Language of document : ECLI:EU:C:2002:662

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

ANTONIO TIZZANO

apresentadas em 14 de Novembro de 2002 (1)

Processo C-465/00

Rechnungshof

contra

Österreichischer Rundfunk e o.

(pedido de decisão prejudicial

apresentado pelo Verfassungsgerichtshof)

e processos apensos C-138/01 e C-139/01

Neukomm e Lauermann

contra

Österreichischer Rundfunk

(pedido de decisão prejudicial

apresentado pelo Oberster Gerichtshof)

«Directiva 95/46/CE - Âmbito de aplicação»

1.
    Através de três despachos de 12 de Dezembro de 2000 e 14 e 28 de Fevereiro de 2001, o Verfassungsgerichtshof e o Oberster Gerichtshof (Áustria) submeteram ao Tribunal de Justiça algumas questões prejudiciais sobre a interpretação das disposições da Directiva 95/46/CE, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (a seguir «Directiva 95/46» ou apenas «directiva») (2), e dos princípios gerais da ordem jurídica comunitária em matéria de confidencialidade. Em resumo, os juízes austríacos pretendem saber se tais disposições e princípios obstam a uma disposição nacional que impõe a compilação de dados sobre os rendimentos de alguns empregados de sociedades e entidades públicas com o objectivo de os publicar, com a indicação nominativa das pessoas em causa, no relatório de um órgão do Estado (Tribunal de Contas) destinado a ser tornado público.

Enquadramento legislativo

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais

2.
    A fim de dar conta do quadro jurídico relevante para efeitos dos presentes processos, recorde-se, antes de mais, que o artigo 8.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH», expressamente referido nalgumas questões, tem a seguinte redacção:

«1.    Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.

2.    Não deve haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito se não quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral ou a protecção dos direitos e liberdades de terceiros» (3).

A Directiva 95/46

3.
    No plano comunitário, assume particular importância a Directiva 95/46, adoptada com base no artigo 100.°-A do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 95.° CE) a fim de favorecer a livre circulação dos dados pessoais através da harmonização das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros sobre a protecção das pessoas singulares relativamente ao tratamento de tais dados.

4.
    Segundo a directiva, «as diferenças entre os Estados-Membros quanto ao nível de protecção dos direitos e liberdades das pessoas, nomeadamente do direito à vida privada, no domínio do tratamento de dados pessoais, podem impedir a transmissão desses dados do território de um Estado-Membro para o de outro Estado-Membro; que estas diferenças podem, por conseguinte, constituir um obstáculo ao exercício de uma série de actividades económicas à escala comunitária, falsear a concorrência e entravar o exercício pelas administrações das funções que lhes incumbem nos termos do direito comunitário» (sétimo considerando). O legislador comunitário considerou, portanto, «que, para eliminar os obstáculos à circulação de dados pessoais, o nível de protecção dos direitos e liberdades das pessoas no que diz respeito ao tratamento destes dados deve ser equivalente em todos os Estados-Membros». Para tanto, era necessário, em sua opinião, uma medida de harmonização a nível comunitário, na medida em que a realização do objectivo da livre circulação dos dados pessoais, «fundamental para o mercado interno, não pod(ia) ser assegurada unicamente pelos Estados-Membros, tendo especialmente em conta a dimensão das divergências que se verificam [...] a nível das legislações nacionais aplicáveis na matéria e a necessidade de coordenar as legislações dos Estados-Membros para assegurar que a circulação transfronteiras de dados pessoais (fosse) regulada de forma coerente e em conformidade com o objectivo do mercado interno nos termos do artigo 7.°-A do Tratado» (oitavo considerando). Na sequência da adopção de uma medida de harmonização, ao invés, «devido à protecção equivalente resultante da aproximação das legislações nacionais, os Estados-Membros (deixariam) de poder levantar obstáculos à livre circulação entre si de dados pessoais por razões de protecção dos direitos e liberdades das pessoas, nomeadamente do direito à vida privada» (nono considerando).

5.
    Deste modo, o legislador comunitário considerou que a fixação de um nível de protecção «equivalente em todos os Estados-Membros» não podia fazer com que se prescindisse da «(protecção) (d)os direitos fundamentais das pessoas» (terceiro considerando). Neste sentido, considerou, em especial, «que o objectivo das legislações nacionais relativas ao tratamento de dados pessoais é assegurar o respeito dos direitos e liberdades fundamentais, nomeadamente do direito à vida privada, reconhecido não só no artigo 8.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais como nos princípios gerais do direito comunitário». Por este motivo, considerou que «a aproximação das referidas legislações não dev(ia) fazer diminuir a protecção que asseguram, devendo, pelo contrário, ter por objectivo garantir um elevado nível de protecção na Comunidade» (décimo considerando).

6.
    É à luz destas premissas e considerações que se deve, portanto, ler o artigo 1.° da directiva, que define o respectivo objecto do seguinte modo:

«1. Os Estados-Membros assegurarão, em conformidade com a presente directiva, a protecção das liberdades e dos direitos fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente do direito à vida privada, no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais.

2. Os Estados-Membros não podem restringir ou proibir a livre circulação de dados pessoais entre Estados-Membros por razões relativas à protecção assegurada por força do n.° 1».

7.
    No que respeita às principais definições indicadas no artigo 2.° da directiva, para o presente processo há que recordar que:

a)    por «dados pessoais» entende-se «qualquer informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (‘pessoa em causa’); é considerado identificável todo aquele que possa ser identificado, directa ou indirectamente, nomeadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social»;

b)    por «tratamento de dados pessoais» entende-se «qualquer operação ou conjunto de operações efectuadas sobre dados pessoais, com ou sem meios automatizados, tais como a recolha, registo, organização, conservação, adaptação ou alteração, recuperação, consulta, utilização, comunicação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão, bem como o bloqueio, apagamento ou destruição»;

c)    por «responsável pelo tratamento» entende-se «a pessoa singular ou colectiva, a autoridade pública, o serviço ou qualquer outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outrem, determine as finalidades e os meios de tratamento dos dados pessoais».

