Language of document : ECLI:EU:C:2016:938

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 8 de dezembro de 2016 (1)

Processo C‑527/15

Stichting Brein

contra

Jack Frederik Wullems, que intervém sob a designação comercial Filmspeler

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Rechtbank Midden‑Nederland (Tribunal de Primeira Instância de Midden‑Nederland, Países Baixos)]

«Direito de autor e direitos conexos — Sociedade da informação — Conceito de ‘comunicação ao público’ — Direito de reprodução — Exceções e limites»





1.        O direito de os autores permitirem a comunicação pública das suas obras, protegido pelo artigo 3.° da Diretiva 2001/29/CE (2), pode ser prejudicado pelas ligações que remetem de um sítio Internet para outro, se não foi conseguido o devido equilíbrio entre o respeito pela propriedade intelectual e o livre desenvolvimento da sociedade da informação. As hiperligações (3) representam, neste contexto, um dos elementos essenciais da Internet, indispensáveis para a navegação através das suas páginas ou sítios Internet, mas podem também facilitar a violação do direito de autor.

2.        O Tribunal de Justiça, que se pronunciou diversas vezes sobre o conceito de comunicação pública (4), proferiu muito recentemente um acórdão determinante (5) para esclarecer se esta ocorre, na aceção da Diretiva 2001/29, na inserção de uma hiperligação num sítio Internet, que remete para outras páginas ou sítios Internet nos quais se apresentam conteúdos digitais (6) expostos sem autorização dos titulares dos seus direitos, aos quais o utilizador tem acesso ao simplesmente clicar na hiperligação.

3.        A primeira e segunda questões prejudiciais apresentadas pelo Rechtbank Midden‑Nederland (Tribunal de Primeira Instância de Midden‑Nederland, Países Baixos) neste reenvio prejudicial coincidem, parcialmente, com as que estiveram na origem do acórdão de 8 de setembro de 2016, GS Media. O órgão jurisdicional neerlandês, tendo conhecimento da pendência do referido processo no Tribunal de Justiça, ponderou a hipótese de suspender a instância até à prolação do acórdão do Tribunal de Justiça. No entanto, optou por dirigir‑se ao Tribunal de Justiça antes de ser proferido o acórdão GS Media porque, nas suas palavras, (7) há algumas diferenças entre os dois processos, sendo a mais importante o facto de «não serem colocadas hiperligações num sítio Internet próprio, mas serem instaladas no leitor multimédia de J. F. Wullems […]».

4.        Se, tal como defendo, for possível extrapolar o acórdão GS Media para este processo, bastará recorrer à doutrina que daí decorre e, subsequentemente, analisar se também se verifica comunicação pública quando se comercializa um leitor multimédia que incorpora uma modalidade de software (com aplicações complementares ou add‑ons), através da qual o utilizador é redirecionado para páginas Internet que divulgam conteúdos digitais sem o consentimento do titular do direito de autor.

5.        O juiz a quo manifestou, ainda, outras dúvidas (terceira e quarta questões) que dizem respeito não tanto ao meio técnico ou dispositivo de reprodução, mas antes à proteção do direito de autor — e à correlativa ilegitimidade da conduta oposta — quando o utilizador final recebe, por meio de transferência em contínuo (streaming) (8) e sem autorização do titular dos seus direitos, conteúdos digitais protegidos, aos quais tem acesso através da hiperligação.

I –    Quadro jurídico

Diretiva 2001/29

6.        A aproximação dos ordenamentos jurídicos dos Estados‑Membros relativamente à propriedade intelectual foi efetuada, principalmente, através da Diretiva 93/98/CEE (9), depois alterada e revogada pela Diretiva 2006/116/CE (10), que codifica as versões anteriores. Uma dessas alterações teve como objetivo regular a proteção do direito de autor e direitos conexos na denominada sociedade da informação através da Diretiva 2001/29.

7.        Nos termos do considerando 23 da referida diretiva:

«A presente diretiva deverá proceder a uma maior harmonização dos direitos de autor aplicáveis à comunicação de obras ao público. Esses direitos deverão ser entendidos no sentido lato, abrangendo todas as comunicações ao público não presente no local de onde provêm as comunicações. Abrangem ainda qualquer transmissão ou retransmissão de uma obra ao público, por fio ou sem fio, incluindo a radiodifusão, não abrangendo quaisquer outros atos.»

8.        No considerando 27 pode ler‑se:

«A mera disponibilização de meios materiais para permitir ou realizar uma comunicação não constitui só por si uma comunicação na aceção da presente diretiva.»

9.        De acordo com o considerando 31:

«Deve ser salvaguardado um justo equilíbrio de direitos e interesses entre as diferentes categorias de titulares de direitos, bem como entre as diferentes categorias de titulares de direitos e utilizadores de material protegido. As exceções ou limitações existentes aos direitos estabelecidas a nível dos Estados‑Membros devem ser reapreciadas à luz do novo ambiente eletrónico. […]»

10.      O considerando 33 estabelece o seguinte:

«O direito exclusivo de reprodução deve ser sujeito a uma exceção para permitir certos atos de reprodução temporária, que são reproduções transitórias ou pontuais, constituindo parte integrante e essencial de um processo tecnológico efetuado com o único objetivo de possibilitar, quer uma transmissão eficaz numa rede entre terceiros por parte de um intermediário, quer a utilização legítima de uma obra ou de outros materiais protegidos. Os atos de reprodução em questão não deverão ter, em si, qualquer valor económico. Desde que satisfeitas essas condições, tal exceção abrange igualmente os atos que possibilitam a navegação (‘browsing’) e os atos de armazenagem temporária (‘caching’), incluindo os que permitem o funcionamento eficaz dos sistemas de transmissão, desde que o intermediário não altere o conteúdo da transmissão e não interfira com o legítimo emprego da tecnologia, tal como generalizadamente reconhecido e praticado pela indústria, para obter dados sobre a utilização da informação. Uma utilização deve ser considerada legítima se tiver sido autorizada pelo titular de direitos e não estiver limitada por lei.»

11.      O artigo 2.° estabelece, sob a epígrafe «Direito de reprodução»:

«Os Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções, diretas ou indiretas, temporárias ou permanentes, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, cabe:

a)      Aos autores, para as suas obras;

[…]»

12.      O artigo 3.°, n.° 1, da diretiva estabelece, sob a epígrafe «Direito de comunicação de obras ao público, incluindo o direito de colocar à sua disposição outro material»:

«1.      Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.»

13.      Dentro da regulação das «Exceções e limitações» (epígrafe da disposição) aos direitos de reprodução, de comunicação ao público e de distribuição, os n.os 1 e 5 do artigo 5.° têm a seguinte redação:

«1.      Os atos de reprodução temporária referidos no artigo 2.° que sejam transitórios ou episódicos, que constituam parte integrante e essencial de um processo tecnológico e cujo único objetivo seja permitir:

a)      Uma transmissão numa rede entre terceiros por parte de um intermediário, ou

b)      Uma utilização legítima

de uma obra ou de outro material a realizar, e que não tenham, em si, significado económico, estão excluídos do direito de reprodução previsto no artigo 2.°

[…]

5.      As exceções e limitações contempladas nos n.os 1, 2, 3 e 4 só se aplicarão em certos casos especiais que não entrem em conflito com uma exploração normal da obra ou outro material e não prejudiquem irrazoavelmente os legítimos interesses do titular do direito.»

II – Factos na origem do processo e questões prejudiciais

14.      A Stichting Brein é uma fundação dedicada à defesa do direito de autor e de outros direitos conexos. Entre os seus patronos encontram‑se associações de fabricantes e importadores de suportes audiovisuais, de produtores cinematográficos, de distribuidores de filmes, de produtores multimédia e de editores.

