Language of document : ECLI:EU:C:2009:260

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

23 de Abril de 2009 (*)

«Directiva 89/104/CEE – Direito das marcas – Esgotamento dos direitos do titular da marca – Contrato de licença – Venda de produtos que ostentam a marca em violação de uma cláusula do contrato de licença – Falta de consentimento do titular da marca – Venda a negociantes de saldos – Ofensa do prestígio da marca»

No processo C‑59/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pela Cour de cassation (França), por decisão de 12 de Fevereiro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 15 de Fevereiro de 2008, no processo

Copad SA

contra

Christian Dior couture SA,

Vincent Gladel, na qualidade de administrador judicial da Société industrielle lingerie (SIL),

Société industrielle lingerie (SIL),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: P. Jann, presidente de secção, M. Ilešič, A. Tizzano (relator), A. Borg Barthet e J.‑J. Kasel, juízes,

advogada‑geral: J. Kokott,

secretário: M.‑A. Gaudissart, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 19 de Novembro de 2008,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Copad SA, por H. Farge, avocat,

–        em representação da Christian Dior couture SA, por J.‑M. Bruguière, P. Deprez e E. Bouttier, avocats,

–        em representação do Governo francês, por B. Beaupère‑Manokha, G. de Bergues e J.‑C. Niollet, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por H. Krämer, na qualidade de agente,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 3 de Dezembro de 2008,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 7.° e 8.°, n.° 2, da Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1), conforme alterada pelo Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de Maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3, a seguir «directiva»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre a Copad SA (a seguir «Copad»), por um lado, e a Christian Dior couture SA (a seguir «Dior»), a Société industrielle lingerie (a seguir «SIL») e V. Gladel, na qualidade de administrador judicial da SIL, por outro, a respeito da venda à Copad pela SIL, em violação de uma cláusula do contrato de licença celebrado entre esta última sociedade e a Dior, de produtos que tinham aposta a marca Christian Dior.

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

3        O artigo 5.°, n.os 1 a 3, da directiva dispõe:

«1.      A marca registada confere ao seu titular um direito exclusivo. O titular fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, faça uso na vida comercial:

a)      De qualquer sinal idêntico à marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada;

b)      De um sinal relativamente ao qual, devido à sua identidade ou semelhança com a marca e devido à identidade ou semelhança dos produtos ou serviços a que a marca e o sinal se destinam, exista, no espírito do público, um risco de confusão que compreenda o risco de associação entre o sinal e a marca.

2.      Qualquer Estado‑Membro poderá também estipular que o titular fique habilitado a proibir que terceiros façam uso, na vida comercial, sem o seu consentimento, de qualquer sinal idêntico ou semelhante à marca para produtos ou serviços que não sejam semelhantes àqueles para os quais a marca foi registada, sempre que esta goze de prestígio no Estado‑Membro e que o uso desse sinal, sem justo motivo, tire partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio da marca ou os prejudique.

3.      Pode nomeadamente ser proibido, caso se encontrem preenchidas as condições enumeradas nos n.os 1 e 2:

a)      Apor o sinal nos produtos ou na respectiva embalagem;

b)      Oferecer os produtos para venda ou colocá‑los no mercado ou armazená‑los para esse fim, ou oferecer ou fornecer serviços sob o sinal;

c)      Importar ou exportar produtos com esse sinal;

d)      Utilizar o sinal nos documentos comerciais e na publicidade.»

4        Na sua versão inicial, o artigo 7.° da directiva previa:

«1.      O direito conferido pela marca não permite ao seu titular proibir o uso desta para produtos comercializados na Comunidade sob essa marca pelo titular ou com o seu consentimento.

2.      O n.° 1 não é aplicável sempre que existam motivos legítimos que justifiquem que o titular se oponha à comercialização posterior dos produtos, nomeadamente sempre que o estado desses produtos seja modificado ou alterado após a sua colocação no mercado.»

5        Em conformidade com o artigo 65.°, n.° 2, do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (a seguir «EEE»), lido em conjugação com o anexo XVII, ponto 4, deste acordo, o artigo 7.°, n.° 1, da directiva, na sua versão inicial, foi alterado para efeitos do mesmo acordo, tendo a expressão «na Comunidade» sido substituída pelos termos «numa Parte Contratante».