8.
    O artigo 3.° define o âmbito de aplicação da directiva, indicando, no n.° 1, que as suas disposições se aplicam «ao tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos num ficheiro ou a ele destinados». Nos termos do n.° 2, fica todavia excluído do âmbito de aplicação da directiva o tratamento de dados pessoais:

-    «efectuado no exercício de actividades não sujeitas à aplicação do direito comunitário, tais como as previstas nos títulos V e VI do Tratado da União Europeia, e, em qualquer caso, ao tratamento de dados que tenha como objecto a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado (incluindo o bem-estar económico do Estado quando esse tratamento disser respeito a questões de segurança do Estado), e as actividades do Estado no domínio do direito penal»

-    ou «efectuado por uma pessoa singular no exercício de actividades exclusivamente pessoais ou domésticas».

9.
    Para este efeito, importa recordar igualmente algumas disposições do capítulo II da directiva, intitulado «condições gerais de licitude do tratamento de dados pessoais» (artigos 5.° a 21.°). Em especial, deve assinalar-se que, nos termos do artigo 6.°, n.° 1, os «Estados-Membros devem estabelecer que os dados pessoais serão:

a) objecto de um tratamento leal e lícito;

b) recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas, e que não serão posteriormente tratados de forma incompatível com essas finalidades. O tratamento posterior para fins históricos, estatísticos ou científicos não é considerado incompatível desde que os Estados-Membros estabeleçam garantias adequadas;

c) adequados, pertinentes e não excessivos relativamente às finalidades para que são recolhidos e para que são tratados posteriormente;

[...]».

10.
    No artigo 7.° são indicados os casos em que «o tratamento de dados pessoais poderá ser efectuado», precisando, na parte relevante para o presente processo, que o tratamento será autorizado se for necessário «para cumprir uma obrigação legal à qual o responsável pelo tratamento esteja sujeito» ou «para a execução de uma missão de interesse público ou o exercício da autoridade pública de que é investido o responsável pelo tratamento ou um terceiro a quem os dados sejam comunicados».

11.
    Importa, além disso, recordar que o artigo 13.° autoriza os Estados-Membros a afastar a aplicação de algumas disposições da directiva, em especial o artigo 6.°, n.° 1, sempre que tal restrição constitua uma medida necessária à protecção, designadamente, de «um interesse económico ou financeiro importante de um Estado-Membro ou da União Europeia, incluindo nos domínios monetário, orçamental ou fiscal» [alínea e)] ou de «missões de controlo, de inspecção ou de regulamentação associadas, ainda que ocasionalmente, ao exercício da autoridade pública» em determinados casos especiais, entre os quais figura o que acabámos de recordar, referido na alínea e) [alínea f)].

12.
    Recorde-se, finalmente, o artigo 22.°, nos termos do qual «os Estados-Membros estabelecerão que qualquer pessoa poderá recorrer judicialmente em caso de violação dos direitos garantidos pelas disposições nacionais aplicáveis ao tratamento em questão.»

A disposição austríaca

13.
    Os artigos 126.° b, 126.° c, 127.°, 127.° a e 127.° b da Bundesverfassungsgesetz (lei constitucional austríaca, a seguir «B-VG») regulam as competências do Rechnungshof (Tribunal de Contas austríaco), sujeitando à sua fiscalização: o Estado federal, os Länder, os grandes municípios e, sempre que exista um pedido fundamentado de um Governo regional, também os municípios com menos de 20 000 habitantes, as associações de municípios, as instituições de segurança social, os organismos representativos de interesses profissionais estabelecidos por lei, as instituições, fundos e fundações geridos por órgãos do Estado federal ou dos Länder ou por pessoas para isso nomeadas por órgãos do Estado federal, assim como as empresas geridas pelo Estado federal, por um Land ou por um município ou controladas (isoladamente ou em conjunto com outras entidades sujeitas à auditoria do Rechnungshof) através de uma participação social de pelo menos 50%. O § 31a, n.° 1, da Rundfunkgesetz (lei sobre a radiodifusão) (4) indica além disso que a Österreichischer Rundfunk (rádio nacional austríaca, a seguir «ÖRF») está sujeita à auditoria do Rechnungshof.

14.
    Nos termos do disposto no § 8 da Bundesverfassungsgesetz über die Begrenzung von Bezügen öffentlicher Funktionäre (lei constitucional federal sobre a limitação da retribuição dos funcionários públicos, a seguir «BezBegrBVG») (5):

«1. As entidades sujeitas à auditoria do Rechnungshof deverão comunicar-lhe, nos três primeiros meses de cada conjunto de dois anos civis, as retribuições ou pensões pagas às pessoas que, pelo menos durante um dos dois anos civis anteriores, tenham recebido retribuições ou pensões anualmente superiores a 14 vezes o montante de 80% da quantia base de referência mensal nos termos do § 1 [ou seja, relativamente a 2000, retribuições e pensões 14 vezes superiores ao montante de 5 887,87 euros]. As entidades deverão também comunicar as retribuições e pensões das pessoas que recebam outras retribuições ou pensões de entidades sujeitas à auditoria do Rechnungshof. [...] Se uma entidade não cumprir esta obrigação de comunicação, o Rechnungshof deverá inspeccionar os documentos correspondentes e redigir o seu relatório com base nesta inspecção.

[...]

3. O Rechnungshof deverá resumir num relatório estas comunicações, classificadas por valores anuais. No relatório deverão ser incluídas todas as pessoas cujas retribuições e pensões anuais recebidas de entidades sujeitas à auditoria do Rechnungshof excedam, na sua totalidade, o montante referido no n.° 1. O relatório deverá ser transmitido ao Nationalrat (câmara baixa do Parlamento), ao Bundesrat (câmara alta do Parlamento) e aos Landtage (parlamentos dos Länder).»

15.
    Dos trabalhos preparatórios da lei resulta que o referido relatório deve indicar o nome do funcionário e o montante da retribuição recebida; o relatório deve seguidamente ser colocado à disposição do público, de modo a «informar detalhadamente as cidadãs e os cidadãos austríacos sobre as retribuições procedentes dos cofres públicos» (6).