15.      Jack Frederik Wullems colocou à venda ao público, em vários sítios Internet (entre os quais o seu próprio sítio, www.filmspeler.nl), diversos modelos (11) de um leitor multimédia, sob a designação «filmspeler». O aparelho funciona como um dispositivo intermédio entre uma fonte de sinais de imagem e som e um ecrã televisivo. As diferenças entre os modelos são de natureza técnica, mas o seu funcionamento é essencialmente idêntico: quando o leitor multimédia é ligado à Internet, por um lado, e a um ecrã (por exemplo, de televisão) do utilizador, por outro, este pode, por meio de transferência em contínuo ou streaming, visualizar imagens e sons com origem num portal ou sítio Internet.

16.      O hardware do leitor multimédia é vendido por diversos fornecedores. J. F. Wullems tinha instalado nos seus aparelhos o software de fonte aberta XBMC [open source software], que permite iniciar ficheiros numa interface gráfica (user interface) de fácil utilização através de menus e que pode ser utilizado por qualquer pessoa. Também instalou aplicações complementares (add‑ons), ou seja, ficheiros independentes de software, desenvolvidas por terceiros e livremente disponíveis na Internet, integrando‑as na interface gráfica do software XBMC.

17.      Estas aplicações complementares contêm hiperligações que, ao serem acedidas, estabelecem ligação a sítios Internet de transferência em contínuo, geridos por terceiros, nos quais se pode ter acesso, sem nenhum pagamento, a filmes, séries televisivas e competições desportivas (em direto), com ou sem a autorização dos titulares dos respetivos direitos. Os conteúdos digitais começam automaticamente assim que se clica na hiperligação correspondente (12).

18.      Catorze destas aplicações complementares (13) estabeleciam hiperligações para filmes, séries e competições desportivas (em direto) sem a autorização dos titulares do direito de reprodução. Outras, pelo contrário, remetiam para sítios Internet de transferência em contínuo cujos conteúdos digitais tinham autorização dos titulares (14).

19.      As aplicações complementares que J. F. Wullems tinha instalado no leitor multimédia não eram adaptadas ou modificadas por ele e o próprio utilizador também as pode instalar no seu leitor multimédia. J. F. Wullems colocou, tanto no seu portal (www.filmspeler.nl) como noutros sítios Internet de terceiros, anúncios dos seus produtos com os seguintes slogans:

–        «Nunca mais pague para ver filmes, séries e desporto: sem publicidade e sem tempos de espera (sem assinatura, plug & play). A Netflix é coisa do passado!

–        Ver filmes, séries e desporto sem pagar? Não é o que todos queremos?!

–        Nunca mais ir ao cinema, graças ao nosso software otimizado XBMC. Filmes e séries grátis em alta definição, incluindo filmes que passaram recentemente nas salas de cinema, graças à XBMC.»

20.      Em 22 de maio de 2014, a Stichting Brein notificou J. F. Wullems para interromper a venda dos leitores multimédia. Em 1 de julho de 2014, apresentou queixa no órgão jurisdicional de reenvio, pedindo que ordenasse a interrupção da comercialização dos aparelhos e da oferta de hiperligações que disponibilizavam aos utilizadores acesso ilegal a obras protegidas por direito de autor.

21.      A fundação demandante alegou, em apoio do seu pedido, que J. F. Wullems, ao vender o leitor multimédia filmspeler, fazia uma «comunicação ao público», violando os artigos 1.° e 12.° da Auteurswet (Lei neerlandesa dos direitos de autor), assim como os artigos 2.°, 6.°, 7.°, alínea a) e 8.° da Wet op de Naburige Rechten (Lei neerlandesa dos direitos conexos).

22.      Para o Rechtbank Midden‑Nederland (Tribunal de Primeira Instância de Midden‑Nederland), as disposições de direito nacional invocadas no litígio devem ser interpretadas à luz do artigo 3.° da Diretiva 2001/29, que transpõem para o ordenamento neerlandês. Uma vez que as partes no processo principal divergem quanto à questão de saber se na venda do leitor multimédia por J. F. Wullems está em causa chegar a um «público novo», na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça, o juiz de reenvio entende que nem o acórdão Svensson e o. (15) nem o despacho BestWater International (16) fornecem elementos suficientes para decidir a questão. Mantém‑se, assim, no seu entender, uma dúvida razoável quanto à existência de comunicação ao público quando a obra foi publicada anteriormente, mas sem a autorização do titular do direito de autor.

23.      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio vê‑se confrontado com o argumento de J. F. Wullems, que entende que a transferência em contínuo de obras protegidas pelo direito de autor a partir de uma fonte ilícita é abrangida pela exceção prevista no artigo 13.°, alínea a), da lei neerlandesa dos direitos de autor. Como essa disposição deve ser interpretada em conformidade com o artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, o juiz de reenvio afirma que o Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou sobre o significado do requisito de «utilização legítima» do artigo 5.° dessa diretiva.

24.      Nestas circunstâncias, o Rechtbank Midden‑Nederland (Tribunal de Primeira Instância de Midden‑Nederland) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça, a título prejudicial, as seguintes questões:

«1)      Deve o artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29/CE ser interpretado no sentido de que existe uma ‘comunicação ao público’, na aceção desta disposição, quando alguém vende um produto (leitor multimédia) em que instalou aplicações complementares que contêm hiperligações para sítios Internet onde foram tornadas diretamente acessíveis obras protegidas pelo direito de autor, como filmes, séries e emissões em direto, sem a autorização do respetivo titular?

2)      Neste contexto, é relevante:

–      que as obras protegidas pelo direito de autor ainda não tenham sido de todo divulgadas ao público na Internet, ou apenas o tenham sido através de uma assinatura com a autorização dos respetivos titulares de direito?

–      que as aplicações complementares que contêm hiperligações para sítios Internet em que foram tornadas diretamente acessíveis ao público obras protegidas pelo direito de autor, sem a autorização dos respetivos titulares de direito, estejam livremente acessíveis na Internet e possam ser instaladas no leitor multimédia pelo próprio utilizador?

–      que os sítios Internet e, portanto, as obras protegidas pelo direito de autor neles tornadas acessíveis — sem a autorização dos respetivos titulares de direito — também possam ser acedidos pelo público sem recorrer ao leitor multimédia?

3)      Deve o artigo 5.° da Diretiva […] ser interpretado no sentido de que existe uma ‘utilização legítima’, na aceção do n.° 1, alínea b), desta disposição, quando é feita uma reprodução temporária por um utilizador final na transferência em contínuo (streaming) de uma obra protegida a partir de um sítio Internet de um terceiro onde esta obra se encontra divulgada sem a autorização dos respetivos titulares?

4)      Em caso de resposta negativa à terceira questão, a reprodução temporária por um utilizador final na transferência em contínuo (streaming) de uma obra protegida a partir de um sítio Internet onde esta obra se encontra divulgada sem a autorização dos respetivos titulares viola a ‘tripla condição’ prevista no artigo 5.°, n.° 5, da Diretiva […]?»

III – Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e argumentos das partes

A –    Tramitação do processo

25.      O despacho de reenvio deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 5 de outubro de 2015.

26.      As partes no processo principal, os Governos francês, italiano, português e espanhol, assim como a Comissão Europeia, submeteram observações escritas, no prazo estabelecido pelo artigo 23.°, segundo parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça.

27.      Na audiência, realizada em 29 de setembro de 2016, compareceram os representantes da Stichting Brein, de J. F. Wullems, do Governo espanhol e da Comissão Europeia.

B –    Argumentos

1.      Quanto à primeira e segunda questões prejudiciais

28.      A Stichting Brein e os Governos espanhol, francês, italiano e português propõem que se responda afirmativamente à primeira questão e consideram que não são relevantes os elementos de análise referidos nos três travessões da segunda. Entendem que neste caso estão reunidos cumulativamente os dois pressupostos exigidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente, um «ato de comunicação» e um «público» (17).