6        O artigo 8.° da directiva prevê:

«1.      Uma marca pode ser objecto de licenças para a totalidade ou parte dos produtos ou serviços para os quais tenha sido registada e para a totalidade ou parte do território de um Estado‑Membro. As licenças podem ser exclusivas ou não exclusivas.

2.      O titular de uma marca pode invocar os direitos conferidos por essa marca em oposição a um licenciado que infrinja uma das disposições do contrato de licença, em especial no que respeite ao seu prazo de validade, à forma abrangida pelo registo sob que a marca pode ser usada, à natureza dos produtos ou serviços para os quais foi concedida a licença, ao território no qual a marca pode ser aposta ou à qualidade dos produtos fabricados ou dos serviços fornecidos pelo licenciado.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

7        Em 17 de Maio de 2000, a Dior celebrou com a SIL um contrato de licença de marca para o fabrico e a distribuição de produtos de «corsetterie» de prestígio sob a marca Christian Dior, da qual a Dior é titular.

8        A cláusula 8.2, § 5, do referido contrato precisa que, «a fim de manter a notoriedade e o prestígio da marca, o licenciado compromete‑se a não vender a grossistas, colectividades, negociantes de saldos, sociedades de venda por correspondência ou ao domicílio, salvo se a isso for previamente e por escrito autorizado pelo titular da marca, e tomará todas as medidas para que esta regra seja respeitada pelos seus distribuidores ou retalhistas».

9        Devido a dificuldades económicas, a SIL pediu à Dior autorização para comercializar produtos desta marca fora da sua rede de distribuição selectiva. Por carta de 17 de Junho de 2002, a Dior opôs‑se a este pedido.

10      Todavia, não obstante esta oposição e em violação das suas obrigações contratuais, a SIL vendeu à Copad, uma empresa que exerce a actividade de negociante de saldos, produtos que tinham aposta a marca Christian Dior.

11      Por esta razão, a Dior intentou no tribunal de grande instance de Bobigny uma acção contra a SIL e a Copad por contrafacção de marca, tendo esse tribunal decidido que as violações do contrato de licença cometidas pela SIL não eram constitutivas de contrafacção e apenas faziam incorrer esta última sociedade em responsabilidade contratual.

12      A cour d’appel de Paris negou provimento ao recurso que a Dior interpôs desse acórdão. Em particular, concluiu que as vendas efectuadas pela SIL não eram constitutivas de contrafacção, devido ao facto de o respeito da cláusula do contrato de licença, celebrado entre esta e a Dior, relativa às modalidades de distribuição não ser abrangido pelo âmbito de aplicação das disposições nacionais do direito das marcas que transpuseram o artigo 8.°, n.° 2, da directiva. Não obstante, considerou que essas vendas não tinham conduzido ao esgotamento dos direitos de marca da Dior, na acepção da legislação nacional que transpôs o artigo 7.°, n.° 1, da directiva.

13      A Copad recorreu para a Cour de cassation do acórdão da cour d’appel de Paris, alegando, designadamente, que os direitos de marca da Dior ficaram esgotados com a comercialização dos produtos em causa pela SIL. Por seu lado, a Dior interpôs um recurso subordinado, criticando a cour d’appel de Paris por ter excluído qualquer forma de contrafacção tanto por parte da SIL como da Copad.

14      Nestas circunstâncias, tendo dúvidas quanto à interpretação do direito comunitário aplicável, a Cour de cassation decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 8.°, n.° 2, da [directiva] deve ser interpretado no sentido de que o titular da marca pode invocar os direitos conferidos por essa marca contra o licenciado que violou uma cláusula do contrato de licença que proíbe, por razões ligadas ao prestígio da marca, a venda a negociantes de saldos?