Matéria de facto e tramitação processual

Matéria de facto e questões prejudiciais no processo C-465/00

16.
    O processo C-465/00 tem origem numa divergência de interpretação do § 8 da BezBegrBVG entre o Rechnungshof e diversas entidades sujeitas à sua auditoria: algumas entidades territoriais (o Land Niederösterreich, a cidade de Wiener Neustadt e a comuna de Kaltenleutgeben); o Banco central austríaco (Österreichische Nationalbank); uma associação reconhecida de representação de interesses (a Wirtschaftskammer Steiermark); uma empresa pública encarregada de «missões de interesse público» (a ÖRF); e uma empresa pública gerida segundo critérios económicos, «em concorrência com outras empresas nacionais e estrangeiras não sujeitas à auditoria do Rechnungshof» (a Austrian Airlines Österreichische Luftverkehrs-Aktiengesellschaft, a seguir «Austrian Airlines»).

17.
    Mais concretamente, por ocasião, da auditoria relativa às pensões e às retribuições pagas nos anos de 1998 e 1999, as referidas entidades limitaram-se a comunicar de forma anónima os dados sobre as retribuições dos seus funcionários, com excepção da Wirtschaftskammer Steiermark, que não comunicou nenhum dado. Quando o Rechnungshof tentou proceder a uma análise directa da documentação contabilística, as mesmas entidades não autorizaram que se procedesse a uma verificação ou sujeitaram-na à condição (considerada inaceitável pelo Rechnungshof) de tornar os dados anónimos.

18.
    O Rechnungshof recorreu portanto ao Verfassungsgerichtshof, requerendo que fosse declarada a sua competência para efectuar a análise das contas das entidades citadas a fim de poder preparar o relatório sobre as retribuições referidas no § 8 da BezBegrBVG. Por seu turno, as entidades demandadas contestaram o pedido do Rechnungshof, requerendo que fosse declarada ilegal a indicação no relatório dos nomes e das funções das pessoas em causa. Para tanto, alegaram, nomeadamente, que a divulgação do nome e das funções dos funcionários em causa seria contrária às disposições da directiva e aos princípios comunitários em matéria de protecção da vida privada e criaria um obstáculo ilegal à livre circulação de trabalhadores.

19.
    Chamado a pronunciar-se sobre tais questões, o Verfassungsgerichtshof considerou necessário submetê-las ao Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 234.° CE. É o seguinte o teor das questões:

«1)    Devem as disposições do direito comunitário, em especial as relativas à protecção de dados, ser interpretadas no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que obriga um organismo estatal a compilar e comunicar dados sobre retribuições com o objectivo de publicar os nomes e as retribuições dos empregados de

    a)    uma entidade territorial,

    b)    um organismo de radiodifusão de direito público,

    c)    um banco central nacional,

    d)    um organismo representativo de interesses profissionais estabelecido por lei,

    e)    uma empresa com fins lucrativos que está parcialmente controlada pelo Estado?

2)    No caso de o Tribunal de Justiça responder afirmativamente, pelo menos em parte, à questão anterior:

    Estas disposições que se opõem a uma regulamentação nacional com o conteúdo atrás descrito são directamente aplicáveis, no sentido de que as pessoas obrigadas a revelar dados podem invocá-las para evitar a aplicação de disposições nacionais com elas incompatíveis?»

Matéria de facto e questões prejudiciais nos processos C-138/01 e C-139/01

20.
    Christa Neukomm e Josef Lauermann são funcionários da ÖRF, que lhes paga uma retribuição superior ao tecto fixado no § 8 da BezBegrBVG. Nos termos desta disposição, a ÖRF está, portanto, obrigada a comunicar ao Rechnungshof os dados relativos ao respectivo tratamento económico.

21.
    Através de dois requerimentos separados, C. Neukomm e J. Lauermann pediram, respectivamente, ao Arbeits- und Sozialgericht Wien e ao Landesgericht St. Pölten que decretasse providências cautelares destinadas a impedir a ÖRF de proceder à transmissão nominativa dos respectivos dados. Em apoio deste pedido, para o que é relevante no presente processo, os requerentes invocaram a violação dos seus direitos fundamentais (em especial do direito ao respeito da vida privada consagrado no artigo 8.° da CEDH) e das disposições da directiva. No âmbito dos dois processos, embora requerendo que os pedidos fossem indeferidos, a ÖRF declarou concordar com as apreciações dos seus funcionários.

22.
    Os juízes chamados a julgar os pedidos dos requerentes indeferiram-nos através de decisões posteriormente confirmadas em recurso pelo Oberlandesgericht Wien. Contra as decisões da segunda instância os requerentes apresentaram, portanto, recurso para o Oberster Gerichtshof, o qual, reportando-se às questões já suscitadas pelo Verfassungsgerichtshof, decidiu suspender a instância nos dois processos e perguntar ao Tribunal de Justiça se:

«1.    Devem as normas de direito comunitário, em especial as relativas à protecção de dados [artigos 1.°, 2.°, 6.°, 7.° e 22.° da Directiva 95/46/CE, em conjugação com o artigo 6.° do Tratado UE (ex-artigo F) e o artigo 8.° da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos do Homem)] ser interpretadas no sentido de se oporem a uma regulamentação nacional que obriga um organismo de radiodifusão de direito público a comunicar dados relativos às retribuições e que obriga um organismo estatal a compilar e comunicar estes dados com o objectivo de publicar os nomes e as retribuições dos empregados de um organismo público de radiodifusão?

2.    No caso de o Tribunal de Justiça responder afirmativamente à questão anterior, são essas disposições, que se opõem a uma regulamentação nacional com o conteúdo atrás descrito, directamente aplicáveis, no sentido de que o organismo obrigado a comunicar os dados pode invocá-las para evitar a aplicação das normas nacionais com aquelas incompatíveis e, consequentemente, de que o referido organismo não pode invocar uma obrigação imposta pela lei nacional contra os trabalhadores lesados pela publicação dos dados?»

Tramitação processual no Tribunal de Justiça

23.
    No processo C-465/00 apresentaram observações as partes no processo principal, a Comissão e os Governos da Áustria, da Dinamarca, da Finlândia, da Itália, dos Países Baixos, da Suécia e do Reino Unido. Nos processos C-138/01 e C-139/01, apensos por despacho de 17 de Maio de 2001, apresentaram observações a Comissão e os Governos da Áustria, da Itália, dos Países Baixos, da Suécia e do Reino Unido.