29.      Como essa mesma jurisprudência reiterou a necessidade de interpretar em sentido amplo o conceito de «ato de comunicação» (18), a Stichting Brein e os referidos Governos entendem que o aparelho filmspeler produz o efeito de «colocação à disposição» do público e, consequentemente, de «ato de comunicação» na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29. O Tribunal de Justiça já afirmou que o facto de se fornecer, num sítio Internet, ligações para obras protegidas publicadas sem qualquer restrição de acesso, noutro sítio Internet, oferece aos utilizadores do primeiro sítio um acesso direto às referidas obras (19), sem que seja determinante que as referidas pessoas utilizem ou não essa possibilidade (20).

30.      Para a Stichting Brein é irrelevante que não tenha sido o próprio J. F. Wullems, mas sim o operador que oferece as aplicações complementares de software, quem colocou as hiperligações à disposição do público. O Governo francês centra‑se em dois aspetos: a) o público a que são dirigidas as obras protegidas inicialmente comunicadas é composto exclusivamente pelos assinantes das cadeias de televisão autorizadas a emitir os respetivos programas; e b) o sítio Internet em que se encontravam as obras objeto do litígio estava protegido por diversas restrições de acesso, segundo se depreende do despacho de reenvio. Neste contexto, o Governo espanhol sublinha a necessidade de se ter em conta os utilizadores potenciais, atuais e futuros (21).

31.      Quanto ao público «novo» (isto é, o público que não foi considerado pelos autores das obras protegidas quando autorizaram a comunicação ao público original) (22), a Stichting Brein sublinha a importância da autorização concedida pelos titulares dos direitos para a comunicação inicial por hiperligação. O Governo português acrescenta que, na medida em que o ato representa a colocação à disposição de obras protegidas através de um modo técnico específico diferente do original, não seria necessário analisar, de acordo com a jurisprudência, o pressuposto do «público novo», uma vez que cada nova transmissão teria de possuir a autorização individual e separada dos autores interessados (23).

32.      J. F. Wullems e a Comissão entendem, pelo contrário, que neste caso não existe um «ato de comunicação». J. F. Wullems centra a sua defesa no facto de as aplicações complementares com as hiperligações não se encontrarem no aparelho quando este é vendido ao utilizador final. Além disso, acrescenta, uma hiperligação não pode constituir, por si só, um ato de comunicação ao público.

33.      Para a Comissão, o filmspeler comercializado por J. F. Wullems corresponde ao conceito de «meio material» (consagrado no considerando 27 da Diretiva 2001/29), na medida em que permite, mas não constitui por si só uma comunicação. Se equipar um meio material com um programa o fizesse perder essa sua condição, o considerando 27 da Diretiva 2001/29 não teria efeito útil, ao ser apenas aplicável a um número muito reduzido de casos. Aceitando‑se a tese contrária, as disposições do capítulo III da Diretiva 2001/29 seriam desprovidas de sentido.

34.      Em suma, a Comissão receia que uma interpretação excessivamente ampla do conceito de «comunicação ao público» altere e ponha em risco o justo equilíbrio entre os direitos e os interesses de todas as partes envolvidas, que entende constituir um objetivo geral inerente à Diretiva 2001/29.

2.      Quanto à terceira e quarta questões prejudiciais

35.      A Stichting Brein e os Governos espanhol e francês entendem que a exceção prevista no artigo 5.°, da Diretiva 2001/29, não é aplicável à reprodução através de transferência em contínuo de uma obra protegida por direito de autor a partir de um sítio Internet terceiro no qual é disponibilizada. Argumentam que o n.° 1 do referido artigo diz apenas respeito a atos de reprodução temporários, transitórios ou episódicos, características ausentes da que fornece o filmspeler, pelo que não constitui uma «parte integrante e essencial de um processo tecnológico cujo único objetivo seja permitir uma utilização legítima de uma obra ou de outro material a realizar», como determina o referido artigo 5.°, n.° 1, nomeadamente a sua alínea b).

36.      Para além disso, na resposta à quarta questão prejudicial, a Stichting Brein e o Governo espanhol (24) advertem para o facto de que a fundamentação do Tribunal de Justiça, ao interpretar a denominada «exceção de cópia privada» do artigo 5.°, n.° 2, alínea b), da Diretiva 2001/29 (25), permite a extrapolação para a autorização da transferência em contínuo a partir de uma fonte ilícita. Esse método de reprodução a partir de fontes ilícitas, por lhe faltar a autorização dos titulares dos direitos, seria manifestamente contrário às três etapas cumulativas previstas no artigo 5.°, n.° 5, da Diretiva 2001/29 e na Convenção de Berna (26).

37.      Seguindo este raciocínio, sublinham que a eventual utilização generalizada da transferência em contínuo a partir de fontes ilícitas exclui a sua aplicação apenas a «certos casos especiais» e, para além disso, ameaça a «exploração normal» das obras protegidas, com o consequente prejuízo dos legítimos interesses dos titulares do direito de autor e direitos conexos.

38.      J. F. Wullems limita‑se a recordar que a transferência em contínuo é um ato temporário, transitório ou acessório, e que faz parte integrante e essencial de um processo tecnológico. O Governo português e a Comissão, que apenas alegam este argumento a título subsidiário (27), partem dessa mesma premissa e acrescentam que a simples receção das transmissões (de obras protegidas) através do método controvertido não pressupõe uma utilização ilegítima, na aceção do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29. Afirmam encontrar fundamento na jurisprudência (28) segundo a qual as cópias cache e as cópias no ecrã preenchem os requisitos cumulativos do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, assim como os do seu n.° 5.

39.      O Governo português afirma que os atos de reprodução temporária por meio de transferência em contínuo não geram nenhum benefício económico adicional ao decorrente da simples receção das obras. Por último, argumenta que, quando os atos de reprodução cumprem as condições do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, também preenchem os requisitos de aplicação do n.° 5 desse mesmo artigo, o que resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça (29).

IV – Análise das questões prejudiciais

A –    Quanto à primeira e segunda questões prejudiciais

40.      Creio que as duas primeiras questões prejudiciais devem ser analisadas conjuntamente, dada a sua estreita relação. A resposta a ambas é, em grande medida, influenciada por pressupostos que delimitam o objeto da discussão nos seguintes termos: a) J. F. Wullems comercializa (com fins lucrativos) um leitor multimédia no qual instalou hiperligações que remetem para sítios Internet que disponibilizam o acesso livre e gratuito a conteúdos digitais protegidos por direito de autor (30); b) os titulares destes direitos ou não autorizaram a sua comunicação ao público, ou fizeram‑no relativamente a determinados sítios Internet aos quais se acede por assinatura ou subscrição; c) os utilizadores podem adquirir por si próprios as aplicações complementares (add‑ons) que conectam as hiperligações aos sítios Internet nos quais, sem o consentimento dos titulares dos direitos, se disponibiliza o acesso livre às obras protegidas; e d) não é necessário dispor de um leitor multimédia como o comercializado por J. F. Wullems para visitar esses sítios Internet.

41.      Embora estivesse tentado a descrever o desenvolvimento da jurisprudência, formada a partir de uma densa série de acórdãos, relativa à interpretação do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, não me parece necessário repetir a análise da expressão «comunicação ao público» nem dos seus dois elementos singulares, isto é, o «ato de comunicação» de uma obra e o do «público» ao qual se dirige. Prefiro fazer referência às considerações do Tribunal de Justiça no acórdão GS Media, mencionando os seus próprios antecedentes (31). A certeza na aplicação do direito impõe aos órgãos jurisdicionais, se não a aplicação do stare decisis em termos absolutos, pelo menos a prudência de manter o que eles próprios tenham decidido, após aturada reflexão, relativamente a uma dada questão jurídica. E também assim deve acontecer, na minha opinião, com a doutrina estabelecida (ou corroborada) no acórdão GS Media relativamente à relação entre as hiperligações e a comunicação ao público, no contexto da Diretiva 2001/29.

