Language of document : ECLI:EU:C:2012:72

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

14 de fevereiro de 2012 (*)

«Concorrência ― Cartel, no território de um Estado‑Membro, iniciado antes da adesão deste Estado à União Europeia ― Cartel de alcance internacional que produz efeitos no território da União e do Espaço Económico Europeu ― Artigos 81.° CE e 53.° do Acordo EEE ― Investigação e sanção da infração relativamente ao período que antecede a data de adesão e ao período subsequente ― Coimas ― Delimitação das competências da Comissão e das autoridades nacionais da concorrência ― Aplicação de coimas pela Comissão e pela autoridade nacional da concorrência ― Princípio ne bis in idem ― Regulamento (CE) n.° 1/2003 ― Artigos 3.°, n.° 1, e 11.°, n.° 6 ― Consequências da adesão de um novo Estado‑Membro à União»

No processo C‑17/10,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Krajský soud v Brně (República Checa), por decisão de 11 de dezembro de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 11 de janeiro de 2010, no processo

Toshiba Corporation,

T&D Holding, anteriormente Areva T&D Holding SA,

Alstom Grid SAS, anteriormente Areva T&D SAS,

Alstom Grid AG, anteriormente Areva T&D AG,

Mitsubishi Electric Corp.,

Alstom,

Fuji Electric Holdings Co. Ltd,

Fuji Electric Systems Co. Ltd,

Siemens Transmission & Distribution SA,

Siemens AG Österreich,

VA Tech Transmission & Distribution GmbH & Co. KEG,

Siemens AG,

Hitachi Ltd,

Hitachi Europe Ltd,

Japan AE Power Systems Corp.,

Nuova Magrini Galileo SpA,

contra

Úřad pro ochranu hospodářské soutěže,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts, J.‑C. Bonichot, J. Malenovský e U. Lõhmus, presidentes de secção, A. Rosas (relator), A. Borg Barthet, M. Ilešič, A. Arabadjiev, C. Toader e J.‑J. Kasel, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: K. Sztranc‑Sławiczek, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 7 de junho de 2011,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da Toshiba Corporation, por I. Janda, advokát, e J. MacLennan, solicitor,

¾        em representação da Mitsubishi Electric Corp., por A. César e M. Abraham, advokáti,

¾        em representação da Alstom, por M. Dubovský e M. Nulíček, advokáti, J. Derenne, avocat, K. Wilson, solicitor, e G. Dolara, advocate,

¾        em representação da Fuji Electric Holdings Co. Ltd e da Fuji Electric Systems Co. Ltd, por V. Glatzová, advokát,

¾        em representação da Siemens Transmission & Distribution SA, da Siemens AG Österreich e da VA Tech Transmission & Distribution GmbH & Co. KEG, por M. Nedelka, advokát,

¾        em representação da Siemens AG, por M. Nedelka, advokát,

¾        em representação da Hitachi Ltd, da Hitachi Europe Ltd e da Japan AE Power Systems Corp., por M. Touška e I. Halamová Dobíšková, advokáti, M. Reynolds, e P. J. Mansfield, solicitors, W. Devroe, advocaat, N. Green, QC, e S. Singla, barrister,

¾        em representação da Nuova Magrini Galileo SpA, por M. Nedelka, advokát,

¾        em representação da Úřad pro ochranu hospodářské soutěže, por M. Vráb, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

¾        em representação da Irlanda, por D. O’Hagan, na qualidade de agente, assistido por S. Kingston, barrister,

¾        em representação do Governo espanhol, por S. Centeno Huerta e J. M. Rodríguez Cárcamo, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo polaco, por M. Szpunar e K. Zawisza, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo eslovaco, por B. Ricziová, na qualidade de agente,

¾        em representação da Comissão Europeia, por F. Castillo de la Torre, N. Khan, K. Walkerová e P. Němečková, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por X. Lewis e o. Einarsson, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 8 de setembro de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 81.° CE do Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado (JO 2003, L 1, p. 1), designadamente dos seus artigos 3.°, n.° 1, e 11.°, n.° 6, bem como do ponto 51 da Comunicação da Comissão sobre a cooperação no âmbito da rede de autoridades de concorrência (JO 2004, C 101, p. 43, a seguir «comunicação da Comissão»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe várias empresas à Úřad pro ochranu hospodářské soutěže (autoridade checa da concorrência), a propósito da decisão desta autoridade de lhes aplicar coimas por violação do direito checo da concorrência.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos do artigo 2.° do Ato relativo às condições de adesão à União Europeia da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO 2003, L 236, p. 33, a seguir «ato de adesão»):

«A partir da data da adesão, as disposições dos Tratados originários e os atos adotados pelas Instituições […] antes da adesão vinculam os novos Estados‑Membros e são aplicáveis nesses Estados nos termos desses Tratados e do presente Ato.»

4        O artigo 53.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3, a seguir «Acordo EEE»), proíbe os acordos, decisões e práticas concertadas nos mesmos termos que os do artigo 81.° CE, e o seu âmbito de aplicação abrange todo o Espaço Económico Europeu (EEE).

5        O oitavo considerando do Regulamento n.° 1/2003 prevê:

«A fim de assegurar uma aplicação eficaz das regras comunitárias de concorrência e o funcionamento adequado dos mecanismos de cooperação constantes do presente regulamento, é necessário impor às autoridades responsáveis em matéria de concorrência e aos tribunais dos Estados‑Membros que apliquem igualmente os artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] nos casos em que apliquem a legislação nacional em matéria de concorrência a acordos e práticas que possam afetar o comércio entre os Estados‑Membros. A fim de se criar um quadro comum de atuação relativamente a acordos, decisões de associações de empresas e práticas concertadas no âmbito do mercado interno, é também necessário determinar, com base na alínea e) do n.° 2 do artigo 83.° [CE], as relações entre as legislações nacionais e a legislação comunitária em matéria de concorrência […]»

6        O nono considerando do Regulamento n.° 1/2003 enuncia:

«Os artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] têm por objetivo proteger a concorrência no mercado. O presente regulamento, aprovado em aplicação dessas disposições do Tratado, não impede os Estados‑Membros de aplicarem no seu território legislação nacional que proteja outros interesses legítimos, desde que essa legislação seja compatível com os princípios gerais e outras disposições do direito comunitário. Na medida em que tal legislação nacional prossiga essencialmente um objetivo diferente do da proteção da concorrência no mercado, as autoridades responsáveis em matéria de concorrência e os tribunais dos Estados‑Membros poderão aplicá‑la no seu território […]»

7        Nos termos do décimo sétimo considerando do Regulamento n.° 1/2003:

«A fim de assegurar tanto a aplicação coerente das regras de concorrência como uma gestão otimizada da rede, é indispensável introduzir a regra segundo a qual, quando a Comissão der início a um processo, este sai automaticamente da alçada das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência […]»

8        O décimo oitavo considerando do mesmo regulamento dispõe:

«A fim de assegurar uma distribuição otimizada dos processos no âmbito da rede, é necessário prever uma disposição geral que permita a uma autoridade responsável em matéria de concorrência suspender ou arquivar um processo por motivo de outra autoridade o estar a instruir, por forma a que cada processo apenas seja apreciado por uma única autoridade […]»

9        O trigésimo sétimo considerando do Regulamento n.° 1/2003, que é consagrado à proteção dos direitos fundamentais, enuncia:

«O presente regulamento respeita os direitos fundamentais e observa os princípios gerais reconhecidos, nomeadamente, na Carta dos direitos fundamentais da União Europeia [a seguir ‘Carta’]. Assim, nada no presente regulamento deverá ser interpretado e aplicado como afetando esses direitos e princípios.»