24.
    A audiência, comum aos três processos, teve lugar em 18 de Junho de 2002, tendo nela participado a comuna de Kaltenleutgeben, o Land Niederösterreich, o Österreichische Nationalbank, a Austrian Airlines, a ÖRF, a Comissão e os Governos da Áustria, da Finlândia, da Itália, dos Países Baixos e da Suécia.

Análise jurídica

25.
    Como vimos, nos três processos são submetidas ao Tribunal de Justiça, no essencial, as mesmas questões: uma relativa à compatibilidade de uma disposição como a austríaca com as disposições da directiva e com os princípios gerais da ordem jurídica comunitária em matéria de confidencialidade; a outra, a título subsidiário, relativa ao efeito directo das normas comunitárias com as quais, em sede de análise da primeira questão, tal disposição tenha eventualmente sido declarada incompatível.

26.
    Para responder às questões nos três despachos de reenvio (que obviamente tratarei em conjunto), importa, portanto, avaliar, em primeiro lugar, se uma disposição nacional como a que está aqui em causa é compatível com as disposições da directiva; em segundo lugar, se tal disposição está em contradição com os princípios gerais da ordem jurídica comunitária em matéria de confidencialidade. No caso de tal disposição ser considerada contrária às disposições da directiva ou aos princípios em matéria de confidencialidade, deverá então ser abordada a questão da aplicabilidade directa de tais disposições e princípio.

Quanto à compatibilidade de uma disposição nacional como a que está em causa com as disposições da directiva

Observações preliminares

27.
    Como dissémos, os juízes nacionais perguntam, em primeiro lugar, se uma disposição como a que está em causa impõe o tratamento de dados pessoais contrários à disciplina contida na directiva. A resposta a esta questão supõe obviamente que esta última seja aplicável ao caso vertente, o que, porém, não está, de facto, adquirido e foi mesmo abertamente contestado por algumas das partes.

28.
    Com efeito, recordo que, nos termos do artigo 3.° da directiva, as suas disposições aplicam-se ao «tratamento de dados pessoais»; em especial, para o que aqui nos interessa, não se aplicam ao tratamento «efectuado no exercício de actividades não sujeitas à aplicação do direito comunitário» (artigo 3.°, n.° 2, primeiro travessão). Dando como adquirido que as diversas operações previstas pelo § 8 da BezBegrBVG (apuramento dos dados relativos às retribuições e às pensões, comunicação ao Rechnungshof, inclusão no relatório, apresentação do relatório aos órgãos competentes e publicação do mesmo) comportam o «tratamento de dados pessoais», quase todos os participantes no litígio no Tribunal de Justiça e os próprios juízes a quo se detiveram na análise da questão de saber se as actividades para as quais tal tratamento é efectuado estão ou não «sujeitas à aplicação do direito comunitário» na acepção do artigo 3.°, n.° 2, primeiro travessão, da directiva. Só em caso de resposta afirmativa é que se poderá considerar que o tratamento em questão é abrangido pelas disposições da directiva.

29.
    Parece-me então evidente que, para este fim, se impõe absolutamente resolver preliminarmente a questão da aplicabilidade da directiva, dado que, em caso de resposta negativa, não haveria razão para analisar a compatibilidade com as suas disposições de uma norma do tipo da que aqui está em causa. Consequentemente, passarei a analisar tal questão.

Considerações do juiz de reenvio e argumentos das partes

30.
    Embora reconhecendo o carácter controverso da questão, os juízes a quo parecem inclinados a considerar que a directiva abrange também o tratamento de dados como os que estão em análise, uma vez que, na sua opinião, este diploma realizou uma harmonização completa na matéria a fim de garantir a integral «protecção das liberdades e dos direitos fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente do direito à vida privada, no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais» (artigo 1.°, n.° 1). Observam, além disso, que a actividade de auditoria do Rechnungshof, para a qual são efectuados os tratamentos em análise, poderia enquadrar-se no âmbito de aplicação do direito comunitário pela sua possível incidência na livre circulação de trabalhadores (artigo 39.° CE), sobretudo tendo em consideração o facto de que a tal auditoria está igualmente sujeita uma empresa pública que se encontra em concorrência com operadores (nacionais e estrangeiros) que não são obrigados a tornar públicos os dados sobre as retribuições dos seus funcionários.

31.
    Da mesma opinião são naturalmente as entidades demandadas no Verfassungsgerichtshof. Embora com algumas ligeiras diferenças, consideram, em substância, que a actividade de auditoria do Rechnungshof se enquadra no âmbito de aplicação do direito comunitário quer porque, incidindo sobre as condições de trabalho dos funcionários das entidades em causa, toca aspectos regulados em parte por disposições comunitárias em matéria social (7), quer, sobretudo, porque pode criar obstáculos à livre circulação dos trabalhadores, em violação do artigo 39.° CE.

32.
    Com referência em especial a este último aspecto, é defendido que a auditoria do Rechnungshof, por um lado, incide negativamente sobre a possibilidade de os funcionários das entidades em causa procurarem trabalho noutro Estado-Membro (pretensamente porque a publicação dos respectivos vencimentos limitaria o seu poder negocial relativamente a sociedades estrangeiras); por outro lado, considera-se que desencoraja os cidadãos dos outros Estados-Membros que pretendam transferir-se para a Áustria para trabalharem para entidades sujeitas à auditoria do Rechnungshof.

33.
    Mais concretamente, o Österreichische Nationalbank (Banco Central austríaco) alega que o prejuízo para a livre circulação dos trabalhadores é agravado pelo facto de a auditoria incidir igualmente sobre as sucursais das empresas interessadas que se encontram noutros Estados-Membros; para a Austrian Airlines, ao invés, tal prejuízo é particularmente importante, uma vez que esta companhia está em concorrência com companhias de outros Estados-Membros que não estão sujeitas a semelhante auditoria.