2)      O artigo 7.°, n.° 1, dessa mesma directiva deve ser interpretado no sentido de que a comercialização pelo licenciado no Espaço Económico Europeu dos produtos que ostentam uma marca, com desrespeito de uma cláusula do contrato de licença que proíbe, por razões ligadas ao prestígio da marca, a venda a negociantes de saldos, é feita sem o consentimento do titular da marca?

3)      Em caso de resposta negativa, o titular pode invocar essa cláusula para se opor a uma nova comercialização dos produtos, baseando‑se no artigo 7.°, n.° 2, do mesmo diploma?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

15      Com a sua primeira questão, o tribunal de reenvio pergunta, no essencial, se uma cláusula de um contrato de licença que proíbe ao licenciado, por razões ligadas ao prestígio da marca, a venda a negociantes de saldos de produtos que ostentem a marca objecto desse contrato é abrangida pelo artigo 8.°, n.° 2, da directiva.

16      A Copad, o Governo francês e a Comissão das Comunidades Europeias sugerem ao Tribunal de Justiça que dê uma resposta negativa a esta questão, alegando, a título principal, que a cláusula em questão no processo principal não consta das que são taxativamente enumeradas no referido artigo 8.°, n.° 2. Ao invés, a Dior defende a tese contrária.

17      Para responder à presente questão, há que verificar em primeiro lugar se a lista de cláusulas constante do referido artigo 8.°, n.° 2, tem carácter exaustivo ou simplesmente exemplificativo.

18      A este respeito, cumpre observar que esta disposição não contém nenhum advérbio ou expressão, como «nomeadamente» ou «em particular», que permitam reconhecer a esta lista um carácter simplesmente exemplificativo.

19      De resto, importa recordar que foi precisamente tendo em consideração a utilização do advérbio «nomeadamente» que o Tribunal de Justiça reconheceu esse carácter exemplificativo às hipóteses referidas no artigo 7.°, n.° 2, da directiva (v. acórdãos de 11 de Julho de 1996, Bristol‑Myers Squibb e o., C‑427/93, C‑429/93 e C‑436/93, Colect., p. I‑3457, n.° 39, e de 4 de Novembro de 1997, Parfums Christian Dior, C‑337/95, Colect., p. I‑6013, n.° 42).

20      Por conseguinte, contrariamente ao que a Dior sustenta, resulta da própria redacção do artigo 8.°, n.° 2, da directiva que a referida lista tem efectivamente carácter exaustivo.

21      Após esta precisão, há então que determinar se uma cláusula como a que está em causa no processo principal é abrangida por alguma das cláusulas expressamente referidas no referido artigo 8.°, n.° 2.

22      No que se refere às cláusulas de um contrato de licença relativas «à qualidade dos produtos fabricados […] pelo licenciado», referidas nesse artigo, cumpre recordar que, segundo jurisprudência assente, a função essencial da marca é garantir ao consumidor ou ao utilizador final a identidade de origem do produto ou do serviço designado pela marca, permitindo‑lhe distinguir, sem confusão possível, este produto ou serviço de outros que tenham proveniência diversa. Com efeito, para que a marca possa desempenhar o seu papel de elemento essencial do sistema de concorrência leal que o Tratado CE pretende criar e manter, ela deve constituir a garantia de que todos os produtos ou serviços que a ostentam foram fabricados ou prestados sob o controlo de uma única empresa à qual possa ser atribuída a responsabilidade pela sua qualidade (v., nomeadamente, acórdãos de 23 de Maio de 1978, Hoffmann‑La Roche, 102/77, Colect., p. 391, n.° 7; de 18 de Junho de 2002, Philips, C‑299/99, Colect., p. I‑5475, n.° 30, e de 17 de Março de 2005, Gillette Company e Gillette Group Finland, C‑228/03, Colect., p. I‑2337, n.° 26).

23      Assim, é precisamente em caso de violação pelo licenciado das cláusulas do contrato de licença relativas, em particular, à qualidade dos produtos fabricados que o artigo 8.°, n.° 2, da directiva permite ao titular da marca invocar os direitos que esta lhe confere.