10      O artigo 3.° do Regulamento n.° 1/2003 regula a «[r]elação entre [o artigo 81.° CE] […] e as legislações nacionais em matéria de concorrência», do seguinte modo:

«1.      Sempre que as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência ou os tribunais nacionais apliquem a legislação nacional em matéria de concorrência a acordos, decisões de associação ou práticas concertadas na aceção do n.° 1 do artigo 81.° [CE], suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros, na aceção desta disposição, devem aplicar igualmente o artigo 81.° [CE] a tais acordos, decisões ou práticas concertadas. […]

2.      A aplicação da legislação nacional em matéria de concorrência não pode levar à proibição de acordos, decisões de associação ou práticas concertadas suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros mas que não restrinjam a concorrência na aceção do n.° [1] do artigo 81.° [CE], ou que reúnam as condições do n.° 3 do artigo 81.° [CE] ou se encontrem abrangidos por um regulamento de aplicação do n.° 3 do artigo 81.° [CE]. Nos termos do presente regulamento, os Estados‑Membros não estão impedidos de aprovar e aplicar no seu território uma legislação nacional mais restritiva que proíba atos unilaterais de empresas ou que imponha sanções por esses atos.

3.      Sem prejuízo dos princípios gerais e de outras disposições do direito comunitário, os n.os 1 e 2 não se aplicam sempre que as autoridades responsáveis em matéria de concorrência e os tribunais dos Estados‑Membros apliquem a legislação nacional relativa ao controlo das concentrações, nem excluem a aplicação das disposições nacionais que tenham essencialmente um objetivo diferente do dos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE].»

11      Sob a epígrafe «Cooperação entre a Comissão e as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência», o artigo 11.° do Regulamento n.° 1/2003 enuncia, além disso, no seu n.° 6, primeiro período, a seguinte regra:

«O início por parte da Comissão da tramitação conducente à aprovação de uma decisão nos termos do capítulo III priva as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência da competência para aplicarem os artigos 81.° [CE] e 82.° [CE].»

12      O artigo 13.° do Regulamento n.° 1/2003, com a epígrafe «Suspensão ou arquivamento do processo», dispõe:

«1.      Caso as autoridades responsáveis em matéria de concorrência de dois ou mais Estados‑Membros tenham recebido uma denúncia ou tenham oficiosamente dado início a um processo nos termos dos artigos 81.° [CE] ou 82.° [CE] contra o mesmo acordo, decisão de associação ou prática, a instrução do processo por parte de uma autoridade constitui, para as restantes autoridades, motivo suficiente para suspenderem a respetiva tramitação ou rejeitarem a denúncia. A Comissão pode igualmente rejeitar uma denúncia com o fundamento de que uma autoridade responsável em matéria de concorrência de um Estado‑Membro está já a instruir o processo.

2.      Se for apresentada a uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência ou à Comissão uma denúncia contra um acordo, uma decisão de uma associação ou uma prática que já está a ser instruída por outra autoridade responsável em matéria de concorrência, tal denúncia pode ser rejeitada.»

13      O artigo 16.° do Regulamento n.° 1/2003, com a epígrafe «Aplicação uniforme do direito comunitário da concorrência», prevê, no seu n.° 2:

«Quando se pronunciarem sobre acordos, decisões ou práticas ao abrigo dos artigos 81.° [CE] ou 82.° [CE] que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão.»

14      Por força do seu artigo 45.°, segundo parágrafo, o Regulamento n.° 1/2003 é aplicável desde 1 de maio de 2004.

15      A comunicação da Comissão inclui, designadamente, sob a epígrafe «3.2. Início do processo pela Comissão nos termos do n.° 6 do artigo 11.° do Regulamento do Conselho», as seguintes precisões:

«[...]

51.      O n.° 6 do artigo 11.° do Regulamento [n.° 1/2003] determina que o início por parte da Comissão de um procedimento conducente à aprovação de uma decisão nos termos do Regulamento [n.° 1/2003] priva as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência da competência para aplicarem os artigos 81.° [CE] e 82.° [CE]. Isto significa que, uma vez que a Comissão tenha dado início a um procedimento, as [autoridades nacionais da concorrência] não podem agir ao abrigo da mesma base jurídica contra o(s) mesmo(s) acordo(s) ou prática(s) das mesmas empresas nos mesmos mercados geográfico e do produto relevantes.

[...]

53.      Podem ocorrer duas situações. Na primeira, quando a Comissão é a primeira autoridade responsável em matéria de concorrência a iniciar um processo conducente à adoção de uma decisão nos termos do Regulamento [n.° 1/2003], as autoridades nacionais responsáveis em matéria de concorrência deixam de poder instruir o processo. O n.° 6 do artigo 11.° do Regulamento [n.° 1/2003] determina que, logo que a Comissão dê início a um procedimento, as [autoridades nacionais da concorrência] deixam de poder iniciar o seu próprio procedimento para aplicar os artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] ao(s) mesmo(s) acordo(s) ou prática(s) da(s) mesma(s) empresa(s), nos mesmos mercados geográfico e do produto relevantes.

[...]»

 Direito nacional

16      A nível do direito checo, é relevante o artigo 3.° da Lei de defesa da concorrência. Esta disposição era aplicável, até 30 de junho de 2001, na sua versão resultante da Lei n.° 63/1991 Sb. (Zákon č. 63/1991 Sb., o ochraně hospodářské soutěže), conforme alterada, e, a partir de 1 de julho de 2001, na sua versão resultante da Lei n.° 143/2001 Sb. (Zákon č. 143/2001 Sb., o ochraně hospodářské soutěže).

17      Em conformidade com o artigo 3.°, n.° 1, da Lei de defesa da concorrência, na sua versão em vigor até 30 de junho de 2001:

«1. Todos os acordos entre concorrentes, qualquer decisão de associações de empresas e qualquer prática concertada dos concorrentes […], que tenham ou possam ter por efeito falsear a concorrência no mercado de produtos, são proibidos e nulos, salvo disposições em contrário previstas pela presente lei ou por lei especial, ou em caso de isenção concedida pelo Ministério da Concorrência [...]»

18      A proibição de acordos e práticas restritivas da concorrência, enunciada no artigo 3.°, n.° 1, da Lei n.° 143/2001 Sb. que, em 1 de julho de 2001, revogou a Lei n.° 63/1991 Sb., manteve‑se, no essencial, inalterada.

 Factos, procedimento administrativo e litígio no processo principal

19      O presente processo diz respeito a um cartel de alcance mundial no mercado dos mecanismos de comutação isolados a gás (a seguir «MCIG»), no qual, em diferentes períodos situados entre 1988 e 2004, participaram várias empresas europeias e japonesas do setor da eletrotécnica. Tanto a Comissão como a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže analisaram alguns aspetos deste processo durante os anos de 2006 e 2007 e aplicaram coimas às empresas em causa.

 Procedimento administrativo na União

20      Segundo as indicações que figuram na decisão de reenvio, a Comissão, em 30 de setembro de 2004, remeteu uma carta à Úřad pro ochranu hospodářské soutěže, informando‑a de que pretendia dar início a um processo relativo a um cartel no mercado dos MCIG. A Comissão indicava nessa carta que o comportamento anticoncorrencial examinado tinha sido verificado, em grande medida, antes de 1 de maio de 2004 e que, tendo em conta a dificuldade que representava a aplicação de uma coima no que respeita aos últimos dias apenas deste comportamento (de 1 de maio de 2004 a 11 de maio de 2004), o processo perante si pendente só tinha por objecto as atividades deste cartel exercidas no território da União Europeia antes do alargamento desta em 1 de maio de 2004. Segundo a Comissão, era por isso improvável intentar uma ação contra a República Checa.

21      Em 20 de abril de 2006, a Comissão deu início a um processo destinado à aplicação de coimas, com base nos artigos 81.° CE e 53.° do Acordo EEE, em conjugação com o Regulamento n.° 1/2003. Este processo, que tinha sido precedido de um pedido de clemência e de inspeções efetuadas durante o ano de 2004 nas instalações de várias empresas que participaram no referido cartel, foi dirigido contra um total de 20 pessoas coletivas, entre as quais a Toshiba Corporation e as outras recorrentes no processo principal.