34.
    Na opinião da ÖRF, finalmente, a actividade do Rechnungshof enquadra-se no âmbito de aplicação do direito comunitário (e, portanto, o tratamento de dados a que procede está abrangido pelas disposições da directiva) porque o § 8 da BezBegrBVG deve ser qualificado como uma disposição de execução da directiva.

35.
    Em sentido oposto vão as observações do Rechnungshof, da Áustria e da Itália. A actividade de auditoria prevista pelo § 8 da BezBegrBVG constitui, na opinião destas partes, a expressão de um poder autónomo do Estado, claramente destinado à prossecução de finalidades de interesse geral em matéria de contabilidade pública e, portanto, não se enquadra, em nenhum aspecto, no âmbito de aplicação do direito comunitário. As referidas partes acrescentam que a directiva, adoptada ao abrigo do artigo 100.°-A do Tratado CE, tem como objectivo essencial a realização do mercado interno, relativamente ao qual a protecção do direito à vida privada tem carácter meramente acessório. Na opinião destas partes, além disso, a auditoria em questão não é susceptível de criar obstáculos à livre circulação de trabalhadores, uma vez que não impede os funcionários das entidades em causa de irem trabalhar para outro Estado-Membro ou aos trabalhadores de outros Estados-Membros de se transferirem para tais entidades.

36.
    Por seu turno, a Comissão não manifestou uma posição clara e unívoca sobre a questão em análise, dado que apresentou nos três processos observações escritas não exactamente coincidentes e na audiência alterou as conclusões a que inicialmente tinha chegado.

37.
    Nas observações escritas apresentadas no processo C-465/00, defendeu que a directiva não se aplica a um tratamento como o que está em causa no presente processo, uma vez que estes são efectuados para a realização de uma actividade de auditoria contabilística que não se enquadra no âmbito de aplicação do direito comunitário. Com efeito, tal actividade diz respeito à política orçamental nacional, a qual, com excepção de algumas limitações previstas no quadro da União Económica e Monetária, não é disciplinada a nível comunitário e permanece, portanto, essencialmente da competência dos Estados-Membros. Por outro lado, continua a Comissão, está igualmente excluído que a actividade em questão se enquadre no âmbito de aplicação do direito comunitário pela sua possível incidência no funcionamento do mercado interno. Isto em especial porque: i) o relatório sobre as retribuições e a sua publicação não comportam um tratamento transfronteira de dados; ii) a pretensa desvantagem concorrencial das empresas submetidas à auditoria do Rechnungshof é de qualquer forma irrelevante; e iii) a influência da norma em análise sobre as opções dos trabalhadores é demasiado aleatória e indirecta para poder efectivamente representar um obstáculo à sua circulação no interior da Comunidade.

38.
    Nas observações escritas apresentadas nos processos apensos C-138 e 139/01, a Comissão confirmou, no essencial, a tese segundo a qual a actividade do Rechnungshof se situa fora do âmbito de aplicação do direito comunitário. No entanto, acrescentou que o tratamento efectuado pelas entidades submetidas à auditoria do Rechnungshof através do apuramento de dados relativos às retribuições dos seus funcionários é, na realidade, efectuado para o desenvolvimento de duas actividades distintas: a primeira consiste no pagamento de tais retribuições e enquadra-se no âmbito de aplicação do direito comunitário em razão da possível incidência sobre a livre circulação dos trabalhadores e do princípio da igualdade de retribuição entre trabalhadores masculinos e femininos (artigo 141.° CE); a segunda consiste na comunicação dos dados em questão ao Rechnungshof para a elaboração do relatório referido no § 8 da BezBegrBVG, e esta actividade, como já atrás foi defendido, escapa ao âmbito de aplicação do direito comunitário. Tendo em conta que a primeira actividade é «ocultada» pela actividade de auditoria contabilística (para a realização da qual são efectuados os ulteriores tratamentos pelo Rechnungshof), a Comissão concluiu que nem sequer o apuramento dos dados sobre as retribuições constitui um tratamento abrangido pelas disposições da directiva.

39.
    Na audiência, porém, a Comissão alterou as suas conclusões e aderiu à tese da aplicabilidade da directiva. Em especial, começou por precisar que o § 8 da BezBegrBVG prevê, no essencial, cinco tipos de tratamento de dados: o apuramento dos dados por parte das entidades submetidas à auditoria; a comunicação de tais dados ao Rechnungshof; a sua inserção por este último no relatório respectivo; a comunicação do relatório ao Parlamento; e a publicação do relatório. Os últimos quatro tratamentos não são abrangidos pelas disposições da directiva, na acepção do artigo 3.°, n.° 2, na medida em que são efectuados para a realização de uma actividade de auditoria contabilística alheia ao âmbito de aplicação do direito comunitário. No entanto, diversamente do defendido anteriormente, na audiência a Comissão observou que o primeiro tratamento, relativo ao apuramento dos dados pelas entidades submetidas à auditoria, se enquadra no âmbito das disposições da directiva. E isto na medida em que, segundo a Comissão, é (exclusivamente) efectuado no que respeita ao pagamento das retribuições, portanto, para uma actividade que se enquadra no âmbito de aplicação do direito comunitário, por um lado, pela sua possível incidência sobre a livre circulação dos trabalhadores, por outro lado, pela sua relevância para efeitos de aplicação de diversas normas comunitárias em matéria social (em especial, o artigo 141.° CE). A reutilização de tais dados mesmo para actividades de auditoria contabilística, ao invés, dá lugar a um «tratamento posterior» na acepção do artigo 6.°, n.° 1, alínea b) da directiva, cuja legitimidade é avaliada à luz das derrogações contempladas no artigo 13.°

Apreciação

40.
    Fazendo uma apreciação das diversas teses em presença, concordo, em primeiro lugar, com a Comissão que o § 8 da BezBegrBVG prevê, no essencial, cinco tipos de tratamento de dados: o apuramento dos dados sobre as retribuições e sobre as pensões por parte das entidades em causa; a comunicação de tais dados ao Rechnungshof; a sua inserção por este último no relatório respectivo; a comunicação do relatório ao Parlamento e aos outros órgãos competentes; e a publicação do relatório. No entanto, não estou de acordo com aquilo que defende a Comissão nas segundas observações escritas e na audiência no que respeita ao primeiro destes tratamentos (o apuramento dos dados por parte das entidades submetidas à auditoria do Rechnungshof); quer dizer, não penso que o referido tratamento seja efectuado pelas entidades em causa para pagarem as retribuições aos seus funcionários e, portanto, para o exercício de uma actividade que, segundo a Comissão, diversamente da que justifica a aplicação dos outros quatro tratamentos, está «sujeita à aplicação do direito comunitário», na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da directiva.

