Language of document : ECLI:EU:C:2007:678

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

15 de Novembro de 2007 (*)

«Acção por incumprimento – Artigos 28.° CE e 30.° CE – Directiva 2001/83/CE – Preparado de alho sob a forma de cápsulas – Preparado legalmente comercializado como suplemento alimentar em alguns Estados‑Membros – Preparado classificado como medicamento no Estado‑Membro de importação – Conceito de ‘medicamento’ – Entrave – Justificação – Saúde pública – Proporcionalidade»

No processo C‑319/05,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 19 de Agosto de 2005,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por B. Stromsky e B. Schima, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Federal da Alemanha, representada por M. Lumma e C. Schulze‑Bahr, na qualidade de agentes,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: P. Jann, presidente de secção, R. Schintgen, A. Borg Barthet (relator), M. Ilešič e E. Levits, juízes,

advogada‑geral: V. Trstenjak,

secretário: B. Fülöp, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 19 de Abril de 2007,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 21 de Junho de 2007,

profere o presente

Acórdão

1        Com a sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede que o Tribunal de Justiça declare que, tendo classificado como medicamento um preparado de alho que se apresenta sob a forma de cápsulas e que não cabe na definição de medicamento por apresentação, a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 28.° CE e 30.° CE.

 Quadro jurídico

 A directiva 2001/83/CE

2        Os segundo a quinto considerandos da Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO L 311, p. 67), enunciam:

«(2)      Toda a regulamentação em matéria de produção, de distribuição ou de utilização de medicamentos deve ter por objectivo essencial garantir a protecção da saúde pública.

(3)      Todavia, este objectivo deve ser atingido por meios que não possam travar o desenvolvimento da indústria farmacêutica e o comércio de medicamentos na Comunidade.

(4)      As disparidades entre certas disposições nacionais, e nomeadamente as disposições relativas aos medicamentos, com excepção das substâncias ou composições que são géneros alimentícios, alimentos destinados aos animais ou produtos de higiene, têm por efeito entravar o comércio de medicamentos na Comunidade e têm, devido a este facto, uma incidência directa sobre o funcionamento do mercado interno.

(5)      Importa, por conseguinte, eliminar estes entraves. Para atingir este objectivo, é necessária uma aproximação das disposições em causa.»

3        Nos termos do artigo 1.°, ponto 2, da Directiva 2001/83, deve entender‑se por «medicamento»:

«Toda a substância ou composição apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças humanas.

A substância ou composição que possa ser administrada ao homem, com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar as funções fisiológicas no homem [...]»

4        O artigo 2.° desta directiva dispõe:

«As disposições da presente directiva aplicam‑se aos medicamentos para uso humano produzidos industrialmente e destinados a serem introduzidos no mercado dos Estados‑Membros.»

5        Nos termos do artigo 6.°, n.° 1, da referida directiva:

«Nenhum medicamento pode ser introduzido no mercado de um Estado‑Membro sem que para tal tenha sido emitida pela autoridade competente desse Estado‑Membro uma autorização de introdução no mercado, nos termos da presente directiva, ou sem que tenha sido concedida uma autorização nos termos do Regulamento (CEE) n.° 2309/93.»

 A Directiva 2002/46/CE

6        Nos termos do artigo 2.°, alínea a), da Directiva 2002/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de Junho de 2002, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos suplementos alimentares, entende‑se por «suplementos alimentares»:

«[os] géneros alimentícios que se destinam a complementar o regime alimentar normal e que constituem fontes concentradas de determinados nutrientes ou outras substâncias com efeito nutricional ou fisiológico, estremes ou combinados, comercializados em forma doseada, ou seja, as formas de apresentação como cápsulas, pastilhas, comprimidos, pílulas e outras formas semelhantes, saquetas de pó, ampolas de líquido, frascos com conta‑gotas e outras formas similares de líquidos ou pós que se destinam a ser tomados em unidades medidas de quantidade reduzida».

7        Nos termos do artigo 2.°, alínea b), desta directiva, deve entender‑se por «nutrientes» as seguintes substâncias:

«i)      vitaminas;

ii)      minerais.»

8        O artigo 11.° da referida directiva dispõe:

«1.      Sem prejuízo do disposto no n.° 7 do artigo 4.°, o comércio dos produtos referidos no artigo 1.° que sejam conformes com o disposto na presente directiva e, se for caso disso, com os actos comunitários adoptados em sua execução não pode ser proibido ou restringido pelos Estados‑Membros por motivos relacionados com a composição, especificações de fabrico, apresentação ou rotulagem desses mesmos produtos.

2.      Sem prejuízo do disposto no Tratado CE, nomeadamente nos seus artigos 28.° e 30.°, o n.° 1 do presente artigo não prejudica as disposições nacionais aplicáveis na falta de actos comunitários adoptados ao abrigo da presente directiva.»

 O Regulamento (CE) n.° 178/2002

9        Nos termos do artigo 2.° do Regulamento (CE) n.° 178/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2002, que determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios (JO L 31, p. 1), entende‑se por «género alimentício» (ou «alimento»):

«[...] qualquer substância ou produto, transformado, parcialmente transformado ou não transformado, destinado a ser ingerido pelo ser humano ou com razoáveis probabilidades de o ser.

[...]»

10      O artigo 14.°, n.os 7 a 9, deste regulamento dispõe:

«7.      São considerados seguros os géneros alimentícios que estejam em conformidade com as disposições comunitárias específicas que regem a sua segurança, no que diz respeito aos aspectos cobertos por essas disposições.

