pelo Al‑Qa’ida and Taliban (United Nations Measures) Order 2006 (8) (a seguir «Decreto de 2006»), que entrou em vigor em 16 de Novembro de 2006 e que – conforme resulta da nota explicativa anexa ao mesmo – promoveu a aplicação, designadamente, do Regulamento n.° 561/2003 (9).

19.      O artigo 7.° do Decreto de 2002, sob a epígrafe «Fundos colocados à disposição de Osama Bin Laden e dos seus associados», tem a seguinte redacção:

«Quem, sem ter obtido autorização do Treasury nos termos do presente artigo, colocar fundos à disposição de ou utilizá‑los em benefício de uma pessoa inscrita na lista, ou de pessoa que tenha agido por conta de uma pessoa inscrita na mesma, comete uma infracção penal nos termos do presente decreto» (10).

20.      Por força do artigo 20.°, n.° 1, do Decreto de 2002, sob a epígrafe «Penas e procedimentos», quem violar aquela disposição é punido com uma pena pecuniária e/ou com prisão até 7 anos.

21.      O artigo 8.° do Decreto de 2006, que – a partir de 16 de Novembro de 2006 – substituiu o artigo 7.° do Decreto de 2002, dispõe o seguinte:

«1.      É proibido colocar, directa ou indirectamente, fundos ou recursos económicos à disposição de ou utilizá‑los em benefício de uma pessoa indicada no artigo 7.°, n.° 2, sem ter obtido autorização nos termos do artigo 11.°

2.      Quem violar a proibição prevista no n.° 1 comete uma infracção penal.

[…]»

22.      O artigo 11.° do Decreto de 2006, sob a epígrafe «Autorizações», dispõe que:

«1.      O Treasury pode conceder uma autorização para efeitos de isentar os actos aí especificados das proibições nos artigos 7.°, n.° 1, ou 8.°, n.° 1.

2.      Pode ser concedida uma autorização

(a)      geral ou concedida a uma categoria de pessoas ou a uma pessoa em particular;

(b)      sujeita a condições;

(c)      com duração determinada ou indeterminada;

3.      O Treasury pode alterar ou revogar a autorização a todo o tempo.

4.      Ao conceder, alterar ou revogar a autorização, o Treasury deve:

(a)      no caso de a autorização ter sido concedida a uma pessoa em particular, notificar essa pessoa, por escrito, da concessão, autorização ou revogação, e

(b)      no caso de uma autorização de carácter geral ou concedida a uma categoria de pessoas, tomar as medidas que considere adequadas para tornar pública a sua concessão, alteração ou revogação.

5.      Quem, para efeitos de obter uma autorização, intencionalmente ou por negligência, prestar uma declaração ou fornecer documentos ou informações que sejam falsos, sobre uma questão relevante comete uma infracção penal.

6.      Quem tiver agido com base numa autorização e não tiver respeitado as condições aqui previstas comete uma infracção penal.»

23.      O artigo 20.°, n.° 3, do Decreto de 2006 dispõe que, nos casos em que uma autorização concedida pelo Treasury nos termos do artigo 7.° do Decreto de 2002 tenha produzido efeitos imediatamente antes da entrada em vigor do Decreto de 2006, a referida autorização continua a aplicar‑se como se tivesse sido concedida nos termos do artigo 11.° do Decreto de 2006.

III – Matéria de facto, questão prejudicial e tramitação processual

24.      As recorrentes na causa principal, residentes no Reino Unido, vivem com os seus cônjuges e os seus filhos menores. Os cônjuges das recorrentes estão mencionados como pessoas singulares na lista constante do Anexo I do regulamento.

25.      Das alegações do Governo do Reino Unido decorre que o marido de uma das recorrentes recebe das autoridades desse país um subsídio de deficiente, que é actualmente depositado numa conta bancária aberta em nome da mulher, ao passo que os maridos das outras duas recorrentes não recebem nenhuma prestação de segurança social e/ou de previdência. Resulta dos autos que, do ponto de vista económico, estas pessoas dependem unicamente dos seus cônjuges, ou seja, das recorrentes, as quais provêem à satisfação das necessidades essenciais da família.

26.      Em virtude da sua situação pessoal, as recorrentes têm direito a receber, a cargo dos competentes organismos administrativos do Reino Unido (HM Revenue and Customs e Secretary of State for Work and Pensions), uma série de prestações especiais de carácter não contributivo (subsídio de integração, pensão de subsistência para deficientes, prestações familiares, subsídio de habitação, prestação compensatória do imposto local), no montante de algumas centenas de libras esterlinas por semana.

27.      Em Julho de 2006, o Treasury, recorrido na causa principal, após ter verificado que as importâncias pagas às recorrentes podiam se destinar a cobrir as despesas de base da família, da qual faz parte uma pessoa incluída na lista anexa ao regulamento, e entendendo, por isso, que tais importâncias poderiam ser consideradas «utilizadas em benefício» destas últimas, na acepção do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento, assim como do artigo 7.° do Decreto de 2002, decidiu sujeitar, para o futuro, o pagamento das prestações respeitantes às recorrentes à concessão de uma autorização dos organismos administrativos competentes para o pagamento, com duração indeterminada.

28.      Esta autorização está sujeita a algumas regras, que diferem consoante os casos, com vista a permitir às recorrentes disporem da conta bancária onde são depositados os subsídios, de modo a obterem os montantes necessários para satisfazer as necessidades essenciais da sua família. Em particular, a autorização impõe limites ao levantamento de dinheiro líquido e à utilização de cartões de débito nas aquisições assim como a obrigação de enviar ao Treasury, todos os meses, os talões relativos às despesas efectuadas, de modo a permitir verificar que estas não excedem o estritamente indispensável para cobrir as necessidades básicas da família. Além disso, a autorização adverte as recorrentes de que a colocação de fundos e/ou recursos económicos à disposição dos respectivos cônjuges, inscritos na lista, constitui crime punível nos termos da legislação penal nacional.

29.      Considerando que o regime assim estabelecido não se devia aplicar ao seu caso concreto, as recorrentes submeteram o assunto à High Court, para obter a sua cessação. Segundo o seu ponto de vista, o pagamento de prestações de segurança social e de previdência ao cônjuge de uma pessoa inscrita na lista constante do Anexo I do regulamento está excluída do âmbito de aplicação do artigo 2.° desse diploma e, em consequência, não está sujeito à autorização prevista no artigo 2.°‑A.

30.      A High Court julgou improcedente o pedido das recorrentes, considerando que o pagamento de subsídios ao cônjuge de uma pessoa incluída na lista podia ser configurada como utilização de fundos, de forma indirecta, em benefício dessa pessoa, sendo, portanto, abrangido pela proibição estabelecida no artigo 2.°, n.° 2, do regulamento. As recorrentes interpuseram recurso da decisão da High Court. Em 6 de Março de 2007, a Court of Appeal negou provimento ao recurso, acolhendo in toto a fundamentação do tribunal de primeira instância.

31.      As recorrentes interpuseram assim, em última instância, recurso para a House of Lords, cujo Appellate Committee apresentou, em 21 de Fevereiro de 2008, um relatório no qual realçava que o recurso suscitava várias questões quanto à interpretação do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento e, particularmente, quanto à questão de saber se a expressão «em benefício de», usada nessa disposição, devia ser entendida em sentido amplo, abrangendo assim qualquer utilização de dinheiro de que as pessoas indicadas possam tirar proveito, ou se, ao invés, se refere apenas à hipótese de os fundos e/ou recursos económicos serem «expressamente colocados à disposição das referidas pessoas que poderão assim decidir livremente o seu uso».