41.
    Em minha opinião, de facto, o § 8 da BezBegrBVG impõe às entidades submetidas à auditoria do Rechnungshof um tratamento diferente e posterior daqueles que normalmente realizam, na gestão da respectiva contabilidade, para pagarem as retribuições aos seus funcionários. O primeiro tratamento previsto por tais disposições comporta, com efeito, a selecção e a extrapolação, entre todos os dados que figuram na contabilidade das entidades em causa, os dados relativos às retribuições e às pensões «das pessoas que, pelo menos durante um dos dois anos civis anteriores, tenham recebido retribuições ou pensões anualmente superiores a 14 vezes o montante de 80% da quantia base de referência mensal», tendo em conta igualmente as posteriores retribuições e pensões eventualmente recebidas de outras entidades submetidas à auditoria do Rechnungshof. Trata-se, portanto, de um tratamento particular dos dados de que dispõem as referidas entidades, que não deve ser confundido com tratamentos de outro tipo que as mesmas entidades devem normalmente realizar para a gestão da sua contabilidade e para o pagamento das retribuições a todos os funcionários. Isto porque, diversamente de tais tratamentos, aquele que aqui está em causa constitui um tratamento ad hoc, específica e exclusivamente destinado a permitir a actividade de auditoria contabilística prevista pela referida disposição.

42.
    Posto isto, para determinar se os cinco tipos de tratamento de dados previstos pelo § 8 da BezBegrBVG são abrangidos pelas disposições da directiva, há que se interrogar agora se a actividade de auditoria do Rechnungshof à qual tais tratamentos estão submetidos está ou não «sujeita à aplicação do direito comunitário», na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da directiva.

43.
    Em minha opinião, a tal pergunta deve dar-se resposta negativa. A actividade em questão é, de facto, desenvolvida pelo Rechnungshof a fim de «informar detalhadamente as cidadãs e os cidadãos austríacos sobre as retribuições procedentes dos cofres públicos», favorecendo assim uma correcta gestão dos recursos públicos. Trata-se, portanto, como observaram o próprio Rechnungshof, a Comissão e os Governos austríaco e italiano, de uma actividade pública de auditoria, prevista e regulada pelas autoridades austríacas (através de uma lei constitucional) com base numa opção político-industrial por elas feita autonomamente, e não para dar execução a uma obrigação comunitária. Não sendo objecto de uma disciplina comunitária específica, tal actividade não pode deixar de ser da competência dos Estados-Membros.

44.
    Esta conclusão não me parece poder ser posta em causa pelos argumentos aduzidos em contrário na tentativa de fazer com que a actividade do Rechnungshof entre no âmbito de aplicação do direito comunitário. Para tanto, como se viu, foi invocada a pretensa importância de tal actividade para algumas disposições do Tratado e do direito derivado, mas nenhuma das hipóteses evocada se me afigura procedente.

45.
    Em primeiro lugar, para além de uma evocação genérica, ninguém conseguiu realmente explicar qual a relevância que a actividade em questão possa ter do ponto de vista do artigo 141.° CE. Considerando, de facto, que tal actividade tem por objecto, sem distinção, os dados relativos aos trabalhadores de ambos os sexos, não se percebe de que modo a auditoria do Rechnungshof pode incidir sobre a aplicação do princípio da igualdade de retribuições consagrado por aquela disposição. De resto, também não consigo perceber qual é a relação que tal auditoria pode ter com as outras disposições comunitárias em matéria social invocadas por algumas das partes, isto é, com os artigos 136.° CE e 137.° CE em matéria de política social, com a Directiva 76/207, relativa à concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho (8) e com o Regulamento n.° 1408/71, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (9). Estas referências foram igualmente feitas sem a mínima explicação e, de qualquer modo, mesmo com a melhor das boas vontades, não consigo descortinar a relação com a actividade de auditoria do Rechnungshof.

46.
    De certo modo forçada, e não convincente, parece-me a tentativa de subsumir tal actividade no âmbito de aplicação do direito comunitário invocando a sua possível incidência na livre circulação dos trabalhadores garantida pelo artigo 39.° CE. Sublinho, com efeito, a título preliminar, que os despachos de reenvio não revelam a existência de elementos transfronteiras que possam justificar a aplicação de tais disposições nos processos principais senão, quando muito, hipoteticamente: e isto, portanto, em contraste com a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual «uma perspectiva profissional puramente hipotética noutro Estado-Membro não constitui vínculo suficiente com o direito comunitário para justificar a aplicação do artigo 48.° do Tratado [que passou, após alteração, a artigo 39.° CE]» (10).

47.
    Mas, mesmo abstraindo de tal observação, penso igualmente que a disposição em questão não se presta a ser qualificada como um obstáculo à livre circulação dos trabalhadores. De facto, uma vez que se aplica de igual forma aos trabalhadores nacionais e estrangeiros, parece-me que a sua possível influência sobre as opções dos trabalhadores é demasiado aleatória e indirecta para poder efectivamente representar um obstáculo à sua circulação na acepção do artigo 39.° CE. Recordo, a este propósito, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça, embora admita que «disposições, mesmo aplicáveis indistintamente, que impedem ou dissuadem um cidadão de um Estado-Membro de abandonar o seu país de origem para exercer o seu direito de livre circulação constituem [...] entraves a essa liberdade», indicou, todavia, que «para poderem constituir tais entraves, é necessário que [tais disposições] condicionem o acesso dos trabalhadores ao mercado de trabalho [nos outros Estados-Membros]» (11). Ora, como observou em especial o Governo austríaco, embora a auditoria do Rechnungshof possa figurar entre os elementos tomados em consideração por alguns trabalhadores para efectuarem as suas opções profissionais, é evidente que isso não condiciona directamente o acesso dos trabalhadores de outros Estados-Membros a um emprego na Áustria para as entidades em causa nem o acesso dos funcionários de tais entidades ao mercado do trabalho dos outros Estados-Membros.