42.      Consequentemente, tomarei como premissas das minhas observações as que o Tribunal de Justiça já estabeleceu, nomeadamente: a) deve ser qualificado de «colocação à disposição» o facto de fornecer hiperligações para obras protegidas, constituindo tal conduta um «ato de comunicação» (32); b) o referido conceito visa qualquer transmissão de obras protegidas, independentemente do meio ou procedimento técnico utilizados (33); e c) presume‑se iuris tantum que a colocação de uma hiperligação que conduza a uma obra publicada ilegalmente (isto é, sem a autorização dos titulares dos seus direitos) na Internet constitui uma «comunicação ao público» na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/79, quando seja efetuada com fins lucrativos.

43.      Nessa mesma linha recordarei que, para o Tribunal de Justiça, o conceito de comunicação ao público de uma obra protegida requer ou que seja efetuada através de uma técnica específica, diferente das utilizadas até então, ou, não sendo o caso, que seja difundida a um «público novo», entendido como o público que não foi considerado pelos autores das obras protegidas quando autorizaram a difusão (limitada) inicial (34).

44.      Analisando os factos do litígio à luz das premissas que acabo de enumerar, não é difícil concluir que lhes é aplicável a jurisprudência exposta no acórdão GS Media relativa à relação entre as hiperligações e o conceito de comunicação ao público, o que determina, em grande medida, a resposta às duas primeiras questões prejudiciais.

45.      De facto, tal como já referi, J. F. Wullems instalava na interface gráfica do software XBMC as aplicações complementares (add‑ons) com hiperligações para sítios Internet que davam livre acesso a obras protegidas por direito de autor. J. F. Wullems, para além de disponibilizar a hiperligação, tinha — ou deveria ter — conhecimento de que catorze dessas aplicações complementares incluíam ligações para conteúdos digitais colocados na Internet sem a autorização dos titulares do direito de autor ou com autorizações condicionadas a que apenas determinadas pessoas pudessem a eles ter acesso, através de assinaturas, subscrições ou de outras modalidades de visualização por pagamento . Nem é preciso dizer que J. F. Wullems prosseguia fins lucrativos, uma vez que vende o seu leitor multimédia.

46.      A controvérsia centra‑se, assim, na relevância que deve ser dada a um fator adicional, ausente do processo GS Media, a que fazem referência J. F. Wullems e a Comissão nas suas observações, quando sublinham que o processo versa sobre a venda de um leitor multimédia e não sobre a disponibilização de hiperligações. Essa venda e a instalação de hiperligações num sítio Internet, constituem, para ambos, fenómenos não assimiláveis e, ainda que se interprete de forma ampla o conceito de «comunicação ao público», não pode ser ampliado ilimitadamente para abranger também a venda de um leitor multimédia (35).

47.      Na audiência, J. F. Wullems e a Comissão sublinharam o caráter «não determinante» da intervenção do primeiro, que se limitaria a «permitir» ao público o acesso a conteúdos que podem ser descarregados a partir de outros sítios Internet. O filmspeler não seria, assim, «essencial» no processo que conduz, a partir do sítio Internet em que se encontra disponível, ilegalmente, o conteúdo protegido até ao utilizador final. Nesse sentido, a venda do aparelho de J. F. Wullems não proporcionaria um acesso direto, mas apenas indireto, aos referidos conteúdos, pelo que o nexo ou ligação entre ele e a colocação à disposição do público das obras protegidas seria ténue e integrava‑se numa cadeia de transmissão mais ampla.

48.      A tese de J. F. Wullems e da Comissão pode parecer, num primeiro momento, sugestiva. A venda, enquanto contrato de entrega de um leitor multimédia a troco do preço pago, pareceria «neutra», isto é, não teria relação direta com a transmissão de obras protegidas. Além disso, afirma a Comissão, a ampliação do perímetro do conceito «comunicação ao público» deve ser limitada (36).

49.      No entanto, essa tese é, na realidade e na minha opinião, demasiado redutora. A comercialização do filmspeler constitui mais do que a simples venda de um acessório técnico que, de acordo com a Comissão, poderia ser abrangido pelo conceito de «meios materiais para permitir ou realizar uma comunicação», cuja «disponibilização […] não constitui só por si uma comunicação na aceção da presente diretiva» (37).

50.      De facto, J. F. Wullems disponibiliza naquele aparelho, de forma indissociável, o hardware e o software necessários e diretamente destinados (38) a que os compradores acedam, na Internet, sem o consentimento dos seus titulares, a obras protegidas por direito de autor. Permitir esse acesso imediato a um público indeterminado constitui parte do valor acrescentado da prestação de J. F. Wullems, pela qual recebe o preço pago — ou pelo menos uma parte substancial deste — em troca do leitor multimédia.

51.      Creio que não existem diferenças significativas entre colocar num sítio Internet hiperligações que remetem para obras protegidas (39) e, como no caso em apreço, colocá‑las num aparelho multimédia concebido precisamente para a sua utilização na Internet (e especificamente para que, graças a ele, os utilizadores acedam sem complicações, de forma direta e imediata, a conteúdos digitais cuja fruição não foi consentida pelos seus autores). O fornecimento de ligações para esses conteúdos protegidos, a sua colocação à disposição do público, é uma característica comum aos dois comportamentos, cujo caráter aparentemente acessório ou auxiliar não pode esconder a sua condição de atividades dirigidas a que qualquer pessoa possa usufruir, com a simples ativação da hiperligação, das obras protegidas (40).

52.      As hiperligações servem, seja qual for o modo ou a via técnica com que se sejam inseridas, para permitir a terceiros o acesso a conteúdos digitais já «carregados» — neste caso, ilicitamente — na rede. O relevante na comunicação ao público efetuada através deles é que aumenta o perímetro ou o raio do alcance de potenciais utilizadores, a quem é fornecida, repito, uma funcionalidade em que previamente foram selecionados os sítios Internet que permitem a visualização de conteúdos digitais de forma gratuita.

53.      Pode falar‑se, assim, do papel incontornável, na aceção da jurisprudência (41), que J. F. Wullems desempenha na comunicação ao público de obras protegidas, intervenção que desempenha de forma deliberada e com pleno conhecimento das consequências que implica. Tal se deduz, em particular, dos exemplos de publicidade com os quais promovia o seu produto (42).

54.      Em suma, o filmspeler não pode ser tido como um mero «meio técnico» na aceção do considerando 27 da Diretiva 2001/29, mas sim como uma modalidade de comunicação pública de obras protegidas por direito de autor, que foram previamente «carregadas» ilicitamente na Internet. A conduta de J. F. Wullems ao instalar nos seus aparelhos, prosseguindo claramente fins lucrativos e com consciência da sua ilicitude, as hiperligações para essas obras, ajuda os compradores do filmspeler a contornar as contrapartidas exigíveis para o seu uso legítimo, isto é, o pagamento da remuneração devida aos titulares dos seus direitos, que é normalmente efetuada através de mecanismos como as assinaturas, as subscrições ou outros meios de visualização por pagamento .

55.      Uma vez assente que o filmspeler efetua uma comunicação ao público, abrangida pelo artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 (43), resta determinar se esse público merece o atributo de «novo», tal como este tem sido interpretado até à data.