22      Nos n.os 2 e 3 da fundamentação da decisão da Comissão, de 24 de janeiro de 2007, relativa a um processo de aplicação do artigo 81.° do Tratado CE e do artigo 53.° do Acordo EEE (processo COMP/F/38.899 – Mecanismos de comutação isolados a gás) (a seguir «decisão da Comissão»), que encerrou o processo, a Comissão declara que o cartel visado constituiu, entre 15 de abril de 1988 e 11 de maio de 2004, uma infração única e continuada do artigo 81.° CE e, a partir de 1 de janeiro de 1994, igualmente do artigo 53.° do Acordo EEE, que afetou o território do EEE e em que participaram diferentes empresas em períodos de duração variável. A Comissão, na secção 6.6.2 desta decisão, determinou a data de cessação deste cartel, a saber, 1 de maio de 2004, por referência à data em que teve lugar a última reunião de trabalho de que teve conhecimento, que terminou quando os representantes da Siemens AG informaram os demais membros do referido cartel de que a Comissão tinha procedido a inspeções inesperadas, naquele mesmo dia.

23      Segundo as constatações que figuram nos pontos 2, 3, 218 e 248 da fundamentação da decisão da Comissão, trata‑se de um cartel complexo e de alcance mundial, com exceção dos Estados Unidos e do Canadá, que produziu efeitos na União e no EEE, e no quadro do qual as empresas em causa trocaram informações sensíveis relativas ao mercado visado, repartiram os mercados, concluíram acordos de preços e cessaram a sua colaboração com as empresas que não eram membros deste cartel.

24      Com exceção de uma empresa, a ABB Ltd, que beneficiou do programa de clemência da Comissão, todas as partes no processo, entre as quais figuram todas as recorrentes no processo principal, foram condenadas a coimas num montante total de mais de 750 milhões de euros. A coima individual mais elevada, num montante superior a 396 milhões de euros, foi infligida à Siemens AG.

 Procedimento administrativo a nível nacional

25      Em 2 de agosto de 2006, a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže deu início a um processo por violação da Lei de defesa da concorrência, respeitante aos membros do cartel em causa no processo principal. Em 9 de fevereiro de 2007, adotou uma primeira decisão contra a qual as recorrentes no processo principal interpuseram recurso administrativo interno. Na sequência desse recurso, o presidente da Úřad pro ochranu hospodářské soutěže, por decisão de 26 de abril de 2007, alterou esta primeira decisão.

26      Nessa decisão de 26 de abril de 2007, a referida autoridade declarou que a ABB Management Services Ltd (sucessora da ABB Power Technologies Management Ltd), a ABB Switzerland Ltd, a ABB Ltd, a Alstom, a Areva T&D SA, a Fuji Electric Holdings Co. Ltd, a Fuji Electric Systems Co. Ltd, a Hitachi Ltd, a Hitachi Europe Ltd, a Mitsubishi Electric Corp., a Toshiba Corporation, a Schneider Electric SA, a Siemens AG, a Siemens AG Österreich (sucessora da VA Technologie AG e da VA Tech T&D GmbH), a VA Tech Transmission & Distribution GmbH & Co. KEG, a Siemens Transmission and Distribution Ltd (anteriormente VA Tech Transmission & Distribution Ltd) e a Nuova Magrini Galileo SpA tinham participado num cartel no território da República Checa. Em virtude deste comportamento, estas empresas concorrentes tinham violado, no período anterior a 30 de junho de 2001, a proibição enunciada no artigo 3.°, n.° 1, da Lei de defesa da concorrência, na sua versão resultante da Lei n.° 63/1991 Sb., conforme alterada e, durante o período de 1 de julho de 2001 a 3 de março de 2004, a proibição que figura no artigo 3.°, n.° 1, da referida lei, na sua versão resultante da Lei n.° 143/2001 Sb. Estas empresas tinham assim violado a Lei de defesa da concorrência, no período que tinha decorrido até 3 de março de 2004.

27      Para determinar a data de cessação da infração, a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže tomou em consideração a última data em que a prova da existência da infração podia ter sido produzida, ou seja, 3 de março de 2004, data em que tinha sido registada a última comunicação por correio eletrónico que demonstrava a existência de ligações entre os participantes no cartel em causa no processo principal. Segundo as indicações dadas, na audiência, pelo agente da República Checa e pelo representante da Úřad pro ochranu hospodářské soutěže, o direito checo da concorrência baseia‑se, para a determinação do fim de um cartel, em critérios de apreciação diferentes dos seguidos pela Comissão.

28      Com exceção de uma empresa, que beneficiou de medidas de clemência previstas pelo direito interno, foram aplicadas coimas a todas as empresas em causa no processo conduzido a nível nacional.

 Processo nos órgãos jurisdicionais checos

29      As recorrentes no processo principal interpuseram recurso da decisão da Úřad pro ochranu hospodářské soutěže no Krajský soud v Brně (tribunal regional de Brno). Alegaram, designadamente, que esta autoridade tinha determinado incorretamente a duração do cartel em causa no processo principal e tinha intencionalmente situado a cessação deste último numa data anterior à adesão da República Checa à União, de forma a justificar a aplicação da Lei de defesa da concorrência. Segundo as recorrentes, resulta do artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003 que a referida autoridade já não era competente para desencadear um processo a nível nacional, uma vez que a Comissão já tinha instaurado um processo a nível europeu. Como tal, concluíram que o processo iniciado a nível nacional violava o princípio ne bis in idem, que proíbe o cúmulo de sanções.

30      Por sentença de 25 de junho de 2008, o Krajský soud v Brně anulou a decisão da Úřad pro ochranu hospodářské soutěže de 26 de abril de 2007, bem como a decisão inicial, adotada em 9 de fevereiro de 2007.

31      O Krajský soud v Brně considerou que o comportamento das recorrentes no processo principal constituía uma infração única e continuada e baseou‑se na decisão da Comissão para concluir que o Úřad pro ochranu hospodářské soutěže tinha considerado erradamente que a infração terminara em 3 de março de 2004. Entendeu que a infração continuou até 11 de maio de 2004, ou seja, após a adesão da República Checa à União e após a entrada em vigor do Regulamento n.° 1/2003. Devia, por isso, considerar‑se que a mesma foi cometida na vigência da «lei nova», ou seja, o artigo 81.° CE e o Regulamento n.° 1/2003. Como a Comissão já tinha dado início ao processo relativo ao cartel de «alcance mundial» em causa no processo principal, nos termos do artigo 81.° CE, e aplicado sanções, o novo processo então iniciado violaria o princípio ne bis in idem. O Krajský soud v Brně considerou, por outro lado, que, em aplicação do artigo 11.°, n.° 6, primeiro período, do Regulamento n.° 1/2003, a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže já não era competente para decidir o litígio em questão com base no artigo 81.° CE.

32      A Úřad pro ochranu hospodářské soutěže interpôs recurso da sentença do Krajský soud v Brně para o Nejvyšší správní soud (Supremo Tribunal Administrativo). Considera‑se ainda competente para desencadear um processo contra as recorrentes no processo principal, em razão do seu comportamento anterior à data de adesão da República Checa à União, uma vez que, até essa data, a Comissão não podia ter desencadeado um processo contra nenhuma das infrações relativas a esse Estado. Segundo esta autoridade, o facto de aplicar sanções a um cartel de alcance mundial, no âmbito de competências diferentes, não constitui uma violação do princípio ne bis in idem. A referida autoridade alegou que a Comissão e ela própria tinham examinado consequências territorialmente diferentes deste cartel. Além disso, a jurisprudência do Tribunal de Justiça que resulta do acórdão de 13 de fevereiro de 1969, Wilhelm e o. (14/68, Colet. 1969‑1970, p. 1), autoriza a aplicação em paralelo do direito da concorrência da União e do direito nacional da concorrência.

