Language of document : ECLI:EU:C:2012:377

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 21 de junho de 2012 (1)

Processo C‑173/11

Football Dataco Ltd

Scottish Premier League Ltd

Scottish Football League

PA Sport UK Ltd

contra

Sportradar GmbH (sociedade registada na Alemanha)

contra

Sportradar AG (sociedade registada na Suíça)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) (Reino Unido)]

«Diretiva 96/9/CE ― Proteção jurídica de bases de dados ― Conceitos de extração e de reutilização ― Localização do ato de reutilização»





1.        No âmbito de um processo judicial que tem por objeto o direito sui generis estabelecido no artigo 7.° da Diretiva 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 1996, relativa à proteção jurídica das bases de dados (2), a Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) (Reino Unido) pergunta ao Tribunal de Justiça se determinada utilização do conteúdo de uma base de dados protegida por esse direito deve ser qualificada como uma situação de «extração» ou um caso de «reutilização» e, uma vez qualificada, onde teve lugar.

2.        O presente pedido prejudicial permitirá ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre o problema da localização dos atos de violação do denominado direito sui generis. No seguimento da jurisprudência desenvolvida pelo Tribunal de Justiça em matéria de comunicação através da Internet, limitar‑me‑ei a propor uma solução ajustada às especificidades desse meio e, em particular, às categorias conceptuais da própria Diretiva 96/9, deixando assim de parte o exame de outras questões, em concreto, a da competência jurisdicional, sobre as quais, no meu entender, o órgão jurisdicional de reenvio não nos questiona.

I ―    Quadro jurídico

A ―    Direito da União

3.        No capítulo II («Direitos de autor») da Diretiva 96/9, sob a epígrafe «Objeto da proteção», o artigo 5.° dispõe:

«O autor de uma base de dados beneficia do direito exclusivo de efetuar ou autorizar os seguintes atos relativos à forma de expressão protegida pelo direito de autor:

[…]

d)      Qualquer comunicação, exposição ou representação pública;

[…]»

4.        No capítulo III («Direito sui generis») da Diretiva 96/9, sob a epígrafe «Objeto da proteção», o artigo 7.° estabelece o seguinte:

«1.      Os Estados‑Membros instituirão o direito de o fabricante de uma base de dados proibir a extração e/ou a reutilização da totalidade ou de uma parte substancial, avaliada qualitativa ou quantitativamente, do conteúdo desta, quando a obtenção, verificação ou apresentação desse conteúdo representem um investimento substancial do ponto de vista qualitativo ou quantitativo.

2.      Para efeitos do presente capítulo, entende‑se por:

a)      ‘Extração’: a transferência permanente ou temporária da totalidade ou de uma parte substancial do conteúdo de uma base de dados para outro suporte, seja por que meio ou sob que forma for;

b)      ‘Reutilização’: qualquer forma de pôr à disposição do público a totalidade ou uma parte substancial do conteúdo da base através da distribuição de cópias, aluguer, transmissão em linha ou sob qualquer outra forma. A primeira venda de uma cópia de uma base de dados na Comunidade efetuada pelo titular do direito ou com o seu consentimento esgota o direito de controlar a revenda dessa cópia na Comunidade.

O comodato público não constitui um ato de extração ou de reutilização.

[…]»

B ―    Direito nacional

5.        A Diretiva 96/9 foi transposta no Reino Unido mediante alteração feita à Copyright Design and Patents Act 1988 (Lei sobre o direito de autor e os direitos relativos às bases de dados) levada a cabo nos termos do Copyright and Rights in Database Regulations 1997 (SI 1997/3032) (Regulamento relativo aos direitos de autor e aos direitos sobre as bases de dados). O conteúdo da lei britânica coincide com o da diretiva.