56.      De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o pressuposto do «público novo» apenas se exige no caso de a comunicação da obra protegida não se fazer através de uma técnica específica, diferente das utilizadas até então (44). Embora essa análise dos factos seja competência do juiz a quo, a técnica utilizada por J. F. Wullems não parece evidenciar nenhuma característica inovadora, constituindo antes uma agregação de outras já existentes. Poderia assim aceitar‑se, para simplificar a discussão, que neste caso não se verificava uma «técnica específica e diferente», na aceção da jurisprudência, o que leva a analisar se os potenciais compradores do filmspeler podem ser qualificados de «público novo».

57.      Consta dos autos, e o Governo francês tem razão ao sublinhá‑lo, que ou as obras protegidas não possuíam a autorização dos titulares dos direitos para ser divulgadas na Internet ou essa autorização tinha sido concedida exclusivamente a sítios para assinantes, ou seja, com acesso restrito. Portanto, o aparelho multimédia vendido por J. F. Wullems amplia o círculo de destinatários previsto pelos seus autores, uma vez que estabelece ligação tanto com sítios Internet que difundem, sem autorização, esses conteúdos digitais, como com sítios que contêm obras protegidas e as disponibilizam apenas a determinados utilizadores que pagam para a elas terem acesso.

58.      Além disso, apesar da eventualidade de poderem ser encontradas gratuitamente na rede as aplicações complementares e as próprias hiperligações, o filmspeler incorpora uma inegável vantagem para um segmento não negligenciável desse público: o que não é particularmente apto, enquanto internauta, para a descoberta de sítios Internet ilícitos para ver filmes e séries televisivas, entre outros conteúdos digitais. Esse segmento de público preferirá, possivelmente, a fácil utilização do menu que o filmspeler lhes disponibiliza no seu ecrã à, por vezes fastidiosa, pesquisa dos sítios Internet que disponibilizam esses conteúdos.

59.      Seja como for, a difusão das obras protegidas que J. F. Wullems possibilita atinge um público que não foi tido em conta pelos titulares dos seus direitos quando não autorizaram a sua visualização ou o fizeram apenas nos circuitos de pagamento, pelo que se verifica o pressuposto de um «público novo» (45).

60.      Assim, proponho que se responda às duas primeiras questões prejudiciais do Rechtbank Midden‑Nederland (Tribunal de Primeira Instância de Midden‑Nederland) no sentido de que a venda de um leitor multimédia no qual o próprio vendedor instalou hiperligações que facilitam o acesso direto a obras protegidas, tais como filmes, séries e programas em direto, disponíveis noutros sítios Internet sem a autorização do titular do direito de autor, constitui uma «comunicação ao público», na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29.

B –    Quanto à terceira e quarta questões prejudiciais

61.      O tribunal de reenvio coloca nestas duas questões duas dúvidas que, como já referi, não dizem respeito ao dispositivo multimédia mas sim à conformidade com a Diretiva 2001/29 da conduta do utilizador final que, através desse aparelho, efetua a «reprodução temporária […] na transferência em contínuo […] de uma obra protegida a partir de um sítio Internet de um terceiro onde esta obra se encontra divulgada sem a autorização dos respetivos titulares». Pretende saber, concretamente, se este tipo de conduta poderia estar abrangido pelo artigo 5.°, n.os 1 e 5, dessa diretiva.

62.      Assim formuladas, as duas questões suscitaram algumas objeções de admissibilidade, uma vez que pareceriam exceder os limites do litígio que envolve a Stichting Brein e J. F. Wullems. No entanto, após as explicações do tribunal a quo, essas objeções devem ser rejeitadas, já que uma das pretensões da Stichting Brein no processo principal era que J. F. Wullems fosse condenado como autor de publicidade enganosa e de práticas comerciais desleais, por ter expressado nos seus anúncios, como publicidade visando aumentar as vendas, que é legítima a mera reprodução por transferência em contínuo de obras procedentes de fontes ilícitas (ao contrário do que acontece com o download dessas obras a partir da Internet). Daí que o tribunal de reenvio, chamado a decidir sobre este pedido em concreto, necessite da resposta do Tribunal de Justiça, para a interpretação do artigo 5.° da Diretiva 2001/29.

63.      Deve entender‑se que as considerações que farei a seguir se referem à matéria de facto do processo principal, no contexto do pedido da demandante, que acabo de descrever, e da aplicação do artigo 5.° da Diretiva 2001/29.

1.      Quanto à exceção do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29

64.      Dentro do catálogo de exceções ao direito de reprodução, o artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29 inclui os «atos de reprodução temporária […] que sejam transitórios ou episódicos, que constituam parte integrante e essencial de um processo tecnológico e cujo único objetivo seja permitir […] [u]ma utilização legítima de uma obra ou de outro material a realizar […]». A exceção abrange também o utilizador final e não apenas os prestadores de serviços em linha ou os intermediários, como se poderia pensar após a leitura do considerando 33 da Diretiva 2001/29 (46).

65.      Não julgo ser imprescindível, no que interessa para este caso, esclarecer se a visualização de uma obra por transferência em contínuo, à qual se tem acesso através das hiperligações do filmspeler, precisa de ser «transitória» e «episódica», características a que faz referência o texto normativo transcrito supra (47). Decidir a questão em análise num sentido ou noutro exigiria algumas observações preliminares de caráter marcadamente técnico (relativas ao armazenamento no buffer de dados e à obtenção de cópias na memória cache ou no ecrã) (48), em cuja análise me parece desnecessário deter‑me (49) quando, no meu entender, falta outro dos pressupostos fundamentais para a exceção: permitir «uma utilização legítima» da obra protegida.

66.      Com efeito, não se pode falar de «utilização legítima» das obras protegidas quando o utilizador final tem acesso a elas nas condições do litígio no processo principal, isto é, uma utilização de conteúdos digitais cuja difusão ou foi rejeitada ou foi restringida pelos titulares dos correspondentes direitos de autor, que não autorizaram a sua livre comunicação ao público nos sítios Internet para os quais direcionam as hiperligações incluídas no filmspeler.

67.      Não se trata, portanto, de fazer um juízo generalizado sobre o streaming, mas sim de avaliar, à luz da disposição normativa acima referida, o comportamento do utilizador que, nas condições deste caso, reproduz no seu ecrã, com essa técnica, filmes e séries protegidos.

68.      O desenvolvimento das telecomunicações (entre outros fatores, a extensão das redes de fibra ótica que proporcionam elevadas velocidades de conexão) permitiu que o fenómeno das descargas ilegais em suportes informáticos — a que tanta atenção se prestou até há poucos anos atrás — vá sendo paulatinamente afastado, senão mesmo substituído, pela reprodução de conteúdos digitais por transferência em contínuo, a ponto de converter esta modalidade numa das mais solicitadas. A visualização em streaming com origem nas plataformas de pagamento não apresenta problemas de maior, sob o ponto de vista da propriedade intelectual, que também não são suscitados quando o utilizador visualiza ou ouve conteúdos digitais de acesso não restrito, a partir de sítios Internet que os disponibilizam gratuita e licitamente.

69.      No entanto, a perspetiva muda quando entram em jogo sítios Internet que disponibilizam aos utilizadores versões pirateadas (50) desses conteúdos. A resposta do Tribunal de Justiça no acórdão GS Media refere‑se a quem introduza na rede uma hiperligação que direcione para conteúdos protegidos, sem licença do titular dos seus direitos. A conduta de quem atua dessa forma deve ser analisada em função, por um lado, do fim lucrativo (a existir, presume‑se iuris tantum que essa pessoa está consciente de que a obra está na rede de modo ilícito) e, por outro, de que não saiba, ou não possa razoavelmente saber, que não existe autorização para a sua publicação na Internet (51).

70.      Na minha opinião, se o fator determinante é, para quem disponibiliza a hiperligação sem fins lucrativos, o conhecimento — ou pelo menos, a sua possibilidade razoável — de que a obra protegida está de forma ilícita na rede, seria difícil não estender este critério a quem simplesmente utiliza essa hiperligação, também sem fins lucrativos (52).