48.
    Finalmente, também me parece infundado (e, para dizer a verdade, nem sequer muito claro) o argumento da ÖRF segundo o qual a actividade do Rechnungshof se enquadra no âmbito de aplicação do direito comunitário porque o § 8 da BezBegrBVG deve ser qualificado como uma disposição de execução da directiva. Na realidade, a disposição em questão não estabelece regras de carácter geral sobre o tratamento de dados pessoais, para efeitos de transpor para a ordem jurídica nacional a disciplina da directiva; limita-se, ao invés, a impor tratamentos específicos estritamente necessários para o exercício da actividade de auditoria do Rechnungshof. Ora, se se quer evitar partir de uma petição de princípio e contradizer a ratio do artigo 3.°, n.° 2, não se pode considerar como disposição de transposição da directiva qualquer disposição nacional que imponha um tratamento de dados pessoais, para deduzir em seguida desta premissa que qualquer tratamento previsto por uma disposição nacional está abrangido pelas disposições da directiva, uma vez que, por definição, é efectuado para a realização de uma actividade «sujeita à aplicação do direito comunitário».

49.
    O conjunto das considerações que precedem levam-me, portanto, a considerar que os tratamentos de dados pessoais do tipo dos previstos no § 8 da BezBegrBVG não estão abrangidos pelas disposições da directiva, uma vez que são realizados para o exercício de uma actividade pública de auditoria contabilística não «sujeita à aplicação do direito comunitário», na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da directiva.

50.
    De resto, não penso que se possa objectar a este respeito, como parecem fazer os juízes nacionais, que a directiva deve igualmente ser aplicada em casos semelhantes porque se destina a garantir a integral «protecção das liberdades e dos direitos fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente do direito à vida privada, no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais» (artigo 1.°, n.° 1).

51.
    Como já observei nas conclusões que apresentei no processo C-101/01, Lindqvist, a directiva foi adoptada com base no artigo 100.°-A do Tratado CE para favorecer a livre circulação dos dados pessoais, através da harmonização das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros sobre a protecção das pessoas singulares relativamente ao tratamento destes dados. O legislador comunitário pretendeu, em especial, instituir um nível de protecção «equivalente em todos os Estados-Membros», a fim de eliminar os obstáculos à circulação de dados pessoais resultantes das «diferenças entre os Estados-Membros quanto ao nível de protecção dos direitos e liberdades das pessoas» (sétimo e oitavo considerandos). Isto porque, uma vez adoptada a directiva de harmonização, «devido à protecção equivalente resultante da aproximação das legislações nacionais, os Estados-Membros (deixariam) de poder levantar obstáculos à livre circulação entre si de dados pessoais por razões de protecção dos direitos e liberdades das pessoas, nomeadamente do direito à vida privada» (nono considerando).

52.
    É certo que, ao determinar tal nível de protecção «equivalente em todos os Estados-Membros», o legislador teve em conta a exigência de protecção «(d)os direitos fundamentais das pessoas» (segundo e terceiro considerandos), tendo por objectivo garantir um «elevado nível» de protecção (décimo considerando). Mas tudo isto sempre no quadro e a fim de obter a realização do objectivo principal da directiva, isto é, para favorecer a livre circulação dos dados pessoais, considerada «fundamental para o mercado interno» (oitavo considerando).

53.
    A protecção dos direitos fundamentais representa, portanto, um importante valor e uma exigência que o legislador comunitário teve em conta ao delinear a disciplina harmonizada necessária para o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno, mas não um objectivo autónomo da directiva. De contrário, haveria que considerar que a directiva pretende proteger os indivíduos relativamente ao tratamento dos dados pessoais independentemente do objectivo que consiste em favorecer a livre circulação desses dados, com a consequência incongruente de fazer igualmente cair no âmbito da sua aplicação tratamentos efectuados para o exercício de actividades que não apresentam qualquer relação com o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno.

54.
    Por outro lado, se além da finalidade de favorecer a livre circulação dos dados pessoais no mercado interno, se atribuísse à directiva o objectivo adicional e autónomo de garantir a protecção dos direitos fundamentais (em especial, o direito à vida privada), correr-se-ia o risco de pôr em causa a validade da própria directiva, dado que a sua base jurídica seria, em tal caso, claramente inadequada. O artigo 100.°-A não poderia, de facto, ser invocado para justificar medidas que ultrapassam as finalidades específicas mencionadas nesta disposição, a saber, medidas que não seriam justificadas pelo objectivo que consiste em favorecer «o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno».

55.
    Recordo, a este propósito, que recentemente, no conhecido acórdão que anulou a Directiva 98/43/CE (12) por falta de base jurídica, o Tribunal de Justiça esclareceu que «as medidas previstas no artigo 100.°-A, n.° 1, do Tratado se destinam a melhorar as condições do estabelecimento e do funcionamento do mercado interno. Interpretar este artigo no sentido de que o mesmo atribui ao legislador comunitário uma competência geral para regulamentar o mercado interno seria não só contrário ao próprio teor das referidas disposições, mas igualmente incompatível com o princípio consagrado no artigo 3.°-B do Tratado CE (actual artigo 5.° CE) segundo o qual as competências da Comunidade são competências de atribuição» (13). Seguidamente, referindo-se de forma expressa à protecção dos direitos fundamentais, recordo que, no conhecido parecer 2/94, posterior à adopção da directiva, o Tribunal de Justiça afirmou expressamente que «nenhuma disposição do Tratado confer(ia) às instituições comunitárias, de modo geral, o poder de adoptar regras em matéria de direitos do homem» (14).

56.
    À luz do conjunto das considerações que precedem, entendo, portanto, que tratamentos de dados pessoais previstos numa disposição do tipo da que está aqui em análise não estão abrangidos pelas disposições da directiva, na medida em que são efectuados «no exercício de actividades não sujeitas à aplicação do direito comunitário» na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da directiva. Daqui resulta que tal disposição não pode ser considerada incompatível com as disposições da directiva.