8.      A conformidade de um género alimentício com as disposições específicas que lhe são aplicáveis não impedirá as autoridades competentes de tomar as medidas adequadas para impor restrições à sua colocação no mercado ou para exigir a sua retirada do mercado sempre que existam motivos para se suspeitar que, apesar dessa conformidade, o género alimentício não é seguro.

9.      Na ausência de disposições comunitárias específicas, os géneros alimentícios são considerados seguros quando estiverem em conformidade com as disposições específicas da legislação alimentar do Estado‑Membro em cujo território são comercializados, desde que tais disposições sejam formuladas e aplicadas sem prejuízo do Tratado CE, nomeadamente dos artigos 28.° e 30.°»

 Fase pré‑contenciosa

11      A Comissão recebeu uma denúncia de uma empresa cujo pedido de autorização para a importação e a comercialização de um preparado de alho sob a forma de cápsulas foi indeferido pelo Ministério Federal da Saúde, por este produto não constituir um género alimentício mas sim um medicamento.

12      O produto em causa é comercializado sob a designação de «cápsula de pó de extracto de alho». Segundo as indicações fornecidas pelas partes, trata‑se de um extracto obtido com o auxílio de um etanol e incorporado num excipiente (lactose) a fim de satisfazer o objectivo tecnológico da secagem por pulverização. Cada cápsula contém 370 mg de pó de extracto de alho, cujo teor em alicina está compreendido entre 0,95% e 1,05%, que é o equivalente a 7,4 g de alho cru fresco.

13      No termo de uma prolongada troca de correspondência informal, a Comissão dirigiu à República Federal da Alemanha uma notificação para cumprir, datada de 24 de Julho de 2001, na qual concluía que a classificação como medicamento do preparado de alho em causa, com base numa justificação como a avançada durante a instrução da denúncia, não era compatível com o princípio da livre circulação de mercadorias que decorre dos artigos 28.° CE e 30.° CE nem com a jurisprudência na matéria. O referido Estado‑Membro respondeu à notificação para cumprir em 5 de Outubro de 2001.

14      No seu parecer fundamentado de 17 de Dezembro de 2002, a Comissão convidou a República Federal da Alemanha a pôr termo, no prazo de dois meses a contar da recepção do parecer fundamentado, às práticas administrativas que equiparam a medicamentos os produtos compostos por alho seco pulverizado, que não são claramente assinalados ou designados como medicamentos.

15      Tendo este Estado‑Membro indicado, na sua resposta ao referido parecer fundamentado, que a classificação do produto em questão como medicamento tinha sido reexaminada e devia ser mantida, a Comissão decidiu intentar a presente acção.

 Quanto à acção

 Argumentos das partes

16      A Comissão observa, antes de mais, que as disposições comunitárias relativas aos medicamentos devem assegurar, para além da protecção da saúde humana, a livre circulação de mercadorias, pelo que a interpretação das disposições da Directiva 2001/83, em geral, e do conceito de medicamento, em especial, não deve provocar entraves à livre circulação de mercadorias, desproporcionados ao objectivo prosseguido em termos de protecção sanitária.

17      Seguidamente, a Comissão sustenta que, para decidir da classificação do produto em causa como medicamento por função, é necessário ter em conta, para além dos seus efeitos farmacológicos, os seus métodos de utilização, a amplitude da sua difusão, o conhecimento que dele tenham os consumidores e os riscos que a sua utilização possa originar (acórdão de 21 de Março de 1991, Monteil e Samanni, C‑60/89, Colect., p. I‑1547, n.° 29).

18      No tocante aos efeitos farmacológicos, a Comissão não contesta o facto de o produto em causa poder ter uma acção preventiva contra a arteriosclerose, mas refere que este efeito pode também ser obtido através da ingestão diária de uma dose equivalente a 4 g de alho fresco. Assim, quando os efeitos de um produto que pretensamente constitui um medicamento não são diferentes dos produzidos por um género alimentício tradicional, há que concluir que as suas propriedades farmacológicas são insuficientes para lhe reconhecer a qualidade de medicamento. Segundo a Comissão, um produto que, no organismo, não produz efeito diferente do produzido por um alimento não passou o limiar para lá do qual deve ser considerado um medicamento por função. Dito de outro modo, as substâncias que não produzem um efeito significativo no organismo e, em rigor, que não modificam as condições do seu funcionamento não podem ser equiparadas a medicamentos.

19      A Comissão entende que, quando muito, o produto em causa poderá ser considerado um suplemento alimentar na acepção do artigo 2.°, alínea a), da Directiva 2002/46, ou seja, um género alimentício que constitui uma fonte concentrada de substâncias com um efeito nutricional ou fisiológico, estremes ou combinadas, comercializadas na forma de doses. Precisa, no entanto, que a tentativa de negar a natureza alimentar do produto em causa não justifica em caso algum a sua equiparação a um medicamento.

20      Quanto à classificação de um produto como medicamento por apresentação, a Comissão sustenta que esta deve ser feita caso a caso e em função das características específicas do referido produto. Um produto pode ser considerado um medicamento por apresentação desde que a sua forma e o seu acondicionamento o tornem suficientemente semelhante a um medicamento e que, em especial, a sua embalagem e a literatura que o acompanha contenham referências a investigações de laboratórios farmacêuticos, a métodos ou a substâncias desenvolvidos por médicos, ou mesmo a determinados testemunhos de médicos em abono das qualidades desse produto (acórdão de 21 de Março de 1991, Delattre, C‑369/88, Colect., p. I‑1487, n.° 41).