II ― Factos

6.        A Football Dataco Ltd, Scottish Premier League Ltd, a Scottish Football League e a PA Sport UK Ltd (a seguir «Football Dataco e o.»), sociedades autoras no processo a quo, são responsáveis pela organização dos campeonatos de futebol inglês e escocês. A primeira tem a seu cargo a criação e exploração dos dados e direitos de propriedade intelectual relativos a esses campeonatos e pretende exercer, com base no direito britânico, um direito sui generis sobre a base de dados denominada «Football Live».

7.        A base de dados controvertida (Football Live) é uma compilação de dados relativos aos encontros de futebol em curso (evolução dos marcadores, nomes dos jogadores, cartões amarelos e vermelhos, faltas, substituições). Os dados são recolhidos principalmente por ex‑jogadores profissionais que atuam a título independente por conta da Football Dataco e o., assistindo para este fim aos encontros de futebol. A obtenção e/ou verificação da informação recolhida não só requer, segundo alega a Football Dataco e o., um investimento considerável, mas também, além disso, a compilação da Football Live exige habilidade, esforço, discernimento e um trabalho intelectual considerável por parte de pessoal com experiência.

8.        Por outro lado, a sociedade alemã Sportradar GmbH difunde em direto, pela Internet, os resultados e outras estatísticas referentes aos encontros do campeonato inglês. O referido serviço denomina‑se Sport Live Data.

9.        Em particular, a Sportradar GmbH dispõe de uma página web denominada «betradar.com». As sociedades de apostas clientes da Sportradar GmbH celebram alegadamente contratos com a sociedade suíça Sportradar AG, que é a sociedade mãe da Sportradar GmbH. Entre essas sociedades incluem‑se a britânica bet365 e a Stan James, estabelecida em Gibraltar. Ambas oferecem serviços de apostas destinados ao mercado britânico. As respetivas páginas web têm uma relação com a betradar.com. A opção «Live Score» dá acesso a uma informação que aparece sob uma janela que atravessa o ecrã com os nomes «bet365» ou «Stan James», daí resulta, segundo a Court of Appeal, que o público do Reino Unido é um objetivo importante das sociedades recorridas.

10.      Em 23 de abril de 2010 a Football Dataco e o., alegando que a informação disponibilizada no Sport Live Data era extraída da Football Live, intentou uma ação de indemnização contra a Sportradar na High Court of Justice (England & Wales) (Reino Unido) pelos danos decorrentes da violação do seu direito sui generis sobre as bases de dados Football Live.

11.      A Sportradar pôs em causa a competência do tribunal britânico e requereu ao Landgericht Gera (Alemanha) uma declaração formal de que as suas atividades não violam nenhum direito de propriedade intelectual da Football Dataco e o.

12.      A High Court of Justice declarou‑se competente para conhecer do pedido da Football Dataco e o., destinado a declarar a responsabilidade solidária da Sportradar e dos seus clientes que utilizam a sua página web no Reino Unido e incompetente para conhecer do pedido destinado a declarar a responsabilidade principal da Sportradar. A decisão da High Court of Justice foi objeto de recurso de ambas as partes para a Court of Appeal, órgão jurisdicional que agora submete a presente questão prejudicial.

III ― Questão submetida

13.      A questão submetida pela Court of Appeal tem o seguinte teor:

«Quando uma pessoa transfere dados a partir de uma base de dados protegida por um direito sui generis ao abrigo da Diretiva 96/9/CE (a seguir «diretiva base de dados» […]) para o seu servidor web situado num Estado‑Membro A e, em resposta a um pedido de um utilizador situado num Estado‑Membro B, o servidor envia esses dados para o computador do utilizador a fim de serem guardados na memória desse computador e exibidos no respetivo ecrã:

a)      o ato pelo qual os dados são enviados constitui um ato de ‘extração’ ou de ‘reutilização’?

b)      tem lugar um ato de «extração» ou de «reutilização»:

i)      apenas no Estado‑Membro A

ii)      apenas no Estado‑Membro B; ou

iii)      em ambos os Estados‑Membros?»