33      Por acórdão de 10 de abril de 2009, o Nejvyšší správní soud anulou o acórdão do Krajský soud v Brně.

34      O Nejvyšší správní soud considerou que o Krajský soud v Brně tinha qualificado erradamente de infração contínua a participação das empresas em causa no cartel. Segundo aquele primeiro órgão jurisdicional, importa admitir a existência de duas infrações distintas, constituindo a data de adesão da República Checa à União uma data charneira a este respeito, devido à alteração das competências que se seguiu. Em especial, até à adesão, o cartel que atuava no território checo estava, segundo o referido órgão jurisdicional, exclusivamente sujeito ao direito nacional e apenas podia ser objecto de um processo nos termos desse direito. O Nejvyšší správní soud devolveu então o processo ao Krajský soud v Brně, para este decidir novamente.

35      O Krajský soud v Brně observa que, mesmo que, por força do artigo 110.°, n.° 3, da Lei n.° 150/2002 Sb., que aprova o Código de Procedimento Administrativo (Zákon č. 150/2002 Sb., soudní řád správní), seja obrigado a seguir a análise jurídica do Nejvyšší správní soud, parece‑lhe todavia necessário clarificar determinados aspetos jurídicos do direito da União, relativos, por um lado, à adesão da República Checa à União, em 1 de maio de 2004 e, por outro, à entrada em vigor do Regulamento n.° 1/2003.

36      Nestas condições, o Krajský soud v Brně suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 81.° do Tratado CE (atual artigo 101.° [TFUE]) e o Regulamento […] n.° 1/2003 […] devem ser interpretados no sentido de que essa legislação deve ser aplicada (nos processos posteriores a 1.5.2004) a todo o período de atividade do cartel, que começou na República Checa antes da sua adesão à União Europeia (ou seja, antes de 1.5.2004), tendo continuado e terminado após essa adesão?

2)      O artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento […] n.° 1/2003 […], conjugado com o seu artigo 3.°, n.° 1, e com o seu considerando 17, com o ponto 51 da Comunicação da Comissão […], com o princípio ne bis in idem nos termos do artigo 50.° da Carta […], e com os princípios gerais de [d]ireito, devem ser interpretados no sentido de que se a Comissão instaurar procedimentos após 1.5.2004 por violação do artigo 81.° CE e tomar uma decisão:

a)      as autoridades da concorrência dos Estados‑Membros deixam de ter competência para apreciar tal conduta a partir dessa data?

b)      as autoridades da concorrência dos Estados‑Membros deixam de ter competência para aplicar as disposições da lei nacional que contenham legislação paralela ao artigo 81.° CE […] a essa conduta?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Observações preliminares

37      Há que formular as seguintes observações quanto à redação das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio. Na primeira questão, que visa determinar a lei aplicável aos efeitos do cartel em causa no processo principal no território checo, é feita referência a um processo instaurado após a adesão da República Checa à União, em 1 de maio de 2004, relativo a um cartel que, no território deste Estado, tinha começado antes dessa data, continuou e só terminou após essa data. A segunda questão prende‑se com as consequências da adoção, pela Comissão, de uma decisão que sanciona um comportamento anticoncorrencial para a possibilidade de uma autoridade nacional da concorrência dar início ou desencadear um processo contra esse mesmo comportamento («a essa conduta»).

38      Esta formulação das questões submetidas explica‑se pela circunstância de o órgão jurisdicional de reenvio entender que importa considerar o cartel no mercado dos MCIG em causa no processo principal como um comportamento único e continuado, que só cessou após a adesão da República Checa à União, e apreciar esse comportamento anticoncorrencial no seu todo, face à regulamentação em vigor no dia em que terminou, ou seja, o artigo 81.° CE e o Regulamento n.° 1/2003.

39      Nesse contexto, o órgão jurisdicional de reenvio, tal como as recorrentes no processo principal, baseia‑se na decisão da Comissão e considera que esta sancionou o comportamento das sociedades em causa igualmente no que respeita à República Checa, de forma que a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže não era competente, posteriormente à adesão da República Checa à União e à entrada em vigor do Regulamento n.° 1/2003, para desencadear um processo e sancionar os efeitos do cartel no referido território, mesmo no que respeita a um período anterior a essa adesão.

40      Ora, é indicado na decisão de reenvio que, em 30 de setembro de 2004, a Comissão informou a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže de que pretendia dar início a um procedimento relativo a um cartel no mercado dos MCIG em causa no processo principal, precisando que o comportamento anticoncorrencial examinado se tinha verificado, em grande medida, antes de 1 de maio de 2004, e que o processo por ela iniciado apenas abrangia as atividades do cartel exercidas no território da União, tal como existia antes do seu alargamento, em 1 de maio de 2004.

41      Além disso, nas suas observações escritas, a Comissão sublinhou que a interpretação do âmbito de aplicação da sua decisão, que figura no n.° 29 da decisão de reenvio, é inexata e que a sua decisão não sanciona os efeitos do comportamento colusório que se tinha concretizado no território checo anteriormente a 1 de maio de 2004.

42      Por fim, resulta das próprias indicações do órgão jurisdicional de reenvio que a decisão do Úřad pro ochranu hospodářské soutěže, em causa no processo principal, tem em conta exclusivamente os efeitos anticoncorrenciais produzidos, no território checo, pelo cartel entre as empresas em causa, antes de 1 de maio de 2004. Portanto, esta decisão diz unicamente respeito ao período anterior à adesão da República Checa à União.

43      É à luz destas considerações preliminares que devem ser examinadas as questões prejudiciais.

 Quanto à primeira questão

44      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se as disposições do artigo 81.° CE e do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003 devem ser interpretadas no sentido de que, no âmbito de um processo instaurado após 1 de maio de 2004, se podem aplicar a um cartel que, no território de um Estado‑Membro que aderiu à União em 1 de maio de 2004, produziu efeitos em períodos anteriores a essa data.

45      A este respeito, há que recordar que importa ter em conta, quanto à interpretação e à aplicação do artigo 81.° CE e do Regulamento n.° 1/2003, a situação particular de um Estado, como a República Checa, que se tornou membro da União com efeitos a 1 de maio de 2004 [v., no que respeita à Diretiva 69/335/CEE do Conselho, de 17 de julho de 1969, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais (JO L 249, p. 25; EE 09 F1 p. 22), acórdãos de 21 de junho de 2007, Optimus ― Telecomunicações, C‑366/05, Colet., p. I‑4985, n.° 25, e de 12 de novembro de 2009, Elektrownia Pątnów II, C‑441/08, Colet., p. I‑10799, n.° 30].

46      Por força do artigo 2.° do ato de adesão, as disposições dos Tratados originários e os atos adotados pelas Instituições e pelo Banco Central Europeu, antes da adesão, vinculam os novos Estados‑Membros, a partir da adesão, portanto, em 1 de maio de 2004, e são aplicáveis nesses Estados nos termos desses Tratados e do ato de adesão.

47      Segundo jurisprudência constante, pressupõe‑se geralmente que as regras processuais são aplicáveis a todos os litígios pendentes no momento em que entram em vigor, ao contrário das regras substantivas, que são habitualmente interpretadas no sentido de que, em princípio, não se aplicam a situações constituídas antes da sua entrada em vigor (v. acórdãos de 12 de novembro de 1981, Meridionale Industria Salumi e o., 212/80 a 217/80, Recueil, p. 2735, n.° 9; de 6 de julho de 1993, CT Control (Rotterdam) e JCT Benelux/Comissão, C‑121/91 e C‑122/91, Colet., p. I‑3873, n.° 22; de 23 de fevereiro de 2006, Molenbergnatie, C‑201/04, Colet., p. I‑2049, n.° 31; e de 14 de fevereiro de 2008, Varec, C‑450/06, Colet., p. I‑581, n.° 27).