32.      No despacho de reenvio, a House of Lords reconhece que uma autorização nos termos do artigo 2.°‑A se torna seguramente necessária para pagar as prestações sociais e de previdência aos cônjuges das recorrentes, assim como para permitir que estas coloquem fundos e recursos económicos à disposição dos seus cônjuges; observa, contudo, que o problema que se põe no caso presente é antes o de saber se deve haver uma autorização para pagar as prestações sociais e de previdência às recorrentes.

33.      Segundo aquele órgão jurisdicional, uma interpretação demasiado ampla da expressão «em benefício de», constante do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento, estaria em contraste com o n.° 3 do mesmo artigo, o qual proíbe que sejam colocados recursos económicos à disposição de uma pessoa designada, apenas na medida em que tal permita a essa pessoa «beneficiar de fundos, bens ou serviços». Esta condição, que a House of Lords considera coerente com os objectivos da Resolução 1390 (2002), também deveria ser aplicável no contexto do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento, tendo em conta igualmente a circunstância de o n.° 2, alínea a), da resolução não estabelecer nenhuma distinção entre fundos e recursos económicos.

34.      Por outro lado, acolher a interpretação do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento efectuada pelo Treasury conduziria a um resultado desproporcionado, na medida em que implica que quem pagar dinheiro ao cônjuge de uma pessoa designada (por exemplo, o seu empregador ou mesmo o seu banco) tenha de obter uma autorização nos termos do artigo 2.°‑A do regulamento, simplesmente em virtude do facto de os dois viverem juntos e de a pessoa designada poder tirar proveito das despesas efectuadas pelo cônjuge.

35.      A House of Lords considera ainda que as regras impostas pelo Treasury para a concessão da autorização constituem um regime «intrusivo». Os termos da autorização estão, com efeito, estabelecidos de modo a impedir, em substância, o cônjuge de gastar qualquer importância em dinheiro, independentemente dos seus rendimentos próprios, sem ter obtido a prévia autorização do Treasury.

36.      Finalmente, o órgão jurisdicional de reenvio observa que o artigo 2.°‑A do regulamento faz referência a pagamentos efectuados em benefício de uma pessoa designada, ao passo que a questão que se coloca na causa principal consiste em determinar se o pagamento de subsídios a pessoas não inscritas na lista exige uma autorização prévia devido ao facto de as respectivas importâncias virem a ser parcialmente gastas em benefício de uma pessoa designada.

37.      Com base nas considerações expostas, a House of Lords, por despacho de 30 de Abril de 2008, suspendeu a instância para submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 2.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 881/2002 do Conselho é aplicável à concessão pelo Estado de prestações de segurança social ou de benefícios da assistência social ao cônjuge de uma pessoa designada pelo comité de sanções instituído nos termos da Resolução 1267 (1999) das Nações Unidas, com o único fundamento de que o cônjuge reside com a pessoa designada e utilizará ou poderá utilizar uma parte desse montante para o pagamento de bens e serviços que aquela consumirá ou dos quais beneficiará?»

38.      Em conformidade com o artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, as recorrentes na causa principal, os Governos do Reino Unido e estónio e a Comissão apresentaram observações escritas no presente processo,.

39.      Na audiência, que teve lugar em 11 de Novembro de 2009, apresentaram alegações orais as recorrentes, o Governo do Reino Unido e a Comissão.

IV – Observações apresentadas no Tribunal de Justiça

40.      Segundo as recorrentes na causa principal, a decisão do Treasury, de fazer depender o pagamento dos subsídios que lhes dizem respeito da concessão de uma autorização, acompanhada de regras particularmente restritivas, tem como efeito equiparar a sua situação à de uma pessoa designada, embora não estejam inscritas na lista e nem sequer sejam suspeitas de desenvolver uma actividade terrorista.

41.      As recorrentes observam que os subsídios em causa se destinam, designadamente, a prestar assistência em espécie aos seus cônjuges inscritos na lista. Desta forma, a recorrentes não colocam fundos à disposição destes; é, portanto, de excluir que, ao pagar às recorrentes importâncias em dinheiro, as autoridades competentes coloquem fundos indirectamente à disposição dos seus cônjuges, na acepção do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento. Também não se pode sustentar que, dessa forma, sejam postos recursos económicos à disposição de uma pessoa designada: com efeito, o artigo 2.°, n.° 3, exclui do seu âmbito de aplicação os recursos económicos que não permitem a uma pessoa inscrita na lista obter fundos, bens ou serviços («recursos isentos»). As recorrentes são de opinião de que uma interpretação do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento que amplie o alcance desta disposição a fundos colocados à disposição de terceiros, apenas por estes fundos poderem ser utilizados para obter, a favor de uma pessoa designada, recursos isentos, não é coerente com essa exclusão.

42.      A este propósito, as recorrentes acrescentam que a interpretação do artigo 2.°, n.° 3, do regulamento que propõem não seria contrária à efectuada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Möllendorf (11), que interpretou o alcance da proibição constante dessa disposição em termos amplos: com efeito, o bem sobre o qual incidia esse processo representava um «recurso económico», na acepção do artigo 2.°, n.° 3, do regulamento, na medida em que podia ser utilizado pela pessoa designada para financiar actividades terroristas. Ao invés, as restrições à obtenção de fundos pelas recorrentes não têm em vista impedir o financiamento das referidas actividades.

43.      As recorrentes sublinham, finalmente, que a interpretação do artigo 2.° do regulamento feita pelo Treasury lesa os seus direitos fundamentais, em particular o direito ao respeito dos bens e o direito ao respeito da vida privada e familiar. No que se refere a este último, as restrições impostas pelo regime de autorização não são proporcionadas aos fins prosseguidos e as razões aduzidas como justificação de tais restrições não são pertinentes nem suficientes de acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (12). Da mesma forma, no que se refere ao direito de propriedade, as recorrentes consideram que, tal como no processo Kadi (13), no presente processo, se deve perguntar se as restrições significativas impostas a esse direito se podem considerar justificadas e proporcionadas.

44.      O Governo do Reino Unido, com base numa interpretação literal do artigo 2.°, n.° 2, em particular da expressão «em benefício de», baseada no significado corrente dos termos usados, sustenta que a proibição estabelecida nessa norma é extensiva a qualquer colocação à disposição de fundos de que uma pessoa designada possa tirar proveito, independentemente da circunstância de os fundos em causa serem utilizados para fornecer a essa pessoa fundos ou recursos económicos; no caso presente, uma vez que as importâncias pagas às recorrentes são por estas utilizadas para suportar as despesas necessárias, designadamente, também à manutenção dos seus cônjuges, é evidente que, ao pagar às recorrentes as prestações de segurança social e de previdência, as autoridades competentes disponibilizam fundos em benefício dos seus cônjuges, na acepção da disposição em análise. No decurso da audiência no Tribunal de Justiça, este governo veio precisar que o artigo 2.°, n.° 2, do regulamento se aplica ao pagamento dos subsídios em questão, dado que estes últimos são, pela sua natureza e independentemente da sua utilização efectiva, destinados a beneficiar uma pessoa designada. Com efeito, destinam‑se a prover às necessidades do núcleo familiar de que aquela pessoa faz parte e são determinados, quanto ao seu montante, em função do número de membros desse núcleo, incluindo a pessoa designada.

45.      Esta interpretação é, portanto, conforme com a letra e a finalidade da Resolução 1390 (2002) do Conselho de Segurança, em que as proibições são formuladas em termos particularmente latos – como aliás foi afirmado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça (14) – e destinadas a privar de apoio económico as pessoas inscritas na lista.