14.      A Court of Appeal afirma que não considera adequado emitir o seu juízo a este respeito, limitando‑se, por isso, a expor os argumentos das partes (n.° 45 do despacho de reenvio)

IV ― Tramitação no Tribunal de Justiça

15.      O pedido prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 8 de abril de 2011.

16.      Apresentaram observações escritas os Governos espanhol e português, bem como as partes no processo a quo e a Comissão.

17.      Marcada a realização de audiência, o Tribunal de Justiça convidou as partes a concentrar as suas alegações em duas questões.

―      Como se articulam as questões da localização dos atos e do envio de dados a que se refere o órgão jurisdicional de reenvio e as questões da lei aplicável ao litígio principal e do foro territorialmente competente ao abrigo, respetivamente, do Regulamento Roma II e do Regulamento Bruxelas I?

―      Qual a possível incidência no caso em apreço dos desenvolvimentos jurisprudenciais que figuram nos n.os 61 a 67 do acórdão L’Oréal (3), nos n.os 61 a 94 do acórdão Pammer e Alpenhof (4) e nos n.os 45 a 52 do acórdão eDate Advertising e o. (5)?

18.      Na audiência, realizada em 8 de março de 2012, estiveram presentes os Governos belga e português, assim como as partes no processo a quo e a Comissão.

V ―    Argumentos das partes

19.      No que diz respeito à primeira das questões submetidas pela Court of Appeal, a Football Dataco e o. alega que o envio de dados para o computador de um utilizador constitui tanto um ato de extração ― enquanto transferência, de um suporte para outro, de dados originariamente provenientes de uma base protegida ― e um ato de reutilização ― enquanto transmissão de dados ao público.

20.      Quanto à segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, a Football Dataco e o. alega que os atos da Sportradar devem‑se considerar realizados no Reino Unido, por ser esse o Estado‑Membro a que os atos se dirigiram. Seria, portanto, aplicável, no seu entendimento, a denominada «teoria da comunicação», seguida tanto pela Diretiva 2001/29 (6) como pelo Tratado da OMPI (7) e pelo Tribunal de Justiça no acórdão L’Oréal e o., já referido.

21.      O Governo espanhol acompanha, no essencial, a posição da Football Dataco e o., e afirma que, na sua opinião, a atividade em análise inclui uma extração, ocorrida no Estado A onde se encontra a base em que se carregam os dados a partir de uma base protegida, e uma reutilização, que se verifica no Estado B onde se encontra o utilizador a quem são enviados esses dados mediante pedido.

22.      O Governo português observa que, no caso em apreço, os dados podem ser obtidos sem utilizar a base protegida. Portanto, na medida em que não existe certeza sobre esse ponto, só se pode falar de atos de reutilização, os quais, além disso, ter‑se‑iam produzido nos dois Estados‑Membros.

23.      Por seu turno, a Comissão alega que a questão deve estender‑se ao ato de carregamento dos dados antes do seu envio, por considerar que aquele constituiria uma extração, enquanto este pressuporia uma reutilização. Quanto à questão do lugar em que se produziram esses atos, a Comissão alega que isso é indiferente para a sua qualificação jurídica e que, se for caso disso, apenas terá interesse numa fase posterior do processo a quo, quando tiver que se determinar a lei aplicável ao caso.

24.      Por último, a Sportradar cinge as suas observações à questão do lugar dos atos examinados, alegando que para a sua determinação tem de atender‑se à denominada «teoria da emissão». No seu entender, essa é a teoria seguida pela Diretiva 96/9, pela Convenção de Berna (8), pela Diretiva 89/552 (9), pela Diretiva 93/83 (10) e pela Diretiva 2001/29. A consequência deste entendimento é que tanto o envio dos dados como o seu carregamento prévio constituem pressupostos de reutilização produzidos unicamente no Estado‑Membro onde está situado o servidor no qual foram carregados os dados protegidos.