21      A Comissão indica que, no presente caso, o preparado não é apresentado nem recomendado como um produto com propriedades curativas ou preventivas, seja no rótulo, nas informações que figuram na embalagem ou de qualquer outro modo. O acondicionamento do produto também não é o característico de um medicamento. A apresentação sob a forma de cápsulas é a única característica específica do produto, apesar de a forma exterior não poder constituir um indício exclusivo e determinante. Quanto ao mais, não há nenhum elemento que, no caso em apreço, indique que o produto é um medicamento por apresentação. A Comissão considera que o consumidor sabe exactamente o que contêm as cápsulas, isto é, alho, que conhece como género alimentício. O consumidor vê ainda que o produto não assinala nenhum efeito terapêutico.

22      Por último, a Comissão indica que não está excluído que, em direito nacional, os Estados‑Membros sujeitem ao regime dos medicamentos um produto que não é um medicamento na acepção da Directiva 2001/83; isto, porém, na condição de as medidas que visam proteger a saúde pública serem proporcionadas (v. acórdão de 29 de Abril de 2004, Comissão/Alemanha, C‑387/99, Colect., p. I‑3751, n.° 72). Ora, no presente caso, a República Federal da Alemanha não fez a prova de que a proibição de introduzir no mercado o produto em questão como suplemento alimentar e a obrigação de obter uma autorização de introdução no mercado como medicamento se revelem efectivamente necessárias à protecção da saúde pública.

23      Por seu turno, a República Federal da Alemanha alega que só as disposições de direito comunitário específicas dos medicamentos são aplicáveis a um produto que preenche tanto as condições para ser considerado um género alimentício, ou um suplemento alimentar, como as que permitem considerá‑lo um medicamento (acórdão de 9 de Junho de 2005, HLH Warenvertrieb e Orthica, C‑211/03, C‑299/03 e C‑316/03 a C‑318/03, Colect., p. I‑5141, n.° 43). Sustenta que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a primazia do regime dos medicamentos resulta do artigo 2.°, terceiro parágrafo, alínea d), do Regulamento n.° 178/2002 assim como do artigo 1.°, n.° 2, da Directiva 2002/46, os quais excluem unanimemente os medicamentos do âmbito de aplicação das disposições relativas aos géneros alimentícios e aos suplementos alimentares. Esta interpretação é igualmente confirmada pela Directiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, que altera a Directiva 2001/83 (JO L 136, p. 34), que introduz nesta última directiva uma nova versão do artigo 2.°, cujo n.° 2 prevê que, em caso de dúvida e se um produto também for regido por outras regulamentações comunitárias – como, nomeadamente, as relativas aos géneros alimentícios –, são sempre as disposições da Directiva 2001/83 as aplicáveis.

24      A República Federal da Alemanha sustenta que o preparado de alho em causa é um medicamento por função, em primeiro lugar, porque possui propriedades farmacológicas, que revestem importância decisiva. Para apreciar estas propriedades farmacológicas, este Estado‑Membro indica que são importantes não apenas os efeitos deste preparado na saúde em geral mas ainda a sua eficácia no plano farmacológico (acórdão de 16 de Abril de 1991, Upjohn, C‑112/89, Colect., p. I‑1703, n.° 17). No caso em apreço, o produto em causa tem efeitos terapêuticos que actuam de modo profiláctico sobre as lesões surgidas no organismo humano e, mais especificamente, tem um efeito antiarteriosclerótico. A República Federal da Alemanha invoca vários estudos e relatórios científicos em apoio da sua tese.

25      Em resposta à argumentação da Comissão segundo a qual os efeitos do preparado em causa na arteriosclerose são limitados, o referido Estado‑Membro indica que nem a Directiva 2001/83 nem a jurisprudência do Tribunal de Justiça permitem deduzir a existência de um «patamar de importância», nos termos do qual se deveria provar um determinado grau de eficácia farmacológica. Assim, se, no presente caso, se admitir a eficácia farmacológica, pouco importa saber se o risco de arteriosclerose é ligeiramente reduzido ou se o é substancialmente.

26      A República Federal da Alemanha sustenta ainda que a origem das substâncias não pode ser determinante para definir um medicamento e indica que o Tribunal de Justiça enunciou que as vitaminas, sob uma forma determinada e em doses elevadas, podiam ser qualificadas de medicamentos (v. acórdãos de 30 de Novembro de 1983, van Bennekom, 227/82, Recueil, p. 3883, n.° 27, e Comissão/Alemanha, já referido, n.° 56). A circunstância de as vitaminas estarem também presentes em numerosos géneros alimentícios não impede, pois, que sejam classificadas como medicamentos. O mesmo deve valer para o alho e para a alicina, que é a substância activa neste contida. Por conseguinte, é indiferente, em última análise, que uma substância activa com propriedades farmacológicas se encontre ou não num determinado género alimentício.

27      O preparado em causa possui igualmente propriedades farmacológicas, uma vez que a sua ingestão pode provocar riscos para a saúde (v. acórdão Comissão/Alemanha, já referido, n.° 82). O facto de o consumo de outros géneros alimentícios determinados também poder ter consequências nefastas para a saúde não pode pôr em causa esta qualidade de medicamento. Porém, a República Federal da Alemanha esclarece que são sobretudo os efeitos farmacológicos e/ou terapêuticos que desempenham um papel determinante.

28      Quanto aos modos de utilização, este Estado‑Membro indica que a circunstância de o produto em causa ser proposto sob a forma de cápsulas vai também no sentido da sua classificação como medicamento por função.