71.      Creio, no entanto, que o componente subjetivo é mais adequado para excluir a responsabilidade de uma pessoa do que para decidir acerca da ilicitude objetiva e, se for o caso, acerca da qualificação da conduta. Para facilitar uma interpretação adequada do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, importa não esquecer que, de acordo com o seu considerando 33, a legitimidade, em termos objetivos, depende mais da autorização do titular do direito de autor ou do detentor da sua licença (53). A ignorância desculpável ou o desconhecimento razoável, por parte do utilizador final, da inexistência dessa autorização poderá, sem dúvida, isentá‑los de responsabilidade (54), mas não elimina — insisto, sob a perspetiva estritamente objetiva — a natureza ilegítima da «utilização» a que faz alusão o artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29.

72.      Como consta dos autos que as obras protegidas às quais conduzem as hiperligações instaladas no filmspeler de J. F. Wullems não tinham autorização dos titulares de direito de autor, incluindo o de reprodução referido no artigo 2.° da Diretiva 2001/29, a descarga por transferência em contínuo efetuada por um utilizador final através de tal aparelho não corresponde à «utilização legítima» na aceção do artigo 5.°, n.° 1, alínea b), da referida diretiva.

2.      Quanto à aplicação do artigo 5.°, n.° 5, da Diretiva 2001/29

73.      Se, em termos puramente dialéticos, a utilização do filmspeler de J. F. Wullems pudesse ser abrangida pela exceção do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, teria ainda de passar o test do n.° 5 desse mesmo artigo, acerca do qual o tribunal a quo formula a sua quarta questão prejudicial. Consistiria, portanto, em analisar se estariam preenchidos, neste caso, os pressupostos do artigo 5.°, n.° 5, daquela Diretiva (55).

74.      Esta disposição determina que a exceção prevista no n.° 1 (entre outros), relativa à reprodução temporária, só se aplicará «em certos casos especiais que não entrem em conflito com uma exploração normal da obra ou outro material e não prejudiquem irrazoavelmente os legítimos interesses do titular do direito».

75.      Ora, na minha opinião, não está preenchido, neste processo, nenhum dos três pressupostos. Em primeiro lugar, o aparelho vendido por J. F. Wullems dará origem a um número incontável de descargas de filmes, séries, eventos desportivos e outros tipos de emissões, sem o consentimento dos titulares dos direitos de reprodução. Portanto, tal como entende a Stichting Brein e o Governo espanhol, não é defensável que estejamos perante meros «casos especiais», tal como exigido pela disposição normativa em causa.

76.      Em segundo lugar, sob o ponto de vista técnico, não se pode equiparar a conduta de quem navega pela Internet e aí consulta sítios com a de quem reproduz em streaming filmes e séries protegidas. No primeiro dos comportamentos referidos, a cópia transitória que o processo tecnológico obriga a efetuar pode implicar uma exploração normal das obras, que permite aos internautas beneficiarem da comunicação ao público feita pelo editor do sítio Internet em causa (56). Pelo contrário, no caso do internauta que vê obras protegidas no seu ecrã, através da visualização por transferência em contínuo, não está em causa uma «exploração normal» da obra, imposta pela tecnologia indispensável para navegar pela Internet, mas sim um ato de caráter «anormal», em termos jurídicos, decorrente da intenção deliberada do utilizador de usufruir dos conteúdos digitais sem pagar nenhuma contrapartida económica, graças à ajuda do filmspeler.

77.      Nessas circunstâncias, seria contrário à Diretiva 2001/29 aceitar reproduções indiscriminadas ou generalizadas a partir de fontes ilícitas ou efetuadas em violação dos limites de acesso. Admitir a sua validade seria o mesmo que fomentar a circulação de conteúdos digitais pirateados e, nessa medida, comprometer seriamente a proteção dos direitos de autor e permitir formas ilegais de comercialização, em detrimento do bom funcionamento do mercado interno (57).

78.      Em terceiro lugar, tendo sido concedido o direito de reprodução, de acordo com os autos, apenas para circuitos dos quais o utilizador final beneficia através de pagamento prévio (seja de uma subscrição, de uma assinatura ou de outra fórmula similar), esse número incontável de visualizações por transferência em contínuo, sem contrapartida económica para o titular dos direitos, implica, por força das circunstâncias, uma redução simultânea do volume de aderentes a esses circuitos, o que prejudicaria, consequentemente, a exploração normal das obras protegidas, na aceção do acórdão de 10 de abril de 2014, ACI Adam e o. (58).

79.      De facto, são aqui apropriadas as observações do Tribunal de Justiça no acórdão ACI Adam e o., em que afirmou, ao interpretar os requisitos do artigo 5.°, n.° 5, da Diretiva 2001/29, que «admitir que essas reproduções possam ser efetuadas a partir de uma fonte ilícita fomentaria a circulação de obras contrafeitas ou pirateadas, diminuindo assim necessariamente o volume das vendas ou de outras transações legais relativas às obras protegidas, pelo que prejudicaria a sua exploração normal» (59). Assim, a venda do filmspeler entra em conflito com os «legítimos interesses do titular do direito de autor», que não tinha autorizado uma divulgação aberta das suas obras.

80.      Em suma, entendo que a transferência em contínuo de conteúdos digitais protegidos, sem a autorização dos titulares dos direitos de autor, não preenche os pressupostos do artigo 5.°, n.° 5, da Diretiva 2001/29, uma vez que não constitui um caso especial, entra em conflito com a exploração normal da obra e prejudica injustificadamente os legítimos interesses desses titulares.

81.      Tendo em conta a natureza cumulativa dos pressupostos que acabam de ser analisados, a que fez referência o Tribunal de Justiça (60), é aplicável, neste processo, a tripla contra‑exceção do artigo 5.°, n.° 5, da Diretiva 2001/29. Assim, não pode ser invocada a isenção do direito de reprodução.

82.      Proponho, assim, que se responda à terceira e quarta questões prejudiciais no sentido que, nas circunstâncias do processo principal, a reprodução por transferência em contínuo de uma obra protegida por direitos de autor não é abrangida pela exceção do artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, na medida em que não se insere no âmbito do conceito de «utilização legítima» da alínea b) da referida disposição e, em qualquer caso, viola a «tripla condição» prevista no artigo 5.°, n.° 5, da referida diretiva.

V –    Conclusão

83.      Em face destas considerações, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelo Rechbank Midden‑Nederland (Tribunal de Primeira Instância de Midden‑Nederland, Países Baixos) nos seguintes termos:

«A venda de um leitor multimédia, como o que é objeto do processo principal, no qual o vendedor instalou hiperligações que direcionam para sítios Internet que, sem a autorização do titular do direito de autor, disponibilizam acesso livre a obras protegidas por direito de autor, tais como filmes, séries e programas em direto,

–        constitui uma ‘comunicação ao público’ na aceção do artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação; e

–        não é abrangida pela exceção do artigo 5.°, n.°° 1, da Diretiva 2001/29, na medida em que não se insere no âmbito do conceito de ‘utilização legítima’ da alínea b) da referida disposição e, em qualquer caso, viola as condições de aplicação do artigo 5.°, n.°° 5, da referida diretiva».


1 —      Língua original: espanhol.


2 —      Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO 2001, L 167, p. 10).


3 —      O termo «hiperligação» é utilizado como sinónimo de «ligação». Dizem ambos respeito, no contexto da linguagem de programação e dos documentos em formato eletrónico, à conexão que se estabelece entre diferentes segmentos de informação, de forma que, ao serem ativados, interligam cruzamentos ou blocos de texto, imagens, áudio ou vídeo.


