Language of document : ECLI:EU:C:2011:543

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

6 de Setembro de 2011 (*)

«Membro do Parlamento Europeu – Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades – Artigo 8.º – Processo penal por crime de calúnia – Declarações proferidas fora do recinto do Parlamento – Conceito de ‘opinião emitida no exercício de funções parlamentares’ – Imunidade – Requisitos»

No processo C‑163/10,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.º TFUE, apresentado pelo Tribunale di Isernia (Itália), por decisão de 9 de Março de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 2 de Abril de 2010, no processo penal instaurado contra

Aldo Patriciello,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts, J.-C. Bonichot e J.-J. Kasel, presidentes de secção, G. Arestis, A. Borg Barthet, M. Ilešič, J. Malenovský, A. Ó Caoimh (relator), C. Toader e M. Safjan, juízes,

advogado-geral: N. Jääskinen,

secretário: A. Impellizzeri, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 15 de Fevereiro de 2011,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de A. Patriciello, por G. Ranaldi e G. Scalese, avvocati, bem como por S. Fortunato, assistente,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Russo, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo helénico, por K. Georgiadis, M. Germani e G. Papagianni, na qualidade de agentes,

–        em representação do Parlamento Europeu, por H. Krück, A. Caiola e N. Lorenz, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por I. Martínez del Peral e C. Zadra, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 9 de Junho de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 8.º do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, em anexo aos Tratados UE, FUE e CEEA (a seguir «protocolo»).

2        Este pedido foi apresentando no âmbito de um processo penal instaurado contra A. Patriciello, membro do Parlamento Europeu, por crime de calúnia.

 Quadro jurídico

 Regulamentação da União

3        O artigo 8.º do protocolo dispõe:

«Os membros do Parlamento Europeu não podem ser procurados, detidos ou perseguidos pelas opiniões ou votos emitidos no exercício das suas funções.»

4        O artigo 9.º do protocolo prevê:

«Enquanto durarem as sessões do Parlamento Europeu, os seus membros beneficiam:

a)      No seu território nacional, das imunidades reconhecidas aos membros do Parlamento do seu país.

[...]»

5        O artigo 18.º do protocolo enuncia:

«Para efeitos da aplicação do presente Protocolo, as instituições da União cooperarão com as autoridades responsáveis dos Estados‑Membros interessados.»

6        O artigo 6.º do Regimento do Parlamento Europeu (JO 2005, L 44, p. 1, a seguir «Regimento»), intitulado «Levantamento da imunidade», tem a seguinte redacção:

«1.      O Parlamento, no exercício dos seus poderes em matéria de privilégios e imunidades, procurará fundamentalmente manter a sua integridade enquanto assembleia legislativa democrática e garantir a independência dos seus membros no exercício das suas funções.

[...]

3.      Qualquer pedido dirigido ao Presidente por um deputado ou antigo deputado relativo à defesa dos privilégios e imunidades será comunicado em sessão plenária e remetido à comissão competente.

[...]»

7        O artigo 7.º desse Regimento, que contém as regras sobre os procedimentos relativos à imunidade dos deputados europeus, prevê, nos seus n.os 2, 6 e 7:

«2.      A comissão apresentará uma proposta de decisão que se limitará a recomendar a aprovação ou a rejeição do pedido de levantamento da imunidade ou de defesa dos privilégios e imunidades.

[...]

6.      No caso de um pedido de defesa de privilégios ou imunidades, a comissão precisará se as circunstâncias descritas constituem uma restrição administrativa ou de qualquer outra natureza à livre circulação dos deputados que se dirijam para ou regressem dos locais de reunião do Parlamento Europeu, por um lado, ou à emissão de opinião ou voto no exercício das suas funções, por outro lado, ou ainda se as mesmas são assimiláveis aos aspectos do artigo [9].° do Protocolo […] que não são da competência do direito nacional, e convidará a autoridade em questão a tirar as ilações necessárias.

7.      A comissão poderá emitir um parecer fundamentado sobre a competência da autoridade em questão e sobre a admissibilidade do pedido, mas em nenhum caso poderá pronunciar‑se sobre a culpabilidade ou não culpabilidade do deputado, nem sobre o facto de se justificar ou não processar penalmente o deputado pelas opiniões ou actos que lhe são atribuídos, ainda que o exame do pedido de levantamento da imunidade lhe proporcione um conhecimento aprofundado do assunto.»

 Legislação nacional

8        Nos termos do artigo 68.º, primeiro parágrafo, da Constituição italiana:

«Os deputados não respondem pelas opiniões ou pelos votos emitidos no exercício das suas funções.»