46.      Segundo o Reino Unido, se qualquer pessoa pudesse assumir as despesas de base de uma pessoa designada, tornar‑se‑ia inútil a previsão derrogatória do artigo 2.°‑A do regulamento, o qual dispõe que não apenas a pessoa designada mas também qualquer «pessoa singular ou colectiva interessada» deve obter uma autorização para utilizar fundos ou disponibilizar fundos, com o fim de prover às despesas de base de uma pessoa designada.

47.      Além disso, no entender do Reino Unido, a condição contida no artigo 2.°, n.° 3, que proíbe que sejam colocados recursos económicos à disposição de uma pessoa inscrita na lista, apenas na medida em que tal tenha como efeito permitir a essa pessoa «beneficiar de fundos, bens ou serviços», não seria aplicável no contexto do n.° 2 do mesmo artigo: com efeito, pela sua natureza, os fundos são caracterizados por uma maior liquidez relativamente aos recursos económicos e, assim, estão por esta razão sujeitos a um regime mais restritivo.

48.      No que se refere às consequências «excessivamente severas» que do regime de autorização resultam para as recorrentes, o Reino Unido realça, por um lado, que as proibições impostas pelo regulamento são susceptíveis, intrinsecamente, de produzir efeitos prejudiciais em relação a terceiros (15) e, por outro, que essas consequências dependem, na realidade, das regras de autorização impostas nos termos da legislação nacional.

49.      Finalmente, em resposta ao argumento das recorrentes, segundo o qual uma interpretação ampla do artigo 2.°, n.° 2, faria com que as proibições aí previstas abrangessem também i) o salário pago ao cônjuge de uma pessoa designada ou a um membro da sua família assim como ii) as dotações atribuídas a uma associação de beneficência que fornece assistência a uma pessoa designada, o Reino Unido realça que, contrariamente ao caso presente, em nenhuma dessas duas hipóteses subsiste, entre a colocação à disposição de fundos e o benefício que daí retira a pessoa designada, um «nexo» suficiente para justificar a aplicação da norma em questão.

50.      O Governo estónio entende que o pagamento de subsídios ao cônjuge de uma pessoa designada não integra o âmbito de aplicação do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento e, portanto, não deve ser autorizado. Segundo este governo, uma interpretação daquela disposição que limite o recebimento, por parte de terceiros não inscritos na lista, de fundos que lhes pertencem conduziria, de facto, a equiparar estes últimos às pessoas designadas.

51.      Uma interpretação que equipare o pagamento de fundos a um terceiro, ligado a uma pessoa inscrita na lista por laços familiares ou de outro género, à colocação de fundos à disposição dessa pessoa ou à atribuição de benefícios a ela nem sequer é sustentada pela letra e pela finalidade da Resolução 1390 (2002), que dispõe que só as pessoas inscritas na lista elaborada pelo comité de sanções podem ser sujeitas ao regime de sanções aí previsto.

52.      O Governo estónio observa ainda que, em relação a um terceiro que tenha violado as disposições do regulamento, é aplicável a legislação penal nacional e que, na hipótese de o terceiro em questão participar, através de uma pessoa designada, em actividades terroristas, deverá propor‑se a sua inscrição na lista, para que também ele fique sujeito ao regime de sanções previsto no regulamento.

53.      Em qualquer caso, conclui o Governo estónio, mesmo admitindo que o regulamento permite restringir o acesso dos terceiros aos seus próprios fundos, as regras de autorização impostas pelo Treasury constituem uma ingerência indevida na vida privada das recorrentes, que não só não encontra justificação no perigo potencialmente representado pelo comportamento do terceiro (com efeito, não é realista pôr a hipótese de, através de um subsídio cujo montante permite apenas satisfazer as necessidades essenciais de uma família, se poder financiar uma actividade terrorista) como também se revela desproporcionada, na medida em que poderia ser evitada recorrendo a alternativas menos lesivas dos direitos fundamentais das recorrentes.

54.      A Comissão sustenta que o pagamento de subsídios às recorrentes, que os utilizam para prestar aos cônjuges uma assistência em espécie, está abrangido pelo âmbito de aplicação das proibições previstas no artigo 2.° do regulamento e, em consequência, necessita de autorização específica. A Comissão chega a esta conclusão com base na análise da letra e da finalidade do artigo 2.° do regulamento e da Resolução 1390 (2002), assim como do regime de derrogações introduzido no regulamento pelo artigo 2.°‑A.

55.      Segundo a Comissão, o legislador comunitário pretendeu conferir às disposições contidas no artigo 2.° do regulamento um alcance o mais amplo possível, a fim de instituir um regime de sanções financeiras exaustivo e radical. Isto decorre não apenas da letra daquela disposição mas também da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no acórdão Möllendorf (16), acolheu uma interpretação extensiva do artigo 2.°, n.° 3, do regulamento que, no entender da Comissão, deve, em princípio, aplicar‑se também ao artigo 2.°, n.° 2.

56.      Para efeitos da interpretação do regulamento, dever‑se‑ia, portanto, ter em vista a Resolução 1390 (2002), que, ao prosseguir os objectivos de interesse geral de luta contra o terrorismo e da manutenção da paz e da segurança internacionais, está redigida em termos excepcionalmente amplos e tem em vista impedir qualquer apoio económico às pessoas inscritas na lista. A Comissão sublinha que não há nenhuma indicação, no regulamento ou na resolução, de uma obrigação de os Estados‑Membros verificarem, antes de dar execução às proibições aí previstas, que não subsiste nenhum risco concreto de os fundos ou os recursos económicos serem desviados para fins terroristas; esta condição comportaria o risco de contornamento das medidas restritivas impostas assim como sérias dificuldades de apreciação e aplicação.

57.      A própria introdução, através do artigo 2.°‑A, de um regime de derrogações de carácter humanitário – respeitantes, designadamente, aos fundos e recursos económicos «necessários para cobrir despesas de base» – mostra claramente que o fornecimento de alojamento, comida e outros bens de primeira necessidade a uma pessoa inscrita na lista, pelo próprio cônjuge, está abrangido, em princípio, pelas proibições do artigo 2.° do regulamento; consequentemente, só poderá ser autorizado nas condições especificadas no artigo 2.°‑A e de acordo com o procedimento aí previsto. A Comissão admite que as recorrentes não estão inscritas na lista, mas recorda que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as medidas restritivas de carácter económico podem, pela sua natureza, ter consequências prejudiciais para os terceiros, consequências essas que, no entanto, se justificam pela relevância dos objectivos prosseguidos.

58.      A Comissão considera que compete ao órgão jurisdicional de reenvio apurar se, no contexto do caso presente, as regras concretas do regime de autorização nacional adoptado em execução do artigo 2.°‑A não representam uma violação desproporcionada dos direitos fundamentais das recorrentes.

59.      Dado que o montante das prestações pagas às recorrentes é calculado com toda a atenção, ex ante, de modo a fornecer o mínimo indispensável à sobrevivência, a Comissão questiona‑se, finalmente, sobre se será necessário também garantir, ex post, que tais importâncias não sejam gastas para outros fins. Em sua opinião, poderia recorrer‑se a um mecanismo menos intrusivo, por exemplo, prevendo que os Estados‑Membros cumpram escrupulosamente as obrigações de informação previstas no artigo 8.° do regulamento. Além disso, a Comissão realça que, no Reino Unido, não parece ser exigida autorização para se poder pagar às recorrentes eventuais rendimentos de trabalho, quando, em rigor lógico, a origem dos fundos recebidos não devia entrar em linha de conta para efeitos da aplicação das proibições estabelecidas no regulamento.