24      Ora, como a advogada‑geral observa no n.° 31 das suas conclusões, a qualidade de produtos de prestígio, como os produtos que estão em causa no processo principal, não resulta unicamente das suas características materiais mas também do seu estilo e da sua imagem de prestígio, que lhes conferem uma aura de luxo (v. igualmente, neste sentido, acórdão Parfums Christian Dior, já referido, n.° 45).

25      Com efeito, constituindo os produtos de prestígio artigos de alta gama, a aura de luxo que deles emana é um elemento essencial para que sejam distinguidos de outros produtos semelhantes pelos consumidores.

26      Assim, a danificação da referida aura de luxo é susceptível de afectar a própria qualidade desses produtos.

27      Neste contexto, importa então verificar se, no caso do processo principal, a venda pelo licenciado de produtos de prestígio a negociantes de saldos que não fazem parte da rede de distribuição selectiva instituída através do contrato de licença pode constituir um dano dessa natureza.

28      Ora, o Tribunal de Justiça já considerou nesta matéria que, contrariamente ao que é defendido pela Copad e pela Comissão, as características e as modalidades específicas de um sistema de distribuição selectiva são, em si mesmas, susceptíveis de preservar a qualidade e de assegurar a boa utilização dos referidos produtos (v., neste sentido, acórdão de 11 de Decembro de 1980, L’Oréal, 31/80, Recueil, p. 3775, n.° 16).

29      Com efeito, a organização de um sistema de distribuição selectiva como o que está em causa no processo principal, que, segundo os próprios termos do contrato de licença celebrado entre a Dior e a SIL, visa assegurar uma apresentação que valorize os produtos no ponto de venda, «nomeadamente no que diz respeito à sua colocação, promoção e apresentação e à política comercial», é susceptível de contribuir, como a Copad reconhece, para a reputação dos produtos em questão e, portanto, para a manutenção da sua aura de luxo.

30      Decorre do exposto que não se pode excluir que a venda de produtos de prestígio pelo licenciado a terceiros que não fazem parte da rede de distribuição selectiva afecte a própria qualidade desses produtos, pelo que, se esse for o caso, uma cláusula contratual que proíba a referida venda deve ser considerada abrangida pelo artigo 8.°, n.° 2, da directiva.

31      Compete ao órgão jurisdicional nacional competente verificar se, tendo em conta as circunstâncias particulares do litígio que lhe foi submetido, a violação pelo licenciado de uma cláusula como a controvertida no processo principal lesa a aura de luxo dos produtos de prestígio, afectando assim a sua qualidade.

32      Neste âmbito, há que ter especialmente em consideração, por um lado, a natureza dos produtos de prestígio que ostentam a marca, o volume e o carácter sistemático ou esporádico das vendas desses produtos pelo licenciado a negociantes de saldos que não fazem parte da rede de distribuição selectiva e, por outro, a natureza dos produtos habitualmente comercializados por esses negociantes de saldos, bem como os modos de comercialização usuais no sector de actividade destes últimos.

33      Deve ainda acrescentar‑se que a interpretação do artigo 8.°, n.° 2, da directiva exposta nos números anteriores do presente acórdão não é posta em causa pelos argumentos da Dior segundo os quais uma cláusula de um contrato de licença que proíbe, por razões ligadas ao prestígio da marca, a venda a negociantes de saldos é susceptível de ser abrangida por cláusulas diferentes das relativas à «qualidade dos produtos», mais precisamente as – também previstas nessa disposição – respeitantes quer «ao território no qual a marca pode ser usada» quer «à qualidade […] dos serviços fornecidos pelo licenciado».

34      Deve observar‑se a este respeito, por um lado, que o artigo 8.°, n.° 2, da directiva deve ser lido em conjugação com o n.° 1 do mesmo artigo, que faz referência ao «território de um Estado‑Membro», pelo que o conceito de «território», na acepção dessas disposições, só pode ter um alcance geográfico e não pode, portanto, ser interpretado como podendo referir‑se a um conjunto de operadores autorizados que façam parte de uma rede de distribuição selectiva.