48      O Regulamento n.° 1/2003 contém regras processuais e regras substantivas.

49      Como a advogada‑geral indicou no n.° 43 das suas conclusões, o artigo 3.°, n.° 1, do referido regulamento contém, como o artigo 81.° CE, regras materiais destinadas à apreciação de acordos de empresas pelas autoridades da concorrência, que constituem, por isso, regras substantivas do direito da União.

50      Tais regras substantivas não podem, em princípio, ser objeto de uma aplicação retroativa, independentemente dos efeitos favoráveis ou desfavoráveis que essa aplicação possa ter para os interessados. Com efeito, o princípio da segurança jurídica exige que qualquer situação de facto seja, em regra, e salvo indicação expressa em contrário, apreciada à luz das regras jurídicas dela contemporâneas (v., neste sentido, acórdão de 22 de dezembro de 2010, Bavaria, C‑120/08, Colet., p. I‑3393, n.os 40 e 41).

51      Resulta de jurisprudência assente que, para garantir o respeito dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, as regras substantivas do direito da União devem ser interpretadas no sentido de que apenas têm em vista as situações constituídas antes da sua entrada em vigor, se resultar claramente dos seus termos, da sua finalidade ou da sua sistemática que lhes deve ser atribuído esse efeito (v. acórdão de 24 de março de 2011, ISD Polska e o./Comissão, C‑369/09 P, Colet., p. I‑2011, n.° 98 e jurisprudência referida).

52      Todavia, no presente processo, nem a redação, nem a finalidade, nem a sistemática do artigo 81.° CE, do artigo 3.° do Regulamento n.° 1/2003 e do ato de adesão incluem indicações claras que vão no sentido de uma aplicação retroativa destas duas disposições.

53      Estas constatações não são infirmadas pelos argumentos apresentados pelas recorrentes no processo principal.

54      Em primeiro lugar, algumas recorrentes no processo principal pretendem retirar argumentos dos n.os 62 e 63 do acórdão de 17 de outubro de 1989, Dow Chemical Ibérica e o./Comissão (97/87 a 99/87, Colet., p. 3165), para defender que, no presente processo, a aplicabilidade do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003 não se pode limitar às infrações que foram cometidas após a adesão da República Checa à União e que a Comissão era competente para sancionar os comportamentos anticoncorrenciais adotados no território desse Estado antes dessa adesão.

55      A este respeito, importa recordar que, no n.° 62 do acórdão Dow Chemical Ibérica e o./Comissão, já referido, o Tribunal de Justiça decidiu que, após a adesão do Reino de Espanha, em 1 de janeiro de 1986, o Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de fevereiro de 1962, Primeiro Regulamento de execução dos artigos [81.°] e [82.°] do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22), era aplicável nesse novo Estado‑Membro, de modo que as empresas estabelecidas em Espanha podiam estar sujeitas a verificações a partir de 1 de janeiro de 1986. Resulta do n.° 63 do mesmo acórdão que a competência de investigação da Comissão, depois dessa data, não pode estar limitada aos comportamentos posteriores à adesão e, por isso, pode abranger comportamentos anteriores a essa data.

56      Todavia, o processo em que foi proferido o acórdão Dow Chemical Ibérica e o./Comissão, já referido, dizia respeito não à aplicação de regras substantivas mas unicamente a regras processuais, no caso concreto, à aplicação de disposições relativas às buscas da Comissão nas instalações das empresas.

57      O acórdão Dow Chemical Ibérica e o./Comissão, já referido, não inclui, em contrapartida, nenhuma indicação quanto à questão de saber se as regras substantivas do direito da União em matéria de concorrência são aplicáveis aos efeitos anticoncorrenciais produzidos por um cartel no território de um novo Estado‑Membro no período anterior à adesão desse Estado à União.

58      Em segundo lugar, algumas recorrentes no processo principal invocam a jurisprudência segundo a qual uma nova regra é imediatamente aplicável aos efeitos futuros de uma situação nascida na vigência da regra anterior, para defender que, após a adesão de um Estado à União, o direito da União se deve aplicar imediatamente, para efeitos da apreciação dos factos ocorridos antes dessa adesão. No n.° 14 do acórdão de 2 de outubro de 1997, Saldanha e MTS (C‑122/96, Colet., p. I‑5325), a que essas sociedades se referiram, o Tribunal de Justiça decidiu que, não havendo no ato relativo às condições de adesão de um Estado‑Membro, no caso, a República da Áustria, disposições específicas quanto à aplicação de uma disposição do Tratado CE, se deve considerar que essa disposição é de aplicação imediata e vincula esse Estado‑Membro logo a partir da sua adesão, pelo que se aplica aos efeitos futuros das situações nascidas antes da adesão desse novo Estado‑Membro.

59      Tal argumento não pode ser esgrimido em favor de uma aplicação retroativa do artigo 81.° CE e do Regulamento n.° 1/2003 a comportamentos anteriores à adesão de um Estado à União.

60      As disposições do artigo 81.° CE e do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003 só são aplicáveis aos eventuais efeitos anticoncorrenciais que resultam do cartel em causa no processo principal no território checo na medida em que haja que sancionar os efeitos que se produziram durante o período que teve início em 1 de maio de 2004. Ora, como se constatou no n.° 42 do presente acórdão, segundo a decisão de reenvio, o processo principal diz respeito a uma infração à legislação da República Checa em matéria de concorrência, que terminou antes da adesão deste Estado à União. A Úřad pro ochranu hospodářské soutěže limitou‑se a aplicar o direito nacional da concorrência aos efeitos produzidos antes da adesão por práticas anticoncorrenciais que foram adotadas no território checo antes dessa data. Não actua contra os efeitos futuros de comportamentos anteriores à referida adesão.

61      Em terceiro lugar, certas recorrentes no processo principal alegaram que o artigo 3.°, n.° 1, da Lei de defesa da concorrência, aplicável na República Checa antes de 1 de maio de 2004, estabelecia, do ponto de vista substantivo, a mesma proibição de acordos e práticas colusórias que a consagrada no artigo 81.° CE e que, antes da adesão da República Checa à União, o direito checo da concorrência estava, no essencial, alinhado pelo direito da União nesta matéria. O Acordo Europeu que estabelece uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e a República Checa, por outro (JO 1994, L 360, p. 2), assinado no Luxemburgo em 4 de outubro de 1993, e que entrou em vigor em 1 de fevereiro de 1995, incluía já, no seu artigo 64.°, uma disposição análoga à do artigo 81.° CE. Segundo essas recorrentes no processo principal, a adesão da República Checa à União não teria, por isso, tido por efeito criar nesse Estado, relativamente às sociedades, novas regras proibindo práticas até então legais. A aplicação do artigo 81.° CE ao cartel em causa no processo principal, no seu todo, incluindo à parte concretizada antes dessa adesão, não prejudica, no que diz respeito às empresas em causa, o princípio da segurança jurídica.

62      A este propósito, há que observar que, antes de 1 de maio de 2004, no que respeita ao tratamento dos efeitos anticoncorrenciais produzidos no território checo, só as instâncias nacionais eram competentes para aplicar e executar tanto o direito nacional como o referido acordo europeu. Além disso, antes dessa data, o Regulamento n.° 1/2003, cujo artigo 3.°, n.° 1, impôs pela primeira vez às diferentes autoridades nacionais que procedessem, nas condições nele previstas, à aplicação, em paralelo, do artigo 81.° CE e do direito nacional da concorrência, não era aplicável nem nos antigos nem nos novos Estados‑Membros. Com efeito, por força do seu artigo 45.°, segundo parágrafo, o Regulamento n.° 1/2003 só se aplica desde 1 de maio de 2004.