29      No tocante ao conceito de medicamento por apresentação, a República Federal da Alemanha alega que um produto pode ser considerado como tal a partir do momento em que a sua forma e o seu acondicionamento o tornem suficientemente semelhante a um medicamento.

30      No caso em apreço, a forma de cápsula utilizada vai no sentido da intenção de comercializar o referido produto como medicamento, apesar de este Estado‑Membro admitir que a forma exterior não pode constituir, por si só, um indício determinante para classificar uma substância como medicamento (v. acórdão Delattre, já referido, n.° 38).

31      Além disso, a República Federal da Alemanha salienta que no mercado alemão se encontra um grande número de medicamentos que contêm substâncias activas, tais como o pó ou o óleo de bolbo de alho, acondicionados de maneira análoga ao preparado em causa. O facto de todos serem classificados como medicamentos milita, de acordo com os usos comerciais e as expectativas dos consumidores, a favor da classificação do produto em questão como medicamento por apresentação.

32      O referido Estado‑Membro deduz ainda da jurisprudência do Tribunal de Justiça que as autoridades nacionais gozam de uma margem de apreciação quando tomam uma decisão de classificação (v. acórdão HLH Warenvertrieb e Orthica, já referido, n.° 56). Ora, a Comissão não satisfez o ónus da prova que lhe incumbe, porquanto não demonstrou que as autoridades alemãs exerceram erradamente o seu poder de apreciação quando classificaram o preparado em causa como medicamento.

33      A título subsidiário, a República Federal da Alemanha refere que, no caso de o Tribunal de Justiça entender que o princípio da livre circulação de mercadorias é aplicável e considerar que a decisão de classificação do produto em questão como medicamento é uma restrição a esse princípio, esta decisão é, em todo o caso, justificada por uma razão imperiosa de interesse geral, a saber, a protecção da saúde pública.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

34      Resulta dos artigos 2.° e 6.°, n.° 1, da Directiva 2001/83 que nenhum medicamento produzido industrialmente pode ser introduzido no mercado de um Estado‑Membro sem que para tal tenha sido emitida pela autoridade competente desse Estado‑Membro uma autorização de introdução no mercado, ou sem que tenha sido concedida uma autorização nos termos do Regulamento (CEE) n.° 2309/93 do Conselho, de 22 de Julho de 1993, que estabelece procedimentos comunitários de autorização e fiscalização de medicamentos de uso humano e veterinário e institui uma Agência Europeia de Avaliação dos Medicamentos (JO L 214, p. 1).

35      De onde resulta que se um produto fabricado industrialmente couber na definição de medicamento constante do artigo 1.°, ponto 2, da Directiva 2001/83, a obrigação de o importador deste produto obter, previamente à sua comercialização no Estado‑Membro de importação, uma autorização de introdução no mercado, nos termos da referida directiva, não pode, seja como for, constituir uma restrição às trocas comerciais intracomunitárias, proibida pelo artigo 28.° CE (v., neste sentido, acórdão de 29 de Abril de 2004, Comissão/Áustria, C‑150/00, Colect., p. I‑3887, n.° 57).

36      Por outro lado, importa recordar que, embora a Directiva 2001/83 tenha por objectivo essencial eliminar os entraves às trocas comerciais dos medicamentos na Comunidade e embora, para esse fim, dê, no seu artigo 1.°, uma definição de medicamento, apenas constitui, no entanto, a primeira fase da harmonização das regulamentações nacionais em matéria de produção e de distribuição dos medicamentos (v., neste sentido, acórdão Comissão/Áustria, já referido, n.° 58).

37      Nestas condições, enquanto a harmonização das medidas necessárias para assegurar a protecção da saúde não for mais completa, é difícil evitar que subsistam diferenças, entre os Estados‑Membros, na qualificação dos produtos como medicamentos ou como géneros alimentícios. Assim, a circunstância de um produto ser qualificado como alimento num Estado‑Membro não pode impedir que lhe seja reconhecida a qualidade de medicamento no Estado‑Membro de importação, quando possua as respectivas características (v. acórdão HLH Warenvertrieb e Orthica, já referido, n.° 56).

38      Isto não impede, porém, que um produto que corresponde à definição do conceito de «medicamento» na acepção da Directiva 2001/83 deva ser considerado um medicamento e ser sujeito ao regime correspondente, mesmo que entre no âmbito de aplicação de outra regulamentação comunitária menos rigorosa (v., neste sentido, acórdão de 28 de Outubro de 1992, Ter Voort, C‑219/91, Colect., p. I‑5485, n.° 19 e a jurisprudência aí referida).

39      Nestas condições, importa começar por verificar se o produto em causa constitui um medicamento na acepção da Directiva 2001/83.

40      Nos termos do artigo 1.°, ponto 2, primeiro parágrafo, da Directiva 2001/83, é um medicamento «toda a substância ou composição apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças humanas» e, de acordo com o segundo parágrafo do mesmo ponto 2 deste artigo, também se considera medicamento «toda a substância ou composição que possa ser administrada ao homem, com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar as funções fisiológicas no homem».

41      A referida directiva dá assim duas definições de medicamento, a saber, uma definição «por apresentação» e uma definição «por função». Considera‑se que um produto é um medicamento quando cabe numa ou noutra destas duas definições (acórdão HLH Warenvertrieb e Orthica, já referido, n.° 49).