9        O artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.° 140, para a execução do artigo 68.º da Constituição e em matéria de processos penais contra pessoas que ocupam altos cargos do Estado (legge n. 140 – disposizioni per l’attuazione dell’articolo 68 della Costituzione nonché in materia di processi penali nei confronti delle alte cariche dello Stato), de 20 de Junho de 2003 (GURI n.º 142, de 21 de Junho de 2003), prevê o seguinte:

«O artigo 68.º, primeiro parágrafo, da Constituição aplica‑se, em qualquer caso, à apresentação de projectos ou propostas de lei, de alterações, de ordens do dia, de moções e resoluções, às questões e intervenções nas assembleias e noutros órgãos das câmaras, a qualquer expressão do voto emitido, a qualquer outro acto parlamentar, a qualquer actividade de inspecção, de divulgação, de crítica e de denúncia política, conexas com a função de deputado, exercidas também fora do parlamento.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

10      A. Patriciello é arguido, no âmbito do processo penal que lhe foi instaurado no Tribunale di Isernia, por ter acusado sem razão um agente da Polícia Municipal de Pozzili (Itália) de comportamento ilegal, durante uma discussão, ocorrida em 1 de Agosto de 2007, num parque de estacionamento público situado nas imediações de um instituto neurológico próximo da sua residência.

11      Resulta da decisão de reenvio que A. Patriciello deve, a este respeito, responder pelo crime de calúnia previsto no artigo 368.° do Código Penal italiano, com a agravante de o ter cometido contra um agente público no exercício das suas funções na acepção do artigo 61.º, n.º 10, desse código. Os factos que lhe são imputados são os de ter afirmado que o agente da polícia municipal tinha falsificado as horas multando diversos automobilistas cujos veículos estavam estacionados em violação do Código da Estrada e, portanto, de ter acusado o agente em causa do crime de falsificação de documento público punido pelo artigo 477.º do referido código. Além disso, A. Patriciello persistiu nessa acusação na presença dos polícias que se deslocaram ao local a fim de verificarem a veracidade das infracções que este imputava ao agente da polícia municipal.

12      Por decisão de 5 de Maio de 2009, o Parlamento Europeu, dando seguimento ao pedido de A. Patriciello, baseado no artigo 6.°, n.° 3, do seu Regimento, decidiu, em conformidade com o relatório da sua comissão dos assuntos jurídicos, defender a imunidade e os privilégios deste (a seguir «decisão de defesa da imunidade»). Este relatório estava assim fundamentado:

«Na realidade, nas suas declarações, A. Patriciello limitou‑se a tecer comentários sobre factos do domínio público, o direito dos cidadãos a acederem facilmente a um hospital e aos cuidados de saúde, que têm um impacto importante na vida quotidiana dos seus eleitores.

A. Patriciello não agiu no seu interesse próprio, não pretendeu insultar a funcionária pública, tendo agido no interesse geral do seu eleitorado, no âmbito da sua actividade política.

Ao fazê‑lo, exercia as suas funções enquanto deputado ao Parlamento Europeu, exprimindo a sua opinião sobre uma questão de interesse público para os seus eleitores.

[...]

Com base nas considerações que antecedem, a comissão dos assuntos jurídicos, depois de ter examinado as razões a favor e contra a defesa da imunidade, recomenda que a imunidade de A. Patriciello seja defendida.»

13      Na sua decisão de reenvio, o Tribunale di Isernia declara, no entanto, que, por força do artigo 9.°, primeiro parágrafo, alínea a), do protocolo, os deputados europeus beneficiam, relativamente aos factos cometidos no território nacional, das imunidades e dos privilégios nas mesmas condições materiais e formais que as previstas pelo direito nacional. Ora, segundo o artigo 68.° da Constituição italiana, o privilégio da irresponsabilidade só se estende às actividades extraparlamentares se estas forem estreitamente conexas com o exercício das funções e fins próprios ao mandato parlamentar.

14      Nestas condições, o referido órgão jurisdicional considera que, sem prejuízo de qualquer apreciação sobre a procedência ou não da acusação, não pode, com base no seu direito nacional, partilhar das razões que levaram o Parlamento Europeu a adoptar a decisão de defesa da imunidade. Com efeito, o facto que está na origem do processo penal em causa no processo principal não está relacionado de forma alguma com uma opinião expressa no exercício das funções de deputado europeu.