25.      No que diz respeito às duas questões sobre as quais o Tribunal de Justiça convidou as partes a concentrar as suas alegações na audiência, todas concordaram em assinalar que a questão da localização dos atos de envio de dados é decisiva para identificar tanto o foro nacional competente como o direito material aplicável. Daí resulta que o debate entre as partes se tenha centrado desde o início na identificação do lugar em que se produziu a violação dos direitos sui generis em litígio. A este respeito todas mantiveram as observações defendidas nas alegações escritas, com exceção da Comissão que na audiência defendeu que no caso em apreço se verificou tanto uma extração como uma reutilização e que uma e outra tiveram lugar tanto no Estado A como no Estado B, sendo, em seu entender, determinante a distinção entre o ato lesivo, por um lado e o dano em si, por outro.

26.      Finalmente, na audiência, tanto o Governo belga como o Governo português alegaram que a Football Live não tinha a qualidade de «base de dados», na aceção do artigo 1.°, n.° 2, da Diretiva 96/9, uma vez que nem pelo seu conteúdo nem pela sua configuração cumpre os requisitos necessários para ser objeto da proteção garantida pela referida diretiva.

VI ― Apreciação

A ―    Considerações prévias

27.      Para entender nos seus exatos termos o sentido e o alcance das questões submetidas pela Court of Appeal considero muito esclarecedor o conteúdo do que foi declarado na decisão deste órgão jurisdicional que antecede e acompanha o pedido de decisão prejudicial emanado na mesma data.

28.      Na referida decisão, a Court of Appeal conclui declarando: a) a sua falta de competência para conhecer do pedido de violação de um direito de propriedade intelectual (questão desenvolvida nos n.os 14 a 18 do pedido de decisão prejudicial); b) a sua competência para conhecer da responsabilidade solidária da Sportradar (questão desenvolvida nos n.os 19 a 39 do pedido de decisão prejudicial; c) a falta de decisão final sobre a competência do órgão jurisdicional de primeira instância no que se refere ao pedido dirigido individualmente contra as recorridas.

29.      Este último elemento não encontra correspondência evidente no pedido de decisão prejudicial. Em vez disso, a partir do n.° 40 do referido pedido, desenvolvem‑se os argumentos que se podem considerar a fundamentação de base das perguntas, como serão por fim formuladas: as questões relativas aos conceitos de «extração» e de «reutilização» (n.os 40 e 41), mas sobretudo uma extensa descrição das posições das partes em relação às teorias da «transmissão» e da «comunicação» (n.os 42 a 46), para concluir com a exposição direta das questões, tal como foram reproduzidas.

30.      A primeira das referidas questões refere‑se à qualificação jurídica que, ao abrigo da Diretiva 96/9, se traduz num ato que a Court of Appeal descreve de maneira pormenorizada nos seguintes termos: O «envio», por parte de quem explora um servidor localizado num Estado‑Membro, para o computador de um utilizador situado noutro Estado‑Membro, a pedido do referido utilizador, de informação obtida de uma base de dados protegida por um direito sui generis.

31.      Nada se pergunta, portanto, sobre a base de dados Football Live ― que devemos entender como constituindo uma «base de dados» na aceção do artigo 1.°, n.° 2, da Diretiva 96/9 ― nem acerca dos direitos que sobre ela reivindica a Football Dataco e o. Na minha opinião está, portanto, fora de contexto a reavaliação de todos os elementos que os Governos belga e português pretenderam ao pôr em causa que a Football Live seja uma base de dados protegida pela Diretiva 96/9.

32.      Nem essa questão nem a de que a Football Dataco e o., seja titular de um direito sui generis sobre a base de dados Football Live foi objeto de discussão no processo a quo.

33.      Pelo contrário, importa recordar que, como referido no n.° 19 do despacho de reenvio, o que a Sportradar discute especificamente naquele processo é a competência dos tribunais do Reino Unido para conhecer da violação do direito sui generis denunciada pela Football Dataco e o., no pedido apresentado separadamente contra esta.