42      A este respeito, importa salientar que, apesar de a Comissão, no seu pedido, fazer expressamente referência ao conceito de medicamento por apresentação, nele não faz qualquer referência ao de medicamento por função. Em contrapartida, na fundamentação da sua petição, assim como durante toda a fase pré‑contenciosa, a Comissão desenvolveu argumentos relativos aos dois conceitos. Na sua defesa, tanto no quadro da fase pré‑contenciosa como no da presente acção, a República Federal da Alemanha também se exprimiu sobre estes dois conceitos. Há, portanto, que interpretar a acção da Comissão no sentido de negar ao produto em causa tanto a qualidade de medicamento por apresentação como a de medicamento por função.

 Quanto à definição do medicamento por apresentação

43      Segundo jurisprudência assente, o conceito de apresentação de um produto deve ser interpretado de modo extensivo. A este respeito, há que recordar que, ao fundar‑se no critério da apresentação do produto, a Directiva 2001/83 visa abranger não só os medicamentos que tenham um verdadeiro efeito terapêutico ou médico mas igualmente os produtos que não sejam suficientemente eficazes ou que não tenham o efeito que corresponde às expectativas legítimas dos consumidores, dada a sua apresentação. Assim, a referida directiva tende a preservar os consumidores não apenas dos medicamentos nocivos ou tóxicos enquanto tais, mas ainda de diversos produtos utilizados em vez dos remédios adequados (acórdão van Bennekom, já referido, n.° 17).

44      Neste contexto, importa considerar que um produto é «apresentado como possuindo propriedades curativas ou preventivas», na acepção da Directiva 2001/83, quando seja «descrito» ou «recomendado» expressamente como tal, eventualmente por meio de rótulos, de bulas ou de uma apresentação oral (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, van Bennekom, n.° 18, e Monteil e Samanni, n.° 23).

45      Ora, no presente caso, decorre dos autos que o preparado em causa não é descrito nem recomendado como um produto dotado de propriedades curativas ou preventivas das doenças, quer no rótulo ou nas informações que figuram na embalagem quer de qualquer outro modo.

46      Um produto é igualmente «apresentado como possuindo propriedades curativas ou preventivas», sempre que parecer, de modo implícito mas certo, aos olhos de um consumidor medianamente avisado, que o referido produto deve, dada a sua apresentação, ter as mencionadas propriedades (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, van Bennekom, n.° 18, e Monteil e Samanni, n.° 23).

47      A este respeito, é necessário ter em consideração a atitude de um consumidor medianamente avisado, a quem a forma dada a um produto pode inspirar uma confiança especial, do tipo da que normalmente inspiram os medicamentos, tendo em conta as garantias que o seu fabrico e a sua comercialização envolvem. Embora a forma externa dada ao referido produto possa constituir um indício sério a favor da sua qualificação como medicamento por apresentação, deve entender‑se que esta forma abrange não apenas a do próprio produto mas também a do seu acondicionamento, que pode levar, por razões de política comercial, a que o produto se assemelhe a um medicamento (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, van Bennekom, n.° 19, e Monteil e Samanni, n.° 24).

48      Segundo as informações prestadas ao Tribunal, o produto em causa é um pó de extracto de alho, comercializado sob a forma de cápsulas. Na embalagem do produto em questão figura, nomeadamente, a fotografia de uma cabeça de alho, ao lado da qual se vêem duas cápsulas.

49      A este propósito, a circunstância, invocada pela República Federal da Alemanha, de no mercado alemão se encontrar um grande número de produtos que contêm substâncias activas, como o pó ou o óleo de bolbo de alho, acondicionados de maneira análoga ao produto em causa e classificados como medicamentos, não basta para conferir ao referido produto a qualidade de medicamento por apresentação. Com efeito, a República Federal da Alemanha não forneceu nenhum elemento preciso em apoio deste argumento.

50      Nestas condições, tendo em conta os elementos de que o Tribunal dispõe, é forçoso concluir que não há nenhum aspecto do seu acondicionamento que leve a que o produto em causa se assemelhe a um medicamento, salvo a presença da fotografia de uma cabeça de alho na embalagem, como acontece com certos produtos comercializados como medicamentos na Alemanha. A presença da fotografia de uma planta na embalagem de um produto não basta, contudo, para inspirar a um consumidor medianamente avisado uma confiança do tipo da que normalmente inspiram os medicamentos.

51      Por conseguinte, a apresentação sob a forma de cápsulas é o único aspecto que pode militar a favor da classificação do produto como medicamento por apresentação.

52      Importa, porém, recordar que, segundo jurisprudência assente, a forma externa dada a um produto não pode, apesar de constituir um indício sério da intenção do vendedor ou do fabricante de o comercializar como medicamento, constituir um indício exclusivo e determinante, sob pena de englobar determinados produtos alimentares tradicionalmente apresentados sob formas análogas às dos medicamentos (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, van Bennekom, n.° 19, e Delattre, n.° 38).

53      Como salientou a advogada‑geral no n.° 51 das suas conclusões, a forma de cápsula não é específica dos medicamentos. Com efeito, um grande número de produtos alimentares é proposto sob esta forma, a fim de facilitar a sua absorção pelos consumidores. Importa referir, a este respeito, que o artigo 2.°, alínea a), da Directiva 2002/46 faz expressamente referência à apresentação sob a forma de cápsulas, entre os critérios utilizados para definir o conceito de «suplemento alimentar». Por conseguinte, este indício, por si só, não basta para conferir ao produto em causa a qualidade de medicamento por apresentação.

54      Nestas condições, há que concluir que o produto em causa não satisfaz os critérios previstos no artigo 1.°, ponto 2, primeiro parágrafo, da Directiva 2001/83. Não pode, portanto, ser qualificado de medicamento por apresentação, na acepção da referida directiva.