15      A este respeito, esse órgão jurisdicional afirma que, segundo o Ministério Público, o argumento de que A. Patriciello se limitou a comentar factos notórios, a saber, o direito dos cidadãos de aceder facilmente aos hospitais e aos cuidados de saúde, sem intenção de insultar o agente público, afigura‑se desprovido de fundamento. Com efeito, A. Patriciello, mesmo que isso tenha ainda que ser apurado, teria acusado expressamente de falsificação de documento público um agente público na presença das forças da ordem. Ora, esse comportamento parece, à primeira vista, afastar‑se das preocupações de interesse público dos seus eleitores e, como tal, não parece, mesmo em absoluto, susceptível de estar abrangido pelo regime de imunidade.

16      Contudo, o Tribunale di Isernia observa que a decisão de defesa da imunidade foi adoptada depois ter recordado não só o artigo 9.º, primeiro parágrafo, alínea a), do protocolo mas também o artigo 8.º deste. Ora, o Tribunal de Justiça já declarou que, uma vez que essa disposição não faz nenhum reenvio para os direitos nacionais, o alcance da imunidade que ela prevê deve ser determinado apenas com base no direito da União. Além disso, embora a decisão de defesa da imunidade constitua um parecer que não produz efeitos vinculativos relativamente aos órgãos jurisdicionais nacionais, o órgão jurisdicional de reenvio está vinculado ao dever de cooperação leal com as instituições europeias, nos termos dos artigos 4.º, n.º 3, TUE e 18.º do protocolo (acórdão de 21 de Outubro de 2008, Marra, C‑200/07 e C‑201/07, Colect., p. I‑7929, n.os 26 e 39 a 41).

17      Nestas condições, o Tribunale di Isernia decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O ilícito, abstractamente imputado ao eurodeputado [A.] Patriciello (descrito na acusação e já objecto da decisão de defesa da imunidade […]), qualificado [de calúnia], nos termos do artigo 368.° do Código Penal, constitui uma opinião expressa no exercício das funções parlamentares, na acepção do artigo [8.º] do [p]rotocolo?»

 Quanto à questão prejudicial

18      Importa recordar, a título liminar, que, como o Tribunal de Justiça já declarou, a imunidade parlamentar dos deputados europeus, como prevista nos artigos 8.° e 9.° do protocolo, inclui as duas formas de protecção normalmente reconhecidas aos deputados dos parlamentos nacionais dos Estados‑Membros, a saber, a imunidade relativamente às opiniões e aos votos emitidos no exercício das funções parlamentares e a inviolabilidade parlamentar, que contêm, em princípio, uma protecção contra os processos judiciais (v. acórdão Marra, já referido, n.º 24).

19      Como decorre da própria redacção da questão submetida, no processo principal, só é pertinente a interpretação do artigo 8.º do protocolo.

20      A este respeito, importa observar, à semelhança do Governo italiano, que, com a sua questão tal como redigida, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que seja ele próprio a aplicar o artigo 8.º do protocolo ao litígio que lhe foi submetido, ao pronunciar‑se sobre a questão de saber se as declarações do deputado europeu em causa que deram lugar ao processo penal no processo principal constituem uma opinião emitida no exercício das suas funções parlamentares e, portanto, estão abrangidas pela imunidade prevista nessa disposição.

21      Cumpre recordar que, no âmbito de um processo apresentado nos termos do artigo 267.º TFUE, o Tribunal de Justiça não está habilitado a aplicar as regras da União a um caso determinado. O Tribunal de Justiça pode, porém, fornecer ao órgão jurisdicional nacional os elementos de interpretação do direito da União que lhe possam ser úteis para a sua decisão (v., designadamente, acórdão de 10 de Julho de 2008, Feryn, C‑54/07, Colect., p. I‑5187, n.º 19 e jurisprudência referida).

22      Num processo como o principal, cabe, portanto, ao órgão jurisdicional de reenvio decidir se as declarações em causa estão abrangidas pela imunidade prevista no artigo 8.º do protocolo, ao apreciar se estão reunidas as condições materiais previstas nessa disposição para a aplicação dessa imunidade (v. acórdão Marra, já referido, n.º 33).

23      Em contrapartida, cabe ao Tribunal de Justiça fornecer‑lhe todas as indicações necessárias para o guiarem nessa apreciação, reformulando, se necessário, a questão que lhe foi submetida (v., designadamente, acórdãos de 11 de Março de 2008, Jager, C‑420/06, Colect., p. I‑1315, n.º 46, e de 14 de Outubro de 2010, Fuß, C‑243/09, ainda não publicado na Colectânea, n.º 39).