V –    Análise jurídica

A –    Quanto à questão prejudicial

1.      Observações preliminares

60.      Através da presente questão prejudicial, a House of Lords pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se o alcance do artigo 2.°, n.° 2, do Regulamento n.° 881/2002 é extensivo ao pagamento das prestações de segurança social e de previdência respeitantes ao cônjuge de uma pessoa inscrita na lista anexa ao regulamento, simplesmente devido à circunstância de os dois cônjuges viverem juntos e de as prestações em causa serem ou poderem ser, em parte, utilizadas em benefício daquela pessoa.

61.      A questão submetida ao Tribunal de Justiça consiste, portanto, em determinar se, como sugere o Treasury, ao pagar subsídios às recorrentes, que utilizarão as importâncias recebidas, designadamente, para prestar assistência em espécie aos respectivos cônjuges, as autoridades competentes do Reino Unido colocam, directa ou indirectamente, fundos à disposição de uma pessoa designada ou disponibilizam fundos em benefício da mesma, violando assim as proibições estabelecidas no artigo 2.° do regulamento, ou se, ao invés, como sustentam as recorrentes na causa principal e o órgão jurisdicional de reenvio parece considerar, os pagamentos em questão não são abrangidos pelo âmbito de aplicação desse artigo.

62.      Antes de passar ao exame do seu conteúdo, há que avançar alguns esclarecimentos acerca da esfera de aplicação subjectiva dessa disposição e dos efeitos que pode exercer nas pessoas não inscritas na lista anexa ao regulamento.

63.      A este propósito, deve antes de mais realçar‑se que, para dar execução às medidas contidas nas resoluções do Conselho de Segurança, a Comunidade recorreu ao instrumento do regulamento, apto para ter eficácia directa, para além de uniforme, em relação a todas as pessoas e entidades estabelecidas no território comunitário. Ao prever a proibição de colocar, directa ou indirectamente, fundos ou recursos económicos à disposição das pessoas designadas e de disponibilizar os primeiros ou utilizar os segundos em benefício dessas pessoas, o artigo 2.° do Regulamento n.° 881/2002 vincula, assim, quem quer que se encontre na condição de concretizar tais comportamentos. No que se refere ao caso presente, em que concorrem os pressupostos para a sua aplicação, a observância dessa proibição impõe‑se, assim, tanto às entidades que pagam os subsídios em questão como às recorrentes.

64.      Deve depois observar‑se que, no acórdão Bosphorus (17), o Tribunal de Justiça, por um lado, declarou que a importância dos objectivos prosseguidos mediante a adopção de uma medida de sanção aprovada em execução de resoluções vinculativas do Conselho de Segurança (18) é susceptível de justificar «consequências negativas, mesmo consideráveis», «causando assim prejuízos às partes que não têm qualquer responsabilidade na situação que levou à adopção das sanções» (19) e, por outro, recordou que, segundo jurisprudência constante, os direitos fundamentais invocados pela recorrente no processo nacional que deu origem à decisão «não se apresentam como prerrogativas absolutas e o seu exercício pode ser objecto de restrições justificadas por objectivos de interesse geral prosseguidos pela Comunidade» (20). Sublinha‑se igualmente que, embora a jurisprudência posterior do Tribunal de Justiça, a partir do acórdão Kadi (21), se caracterize por uma atenção mais relevante à protecção dos direitos fundamentais, esta jurisprudência não repõe, todavia, em discussão o princípio segundo o qual um regulamento que prevê a adopção de medidas de sanção – como as em causa no acórdão Bosphorus e no presente processo – pode implicar consequências negativas para pessoas diversas daquelas a quem as sanções previstas se destinam.

65.      Daqui decorre que, apesar de não figurarem entre as pessoas incluídas na lista anexa ao regulamento e de não lhes poder ser extensivo o juízo de perigosidade expresso em relação àquelas, pelo simples facto de serem casadas e viverem com pessoas cujo nome aparece na referida lista, as recorrentes na causa principal não deixam de ser passíveis de sofrer eventuais prejuízos derivados da aplicação das proibições constantes do artigo 2.° do regulamento.

66.      Há que recordar, finalmente, que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as restrições aos direitos fundamentais justificáveis face a exigências de interesse público, como as que derivam da luta contra o terrorismo internacional, não podem representar, de maneira nenhuma, relativamente ao objectivo prosseguido, uma interferência intolerável e desproporcionada, susceptível de lesar a própria substância dos direitos garantidos (22).

67.      Assim, caso se chegue à conclusão de que se verificam os pressupostos objectivos para aplicação das proibições do artigo 2.° do regulamento aos subsídios em questão e que o pagamento destes deve ser autorizado nos termos do artigo 2.°‑A, as condições para a concessão dessa autorização pelas autoridades competentes do Reino Unido devem respeitar o já referido princípio da proporcionalidade. Neste contexto, entra em linha de conta não apenas o direito das recorrentes à protecção dos seus bens mas também o direito ao respeito da sua vida privada e familiar (23).

68.      Não entro, todavia, na apreciação de mérito dessa questão, dado que, no presente processo, o Tribunal de Justiça não é chamado a pronunciar‑se sobre a eventual violação do referido princípio.

2.      Quanto ao alcance da proibição prevista no artigo 2.°, n.° 2, do Regulamento n.° 881/2002

69.      Passando a analisar o conteúdo do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento, importa esclarecer o alcance da proibição nele prevista, a fim de determinar se tal proibição é aplicável nas circunstâncias da causa principal.

70.      A este propósito, importa referir, a título liminar, que, no processo principal, não é controvertida a qualificação dos subsídios pagos às recorrentes como «fundos»: por outras palavras, ao pagar às recorrentes importâncias em dinheiro a título de prestações de segurança social e previdência, os organismos que as pagam colocam fundos à sua disposição, na acepção do artigo 1.°, n.° 1, do regulamento, e não «recursos económicos», na acepção do n.° 2.

71.      Seguidamente, observo que, segundo o que decorre dos autos, as importâncias em questão são depositadas numa conta corrente aberta em nome das recorrentes, ou detida pelo Treasury em nome e por conta das mesmas. Esta circunstância leva a excluir que, através do pagamento de prestações às recorrentes, sejam directamente colocados fundos à disposição dos seus cônjuges, inscritos na lista constante do Anexo I do regulamento.

72.      Também não me parece que, ao pagar às recorrentes as prestações em causa, não havendo elementos que permitam, pelo menos, presumir que entregarão total ou parcialmente as respectivas importâncias aos seus cônjuges, os organismos pagadores coloquem indirectamente fundos à disposição de uma pessoa designada. Com efeito, estas importâncias são pagas às recorrentes e só podem ficar à disposição dos respectivos cônjuges se as próprias recorrentes as transferirem para eles. Ora, no decurso da tramitação nas diversas instâncias nos órgãos jurisdicionais nacionais, incluindo no processo principal, nunca foi controvertida a circunstância de as recorrentes não terem agido nesse sentido. De resto, há apenas que observar que tal transferência configuraria uma hipótese de inobservância da proibição estabelecida no artigo 2.°, n.° 2, do regulamento, de colocar fundos directamente à disposição de uma pessoa designada, e exporia as recorrentes, na falta de autorização nos termos do artigo 2.°‑A desse regulamento, às sanções previstas na legislação nacional de transposição.