 Quanto à definição de medicamento por função

55      Para decidir se um produto cabe na definição de medicamento por função, na acepção da Directiva 2001/83, as autoridades nacionais, actuando sob fiscalização jurisdicional, devem decidir, caso a caso, atendendo ao conjunto das características do produto, designadamente a sua composição, as suas propriedades farmacológicas, tal como podem ser determinadas no estádio actual do conhecimento científico, os seus modos de utilização, a amplitude da sua difusão, o conhecimento que dele tenham os consumidores e os riscos que a sua utilização possa originar (acórdão HLH Warenvertrieb e Orthica, já referido, n.° 51).

56      No presente caso, para justificar a classificação do produto em causa como medicamento por função, a República Federal da Alemanha invoca essencialmente o seu teor em alicina, o seu efeito na tensão arterial e na taxa de lípidos, a forma de cápsula utilizada e os riscos que se prendem com a sua ingestão.

57      Resulta dos autos que o produto em causa é um pó de extracto de alho cujo teor em alicina está compreendido entre 0,95% e 1,05%, contendo cada cápsula o equivalente a 7,4 g de alho cru fresco. A alicina, o principal composto volátil que se liberta do alho esmagado, é o resultado da transformação da aliina, um aminoácido presente naturalmente no alho, quando misturada com a enzima natural que é a aliinase.

58      Assim, é forçoso concluir que, além do excipiente a que se incorporou o extracto de alho antes de ser pulverizado, o produto em causa não contém nenhuma substância que não esteja ela própria contida no alho no seu estado natural.

59      As propriedades farmacológicas de um produto são o factor com base no qual há que apreciar, a partir das capacidades potenciais desse produto, se este pode, na acepção do artigo 1.°, ponto 2, segundo parágrafo, da Directiva 2001/83, ser administrado ao homem com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas no homem (acórdão HLH Warenvertrieb e Orthica, já referido, n.° 52).

60      Se, como salientou a advogada‑geral no n.° 58 das suas conclusões, esta definição é suficientemente ampla para permitir incluir nela produtos que, embora, pela sua natureza, produzam efeitos nas funções orgânicas, têm na realidade outro objectivo, este critério não deve levar a qualificar de medicamento por função as substâncias que, apesar de terem influência no corpo humano, não têm efeitos significativos no metabolismo e não modificam, assim, para falar com propriedade, as condições do seu funcionamento (acórdão Upjohn, já referido, n.° 22).

61      Com efeito, contrariamente ao conceito de medicamento por apresentação, cuja interpretação extensiva tem por objectivo proteger os consumidores contra os produtos que não têm a eficácia que corresponde às suas expectativas legítimas, o de medicamento por função visa abranger os produtos cujas propriedades farmacológicas foram cientificamente verificadas e que se destinam realmente a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas.

62      Esta interpretação está em conformidade com os objectivos prosseguidos pela Directiva 2001/83, a qual, como resulta dos seus segundo a quinto considerandos, visa conciliar o objectivo da protecção da saúde pública com o princípio da livre circulação de mercadorias.

63      De resto, se só as disposições de direito comunitário específicas dos medicamentos forem aplicáveis a um produto que preenche as condições para ser considerado um medicamento, mesmo que entre no âmbito de aplicação de outra regulamentação comunitária menos rigorosa (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Delattre, n.° 22; Monteil e Samanni, n.° 17; Ter Voort, n.°19; e HLH Warenvertrieb e Orthica, n.° 43), é forçoso constatar, como demonstra a leitura conjugada do artigo 1.°, ponto 2, da Directiva 2001/83 com o artigo 2.° da Directiva 2002/46, que o efeito fisiológico não é específico dos medicamentos, pois também faz parte dos critérios utilizados para a definição de suplemento alimentar.

64      Nestas condições e a fim de ser preservado o efeito útil deste critério, não basta que um produto tenha propriedades benéficas para a saúde em geral, devendo ter por função prevenir ou curar, na acepção exacta da expressão.

65      Esta afirmação é ainda mais pertinente no caso dos produtos que, além de serem géneros alimentícios, são reconhecidos como produzindo um efeito benéfico na saúde. Como salientou a advogada‑geral no n.° 60 das suas conclusões, há efectivamente um grande número de produtos, geralmente reconhecidos como géneros alimentícios, que podem, objectivamente, ser utilizados para fins terapêuticos. Todavia, esta circunstância não pode bastar para lhes conferir a qualidade de medicamento na acepção da Directiva 2001/83.

66      No caso em apreço, a República Federal da Alemanha não contesta que os efeitos fisiológicos que invoca, essencialmente referentes à prevenção da arteriosclerose, também podem ser obtidos através da ingestão de 7,4 g de alho no estado de género alimentício. É significativo, a este respeito, o facto de os estudos nos quais se funda este Estado‑Membro se referirem tanto aos efeitos potenciais da ingestão de preparados de alho sob a forma de cápsulas, de pós ou de soluções como aos do consumo de alho no estado natural.

67      Está igualmente assente que o produto controvertido não tem efeitos adicionais relativamente aos que resultam do consumo de alho no estado natural e, como salientou a advogada‑geral no n.° 62 das suas conclusões, estes efeitos não são substancialmente superiores aos de outros produtos, de origem vegetal ou animal, que fazem parte da alimentação quotidiana, nem substancialmente diferentes dos destes.