34.      Da mesma maneira é pacífico que a informação «enviada» procede da Football Live e que o «envio» foi realizado a partir de um servidor da Sportradar localizado num Estado‑Membro que não o Reino Unido. Assim, na medida em que isto se dá por adquirido, não é necessário, no meu entender e contra o entendimento da Comissão, questionar‑se sobre a qualificação jurídica do ato de introdução no servidor da Sportradar da informação obtida através da Football Live. A resposta à referida questão em nada contribuiria para a resposta que a Court of Appeal solicita agora ao Tribunal de Justiça, referente unicamente ao envio para o computador de utilizadores residentes no Reino Unido de dados sobre cuja natureza, obtenção e procedência não foram levantadas dúvidas.

35.      A segunda questão submetida prende‑se com a localização do ato de «envio» uma vez qualificado. No entender da Comissão, a determinação do lugar em que se produziu o ato de envio é indiferente para a qualificação do mesmo. E assim é, sem nenhuma dúvida. No entanto, isso não é, só por si, determinante. A Court of Appeal suscita uma questão sobre o lugar de «envio», possivelmente porque, se pode conjeturar, que só com base nessa informação estaria em condições de determinar o foro competente para conhecer do litígio suscitado no processo a quo, questão que, como se pôde verificar na audiência, constitui um dos aspetos da controvérsia suscitada naquele processo (n.os 19 e 20 do despacho de reenvio).

36.      Não obstante, não se pode deixar de ter‑se em conta que a Court of Appeal é muito precisa na redação das duas questões que submete ao Tribunal de Justiça. Teve sempre a preocupação de relacionar a suas dúvidas com o ato de envio realizado pela Sportradar, perguntando, primeiro, pela sua qualificação como «extração» ou «reutilização» e, em seguida, pelo lugar em que esse ato concreto se produz. No meu entendimento, ao evitar qualquer referência ao dano causado por esse ato, o órgão jurisdicional de reenvio pretendeu excluir do exame do Tribunal de Justiça o desenvolvimento das consequências que decorrem da identificação do lugar em que se produz o «envio». Cingir‑me‑ei, por isso, a examinar a questão da localização desse ato concreto de envio, sem analisar a questão relativa às consequências que se poderiam retirar da resposta à mesma, sobre as quais deverá decidir o órgão jurisdicional de reenvio.

37.      Por outro lado, considero que da informação contida nos articulados a quo não resulta que a Court of Appeal antecipe dúvidas acerca da identificação do direito aplicável ao caso em apreço, uma vez determinado o foro competente, para decidir sobre o litígio principal. Nem essa questão foi objeto de debate na audiência, pelo que, no meu entender, seria errado o Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre este aspeto.

B ―    A qualificação jurídica do ato de envio, por parte de quem explora um servidor localizado num Estado‑Membro, para o computador de utilizador situado noutro Estado‑Membro, a pedido do referido utilizador, de informação obtida de uma base de dados protegida por um direito sui generis. Vertentes objetiva e subjetiva

38.      Na minha opinião, a resposta a esta primeira questão retira‑se, sem dificuldade, da jurisprudência estabelecida pelo Tribunal de Justiça em vários acórdãos relativamente recentes (11).

39.      Segundo a referida jurisprudência os conceitos de extração e de reutilização, na sua dimensão objetiva «devem ser interpretados como referindo‑se a qualquer ato que consista, respetivamente, na apropriação e na colocação à disposição do público, sem o consentimento da pessoa que constituiu a base de dados, dos resultados do seu investimento, privando assim esta última dos rendimentos que se considera permitirem‑lhe amortizar o custo desse investimento» (acórdão The British Board Horseracing Board e o., já referido, n.° 51).