73.      Na realidade, a necessidade de sujeitar o pagamento dos subsídios às recorrentes à concessão de uma autorização é apresentada pelo Treasury, não tanto porque este considere que existe a possibilidade, mais ou menos remota, de colocarem as importâncias em causa à disposição dos respectivos cônjuges, mas antes em virtude do facto de essas importâncias serem utilizadas pelas recorrentes para fazerem face às despesas das respectivas famílias, cônjuges incluídos. Na opinião do Treasury (cuja tese foi acolhida pelos órgãos jurisdicionais nacionais de primeira e de segunda instância), ao pagar os subsídios às recorrentes, os organismos pagadores, embora não colocando (directa ou indirectamente) fundos à disposição dos cônjuges daquelas, disponibilizam‑nos em benefício destes, na acepção do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento.

74.      A dúvida de interpretação incide, portanto, sobre o alcance da proibição de utilizar fundos «em benefício de» uma pessoa designada, contida no artigo 2.°, n.° 2, do regulamento. Para dar resposta ao órgão jurisdicional de reenvio, é portanto necessário verificar se, como sustenta o recorrido na causa principal, a proibição em questão deve ser entendida em sentido amplo – isto é, extensiva a qualquer importância da qual uma pessoa designada possa tirar proveito –, ou se, ao invés, se lhe deve dar uma leitura mais restritiva, conforme propõem as recorrentes e o órgão jurisdicional nacional.

75.      Para esse fim, permito‑me sublinhar, antes de mais, que as teses interpretativas opostas avançadas pelo órgão jurisdicional de reenvio e pelas partes no tribunal a quo, tal como expostas no presente processo, têm origem na versão inglesa da disposição em exame, segundo a qual «[n]o funds shall be made available, directly or indirectly, to, or for the benefit of, a natural or legal person, group or entity designated by the Sanctions Committee and listed in Annex I».

76.      A este propósito, recordo que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as disposições de direito comunitário devem ser interpretadas e aplicadas de modo uniforme, à luz das diferentes versões linguísticas (24); a formulação utilizada numa dessas versões não pode servir como ponto de partida único para a interpretação da norma em questão, nem ser‑lhe atribuído, a esse propósito, um carácter prioritário em relação a outras versões linguísticas. Com efeito, tal solução seria incompatível com a exigência de aplicação uniforme do direito comunitário (25).

77.      Ora, o enunciado do artigo 2.°, n.° 2, resulta de uma interpretação literal incerta, em virtude da formulação não homogénea dessa disposição nas suas diferentes versões linguísticas.

78.      O Reino Unido considera que a interpretação extensiva que prefere, segundo a qual a prestação de assistência em espécie a um pessoa designada é abrangida pelo âmbito de aplicação do regulamento, pode fundar‑se na distinção, operada pelo artigo 2.°, n.° 2, entre «made available to» («colocados à disposição [...] de») e «made available for the benefit of» («utilizados em benefício de») (26). Segundo este governo, para não privar de significado a locução «for the benefit of», esta só poderá ser entendida como aplicável à hipótese em que, como no caso presente, não se colocam fundos à disposição de («made available to») pessoas designadas, mas que, todavia, beneficiam destes através de uma assistência em espécie.

79.      Esta interpretação pode também valer para todas as versões linguísticas (por exemplo, a neerlandesa, a sueca, a finlandesa, a húngara), as quais, como a inglesa, recorrem apenas à locução verbal «colocar à disposição», ao estabelecer a proibição de colocar fundos à disposição «de» pessoas designadas, assim como «em benefício» destas. Na quase totalidade das referidas versões linguísticas, também é evidente que os advérbios «directa ou indirectamente» se referem tanto à colocação à disposição «de» como à colocação à disposição «em benefício de» pessoas designadas; a norma parece assim prever a proibição de colocar fundos à disposição «de» tais pessoas (directa ou indirectamente) ou de os utilizar «em benefício» das mesmas (directa ou indirectamente).

80.      O pagamento de subsídios às recorrentes, pelas entidades pagadoras, configurar‑se‑ia então como colocação à disposição indirecta de fundos em benefício dos respectivos cônjuges.

81.      A tese acolhida pelo Reino Unido parece ser corroborada pela análise das versões linguísticas neolatinas do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento, as quais recorrem a uma expressão diferente para utilizar a locução «made available for the benefit of», ao proibir não já «colocar fundos à disposição em benefício de» tais pessoas, mas sim «utilizar» fundos «em benefício das mesmas» (27). Deste modo, o alcance da proibição contida nessa disposição estende‑se para além do simples facto de colocar fundos à disposição de uma pessoa inscrita na lista, para abranger também qualquer modalidade de utilização desses fundos, de que essa pessoa possa tirar proveito. Todavia, em todas as versões linguísticas acabadas de referir, enquanto os advérbios «directa e indirectamente» se referem claramente à proibição de «colocar fundos à disposição» de pessoas designadas, o mesmo não se pode dizer da proibição de «utilizar fundos em benefício» dessas pessoas. Com base nessas versões, portanto, a proibição não parece poder alargar‑se ao pagamento dos subsídios controvertidos às recorrentes, pois não é configurável uma «utilização indirecta» de fundos em benefício de pessoas designadas.

82.      A interpretação literal do artigo 2.°, n.° 2, tornou‑se, em seguida, ainda mais complexa, dado que algumas versões linguísticas posteriores do regulamento, embora optando também por recorrer a um termo específico para exprimir a locução «made available for the benefit of», preferiram, ao verbo «utilizar», um susceptível de dar azo a uma interpretação diversa. É o caso, por exemplo, da versão italiana, que proíbe «stanziare» fundos em benefício de pessoas designadas. Este termo, na sua acepção de «utilizar uma importância para um determinado fim», levaria a considerar, no caso em apreço, que o facto proibido pela norma se concretiza com o mero pagamento dos subsídios às recorrentes (que os utilizarão em benefício dos seus cônjuges), e isto independentemente da circunstância de os advérbios «directa ou indirectamente» se referirem não só à locução verbal «colocar à disposição de» mas também à de «utilizar em benefício de». A versão alemã da norma em exame, por seu turno, é entendida no sentido de proibir genericamente que os fundos possam «beneficiar» («zugute kommen») uma pessoa designada e não permite afirmar – mas também não excluir – que os advérbios «directa ou indirectamente» se refiram a esse verbo, deixando assim a porta aberta a uma interpretação que exclua do âmbito de aplicação do artigo 2.°, n.° 2, as hipóteses em que, como no caso presente, os fundos em causa «beneficiam» a pessoa designada de modo indirecto.

83.      Em virtude das significativas divergências acabadas de referir entre as versões linguísticas do regulamento, que dão azo a múltiplas possibilidades de interpretação, sou de opinião de que a exegese literal do artigo 2.° não fornece elementos determinantes para efeitos da reconstrução do alcance exacto das proibições que estabelece e que, portanto, é necessário examinar essa disposição à luz do seu contexto e da finalidade prosseguida pela legislação em que se integra (28).

84.      Em particular, dado que o regulamento foi adoptado para dar execução a uma resolução do Conselho de Segurança, é necessário ter em conta o texto e os objectivos desta última (29).

85.      Nos termos do n.° 2, alínea a), da Resolução 1390 (2002), «os fundos e demais activos financeiros ou recursos económicos» não podem ser «colocados à disposição, directa ou indirectamente» das pessoas incluídas na lista mencionada no n.° 3, supra (30). A proibição assim imposta, formulada em termos de particular amplitude, destina‑se, portanto, a prevenir qualquer colocação à disposição de fundos, activos ou recursos económicos em benefício de pessoas inscritas na lista mencionada no n.° 3, supra, assim como a impedir que estas possam daí tirar benefício (31).