68      Nestas condições, é forçoso concluir que o produto em causa, cuja incidência nas funções fisiológicas não excede os efeitos que um género alimentício consumido em quantidade razoável pode produzir nestas mesmas funções, não tem efeito significativo no metabolismo e, portanto, não pode ser qualificado de produto capaz de restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas na acepção do artigo 1.°, ponto 2, segundo parágrafo, da Directiva 2001/83.

69      Por último e contrariamente ao que defende a República Federal da Alemanha, o facto de a ingestão do produto em causa representar um risco para a saúde não é um elemento que permita indicar que possui uma eficácia farmacológica. Efectivamente, decorre da jurisprudência que o risco para a saúde, devendo embora ser tomado em consideração no quadro da qualificação de um produto como medicamento por função, não deixa de ser um factor autónomo (v. acórdão HLH Warenvertrieb e Orthica, já referido, n.° 53).

70      A apreciação dos eventuais riscos que se prendem com a utilização do produto em causa deve ser efectuada no contexto da Directiva 2001/83 e, de um modo geral, à luz dos princípios de direito comunitário.

71      Como observa a Comissão, as disposições comunitárias relativas aos medicamentos devem assegurar, para além da protecção da saúde humana, a livre circulação de mercadorias, pelo que a interpretação das disposições da Directiva 2001/83, em geral, e do conceito de medicamento, em especial, não deve provocar entraves à livre circulação de mercadorias, desproporcionados ao objectivo prosseguido em termos de protecção sanitária.

72      No presente caso, a República Federal da Alemanha invoca alguns casos de hemorragia espontânea e de hemorragia pós‑operatória ocorridos após um consumo exagerado de alho no estado de género alimentício ou na forma de preparado, mas também a inibição dos efeitos de certos antiretrovirais e uma interacção com determinados anticoagulantes.

73      A este propósito, importa começar por salientar que os referidos riscos decorrem da absorção de alho em geral e não, especificamente, da ingestão do preparado controvertido.

74      Resulta, aliás, dos exemplos citados pela República Federal da Alemanha que é unicamente da interacção com certos medicamentos ou de uma ingestão exagerada de alho ou de um preparado de alho, no quadro de circunstâncias específicas, como uma intervenção cirúrgica, que podem surgir riscos para a saúde.

75      Como salientou a advogada‑geral no n.° 65 das suas conclusões, resulta destes exemplos que os riscos e as contra‑indicações relacionados com o consumo de preparados de alho, a que se faz referência, são limitados e, mais ainda, não são diferentes dos relacionados com o consumo de alho no estado de género alimentício.

76      Quanto ao critério dos métodos de utilização do produto em causa, não pode ser determinante, no caso em apreço, pelas razões mencionadas no n.° 53 do presente acórdão.

77      Nestas condições, há que concluir que, tendo em conta o conjunto das suas características, o produto em causa não pode ser qualificado de medicamento por função na acepção do artigo 1.°, ponto 2, segundo parágrafo, da Directiva 2001/83.

78      Resulta do conjunto das precedentes considerações que o produto em causa não se insere na definição de medicamento por apresentação nem na de medicamento por função. Por conseguinte, não pode ser qualificado de medicamento na acepção da Directiva 2001/83.

 Quanto à violação dos artigos 28.° CE e 30.° CE

79      Importa seguidamente verificar se, como sustenta a Comissão, a exigência de uma autorização de introdução no mercado como medicamento, como a que resulta da decisão tomada pela República Federal da Alemanha, constitui uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, proibida pelo artigo 28.° CE.

80      A proibição das medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas, prevista no artigo 28.° CE, visa qualquer medida susceptível de entravar, directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, o comércio intracomunitário (v., nomeadamente, acórdãos de 11 de Julho de 1974, Dassonville, 8/74, Recueil, p. 837, n.° 5, Colect., p. 423; e Comissão/Áustria, já referido, n.° 81).

81      No presente caso, a decisão da República Federal da Alemanha cria um entrave às trocas comerciais intracomunitárias na medida em que o produto em causa, legalmente comercializado noutros Estados‑Membros como produto alimentar, só pode ser comercializado na Alemanha após ter sido sujeito ao procedimento da autorização de introdução no mercado de um medicamento.

82      A este propósito, a República Federal da Alemanha alega que a sua decisão é justificada por razões atinentes à protecção da saúde pública, em conformidade com o disposto no artigo 30.° CE.

83      Se é verdade que o artigo 30.° CE permite manter restrições à livre circulação de mercadorias, justificadas por razões de protecção da saúde e da vida das pessoas, que constituem exigências fundamentais reconhecidas pelo direito comunitário, importa, porém, recordar que a aplicação desta disposição deve ser excluída quando as directivas comunitárias prevejam a harmonização das medidas necessárias à realização do objectivo específico que o recurso ao artigo 30.° CE prosseguiria (v., neste sentido, acórdão de 12 de Novembro de 1998, Comissão/Alemanha, C‑102/96, Colect., p. I‑6871, n.° 21).

84      No caso em apreço, não é necessário apurar se o produto em causa pode ser qualificado de suplemento alimentar, na acepção do artigo 2.° da Directiva 2002/46, ou de género alimentício, na acepção do artigo 2.° do Regulamento n.° 178/2002. Com efeito, basta constatar que, nos termos do artigo 11.°, n.° 2, da referida directiva e do artigo 14.°, n.° 9, deste regulamento, na falta da regulamentação comunitária específica que estes textos prevêem, as regras nacionais podem ser aplicadas sem prejuízo das disposições do Tratado.

85      Nestas condições, há que verificar se a prática alemã em causa pode ser justificada com fundamento no artigo 30.° CE.