35      Por outro lado, no que diz respeito à segunda possibilidade concebida pela Dior, há que referir que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, embora nenhuma razão imperiosa decorrente da directiva ou dos princípios gerais do direito comunitário se oponha a que serviços prestados no âmbito do comércio retalhista de produtos sejam abrangidos pelo conceito de «serviços» na acepção da directiva, é ainda necessário que a marca tenha sido registada para esses serviços (v., neste sentido, acórdão de 7 de Julho de 2005, Praktiker Bau‑ und Heimwerkermärkte, C‑418/02, Colect., p. I‑5873, n.° 35).

36      Ora, nenhum elemento do processo submetido ao Tribunal de Justiça permite concluir que, na causa principal, a marca Christian Dior tenha sido registada para qualquer tipo de serviço.

37      Atentas estas considerações, deve responder‑se à primeira questão que o artigo 8.°, n.° 2, da directiva deve ser interpretado no sentido de que o titular da marca pode invocar os direitos conferidos por esta última contra um licenciado que viole uma cláusula do contrato de licença que proíba, por razões ligadas ao prestígio da marca, a venda a negociantes de saldos de produtos como os que estão em causa no processo principal, na medida em que se demonstre que esta violação, devido às circunstâncias particulares do litígio no processo principal, lesa o estilo e a imagem de prestígio que conferem aos referidos produtos uma aura de luxo.

 Quanto à segunda questão

38      Com a sua segunda questão, o tribunal de reenvio pede ao Tribunal de Justiça, no essencial, que precise em que circunstâncias a comercialização pelo licenciado, em desrespeito de uma cláusula do contrato de licença que proíbe a sua venda a negociantes de saldos, de produtos que ostentem a marca deve ser considerada feita sem o consentimento do titular da marca, na acepção do artigo 7.°, n.° 1, da directiva.

39      A Copad e a Comissão afirmam a este respeito que o consentimento do titular só pode ser considerado excluído em caso de violação de uma cláusula do contrato de licença que se inclua na lista constante do artigo 8.°, n.° 2, da directiva. Por seu lado, a Dior e o Governo francês consideram que toda e qualquer violação do contrato de licença pelo licenciado impede o esgotamento dos direitos que a marca confere ao seu titular.

40      Ora, para responder à presente questão, deve recordar‑se que, segundo uma jurisprudência bem assente, os artigos 5.° a 7 da directiva procedem a uma harmonização completa das disposições relativas aos direitos conferidos pela marca, definindo assim os direitos de que gozam os titulares de marcas na Comunidade (acórdãos de 16 de Julho de 1998, Silhouette International Schmied, C‑355/96, Colect., p. I‑4799, n.os 25 e 29, e de 20 de Novembro de 2001, Zino Davidoff e Levi Strauss, C‑414/99 a C‑416/99, Colect., p. I‑8691, n.° 39).

41      Em particular, o artigo 5.° da directiva confere ao titular da marca um direito exclusivo que lhe permite proibir que qualquer terceiro, designadamente, importe produtos que ostentem a sua marca, os ofereça, os coloque no mercado ou os detenha para esse fim. O artigo 7.°, n.° 1, da mesma directiva contém uma excepção a esta regra, na medida em que prevê que o direito do titular fica esgotado quando os produtos tiverem sido colocados no mercado do EEE pelo titular ou com o seu consentimento (acórdãos Zino Davidoff e Levi Strauss, já referido, n.° 40; de 8 de Abril de 2003, Van Doren + Q, C‑244/00, Colect., p. I‑3051, n.° 33, e de 30 de Novembro de 2004, Peak Holding, C‑16/03, Colect., p. I‑11313, n.° 34).

42      Verifica‑se, assim, que o consentimento, que equivale a uma renúncia do titular ao seu direito exclusivo, na acepção do artigo 5.° da directiva, constitui o elemento determinante do esgotamento desse direito e deve, portanto, ser expresso de uma forma que traduza inequivocamente uma vontade de renunciar a esse direito. Essa vontade resulta normalmente de uma formulação expressa do consentimento (v., neste sentido, acórdão Zino Davidoff e Levi Strauss, já referido, n.os 41, 45 e 46).