63      Algumas recorrentes no processo principal alegaram igualmente que o princípio da aplicação retroativa da pena mais leve justifica que os efeitos anticoncorrenciais que o cartel em causa no processo principal produziu no território checo antes de 1 de maio de 2004 fossem apreciados à luz do artigo 81.° CE e do Regulamento n.° 1/2003. Segundo essas sociedades, esse princípio, reconhecido pelo Tribunal de Justiça em matéria penal, devia igualmente aplicar‑se em matéria de direito da concorrência nos processos relativos a infrações administrativas.

64      A este respeito, importa recordar que o princípio da aplicação retroativa da pena mais leve, que decorre das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros e faz parte dos princípios gerais do direito da União cujo respeito é garantido pelo Tribunal de Justiça (acórdãos de 3 de maio de 2005, Berlusconi e o., C‑387/02, C‑391/02 e C‑403/02, Colet., p. I‑3565, n.os 67 e 68; de 11 de março de 2008, Jager, C‑420/06, Colet., p. I‑1315, n.° 59; e de 28 de abril de 2011, El Dridi, C‑61/11 PPU, Colet., p. I‑3015, n.° 61), figura igualmente no artigo 49.°, n.° 1, terceiro período, da Carta.

65      Importa todavia referir que, ao invocar esse princípio, as recorrentes no processo principal não preconizam a aplicação de uma sanção mais leve para o período anterior a 1 de maio de 2004, mas pretendem, na realidade, que a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže não tome, em definitivo, nenhuma decisão no que diz respeito aos efeitos, no território checo, do cartel em causa no processo principal. Estas sociedades desejam que o princípio da aplicação retroativa da pena mais leve seja, afinal, interpretado no sentido de que a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže não é competente para sancionar o cartel em relação ao período anterior a 1 de maio de 2004 e que os efeitos anticoncorrenciais que produziu durante esse período sejam considerados abrangidos pela decisão da Comissão.

66      Como a advogada‑geral referiu no n.° 61 das suas conclusões, esses argumentos equivalem a questionar a competência, enquanto tal, da Úřad pro ochranu hospodářské soutěže para aplicar coimas. Essa questão está ligada à interpretação do artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003, bem como ao princípio ne bis in idem, que serão examinados no âmbito da segunda questão, e não ao princípio da aplicação retroativa da pena mais leve.

67      Por conseguinte, há que responder à primeira questão que as disposições do artigo 81.° CE e do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003 devem ser interpretadas no sentido de que, no âmbito de um processo iniciado após 1 de maio de 2004, não são aplicáveis a um cartel que produziu efeitos, no território de um Estado‑Membro que aderiu à União em 1 de maio de 2004, em períodos anteriores a essa data.

 Quanto à segunda questão

68      Com a sua segunda questão, que se divide em duas partes, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se um processo instaurado após 1 de maio de 2004 pela Comissão, destinado à aplicação de uma coima, impede de forma permanente a autoridade nacional da concorrência de um Estado‑Membro que aderiu à União nessa data de, por sua vez, ao abrigo do direito nacional da concorrência, iniciar um processo contra um cartel cujos efeitos se produziram, no território desse Estado, antes da adesão deste último à União. A este respeito, em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pretende obter esclarecimentos sobre a interpretação a fazer do artigo 11.°, n.° 6, lido em conjugação com o artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003, e sobre a delimitação das competências da autoridade nacional da concorrência e da Comissão para instaurar tal processo. Em segundo lugar, este órgão jurisdicional interroga o Tribunal de Justiça a propósito da margem de manobra de que esta autoridade dispõe para aplicar o direito nacional da concorrência, tendo em conta o princípio ne bis in idem.

 Delimitação das competências das autoridades nacionais e da União no domínio da concorrência nos processos em matéria de cartéis

69      O órgão jurisdicional de reenvio e as recorrentes no processo principal consideram que, por força das disposições conjugadas dos artigos 11.°, n.° 6, e 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003, a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže foi definitivamente privada da sua competência para actuar contra o cartel em causa no processo principal, no momento em que a Comissão instaurou o processo destinado à aplicação de uma coima. O Órgão de Fiscalização da EFTA considera que o artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003 deve ser interpretado no sentido de que as autoridades nacionais da concorrência são privadas da respetiva competência para aplicar o direito nacional da concorrência, quando a Comissão dá início a um processo relativo aos mesmos factos que os visados no processo instaurado pelas referidas autoridades.

70      É claro que o artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003, por força do qual as autoridades da concorrência dos Estados‑Membros são privadas da respetiva competência para aplicar os artigos 81.° CE e 82.° CE, a partir do momento em que a Comissão dá início a um processo tendo em vista a adoção de uma decisão em aplicação do capítulo III do referido regulamento, enuncia uma regra processual e, por conseguinte, é aplicável desde 1 de maio de 2004 em todos os Estados‑Membros, incluindo aos processos em matéria de cartéis que dizem respeito a situações nascidas antes dessa data.

71      Desde logo, importa recordar que, no âmbito do presente processo, a decisão da Úřad pro ochranu hospodářské soutěže em causa no processo principal respeita exclusivamente aos efeitos anticoncorrenciais produzidos pelo cartel em causa no processo principal, antes de 1 de maio de 2004, e, como tal, ao período anterior à adesão da República Checa à União, durante o qual o artigo 81.° CE não era aplicável nesse Estado. As disposições do artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003 não podem, a priori, para esse período, obstar à aplicação de disposições nacionais do direito da concorrência como as que figuram no artigo 3.° da Lei de defesa da concorrência.

72      Importa todavia examinar o alcance da privação de competência das autoridades nacionais da concorrência, previsto no artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003, na medida em que, segundo as recorrentes no processo principal e o Órgão de Fiscalização da EFTA, essas autoridades se encontram, desde a entrada em vigor do referido regulamento, em 1 de maio de 2004, não apenas privadas da sua competência para aplicar os artigos 81.° CE e 82.° CE mas também privadas definitivamente da sua competência para aplicar o direito nacional da concorrência a comportamentos suscetíveis de afetar o comércio entre Estados‑Membros que já são objeto de uma decisão da Comissão.

73      No entanto, ao interpretar uma disposição do direito da União, deve atender‑se não apenas ao seu teor literal mas também ao seu contexto e aos objetivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada (v., designadamente, acórdãos de 17 de novembro de 1983, Merck, 292/82, Recueil, p. 3781, n.° 12, e de 7 de outubro de 2010, Lassal, C‑162/09, Colet., p. I‑9217, n.° 49).

74      Como referiu a advogada‑geral no n.° 77 das suas conclusões e como observou a maioria dos interessados que apresentaram observações no Tribunal de Justiça indicou, o artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003 está estreitamente ligado, do ponto de vista substantivo, ao artigo 3.°, n.° 1, desse regulamento.

75      Resulta de uma análise conjunta destas duas disposições que as autoridades nacionais da concorrência são privadas da respetiva competência para aplicar não apenas o direito da concorrência da União mas também uma parte do seu próprio direito nacional da concorrência, a partir do momento em que a Comissão instaura um processo destinado à adoção de uma decisão nos termos do capítulo III do Regulamento n.° 1/2003.

76      As partes do direito nacional da concorrência que continuam aplicáveis são referidas nos n.os 2 e 3 do artigo 3.° do Regulamento n.° 1/2003, que vêm precisar o oitavo e nono considerandos deste regulamento. O referido artigo 3.°, n.os 2, última frase, e 3, enuncia que as autoridades nacionais da concorrência podem aplicar leis nacionais mais restritivas que proíbem ou sancionam «atos unilaterais de empresas» e são, em qualquer caso, livres de aplicar a legislação nacional relativa ao controlo das concentrações e as disposições de direito nacional que visam a título principal um objetivo diferente do visado pelos artigos 81.° CE e 82.° CE.