4 —      Em particular, quanto às ligações e ao conceito de comunicação pública no que se refere a obras que podem ser consultadas noutras páginas Internet, v. acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76). O despacho de 21 de outubro de 2014, BestWater International (C‑348/13, não publicado, EU:C:2014:2315), aplica a fundamentação desse acórdão à técnica designada framing, através da qual os utilizadores, ao clicar na ligação, são dirigidos para o portal de um terceiro no qual aparece a obra, dando a sensação de que faz parte dos conteúdos dessa página.


5 —      Acórdão de 8 de setembro de 2016, GS Media (C‑160/15, EU:C:2016:644, a seguir «acórdão GS Media»).


6 —      Ainda que nos textos vigentes relativos a este assunto se utilize o termo «obras», utilizarei também a expressão «conteúdos digitais» para me referir, indistintamente, com ambas, neste contexto, aos conteúdos protegidos pelo direito de autor.


7 —      N.° 6.14 do despacho de reenvio.


8 —      Sobre a receção de conteúdos digitais, geralmente de áudio ou de vídeo, na transferência em contínuo ou streaming (isto é, sem a sua gravação ou cópia nas memórias dos diversos dispositivos, mas apenas no buffer de dados), versava o acórdão de 7 de março de 2013, ITV Broadcasting e o. (C‑607/11, EU:C:2013:147).


9 —      Diretiva 93/98/CEE do Conselho, de 29 de outubro de 1993, relativa à harmonização do prazo de proteção dos direitos de autor e de certos direitos conexos (JO 1993, L 290, p. 9).


10 —      Diretiva 2006/116/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa ao prazo de proteção do direito de autor e de certos direitos conexos (JO 2006, L 372, p. 12).


11 —      Sob as designações Filmspeler X5 fully loaded, Filmspeler Compleet (Raspberry pi), Minix Neo X7, Filmspeler X90 fully loaded e Turbo Sd/usb configuratie.


12 —      São, na gíria eletrónica, as designadas «ligações diretas» (deep hyperlinks) e não meras ligações para a página inicial dos sítios Internet de destino.


13 — Trata‑se das aplicações complementares 1Channel, Glow movies HD, Go Movies, Icefilms, Mashup, Much Movies, Much Movies HD, Istream, Simply Movies, Simply Player, Yify Movies HD, Ororo.tv, Teledunet.com e Go TV.


14 — Tais como Youtube, Sports illustrated, Uitzending gemist, Music video box, Vimeo, ESPN 3, RTLXL, SkyFM e Soundcloud.


15 —      Acórdão de 13 de fevereiro de 2014 (C‑466/12, EU:C:2014:76).


16 —      Despacho de 21 de outubro de 2014 (C‑348/13, não publicado, EU:C:2014:2315).


17 —      Acórdão de 7 de março de 2013, ITV Broadcasting e o. (C‑607/11, EU:C:2013:147, n.os 21 e 31).


18 —      Acórdãos de 7 de dezembro de 2006, SGAE (C‑306/05, EU:C:2006:764, n.° 36), e de 4 de outubro de 2011, Football Association Premier League e o. (C‑403/08 e C‑429/08, EU:C:2011:631, n.° 186.


19 —      Acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76, n.° 18).


20 —      Acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76, n.° 19 e jurisprudência referida).


21 —      Acórdão de 7 de dezembro de 2006, SGAE (C‑306/05, EU:C:2006:764, n.os 37 a 39).


22 —      Acórdãos de 7 de março de 2013, ITV Broadcasting e o. (C‑607/11, EU:C:2013:147, n.° 37); e de 4 de outubro de 2011, Football Association Premier League e o. (C‑403/08 e C‑429/08, EU:C:2011:631, n.° 197).


23 —      Por referência ao acórdão de 7 de março de 2013, ITV Broadcasting e o. (C‑607/11, EU:C:2013:147, n.os 22 a 26 e 39).


24 —      O Governo francês não formulou observações à quarta questão prejudicial, subsidiária da terceira, dada a resposta que propõe para esta.


25 —      Acórdão de 10 de abril de 2014, ACI Adam e o. (C‑435/12, EU:C:2014:254, n.os 37 e 39).


26 —      Convenção de Berna para a Proteção de Obras Literárias e Artísticas, assinada em Berna em 9 de setembro de 1886 (Ata de Paris de 24 de julho de 1971), na versão alterada em 28 de setembro de 1979.


27 —      A Comissão duvida da necessidade de responder à terceira e quarta questões prejudiciais, uma vez que: a) não foram formuladas relativamente à venda do filmspeler, mas sim à tecnologia de transferência em contínuo ou streaming; e b) não dizem respeito à conduta de quem vende o leitor multimédia, mas sim à do utilizador final.


28 —      Acórdão de 5 de junho de 2014, Public Relations Consultants Association (C‑360/13, EU:C:2014:1195).


29 —      Despacho de 17 de janeiro de 2012, Infopaq International (C‑302/10, EU:C:2012:16, n.° 57); e acórdão de 4 de outubro de 2011, Football Association Premier League e o. (C‑403/08 e C‑429/08, EU:C:2011:631, n.° 181).


30 —      O mesmo acesso livre e gratuito é disponibilizado relativamente a outros conteúdos, cuja difusão pública também não está autorizada por quem os retransmite originalmente, mas que não beneficiam da proteção dos direitos de autor stricto sensu. Tal é o caso, por exemplo, das retransmissões em direto de determinados acontecimentos desportivos que não têm a natureza de obras originais para efeitos da Diretiva 2001/29 (embora os direitos de reprodução adjudicados através de licenças exclusivas a certos operadores de televisão possam ser abrangidos pela proteção conferida por outras disposições). O Tribunal de Justiça já se pronunciou a este respeito no acórdão de 4 de outubro de 2011, Football Association Premier League e o. (C‑403/08 e C‑429/08, EU:C:2011:631, n.° 98), afirmando que «os eventos desportivos não podem ser considerados como criações intelectuais qualificáveis como obras na aceção da diretiva direitos de autor».


31 —      Acórdão GS Media, em particular, o n.° 32 e jurisprudência referida. Depois de ter sido proferido começam a surgir, como é lógico e habitual, comentários — uns críticos, outros elogiosos — nos meios especializados. V., por exemplo, entre os mais próximos à data do acórdão, a entrada do European Law Blog, de 20 de setembro de 2016, «Saving the Internet or linking limbo? CJEU clarifies legality of hyperlinking (C‑160/15, Gs Media v Sanoma)», ou o debate na sessão plenária, de 20 de setembro de 2016, do 47.° Congresso mundial da International Association for the Protection of Intellectual Property (AIPPI), sobre The CJEU case law on hyperlinking e o relatório preliminar do grupo de trabalho relativo ao tema Linking and making available on the Internet.


32 —      Acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76, n.° 20). Naquele processo acabou por se afastar a possibilidade de que tivesse ocorrido comunicação a um público «novo» porque o público‑alvo da comunicação inicial era constituído pelos internautas em geral, uma vez que as hiperligações conduziam a obras protegidas, publicadas sem nenhuma restrição de acesso, noutro sítio Internet (n.os 18, 25 e 26).


33 —      Acórdão de 31 de maio de 2016, Reha Training (C‑117/15, EU:C:2016:379, n.° 38).


34 —      De acordo com o n.° 31 do acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76), «[…] na hipótese de uma hiperligação permitir aos utilizadores do sítio Internet em que se encontra essa ligação contornarem as medidas restritivas que foram tomadas pelo sítio Internet onde se encontra a obra protegida para restringir o acesso do público aos seus assinantes, constituindo, assim, uma intervenção sem a qual os referidos utilizadores não poderiam beneficiar das obras difundidas, há que considerar todos esses utilizadores como um público novo, que não foi tido em conta pelos titulares do direito de autor quando autorizaram a comunicação inicial, de modo que essa comunicação ao público está sujeita a autorização dos titulares». A mesma ideia é aprofundada pelo Despacho de 21 de outubro de 2014, BestWater International (C‑348/13, não publicado, EU:C:2014:2315, n.° 14). O elemento decisivo é o de que as pessoas que compõem o público possam ter acesso ao conteúdo digital, e não que essas pessoas utilizem efetivamente essa possibilidade, tal como refere o acórdão de 7 de dezembro de 2006, SGAE (C‑306/05, EU:C:2006:764, n.° 43).