Quanto à compatibilidade de uma disposição nacional como a que está em causa com os princípios gerais da ordem jurídica comunitária em matéria de confidencialidade

57.
    Assente que a directiva não é aplicável no caso vertente, impõe-se ainda verificar se uma norma como a que está em causa é compatível com os princípios gerais do direito comunitário em matéria de confidencialidade, entre os quais figura, designadamente, o direito ao respeito pela vida privada, consagrado no artigo 8.° da CEDH (15), aos quais faz expressamente referência o despacho de reenvio.

58.
    A este respeito, devo observar que quando «uma regulamentação nacional entre no campo de aplicação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça, tendo-lhe sido dirigido um pedido de decisão a título prejudicial, deve fornecer todos os elementos de interpretação necessários para a apreciação, pelo tribunal nacional, da conformidade de tal regulamentação com os direitos fundamentais cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça [...]. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça não tem essa competência relativamente a uma regulamentação nacional que não se situe no quadro do direito comunitário» (16).

59.
    Dado que, como já assinalei, considero que a actividade de auditoria prevista pela disposição nacional em causa escapa ao âmbito de aplicação do direito comunitário, penso, em consequência, que o Tribunal de Justiça não é competente para avaliar a conformidade de tal disposição com os princípios gerais da ordem jurídica comunitária em matéria de confidencialidade.

Quanto às questões relativas à aplicabilidade directa das disposições da directiva e dos princípios gerais do direito comunitário em matéria de confidencialidade

60.
    Tendo em conta as conclusões a que cheguei nos parágrafos anteriores, não considero necessário abordar as questões relativas à aplicabilidade directa das disposições da directiva e dos princípios gerais do direito comunitário em matéria de confidencialidade.

Conclusões

À luz das considerações que acabei de expor, proponho ao Tribunal de Justiça, consequentemente, que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Verfassungsgerichtshof e pelo Oberster Gerichtshof que os tratamentos de dados pessoais previstos numa disposição do tipo da que está aqui em análise não estão abrangidos pelas disposições da directiva, na medida em que são efectuados «no exercício de actividades não sujeitas à aplicação do direito comunitário» na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da directiva. O Tribunal de Justiça não é competente para avaliar a conformidade de tal disposição com os princípios gerais do direito comunitário em matéria de confidencialidade.


1: -     Língua original: italiano.


2: -     Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de Outubro de 1995 (JO L 281, p. 31).


3: -     Esta disposição foi retomada no artigo 7.° da Carta dos direitos fundamentais da União Europeia, que dispõe que «(t)odas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações». Fazendo expressamente referência à protecção dos dados pessoais, o artigo 8.° da Carta prevê:

    «1. Todas as pessoas têm direito à protecção dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito.

    2. Esses dados devem ser objecto de um tratamento leal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei. Todas as pessoas têm o direito de aceder aos dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respectiva rectificação.

    3. O cumprimento destas regras fica sujeito a fiscalização por parte de uma autoridade independente.»


4: -     BGBl. 379/1984 (Wv) alterada, BGBl. I 49/2000.


5: -     BGBl. I 64/1997.


6: -     Proposta de lei e relatório da comissão parlamentar, 453/A e 687 BlgNR, 20. GP.


7: -     A este propósito, foram especialmente evocados os artigos 136.° CE, 137.° CE e 141.° CE, a Directiva 76/207/CEE do Conselho, de 9 de Fevereiro de 1976, relativa à concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho (JO L 39, p. 40; EE 05 F2 p. 70) e o Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (JO L 149, p. 2; EE 05 F1 p. 98; última versão em língua portuguesa no JO 1997, L 28, p. 1).


8: -     Directiva do Conselho de 9 de Fevereiro de 1976 (já referida na nota 7).


9: -     Regulamento do Conselho de 14 de Junho de 1971 (já referido na nota 7).


10: -     Acórdão de 28 de Junho de 1984, Moser (180/83, Recueil, p. 2539, n.° 18). A este respeito, v., igualmente, acórdãos de 28 de Março de 1979, Saunders (175/78, Recueil, p. 1129), de 28 de Janeiro de 1992, Steen (C-332/90, Colect. p. I-341), e de 5 de Junho de 1997, Uecker e Jacquet (C-64/96 e C-65/96, Colect. p. I-3171).


11: -     Acórdão de 27 de Janeiro de 2000, Graf (C-190/98, Colect., p. I-493, n.° 23).


12: -     Directiva 98/43/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Julho de 1998, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria de publicidade e de patrocínio dos produtos do tabaco (JO L 213, p. 9).


13: -     Acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de Outubro de 2000, Alemanha/Parlamento e Conselho (C-376/98, Colect., p. I-8419, n.° 83).


14: -     Parecer 2/94 de 28 de Março de 1996 (Colect. p. I-1759, n.° 27).


15: -     Como se sabe, «segundo jurisprudência constante, os direitos fundamentais são parte integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça. Para este efeito, o Tribunal de Justiça inspira-se nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, bem como nas indicações fornecidas pelos instrumentos internacionais relativos à protecção dos direitos do homem em que os Estados-Membros colaboraram ou a que aderiram. Neste quadro, a CEDH reveste um significado particular» [acórdão de 6 de Março de 2001, Connolly/Comissão (C-274/99 P, Colect., p. I-1611, n.° 37)]. No mesmo sentido v., de resto, o artigo 6.°, n.° 2, UE, segundo o qual «(a) União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia da Salvaguarda dos Direitos Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, enquanto princípios gerais de direito comunitário.»


16: -     Acórdão de 29 de Maio de 1997, Kremzow (C-299/95, Colect., p. I-2629, n.° 15). No mesmo sentido, v. acórdãos de 4 de Outubro de 1991, Society for the Protection of Unborn Children Ireland (C-159/90, Colect., p. I-4685, n.° 31), de 18 de Dezembro de 1997, Annibaldi (C-309/96, Colect., p. I-7493, n.° 13), e despacho de 25 de Maio de 1998, Nour (C-361/97, Colect., p. I-3101, n.° 19).