24      Ora, a este respeito, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, na realidade, precisar os critérios pertinentes para determinar se uma declaração como a que está em causa no processo principal, emitida por um deputado europeu fora do recinto do Parlamento Europeu e que deu lugar a um processo penal no seu Estado‑Membro de origem pelo crime de calúnia, constitui uma opinião emitida no exercício das suas funções parlamentares na acepção do artigo 8.º do protocolo.

25      Quanto a este ponto, deve salientar‑se que, contrariamente à inviolabilidade parlamentar prevista no artigo 9.º, primeiro parágrafo, alínea a), do protocolo, que depende do direito nacional, o alcance da imunidade prevista no artigo 8.º do protocolo deve ser determinado, na falta de reenvio para os direitos nacionais, apenas com base no direito da União (v., neste sentido, acórdão Marra, já referido, n.º 26).

26      Como o Tribunal de Justiça já declarou, o artigo 8.º do protocolo, que é uma disposição especial aplicável a qualquer processo judicial em que o deputado europeu beneficie da imunidade pelas opiniões e votos emitidos no exercício das funções parlamentares, destina‑se a proteger a liberdade de expressão e a independência dos deputados europeus, de forma que obsta a todo e qualquer processo judicial em razão dessas opiniões e desses votos (v., neste sentido, acórdão Marra, já referido, n.os 27 e 45).

27      Daqui resulta que, quaisquer que sejam o regime de imunidade previsto pelo direito nacional ou os limites enunciados por esse direito, quando estão reunidas as condições materiais para reconhecer a imunidade prevista no artigo 8.º do protocolo, essa imunidade não pode ser levantada pelo Parlamento Europeu e o órgão jurisdicional nacional competente para a aplicar tem de pôr fim à acção intentada contra o deputado europeu em causa (v., neste sentido, acórdão Marra, já referido, n.º 44).

28      Como sustentaram todos os interessados quando apresentaram observações no âmbito do presente processo, as declarações de um deputado europeu não podem deixar de beneficiar dessa imunidade pelo simples facto de terem sido emitidas fora do recinto do Parlamento Europeu.

29      É verdade que o artigo 8.º do protocolo, tendo em conta o seu objectivo de proteger a liberdade de expressão e a independência dos deputados europeus, e a sua redacção, que se refere expressamente, para além das opiniões, aos votos emitidos pelos deputados europeus, se destina, essencialmente, a ser aplicado às declarações emitidas por esses deputados no próprio recinto do Parlamento Europeu.

30      Contudo, não está excluído que uma declaração efectuada por esses deputados fora desse recinto possa constituir uma opinião emitida no exercício das suas funções na acepção do artigo 8.º do protocolo, na medida em que a existência dessa opinião depende não do lugar onde foi efectuada uma declaração, mas da sua natureza e do seu conteúdo.

31      Referindo‑se às opiniões emitidas pelos deputados europeus, o artigo 8.º do protocolo está estreitamente ligado à liberdade de expressão. Ora, a liberdade de expressão, enquanto fundamento essencial de uma sociedade democrática e pluralista que reflecte os valores em que, em conformidade com o artigo 2.º TUE, assenta a União, constitui um direito fundamental garantido pelo artigo 11.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que, por força do artigo 6.º, n.º 1, TUE, tem o mesmo valor jurídico que os Tratados. Esta liberdade está também consagrada ao artigo 10.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950.

32      Consequentemente, deve considerar‑se que o conceito de «opinião» na acepção do artigo 8.º do protocolo deve ser entendido em sentido amplo, abrangendo o discurso ou as declarações que, pelo seu conteúdo, correspondem a asserções constitutivas de apreciações subjectivas.

33      Decorre também da redacção do artigo 8.º do protocolo que, para estar abrangida pela imunidade, uma opinião deve ter sido emitida por um deputado europeu «no exercício das suas funções», o que implica a exigência de um nexo entre a opinião expressa e as funções parlamentares.

34      Tratando‑se, como no processo principal, de declarações de um deputado europeu objecto de um processo penal no seu Estado‑Membro de origem, há que observar que a imunidade prevista no artigo 8.º do protocolo, como decorre já do n.º 27 do presente acórdão, é susceptível de impedir definitivamente as autoridades judiciárias e os órgãos jurisdicionais nacionais de exercer as suas competências respectivas em matéria de repressão e sanção das infracções penais com o objectivo de assegurar o respeito da ordem pública no seu território e, correlativamente, privar, assim, totalmente os lesados por essas declarações do acesso à justiça, inclusivamente, se for o caso, de obter nos tribunais cíveis a reparação do dano sofrido.

35      Tendo em conta estas consequências, há que reconhecer que o nexo existente entre a opinião emitida e as funções parlamentares deve ser directo e impor‑se manifestamente.