35 —      A Comissão chama a atenção para o facto de o caso em apreço se referir precisamente à «venda» do leitor multimédia filmspeler, que, em sua opinião, corresponde ao conceito de «meio material» a que faz alusão o considerando 27 da Diretiva 2001/29. O filmspeler, afirma, permite a comunicação, mas não é equiparável a esta.


36 —      A Comissão, após reconhecer na audiência que não estava satisfeita com os acórdãos de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76) e GS Media, alertava para a incerteza jurídica que essa orientação jurisprudencial pode gerar. Sob outras perspetivas, diversas vozes acusaram o Tribunal de Justiça de estar, com as suas decisões nesta matéria, a criar direito, mais do que a interpretar o existente. Não compartilho esta última crítica, uma vez que o Tribunal de Justiça se limita a pôr em evidência a virtualidade, até então não suficientemente destacada, de um conceito jurídico (a «comunicação pública») de contornos imprecisos, adaptando a sua aplicação ao desenvolvimento de tecnologias de evolução muito rápida com as quais se efetua, constantemente, a colocação à disposição do público das obras protegidas por direito de autor.


37 —      Considerando 27 da Diretiva 2001/29.


38 —      O acesso às obras protegidas é possível em resultado da instalação das aplicações complementares com hiperligações para os sítios Internet, que J. F. Wullems efetuou no software XBMC. Graças aos menus instalados na interface do software XBMC com as aplicações complementares que direcionam para esses sítios Internet, o telespetador que utiliza o filmspeler converte‑se num internauta que os pode visitar.


39 —      Como acontecia nos factos que estiveram na origem dos acórdãos de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76), e GS Media assim como do despacho de 21 de outubro de 2014, BestWater International (C‑348/13, não publicado, EU:C:2014:2315).


40 —      Sob outra perspetiva, a conduta de J. F. Wullems aproxima‑se, embora não se identifique completamente com ela, à do acórdão de 7 de dezembro de 2006, SGAE (C‑306/05, EU:C:2006:764). O sinal distribuído pelo hotel através dos televisores disponíveis nos seus quartos representava, de acordo com o Tribunal de Justiça, uma comunicação ao público, na aceção da Diretiva 2001/29.


41 —      Acórdão GS Media, n.° 35 e jurisprudência referida.


42 —      V. n.° 19 destas conclusões.


43 —      Acórdão GS Media, n.° 51.


44 —      Despacho de 21 de outubro de 2014, BestWater International (C‑348/13, não publicado, EU:C:2014:2315, n.° 14, e jurisprudência referida).


45 —      Deve salientar‑se, no entanto, que apenas preencherá o perfil de «comunicação ao público», na interpretação do Tribunal de Justiça, a difusão que o filmspeler proporciona ao utilizador final através das hiperligações reunidas nas catorze aplicações complementares que direcionam especificamente para sítios de Internet onde se podem descarregar, através da transferência em contínuo, obras protegidas sem o consentimento dos titulares do direito de autor. Quanto às ligações para filmes, séries e competições desportivas autorizadas pelos respetivos titulares de direito de autor, não sujeitas a nenhuma restrição, o acesso é livre e será aplicável o acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o. (C‑466/12, EU:C:2014:76, n.os 25 e 26).


46 —      É o que se deduz, implicitamente, do acórdão de 5 de junho de 2014, Public Relations Consultants Association (C‑360/13, EU:C:2014:1195).


47 —      É significativo, a este respeito, que nas versões inglesa e alemã apareçam as palavras «transient» e «flüchtig», respetivamente, que remetem para um período de tempo fugaz ou efémero. A versão neerlandesa utiliza o termo «voorbijgaande» e a espanhola «transitorio», mais consistente com a natureza temporária de um ato.


48 —      As cópias cache e as cópias no ecrã cumprem os requisitos do artigo 5.°, n.os 1 e 5, da Diretiva 2001/29, de acordo com o acórdão de 5 de junho de 2014, Public Relations Consultants Association (C‑360/13, EU:C:2014:1195, n.os 26 e 27).


49 —      Nesta modalidade de reprodução, em que a cópia de ficheiros é substituída pelo armazenamento do fluxo de transferência no buffer do utilizador, este último «consome» o produto em simultâneo com a sua visualização, com o que evita os problemas decorrentes da maior morosidade da cópia de ficheiros por download. Poderia defender‑se que essa reprodução, ainda que não se fixe num suporte informático específico e apareça apenas no ecrã, tem (no caso dos filmes ou séries televisivas, por exemplo) uma duração demasiado prolongada para ser qualificada de transitória. Nesse sentido, se se admitisse, por hipótese, a natureza transitória da reprodução por transferência em contínuo, seria discutível se «constitu[i] uma parte integrante e essencial de um processo tecnológico», que é outro dos requisitos indispensáveis da exceção consagrada no artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29.


50 —      As expressões «pirataria» e «pirateada», neste contexto, não só são sugestivas, como vão adquirindo uma presença regular na terminologia jurídica do direito de autor. O Tribunal de Justiça já fez referência às «obras pirateadas» que prejudicavam a exploração normal das protegidas pelo direito de autor, de acordo com a Diretiva 2001/29, no acórdão de 10 de abril de 2014, ACI Adam e o. (C‑435/12, EU:C:2014:254, n.° 39).


51 —      A justificação para esta posição tem em consideração a dificuldade de verificar se o sítio Internet para os quais estas ligações conduzem dá acesso a obras que são protegidas e se os titulares dos direitos de autor dessas obras autorizaram a sua publicação na Internet. Tal deduz‑se dos n.os 46 a 48 do acórdão GS Media.


52 —      À medida que os internautas ganhem maior consciência da necessidade de respeitar os direitos dos criadores de conteúdos e aumentem, simultaneamente, as ofertas das plataformas que os colocam licitamente à sua disposição, tornar‑se‑á mais difícil justificar a reprodução de obras pirateadas, a partir de hiperligações, com o desconhecimento da falta de autorização dos titulares dos direitos de autor.


53 —      Na exposição de motivos da Posição Comum n.° 48/2000, adotada pelo Conselho em 28 de setembro de 2000, tendo em vista a adoção da Diretiva 2000/.../CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de ..., relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na Sociedade da Informação (JO 2000, C 344, p. 1) pode ler‑se: «[…] No considerando 33, o Conselho acrescentou uma definição do termo ‘utilização legítima’ […]». O sublinhado é meu.


54 —      Tratar‑se‑ia de «atos praticados por consumidores finais agindo de boa fé», na aceção do considerando [23] da Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual.


55 —      De acordo com o acórdão de 5 de junho de 2014, Public Relations Consultants Association (C‑360/13, EU:C:2014:1195, n.° 53), «[…] para se poder invocar a exceção prevista na disposição evocada [o artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29], conforme interpretada no número anterior do presente acórdão, é ainda necessário que estas cópias preencham os requisitos do artigo 5.°, n.° 5, da [mesma] Diretiva […]».


56 —      Ibidem, n.° 61.


57 —      Acórdão de 10 de abril de 2014, ACI Adam e o. (C‑435/12, EU:C:2014:254, n.os 35 e 36).


58 —      Ibidem, n.° 39.


59 —      Ibidem.


60 —      Acórdão de 5 de junho de 2014, Public Relations Consultants Association (C‑360/13, EU:C:2014:1195, n.° 53, e jurisprudência referida).