77      O artigo 3.°, n.° 1, primeiro período, do Regulamento n.° 1/2003 estabelece uma ligação estreita entre a proibição dos cartéis, enunciada no artigo 81.° CE, e as disposições correspondentes do direito nacional da concorrência. Quando a autoridade nacional da concorrência aplica as disposições do direito nacional que proíbem os cartéis a um acordo de empresas que é suscetível de afetar o comércio entre Estados‑Membros na aceção do artigo 81.° CE, o referido artigo 3.°, n.° 1, primeiro período, impõe‑lhe que aplique, igualmente, em paralelo, o artigo 81.° CE.

78      Na medida em que a autoridade nacional da concorrência não está autorizada, nos termos do artigo 11.°, n.° 6, primeiro período, do Regulamento n.° 1/2003, a aplicar o artigo 81.° CE, a partir do momento em que a Comissão tenha dado início a um processo tendo em vista a adoção de uma decisão nos termos do capítulo III deste regulamento, a referida autoridade nacional perde igualmente a possibilidade de aplicar as disposições do direito nacional que proíbem os cartéis.

79      O Regulamento n.° 1/2003 não indica, no entanto, que o início de um processo pela Comissão prive, de forma permanente e definitiva, as autoridades nacionais da concorrência da sua competência para aplicar a legislação nacional em matéria de concorrência.

80      Como a Comissão defende nas suas observações escritas, a competência das autoridades nacionais da concorrência é reativada a partir do momento em que o processo instaurado pela Comissão está concluído.

81      Em conformidade com jurisprudência constante, o direito da União e o direito nacional em matéria de concorrência aplicam‑se em paralelo (acórdão Wilhelm e o., já referido, n.° 3; acórdãos de 9 de setembro de 2003, Milk Marque e National Farmers’ Union, C‑137/00, Colet., p. I‑7975, n.° 61, e de 13 de julho de 2006, Manfredi e o., C‑295/04 a C­‑298/04, Colet., p. I‑6619, n.° 38). As regras de concorrência a nível europeu e nacional consideram as práticas restritivas sob diferentes aspectos (v. acórdãos, já referidos, Wilhelm e o., n.° 3, e Manfredi e o., n.° 38; e acórdão de 14 de setembro de 2010, Akzo Nobel Chemicals e Akcros Chemicals/Comissão, C‑550/07 P, Colet., p. I‑8301, n.° 103), e os seus âmbitos de aplicação não coincidem (acórdão de 1 de outubro de 2009, Compañía Española de Comercialización de Aceite, C‑505/07, Colet., p. I‑8963, n.° 52).

82      Esta situação não foi alterada com a adoção do Regulamento n.° 1/2003.

83      Essa interpretação é corroborada pela circunstância de que, segundo a Proposta de Regulamento do Conselho relativo à execução das regras de concorrência aplicáveis às empresas previstas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado e que altera os Regulamentos (CEE) n.° 1017/68 (CEE) n.° 2988/74 (CEE) n.° 4056/86 e (CEE) n.° 3975/87, apresentada pela Comissão [COM(2000) 582 final] (JO 2000, C 365 E, p. 284), o artigo 3.° do Regulamento n.° 1/2003 devia ter sido redigido de maneira a que, quando um cartel, na aceção do artigo 81.° CE, ou a exploração abusiva de uma posição dominante, na aceção do artigo 82.° CE, for suscetível de afetar o comércio entre Estados‑Membros, apenas seja aplicável o direito da concorrência da União, com exclusão dos direitos nacionais da concorrência. Ora, diferentemente do que a Comissão havia inicialmente proposto, o artigo 3.° do Regulamento n.° 1/2003 permite continuar a aplicar a um único processo tanto as regras do direito da União em matéria de concorrência (artigos 81.° CE e 82.° CE) como a legislação nacional nesta matéria.

84      Por outro lado, por força do artigo 16.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003, quando se pronunciarem sobre acordos, decisões ou práticas ao abrigo dos artigos 81.° CE ou 82.° CE que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão.

85      Decorre desta disposição que as autoridades da concorrência dos Estados‑Membros conservam o seu poder de atuação, mesmo que a própria Comissão já tenha tomado uma decisão. Com efeito, a referida disposição permite que as autoridades nacionais intervenham posteriormente à Comissão, mas proíbe‑as de contrariar uma decisão anterior da Comissão.

86      Segundo a sua redação, o artigo 16.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003 parece visar apenas a aplicação do direito da concorrência da União pelas autoridades nacionais da concorrência. A mesma regulamentação deve, no entanto, aplicar‑se, a fortiori, caso as autoridades nacionais da concorrência decidam aplicar o direito nacional da concorrência. Com efeito, uma vez que essas autoridades nacionais continuam a estar autorizadas a aplicar o direito da União após a Comissão ter tomado uma decisão, deve, a fortiori, ser‑lhes permitido aplicar o seu direito nacional, desde que respeitem os requisitos do direito da União, em aplicação do artigo 3.° do Regulamento n.° 1/2003.

87      A aplicação do artigo 16.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003 não pode ser limitada ao caso de uma verificação prévia de não aplicação dos artigos 81.° CE ou 82.° CE pela Comissão, nos termos do artigo 10.° do Regulamento n.° 1/2003. Diferentemente do que o órgão jurisdicional de reenvio e algumas recorrentes no processo principal consideram, o artigo 16.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003, em virtude da sua redação ampla e da sua sistemática, que o insere no capítulo relativo à cooperação, abrange todas as decisões previsíveis que a Comissão possa ter tomado com base no Regulamento n.° 1/2003, sem se limitar a um certo tipo de decisões.

88      Algumas recorrentes no processo principal pretendem igualmente retirar do décimo oitavo considerando do Regulamento n.° 1/2003 o argumento de que, a fim de assegurar uma distribuição ótima dos processos no âmbito da rede das autoridades da concorrência, é necessário permitir a uma autoridade da concorrência suspender ou arquivar um processo, pelo facto de outra autoridade o estar a instruir ou o ter instruído, de maneira a que cada processo apenas seja apreciado por uma única autoridade. Uma das recorrentes no processo principal baseia‑se neste considerando para defender que o referido regulamento assenta no princípio de que cada caso deve ser analisado por uma única autoridade, a saber, a que esteja mais bem colocada para esse efeito.

89      O décimo oitavo considerando do Regulamento n.° 1/2003 não pode, todavia, ser interpretado no sentido de que o legislador da União pretendeu privar as autoridades nacionais da sua competência para aplicar o direito nacional da concorrência a partir do momento em que a própria Comissão adotou uma decisão.

90      Com efeito, este considerando não tem a ver com a privação de competência das autoridades nacionais, prevista no artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003. Deve ser lido em conjugação com o artigo 13.° desse regulamento, segundo o qual cada autoridade nacional da concorrência na rede das autoridades da concorrência tem a possibilidade ― e não a obrigação ― de suspender o processo que tenha iniciado ou rejeitar uma denúncia que lhe seja apresentada, quando outra autoridade nacional dessa rede esteja já a instruir o processo. O artigo 13.° e o décimo oitavo considerando do Regulamento n.° 1/2003 traduzem o amplo poder de apreciação de que dispõem as autoridades nacionais pertencentes à referida rede, a fim de assegurar uma distribuição ótima dos processos no âmbito desta última.

91      Resulta das considerações que figuram nos n.os 74 a 90 do presente acórdão que uma autoridade nacional da concorrência não está, por força do artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003, lido em conjugação com o artigo 3.°, n.° 1, do mesmo regulamento, privada de forma permanente e definitiva da sua competência para aplicar o direito nacional da concorrência, quando a Comissão dá início a um processo que visa a adoção de uma decisão nos termos do capítulo III do Regulamento n.° 1/2003. A fortiori, numa situação como a do processo principal, em que a autoridade da concorrência de um Estado‑Membro sanciona, por aplicação do direito nacional da concorrência, os efeitos anticoncorrenciais produzidos por um cartel no território do referido Estado‑Membro, durante períodos anteriores à adesão deste último à União, as disposições conjugadas dos artigos 11.°, n.° 6, e 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003 não podem, relativamente a esses períodos, obstar à aplicação das disposições nacionais do direito da concorrência.