36      Deve, também, considerar‑se que, tendo em conta as descrições das condições e do conteúdo das alegações do deputado europeu em causa no processo principal, estes parecem relativamente afastados das funções de um membro do Parlamento Europeu e, por conseguinte, são dificilmente susceptíveis de apresentar um nexo directo com um interesse geral que preocupa os cidadãos. Assim, ainda que esse nexo pudesse ser estabelecido, não se poderia impor manifestamente.

37      É à luz destas indicações que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, o que decorre, como recordado nos n.os 21 e 22 do presente acórdão, da sua competência exclusiva, se a declaração em causa no processo principal pode ser considerada a expressão de uma opinião no exercício das funções parlamentares, de forma a satisfazer os requisitos materiais para reconhecer a imunidade prevista no artigo 8.º do protocolo.

38      Se, no termo dessa apreciação, esse órgão jurisdicional verificar que é esse o caso, só deverá retirar daí as consequências dessa imunidade pondo fim, como foi indicado no n.º 27 do presente acórdão, à acção intentada contra o deputado europeu em causa (v. acórdão Marra, já referido, n.os 33 e 44). Em contrapartida, no caso contrário, não estando preenchidos os requisitos materiais da imunidade, o referido órgão jurisdicional deve prosseguir o exame da acção.

39      A este respeito, deve recordar‑se que, mesmo que, como no processo principal, o Parlamento Europeu, na sequência do pedido do deputado europeu em causa, tenha tomado uma decisão de defesa da sua imunidade, essa decisão, adoptada em conformidade com o seu Regimento, constitui apenas um parecer que não produz nenhum efeito vinculativo relativamente aos órgãos jurisdicionais nacionais, uma vez que no protocolo não figura nenhuma disposição que preveja a obrigação desses órgãos de remeterem ao referido Parlamento a decisão sobre a existência dos requisitos previstos no seu artigo 8.º. Como o Tribunal de Justiça já declarou, a circunstância de o direito de um Estado‑Membro, como o que está em causa no processo principal, prever um procedimento de defesa dos membros do parlamento nacional, permitindo‑lhe intervir quando o órgão jurisdicional nacional não reconhece essa imunidade, não implica o reconhecimento dos mesmos poderes ao Parlamento Europeu relativamente aos deputados europeus provenientes desse Estado, uma vez que o artigo 8.º do protocolo não prevê expressamente essa competência e não remete para as normas de direito nacional (v., neste sentido, acórdão Marra, já referido, n.os 35 a 40).

40      Por conseguinte, contrariamente ao que o arguido no processo principal alegou na audiência, embora seja verdade que o Parlamento Europeu e os órgãos jurisdicionais nacionais devem, por força da obrigação de cooperação leal entre as instituições europeias e as autoridades nacionais, como consagrada nos artigos 4.º, n.º 3, TUE e 18.º do protocolo, cooperar a fim de evitar qualquer conflito na interpretação e na aplicação das disposições do protocolo (acórdão Marra, já referido, n.º 42), o direito da União não impõe ao órgão jurisdicional de reenvio nenhuma obrigação especial relativamente à fundamentação das suas decisões no caso de, tendo em conta a interpretação dada pelo presente acórdão proferido em aplicação do artigo 267.º TFUE, decidir afastar‑se do parecer emitido pelo Parlamento Europeu, de que foi informado, quanto à aplicação do artigo 8.º do protocolo aos factos do processo principal.

41      Em face do exposto, cumpre responder à questão submetida que o artigo 8.º do protocolo deve ser interpretado no sentido de que uma declaração emitida por um deputado europeu fora do Parlamento Europeu que deu lugar a um processo penal no seu Estado‑Membro de origem por crime de calúnia só constitui uma opinião emitida no exercício das funções parlamentares abrangida pela imunidade prevista nessa disposição quando essa declaração corresponde a uma apreciação subjectiva que apresenta um nexo directo e evidente com o exercício dessas funções. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se esses requisitos estão reunidos no processo principal.

 Quanto às despesas

42      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 8.º do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, em anexo aos Tratados UE, FUE e CEEA, deve ser interpretado no sentido de que uma declaração emitida por um deputado europeu fora do Parlamento Europeu que deu lugar a um processo penal no seu Estado‑Membro de origem por crime de calúnia só constitui uma opinião emitida no exercício das funções parlamentares abrangida pela imunidade prevista nessa disposição quando essa declaração corresponde a uma apreciação subjectiva que apresenta um nexo directo e evidente com o exercício dessas funções. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se esses requisitos estão reunidos no processo principal.

Assinaturas


* Língua do processo: italiano.