86.      Tendo em conta a finalidade da luta contra o terrorismo internacional, prosseguida pela resolução em causa, essa proibição deve no entanto ser entendida como tendo por objectivo prevenir a utilização de fundos e recursos económicos por pessoas inscritas na referida lista, para fins terroristas. Esta leitura, para além de ser corroborada pela versão francesa do n.° 2, alínea a), da resolução – segundo o qual a proibição de disponibilizar fundos «em benefício de» pessoas designadas visa impedir que estas se possam servir de tais fundos «pour les fins qu’ils poursuivent» –, é confirmada pela Resolução 1822 (2008) do Conselho de Segurança, de 30 de Junho de 2008, que, após ter remetido, no n.° 1, alínea a), para as proibições estabelecidas no n.° 2, alínea a), da Resolução 1390 (2002), especifica que as proibições em causa se aplicam «aos recursos económicos e financeiros de qualquer tipo […] utilizados para apoiar a Al‑Qaida, Osama Bin Laden e os talibãs» (32).

87.      Partindo de uma interpretação do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento, que tenha devidamente em conta a finalidade da Resolução 1390 (2002), resulta portanto que, para além da terminologia utilizada nas suas várias versões linguísticas, essa disposição visa disciplinar as diversas modalidades mediante as quais se pode concretizar a obtenção de fundos por pessoas inscritas na lista, com o fim de dar um alcance o mais extenso possível à proibição de essas pessoas obterem, de modo directo ou indirecto, o poder de dispor dos fundos em causa, e evitar assim que estes sejam desviados para fins terroristas. Neste sentido se pronunciou também o Tribunal de Justiça no acórdão Kadi (33), no qual vem declarado que «a finalidade essencial e o objecto do regulamento controvertido é combater o terrorismo internacional, em particular, retirar‑lhe os seus recursos financeiros congelando os fundos e os recursos económicos das pessoas ou entidades suspeitas de estarem envolvidas em actividades ligadas ao terrorismo».

88.      Não me parece então correcto afirmar, como o Treasury, que a finalidade da resolução (e do regulamento) é retirar qualquer forma de apoio económico às pessoas inscritas na lista constante do Anexo I do regulamento. É certo que as proibições contidas naqueles actos estão formuladas em termos amplos, mas apenas têm aplicação na medida em que visem impedir que tais pessoas utilizem os seus fundos e recursos económicos para fins terroristas e que obtenham fundos e recursos económicos de terceiros, de modo directo ou indirecto, para utilizar no prosseguimento desses fins.

89.      É por esta razão que estou inclinado a partilhar das reservas expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio relativamente à efectiva possibilidade de dar ao conceito «utilizados em benefício de», contido no artigo 2.°, n.° 2, do regulamento, uma interpretação que alargue o seu alcance ao pagamento a terceiros de fundos susceptíveis de serem utilizados para cobrir as despesas de base de uma pessoa designada. Com efeito, dificilmente se coloca a hipótese de a concessão de subsídios destinados a prover às necessidades de um núcleo familiar, e que são efectivamente utilizados para tal fim, com regras que permitem que a pessoa designada obtenha daí unicamente um benefício em espécie, comportar um risco de desvio de fundos para actividades terroristas. Isto, por maioria de razão, nas circunstâncias do caso presente, em que é paga às recorrentes uma quantia módica, cuidadosamente calculada ex ante, de modo a fornecer apenas o estritamente necessário à sobrevivência da família.

90.      Pelas razões acima expostas, não me convence a tese sustentada pelo Reino Unido (34), tese que, em minha opinião, peca por excessivo formalismo. É certo que, como sustenta aquele governo, os subsídios em questão, na medida em que são concedidos em benefício do núcleo familiar de uma pessoa inscrita no Anexo I do regulamento e determinados em função das necessidades de todos os membros desse núcleo, são, pela sua própria natureza e independentemente da sua utilização concreta, destinados a beneficiar aquela pessoa. Todavia, é igualmente verdade que a função dos referidos subsídios é, independentemente da utilização que será dada aos respectivos montantes, apenas a de fornecer ao núcleo familiar ao qual são concedidos os meios necessários para o sustento dos seus membros e que o seu montante é determinado com base nessa função. Por outras palavras, o benefício que tais subsídios se destinam a proporcionar a quem tem direito a eles, e de que usufruem concretamente os cônjuges das recorrentes na causa principal, não vai além do fornecimento de meios de subsistência para si e para a sua família. Ora, incluir no âmbito de aplicação do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento o pagamento dos referidos subsídios a um membro do grupo familiar de uma pessoa designada, em circunstâncias que, como no caso presente, permitem excluir que os respectivos montantes fiquem à disposição desta última, não se mostra justificado à luz do objectivo prosseguido pelo regulamento e pelas resoluções a que este pretende dar execução, de combater o terrorismo internacional privando‑o dos seus recursos financeiros. Esta conclusão é também conforme com a exigência de protecção do direito das recorrentes ao respeito da sua vida familiar.

91.      Ao que até agora foi exposto acrescento que a interpretação extensiva do conceito «em benefício de», do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento, proposta pelo Reino Unido e pela Comissão, segundo a qual, todas as vezes que são pagas prestações de segurança social e de previdência ao cônjuge de uma pessoa designada, seria necessária uma autorização na medida em tais fundos são ou podem ser utilizados para prestar assistência em espécie a uma pessoa designada, comporta o risco de alargar o âmbito de aplicação do regulamento, de forma quase ilimitada, ampliando‑o assim, em rigor lógico, não só a qualquer pagamento de montantes em dinheiro a favor do cônjuge de uma pessoa designada (por exemplo, o seu salário ou uma liberalidade) mas também a todas as hipóteses em que essa pessoa retira indirectamente benefício da existência de laços mais ou menos directos com um terceiro, não inscrito na lista, que vive com essa pessoa (o cônjuge, mas também outros membros da família) ou que está ligado a ela por laços particulares de parentesco ou amizade, ou ainda por relações económicas.

92.      Com base nas considerações que antecedem, não me parece, portanto, que se possa qualificar o pagamento de prestações de segurança social e de previdência às recorrentes, pelas autoridades do Reino Unido, como disponibilização de fundos em benefício de pessoas designadas, na acepção do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento.

93.      Em minha opinião, também se podem configurar os bens e serviços fornecidos em espécie pelas recorrentes ao respectivo cônjuge como recursos económicos, na acepção do artigo 1.°, n.° 2, do regulamento, e, desta forma, considerar que aquelas autoridades, ao entregar fundos às recorrentes, colocam indirectamente recursos económicos à disposição de uma pessoa designada, ou destinam esses recursos à utilização em seu benefício, violando assim as proibições estabelecidas no artigo 2.°, n.° 3, do regulamento.

94.      Na verdade, para efeitos do regulamento, entende‑se por recursos económicos os «activos de qualquer tipo, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, que não sejam fundos mas que podem ser utilizados na obtenção de fundos, bens ou serviços» (artigo 1.°, n.° 2). Em conformidade com esta definição, o artigo 2.°, n.° 3, do regulamento, ao contemplar a proibição de colocar recursos económicos à disposição de uma pessoa designada ou de os utilizar em benefício desta, especifica que é condição de aplicabilidade de tal proibição que, ao proceder‑se desse modo, se dê à pessoa designada a possibilidade de «vir a beneficiar de fundos, bens ou serviços».