86      A este respeito, importa recordar que compete aos Estados‑Membros, na falta de harmonização e na medida em que subsistam incertezas no estádio actual da investigação científica, decidir sobre o nível a que pretendem assegurar a protecção da saúde e da vida das pessoas e sobre a exigência de uma autorização prévia à colocação no mercado dos géneros alimentícios, tendo simultaneamente em conta as exigências da livre circulação de mercadorias no interior da Comunidade (acórdãos de 14 de Julho de 1983, Sandoz, 174/82, Recueil, p. 2445, n.° 16; van Bennekom, já referido, n.° 37; e de 14 de Setembro de 2006, Alfa Vita Vassilopoulos e Carrefour‑Marinopoulos, C‑158/04 e C‑159/04, Colect., p. I‑8135, n.° 21).

87      Contudo, ao exercer o seu poder de apreciação relativo à protecção da saúde pública, os Estados‑Membros devem respeitar o princípio da proporcionalidade. Os meios que escolhem devem, portanto, ser limitados ao que é efectivamente necessário para assegurar a protecção da saúde pública e devem ser proporcionados ao objectivo assim prosseguido, o qual não poderia ser alcançado por medidas menos restritivas das trocas comerciais intracomunitárias (acórdãos Sandoz, já referido, n.°18; van Bennekom, já referido, n.° 39; de 23 de Setembro de 2003, Comissão/Dinamarca, C‑192/01, Colect., p. I‑9693, n.° 45; e de 5 de Fevereiro de 2004, Comissão/França, C‑24/00, Colect., p. I‑1277, n.° 52).

88      Além disso, uma vez que o artigo 30.° CE contém uma excepção, de interpretação estrita, à regra da livre circulação de mercadorias no interior da Comunidade, compete às autoridades nacionais que a invocam demonstrar, em cada caso concreto, à luz dos hábitos alimentares nacionais e tendo em conta os resultados da investigação científica internacional, que a sua regulamentação é necessária para proteger efectivamente os interesses mencionados na referida disposição e, nomeadamente, que a comercialização do produto em questão representa um risco real para a saúde pública (acórdãos, já referidos, Sandoz, n.° 22; van Bennekom, n.° 40; Comissão/Dinamarca, n.° 46; e Comissão/França, n.° 53).

89      Embora, como foi recordado no n.° 86 do presente acórdão, o direito comunitário não se oponha, em princípio, a um regime de autorização prévia, importa, porém, constatar que a emissão de uma autorização de introdução no mercado ao abrigo do artigo 8.° da Directiva 2001/83 está sujeita a requisitos particularmente estritos.

90      Nestas condições, a obrigação de obter uma autorização de introdução no mercado como medicamento, antes de poder comercializar o produto controvertido no território alemão, só poderá ser considerada conforme ao princípio da proporcionalidade se for efectivamente necessária para assegurar a salvaguarda da saúde pública.

91      Uma tal restrição à livre circulação de mercadorias deve, portanto, basear‑se necessariamente numa avaliação profunda do risco alegado pelo Estado‑Membro que invoca o artigo 30.° CE (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Comissão/Dinamarca, n.° 47, e Comissão/França, n.° 54).

92      No presente caso, para justificar a restrição à livre circulação de mercadorias, a República Federal da Alemanha contenta‑se em remeter para as suas alegações a respeito dos riscos para a saúde que resultariam do preparado em causa.

93      Como foi indicado nos n.os 73 a 75 do presente acórdão, há que recordar, por um lado, que estas alegações se referem principalmente aos efeitos do alho ingerido enquanto género alimentício, e não especificamente aos do produto em causa, e, por outro, que a ocorrência destes riscos se verifica em circunstâncias muito específicas.

94      Ora, a referência genérica feita pela República Federal da Alemanha aos riscos que o consumo de alho pode constituir para a saúde, em circunstâncias muito específicas, não pode bastar, como referiu a advogada‑geral no n.° 79 das suas conclusões, para justificar uma medida como a sujeição ao procedimento particularmente estrito da autorização de introdução no mercado de um medicamento.

95      Além disso, o referido Estado‑Membro, em vez de sujeitar o produto em causa a tal procedimento, poderia ter previsto uma rotulagem adequada, que alertasse os consumidores para os riscos potenciais relacionados com o consumo deste produto. Esta solução, ao mesmo tempo que cumpria o objectivo de protecção da saúde pública, teria implicado restrições menos importantes à livre circulação de mercadorias (v., neste sentido, acórdão de 14 de Julho de 1994, van der Veldt, C‑17/93, Colect., p. I‑3537, n.° 19).

96      Resulta destas considerações que a República Federal da Alemanha não demonstrou que a sujeição do produto em causa ao regime dos medicamentos é necessária para proteger a saúde dos consumidores e que não excede o limite do necessário para atingir este objectivo. A decisão do referido Estado‑Membro não satisfaz, portanto, o princípio da proporcionalidade.

97      Tendo em conta o conjunto das precedentes considerações, há que declarar que, tendo classificado como medicamento um preparado de alho que se apresenta sob a forma de cápsulas e que não cabe na definição de medicamento na acepção do artigo 1.°, ponto 2, da Directiva 2001/83, a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 28.° CE e 30.° CE.

 Quanto às despesas

98      Por força do disposto no artigo 69,°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Federal da Alemanha e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) decide:

1)      Tendo classificado como medicamento um preparado de alho que se apresenta sob a forma de cápsulas e que não cabe na definição de medicamento na acepção do artigo 1.°, ponto 2, da Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 28.° CE e 30.° CE.

2)      A República Federal da Alemanha é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.