92      Por conseguinte, há que responder à primeira parte da segunda questão que o facto de a Comissão iniciar um processo contra um cartel, nos termos do capítulo III do Regulamento n.° 1/2003, não priva, por força do artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003, lido em conjugação com o artigo 3.°, n.° 1, do mesmo regulamento, a autoridade da concorrência do Estado‑Membro em causa da respetiva competência para sancionar, em aplicação do direito nacional da concorrência, os efeitos anticoncorrenciais produzidos por este cartel no território do referido Estado‑Membro, durante períodos anteriores à adesão deste último à União.

 Princípio ne bis in idem

93      A segunda parte da segunda questão visa saber se o princípio ne bis in idem se opõe, numa situação como a do processo principal, à aplicação do direito nacional da concorrência pela autoridade nacional da concorrência.

94      O princípio ne bis in idem deve ser respeitado nos processos que visam a aplicação de coimas, no domínio do direito da concorrência (v., neste sentido, acórdãos de 15 de outubro de 2002, Limburgse Vinyl Maatschappij e o./Comissão, C‑238/99 P, C‑244/99 P, C‑245/99 P, C‑247/99 P, C‑250/99 P a C‑252/99 P e C‑254/99 P, Colet., p. I‑8375, n.° 59; de 7 de janeiro de 2004, Aalborg Portland e o./Comissão, C‑204/00 P, C‑205/00 P, C‑211/00 P, C‑213/00 P, C‑217/00 P e C‑219/00 P, Colet., p. I‑123, n.os 338 a 340; e de 29 de junho de 2006, Showa Denko/Comissão, C‑289/04 P, Colet., p. I‑5859, n.° 50). Este princípio proíbe, em matéria de concorrência, que uma empresa seja condenada ou objecto de um processo, uma segunda vez, devido a um comportamento anticoncorrencial pelo qual já foi punida ou declarada isenta de responsabilidade por uma decisão anterior que já não seja suscetível de recurso (acórdão Limburgse Vinyl Maatschappij e o./Comissão, já referido, n.° 59).

95      Pouco importa que a decisão pela qual a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže aplicou coimas seja relativa a um período anterior à adesão da República Checa à União. Com efeito, a aplicabilidade no tempo do princípio ne bis in idem no domínio do direito da União não depende da data em que foram cometidos os factos objeto de processo, mas, numa situação como a do processo principal, abrangida pelo direito da concorrência, do início do processo destinado à aplicação de uma sanção. Em 2 de agosto de 2006, quando a Úřad pro ochranu hospodářské soutěže deu início ao processo na origem do litígio principal, a República Checa já tinha a qualidade de Estado‑Membro da União, de modo que esta autoridade estava obrigada a respeitar esse princípio.

96      É forçoso concluir que, numa situação como a que está em causa no processo principal, o princípio ne bis in idem não se opõe à aplicação do direito nacional da concorrência pela autoridade nacional da concorrência.

97      O Tribunal de Justiça considerou, nos processos de direito da concorrência, que a aplicação do princípio ne bis in idem está sujeita a uma tripla condição de identidade dos factos, da unidade do infrator e da unidade do interesse jurídico protegido (acórdão Aalborg Portland e o./Comissão, já referido, n.° 338).

98      No processo principal, verifica‑se, em todo o caso, que uma dessas condições, a saber, a identidade dos factos, não se encontra preenchida.

99      Com efeito, a questão de saber se as empresas adotaram um comportamento que tinha por objeto ou por efeito impedir, restringir ou falsear o jogo da concorrência não pode ser apreciada de forma abstrata, mas deve ser examinada atendendo ao território, seja na União ou fora dela, onde o comportamento em causa teve esse objecto ou produziu tal efeito e ao período durante o qual o mesmo comportamento teve esse objeto ou produziu esse efeito.

100    No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio e as recorrentes no processo principal consideram que a decisão da Comissão abrange o território da República Checa, tanto para o período anterior a 1 de maio de 2004 como para o período subsequente. A este propósito, baseiam‑se no facto de a Comissão visar nesta decisão um cartel de alcance mundial e não ter expressamente excluído o território da República Checa do âmbito de aplicação da referida decisão.

101    A este respeito, importa, desde logo, observar que a decisão da Comissão se refere especificamente, em várias passagens, às consequências do cartel em causa no processo principal no interior da Comunidade Europeia e do EEE, ao visar expressamente os «Estados‑Membros da altura» e os Estados «que eram partes contratantes» no Acordo EEE. Acresce que, como foi referido no n.° 41 do presente acórdão, esta decisão não sanciona os eventuais efeitos anticoncorrenciais produzidos por este cartel no território da República Checa, durante o período anterior à adesão deste Estado à União. Por fim, resulta das modalidades de cálculo das coimas que, na sua decisão, a Comissão não teve em conta os Estados que aderiram à União em 1 de maio de 2004. Segundo o n.° 478 da fundamentação da decisão da Comissão, esta considerou, com efeito, como base de cálculo das coimas, os volumes de negócios realizados no EEE pelos membros do referido cartel, durante o ano de 2003.

102    Há que concluir, por isso, que a decisão da Comissão não abrange nenhuma das consequências anticoncorrenciais do referido cartel no território da República Checa, no período anterior a 1 de maio de 2004, ao passo que a decisão da Úřad pro ochranu hospodářské soutěže, segundo as indicações dadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, só aplicou coimas a respeito desse território e desse período.

103    Face ao exposto, há que responder à segunda parte da segunda questão que o princípio ne bis in idem não obsta a que as empresas que participaram num cartel sejam condenadas em coimas pela autoridade nacional da concorrência do Estado‑Membro em causa, para sancionar os efeitos produzidos por esse cartel no seu território, antes de este Estado aderir à União, visto que as coimas aplicadas aos membros do cartel por uma decisão da Comissão tomada antes da adoção da decisão da referida autoridade nacional da concorrência não tinham por objeto reprimir os referidos efeitos.

 Quanto às despesas

104    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      As disposições do artigo 81.° CE e do artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado, devem ser interpretadas no sentido de que, no âmbito de um processo iniciado após 1 de maio de 2004, não são aplicáveis a um cartel que produziu efeitos, no território de um Estado‑Membro que aderiu à União em 1 de maio de 2004, em períodos anteriores a essa data.

2)      O facto de a Comissão Europeia iniciar um processo contra um cartel, nos termos do capítulo III do Regulamento n.° 1/2003, não priva, por força do artigo 11.°, n.° 6, do Regulamento n.° 1/2003, lido em conjugação com o artigo 3.°, n.° 1, do mesmo regulamento, a autoridade da concorrência do Estado‑Membro em causa da respetiva competência para sancionar, por aplicação do direito nacional da concorrência, os efeitos anticoncorrenciais produzidos por este cartel no território do referido Estado‑Membro, durante períodos anteriores à adesão deste último à União Europeia.

O princípio ne bis in idem não obsta a que as empresas que participaram num cartel sejam condenadas em coimas pela autoridade nacional da concorrência do Estado‑Membro em causa, para sancionar os efeitos produzidos por esse cartel no seu território, antes de este Estado aderir à União Europeia, visto que as coimas aplicadas aos membros do cartel por uma decisão da Comissão Europeia tomada antes da adoção da decisão da referida autoridade nacional da concorrência não tinham por objeto reprimir os referidos efeitos.

Assinaturas


* Língua do processo: checo.