95.      À luz da finalidade das proibições impostas pelo regulamento, que – conforme se realçou antes – é combater o terrorismo internacional mediante o controlo das suas diversas fontes de financiamento, a ratio daquela condição é clara: se, através de «activos de qualquer tipo, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis», não for possível obter fundos, bens ou serviços, a pessoa designada não tem nada para desviar para fins terroristas e, portanto, aquela disponibilidade não representa recursos económicos na acepção do regulamento (35).

96.      É certo que o âmbito de aplicação da disposição em exame foi interpretado pelo Tribunal de Justiça na já referida decisão proferida no processo Möllendorf, em termos de particular amplitude (36), como foi sublinhado em algumas das observações apresentadas no presente processo; todavia, nesse caso, o bem que constituía o objecto do processo principal podia considerar‑se «claramente abrangido pela definição de ‘recursos económicos’, contida no artigo 1.°, n.° 2», do regulamento, pois tratava‑se de um bem imóvel que podia ser utilizado para obter fundos, bens ou serviços. No caso que nos ocupa, ao invés, a questão tem a ver com a possibilidade de equiparar os bens ou serviços de primeira necessidade fornecidos pelas recorrentes aos seus cônjuges a recursos económicos na acepção do regulamento.

97.      Ora, parece‑me claro que, ao pagar a renda para fins habitacionais de um imóvel ou a prestação de serviços domésticos, as recorrentes não fornecem recursos económicos aos cônjuges, na medida em que se trata de actividades que não podem ser utilizadas por estes para obter fundos, bens ou serviços (37). Em seguida, no que respeita à aquisição, pelas recorrentes, de bens destinados ao uso pessoal dos seus cônjuges, mas que podem ser por estes potencialmente fruídos em sentido económico, entendo que, tendo em consideração a módica quantia concedida a título de subsídio no caso presente, que é apenas suficiente para satisfazer as necessidades essenciais de uma família, não é realista, na verdade, pôr a hipótese de tais bens serem revendidos pela pessoa designada, com o fim de obter fundos, bens ou serviços, para os destinar ao financiamento de actividades terroristas.

98.      Assim, ao usarem as importâncias recebidas para adquirir bens ou serviços de primeira necessidade, dos quais também beneficiarão os cônjuges, as recorrentes não colocam recursos económicos à disposição destes, nem os utilizam em seu benefício, na acepção do regulamento, na medida em que dessa assistência em espécie não é possível obter fundos, bens ou serviços que possam ser utilizados na prossecução de uma actividade terrorista. Em consequência, ao pagar às recorrentes quantias em dinheiro, sob a forma de prestações de segurança social e de previdência, que virão depois a ser utilizadas por elas também para prover às necessidades essenciais dos cônjuges, as autoridades competentes não colocam indirectamente recursos económicos à disposição destes, nem os utilizam em seu benefício, na acepção do 2.°, n.° 3, do regulamento.

99.      Com base no conjunto das considerações que antecedem, considero portanto que, ao pagar às recorrentes importâncias em dinheiro, sob a forma de prestações de segurança social e de previdência, as autoridades competentes não violam as proibições estabelecidas no regulamento.

100. Em meu entender, não se pode sustentar contra esta conclusão que uma interpretação do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento que exclua o pagamento dos subsídios em questão do âmbito de aplicação desta disposição tornaria supérflua a previsão, no artigo 2.°‑A, de um regime derrogatório específico.

101. A este propósito, devo realçar, antes de mais, que esse artigo, ao dispor, no n.° 1, alínea a), que as proibições estabelecidas no artigo 2.° podem ser derrogadas «a pedido de uma pessoa singular ou colectiva interessada», está efectivamente redigido em termos amplos, que visam incluir, entre as pessoas a quem incumbe o ónus de obter uma autorização, não apenas a pessoa designada, que pretende ter acesso aos seus haveres congelados, mas também qualquer terceiro que pretenda colocar à disposição de uma pessoa designada, directa ou indirectamente, fundos e/ou recursos económicos, ou disponibilizar os primeiros ou utilizar os segundos em benefício da referida pessoa (38).

102. Posto isto, não há dúvida de que o regime de autorização previsto no artigo 2.°‑A do regulamento tem em vista evitar que os fundos ou os recursos desbloqueados ou autorizados para o pagamento das despesas enunciadas no seu n.° 1, alínea a), possam ser desviados para fins terroristas. Em conformidade com esse objectivo, devem, em meu entender, considerar‑se sujeitas a esse regime apenas as transferências que permitam a uma pessoa designada dispôr de fundos e/ou de recursos económicos e decidir do seu destino para cobrir as despesas indicadas naquela disposição. Com efeito, existe o risco de um desvio de fundos ou de recursos, no caso de esses fundos ou recursos serem colocados, directa ou indirectamente, à disposição da pessoa designada, mas não, ao invés, no caso de um terceiro assumir directamente a seu cargo as despesas em causa.

103. Ora, no caso que nos ocupa, a disponibilidade das quantias recebidas a título de subsídio assim como a faculdade de decidir do seu destino para cobrir as despesas domésticas ficam a cargo de um terceiro. Importa ainda recordar que, como resulta dos autos do processo nacional, é pacífico que não houve nenhuma transferência das quantias em questão das recorrentes para os seus cônjuges.

104. Finalmente, não me parece convincente a argumentação acolhida nas decisões proferidas nas primeiras instâncias nacionais e perfilhada pelo Reino Unido nas suas observações escritas, segundo a qual uma interpretação do artigo 2.°, n.° 2, do regulamento que autorize um terceiro a assumir as despesas de base de uma pessoa inscrita na lista constante do Anexo I do regulamento libertaria esta última do ónus de ser ela própria a prover a tais despesas e permitir‑lhe‑ia usar, para fins terroristas, as disponibilidades que venha a obter por outros meios.

105. Com efeito, pergunto‑me como é que uma pessoa inscrita na referida lista poderia encontrar essas outras disponibilidades, dado que os seus fundos e/ou recursos económicos estão congelados por força do artigo 1.° do regulamento, e tendo ainda em consideração os limites estabelecidos no artigo 2.° do mesmo diploma à obtenção de fundos e/ou recursos económicos por terceiros, na falta de uma autorização específica nos termos do artigo 2.°‑A. A circunstância de um terceiro assumir as despesas de base daquela pessoa apenas teria o efeito, portanto, de libertar esta última do ónus de obter uma autorização para ter acesso aos seus fundos e/ou recursos económicos – admitindo que os possua –, para os utilizar para cobrir essas despesas, mas não a poria automaticamente em condições de utilizar os seus haveres, que continuam congelados, nem de receber fundos e/ou recursos económicos de terceiros, para os destinar ao financiamento de actividades terroristas. Naturalmente, não se pode excluir a possibilidade de se verificarem comportamentos que contornem as proibições estabelecidas no regulamento, mas isto poderia acontecer mesmo que um terceiro não tomasse a seu cargo as despesas em questão.

106. Acresce que sujeitar essa assunção de despesas ao regime de autorização previsto no artigo 2.°‑A do regulamento não responderia, em todo o caso, às preocupações invocadas pelo Reino Unido. Com efeito, a finalidade desse artigo é, precisamente, permitir às pessoas inscritas na lista constante do Anexo I do regulamento obterem os meios necessários ao seu sustento. Por conseguinte, com ou sem autorização, a intervenção do terceiro libertaria, de qualquer modo, a pessoa designada do ónus de fazer pessoalmente face às suas despesas de base, deixando‑a livre para destinar a fins terroristas os eventuais recursos obtidos em violação das proibições do regulamento. Por outro lado, a aplicação do procedimento de autorização previsto no artigo 2.°‑A do regulamento também não excluiria nem tornaria menos provável a eventualidade de tal violação, dado que se trata de um dispositivo que visa unicamente minimizar o risco de um desvio dos fundos e/ou dos recursos desbloqueados.