43      Todavia, também resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, em certos casos, o esgotamento desse direito exclusivo ocorre quando a comercialização dos produtos é efectuada por um sujeito economicamente ligado ao titular da marca. Este é, em particular, o caso de um licenciado (v., neste sentido, acórdão de 22 de Junho de 1994, IHT Internationale Heiztechnik e Danzinger, C‑9/93, Colect., p. I‑2789, n.° 34).

44      Com efeito, nessa situação o licenciante tem a possibilidade de controlar a qualidade dos produtos do licenciado inserindo no contrato de licença cláusulas específicas que obrigam o licenciado a respeitar as suas instruções e lhe conferem a faculdade de se assegurar que as mesmas são respeitadas.

45      Ora, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, essa possibilidade é suficiente para que a marca possa desempenhar a sua função essencial, que, conforme foi recordado no n.° 22 do presente acórdão, consiste em garantir que todos os produtos que ostentem essa marca foram fabricados sob o controlo de uma empresa única à qual pode ser atribuída a responsabilidade pela sua qualidade (v., neste sentido, acórdão IHT Internationale Heiztechnik e Danzinger, já referido, n.os 37 e 38).

46      Por conseguinte, a comercialização por um licenciado de produtos que ostentam a marca deve, em princípio, ser considerada efectuada com o consentimento do titular da marca, na acepção do artigo 7.°, n.° 1, da directiva.

47      Resulta do exposto que, nessas condições, embora o titular da marca não possa invocar a má execução do contrato para se prevalecer, face ao licenciado, dos direitos que a marca lhe confere, não deixa de ser verdade que, contrariamente ao que a Copad sustenta, o contrato de licença não é equivalente a um consentimento absoluto e incondicional do titular da marca para a comercialização, pelo licenciado, dos produtos que ostentam esta marca.

48      Com efeito, o artigo 8.°, n.° 2, da directiva prevê expressamente a possibilidade de o titular da marca invocar os direitos que esta lhe confere contra um licenciado, quando este último infrinja certas cláusulas do contrato de licença.

49      Além disso, conforme resulta da resposta dada à primeira questão, essas cláusulas são enumeradas no referido artigo 8.°, n.° 2, de forma exaustiva.

50      Por conseguinte, como a advogada‑geral frisa no n.° 47 das suas conclusões, só a violação por parte do licenciado de uma das referidas cláusulas obsta ao esgotamento do direito conferido pela marca ao seu titular, na acepção do artigo 7.°, n.° 1, da directiva.

51      Face às considerações que precedem, há que responder à segunda questão que o artigo 7.°, n.° 1, da directiva deve ser interpretado no sentido de que a comercialização pelo licenciado de produtos que ostentam a marca, em desrespeito de uma cláusula do contrato de licença, é considerada feita sem o consentimento do titular da marca quando se demonstre que esta cláusula corresponde a uma das previstas no artigo 8.°, n.° 2, da directiva.

 Quanto à terceira questão

52      Com a sua terceira questão, o tribunal de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se, quando a comercialização de produtos de prestígio, efectuada pelo licenciado em violação de uma cláusula do contrato de licença, é considerada feita com o consentimento do titular da marca, este último pode, não obstante, invocar essa cláusula para se opor a uma nova comercialização dos produtos, baseando‑se no artigo 7.°, n.° 2, da directiva.

53      A Dior e o Governo francês consideram que a venda de produtos que têm aposta a marca Christian Dior a um negociante de saldos, fora da rede de distribuição selectiva, constitui uma lesão do prestígio da marca que pode justificar a aplicação do referido artigo 7.°, n.° 2. Ao invés, a Copad e a Comissão alegam que a venda desses produtos a negociantes de saldos não lesa o prestígio da marca.

54      A este propósito, importa recordar, antes de mais, que, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, que foi exposta no n.° 19 do presente acórdão, a utilização do advérbio «nomeadamente» no n.° 2 desse artigo 7.° demonstra que a hipótese relativa à modificação ou à alteração do estado dos produtos que ostentam a marca só é referida a título de exemplo do que podem ser os motivos legítimos (acórdãos, já referidos, Bristol‑Myers Squibb e o., n.os 26 e 39, e Parfums Christian Dior, n.° 42).