107. Ora, como acima foi várias vezes recordado, esse risco não existe no caso presente, nem em abstracto, dado o montante dos subsídios em questão, que se destinam a fornecer unicamente o necessário para cobrir as necessidades essenciais do núcleo familiar a que são concedidos, nem em concreto, por ser pacífico, na causa principal, que as recorrentes não colocam à disposição dos seus cônjuges as quantias recebidas, pois prestam‑lhes unicamente uma assistência em espécie.

VI – Conclusões

108. À luz do conjunto das considerações expostas, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pela House of Lords no sentido de que o artigo 2.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 881/2002 do Conselho, de 27 de Maio de 2002, não se aplica ao pagamento de prestações de segurança social e de previdência estatais, como as que estão em causa no processo nacional, ao cônjuge de uma pessoa inscrita na lista constante do Anexo I do referido regulamento, pelo simples facto de viver com essa pessoa e de destinar ou poder destinar parte do dinheiro ao pagamento de bens e serviços que a pessoa inscrita na referida lista também utilizará ou dos quais beneficiará.


1 – Língua original: italiano.


2 – JO L 139, p. 9.


3 –      Como para todas as disposições contidas em resoluções do Conselho de Segurança citadas nas presentes conclusões, a tradução é feita a partir do texto inglês das mesmas resoluções.


4 – JO L 139, p. 4.


5 – JO L 53, p. 62.


6 – JO L 82, p. 1.


7 – SI 2002, n.° 111.


8 – SI 2006, n.° 2952.


9 – Segundo as observações do Reino Unido, as partes no tribunal a quo concordaram em considerar que a alteração de 2006 não comporta consequências relevantes no que respeita ao caso presente.


10 –      Traduzido do texto inglês que dispõe: «Any person who, except under the authority of a licence granted by the Treasury under this article, makes any funds available to or for the benefit of a listed person or any person acting on behalf of a listed person is guilty of an offence under this Order».


11 – Acórdão de 11 de Outubro de 2007, Möllendorf e Möllendorf‑Niehuus (C‑117/06, Colect., p. I‑8361, n.° 46).


12 – V., em particular, acórdão de 4 de Dezembro de 2008, Marper c. Reino Unido, recursos n.os 0562/04 e 30556/04, n.° 101.


13 – Acórdão de 3 de Novembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, Colect., p. I‑6351).


14 – V. acórdãos Möllendorf e Möllendorf‑Niehuus, já referido na nota 11, n.os 50 a 55, e Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, já referido na nota 13, n.° 169.


15 – V. acórdão de 30 de Julho de 1996, Bosphorus (C‑84/95, Colect., p. I‑3953, n.° 22).


16 – Já referido na nota 11, n.os 50 e 51.


17 – Já referido na nota 15.


18 – Concretamente, o Regulamento (CEE) n.° 990/93 do Conselho, de 26 de Abril de 1993, relativo ao comércio entre a Comunidade Económica Europeia e a República Federativa da Jugoslávia (Sérvia e Montenegro) (JO L 102, p. 14).


19 – V. n.os 22 e 23 do acórdão.


20 – V. acórdão Bosphorus, já referido na nota 15, n.° 21 e jurisprudência aí indicada.


21 – Já referido na nota 13. V., mais recentemente, acórdão de 3 de Dezembro de 2009, Hassan/Conselho e Comissão (C‑399/06 P, Colect., p. I‑0000).


22 – V. acórdão Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, já referido na nota 13, n.os 354 e segs.


23 – Quanto a este último direito, v., designadamente, acórdãos de 27 de Junho de 2006, Parlamento/Conselho (C‑540/03, Colect., p. I‑5769); de 11 de Julho de 2002, Carpenter (C‑60/00, Colect., p. I‑6279); e de 23 de Setembro de 2003, Akrich (C‑109/01, Colect., p. I‑9607).


24 – Acórdãos de 5 de Dezembro de 1967, Van Der Vecht (19/67, Recueil, p. 408, Colect. 1965‑1968, p. 683); de 12 de Novembro de 1969, Stauder (29/69, Colect. 1969‑1970, p. 157, n.os 3 e 4); de 12 de Julho de 1979, Koschniske (9/79, Recueil, p. 2717, n.° 6); de 6 de Outubro de 1982, CILFIT (283/81, Recueil, p. 3415, n.° 18); de 27 de Março de 1990, Cricket St Thomas (C‑372/88, Colect., p. I‑1345, n.° 19); e de 3 de Abril de 2008, Endendijk (C‑187/07, Colect., p. I‑2115, n.° 22).


25 – V. acórdãos de 12 de Novembro de 1998, Institute of the Motor Industry (C‑149/97, Colect., p. I‑7053, n.° 16), e Endendijk, já referido, n.° 23.


26 – O sublinhado é meu.


27 – Em francês, «utilisé au bénéfice»; em espanhol, «utilizar en beneficio»; em português, «utilizados em benefício»; em romeno «utilizat în beneficiul».


28 – V., neste sentido, acórdãos de 27 de Outubro de 1977, Bouchereau (30/77, Colect., p. 715, n.° 14); de 17 de Novembro de 1983, Merck (292/82, Recueil, p. 3781, n.° 12); de 28 de Março de 1985, Comissão/Reino Unido (100/84, Recueil, p. 1169, n.° 17); Cricket St Thomas, já referido na nota 24, n.os 18 e 19; de 17 de Outubro de 1991, Comissão/Dinamarca (C‑100/90, Colect., p. I‑5089, n.° 8); de 17 de Outubro de 1995, Leifer e o. (C‑83/94, Colect., p. I‑3231, n.° 22); e Endendijk, já referido na nota 24, n.° 23.


29 – V. acórdãos Bosphorus, já referido na nota 15, n.os 13 e 14; Möllendorf e Möllendorf‑Niehuus, já referido na nota 11, n.° 68; e Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, já referido na nota 13, n.° 297.


30 – Em inglês, «made available [...] for such person’s benefit»; em espanhol, «pongan [...] a disposición de esas personas»; em francês, «rendus disponibles [...] pour les fins qu’ils poursuivent».


31 – V. acórdão Möllendorf e Möllendorf‑Niehuus, já referido na nota 11, n.° 56.


32 – N.° 4 da resolução; o sublinhado é meu.


33 – Já referido na nota 13, n.° 169.


34 – V. n.° 20, supra.


35 – Neste contexto, realço que a exclusão do genus «recursos económicos» dos activos de que não é possível obter fundos, bens ou serviços está presente no regulamento, mas não na Resolução 1390 (2002), que não conhece tal distinção e que também não fornece, ao contrário do regulamento, nenhuma definição da expressão «recursos económicos».


36 – Já referido na nota 14, n.° 46.


37 – V., também, a este propósito, as «Melhores práticas da EU para a aplicação efectiva de medidas restritivas» (Doc. 8666/08, de 21 de Abril de 2008, n.os 45, 48 e 51).


38 – V. também as orientações para os pedidos de derrogação, delineadas nas citadas «Melhores práticas da UE para a aplicação efectiva das medidas restritivas», de 2008, segundo as quais «uma pessoa ou entidade que pretenda colocar à disposição de uma pessoa ou entidade designada fundos ou recursos económicos deve requerer a autorização para esse fim» (n.° 59).