55      Assim, o Tribunal de Justiça já teve a ocasião de declarar que o prejuízo causado à reputação da marca pode, em princípio, constituir um motivo legítimo, na acepção do artigo 7.°, n.° 2, da directiva, susceptível de justificar que o titular da marca se oponha à ulterior comercialização dos produtos de prestígio que ele, ou outrem com o seu consentimento, colocou no mercado do EEE (v. acórdãos Parfums Christian Dior, já referido, n.° 43, e de 23 de Fevereiro de 1999, BMW, C‑63/97, Colect., p. I‑905, n.° 49).

56      Decorre do exposto que, quando um licenciado vende a um negociante de saldos produtos violando uma cláusula do contrato de licença, como a que está em causa no processo principal, se tem de ponderar, por um lado, o interesse legítimo do titular da marca que foi objecto do contrato de licença em estar protegido contra um negociante de saldos que não faz parte da rede de distribuição selectiva e que utiliza esta marca para fins comerciais de uma maneira susceptível de lesar o seu prestígio e, por outro, o interesse do negociante de saldos em poder revender os produtos em questão utilizando as modalidades que são usuais no seu sector de actividade (v., por analogia, acórdão Parfums Christian Dior, já referido, n.° 44).

57      Por conseguinte, quando o juiz nacional conclua que a venda efectuada pelo licenciado a um terceiro não é susceptível de pôr em causa a qualidade dos produtos de prestígio que ostentam a marca, pelo que a comercialização dos mesmos deve ser considerada feita com o consentimento do titular da marca, competir‑lhe‑á apreciar, tendo em conta as circunstâncias particulares de cada caso concreto, se a ulterior comercialização dos produtos de prestígio que ostentem a marca efectuada pelo terceiro, utilizando as modalidades usuais no seu sector de actividade, lesa o prestígio desta marca.

58      A este respeito, há que ter em consideração, nomeadamente, os destinatários da revenda e, como sugere o Governo francês, as condições específicas de comercialização dos produtos de prestígio.

59      Tendo em conta as considerações que precedem, deve responder‑se à terceira questão que, quando a comercialização pelo licenciado de produtos de prestígio, em violação de uma cláusula do contrato de licença, deva, não obstante, ser considerada feita com o consentimento do titular da marca, este último só pode invocar essa cláusula para se opor a uma revenda dos produtos, baseando‑se no artigo 7.°, n.° 2, da directiva, caso se demonstre, tendo em conta as circunstâncias particulares do caso concreto, que essa revenda lesa o prestígio da marca.

 Quanto às despesas

60      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 8.°, n.° 2, da Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas, conforme alterada pelo Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de Maio de 1992, deve ser interpretado no sentido de que o titular da marca pode invocar os direitos conferidos por esta última contra um licenciado que viole uma cláusula do contrato de licença que proíba, por razões ligadas ao prestígio da marca, a venda a negociantes de saldos de produtos como os que estão em causa no processo principal, na medida em que se demonstre que esta violação, devido às circunstâncias particulares do litígio no processo principal, lesa o estilo e a imagem de prestígio que conferem aos referidos produtos uma aura de luxo.

2)      O artigo 7.°, n.° 1, da Directiva 89/104, conforme alterada pelo Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, deve ser interpretado no sentido de que a comercialização pelo licenciado de produtos que ostentam a marca, em desrespeito de uma cláusula do contrato de licença, é considerada feita sem o consentimento do titular da marca quando se demonstre que esta cláusula corresponde a uma das previstas no artigo 8.°, n.° 2, da directiva.

3)      Quando a comercialização pelo licenciado de produtos de prestígio, em violação de uma cláusula do contrato de licença, deva, não obstante, ser considerada feita com o consentimento do titular da marca, este último só pode invocar essa cláusula para se opor a uma revenda dos produtos, baseando‑se no artigo 7.°, n.° 2, da Directiva 89/104, conforme alterada pelo Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, caso se demonstre, tendo em conta as circunstâncias particulares do caso concreto, que essa revenda lesa o prestígio da marca.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.