40.      Trata‑se, além disso, de conceitos que «não podem ser circunscritos aos casos de extração e de reutilização operados diretamente a partir da base de origem, isto sob pena de deixar a pessoa que constituiu a base de dados sem proteção perante atos de cópia não autorizados, realizados a partir de uma cópia da sua base» (acórdão The British Board Horseracing Board e o., já referido, n.° 52). Consequentemente, «os conceitos de extração e de reutilização não pressupõem um acesso direto à base de dados em causa» (acórdão The British Board Horseracing Board e o., já referido, n.° 53).

41.      No caso agora em apreço, circunscrito ao ato de «envio» para o computador do utilizador, a seu pedido, de informação obtida numa base de dados protegida por um direito sui generis, é evidente que nos encontramos perante um ato que se integra, como elemento constitutivo necessário, num processo de colocação à disposição do público que, nos termos da jurisprudência estabelecida no acórdão The British Board Horseracing Board e o., constitui uma reutilização no sentido do artigo 7.°, n.° 2, da Diretiva 96/9.

42.      Com efeito, a «reutilização» a que se refere a Diretiva 96/9 pode ser interpretada, no contexto da comunicação através da Internet, apenas como um ato normalmente complexo constituído pelas condutas necessárias para produzir o efeito da «colocação à disposição» em que consiste a «reutilização», segundo a própria redação da diretiva. O ato de envio por parte da Sportradar a que se refere a Court of Appeal integra‑se nesse ato complexo como um dos seus componentes necessários e, por isso, na parte que aqui interessa, deve‑se concluir que participa da natureza da «reutilização».

43.      Neste ponto parece‑me oportuno voltar às circunstâncias em que foi submetida a presente questão prejudicial. Com isso poderemos avaliar a relevância do facto de a dúvida do órgão jurisdicional de reenvio ser suscitada relativamente à sua competência para conhecer de um ato muito concreto: o «envio» realizado pela Sportradar.

44.      Importa, antes de mais, recordar que a Court of Appeal não tem qualquer dúvida sobre a sua competência para conhecer do pedido apresentado pela Football Dataco e o., no sentido de declarar responsabilidade solidária da Sportradar e dos seus clientes residentes no Reino Unido. Por outro lado, tem dúvidas quanto à sua competência para decidir o pedido apresentado pela Football Dataco e o., de forma individual, contra a Sportradar.

45.      No meu entender, a sucessão de condutas que, a partir da Sportradar, termina com a colocação à disposição de particulares, através das sociedades de apostas que celebraram um contrato com a referida sociedade, dos dados da Football Live, constitui claramente um caso típico da «reutilização».

46.      Não obstante, na medida em que o pedido no processo principal é dirigido unicamente contra a Sportradar, o órgão jurisdicional de reenvio submete‑nos a questão de saber se a conduta isolada desta sociedade, que se inscreve na referida sucessão e, assim enquadrada, se inclui na qualificação jurídica atribuída ao conjunto dessas condutas, tem por si só, à margem desse enquadramento, uma relevância e uma autonomia suficientes para que lhe seja atribuída uma qualificação diferente.

47.      No meu entender, a resposta deve ser claramente negativa. O facto de, em circunstâncias como as que deram origem ao processo principal, a «reutilização» resultar da concorrência de uma série de condutas imputáveis a sujeitos diferentes não implica que cada uma das referidas condutas não mereça, por si só, ser considerada um ato de «reutilização» na aceção e com as consequências da Diretiva 96/9. É evidente que cada uma das referidas condutas só tem sentido enquanto constitutiva desse ato complexo e, por isso, devem fazer parte da qualificação que corresponde ao ato em questão.

48.      Consequentemente, e como primeira conclusão, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão no sentido de que o ato de «envio» realizado especificamente pela Sportradar constitui uma reutilização na aceção do artigo 7.°, n.° 2, alínea b), da Diretiva 96/9.

C ―    A localização do ato de «reutilização» da informação obtida de uma base de dados protegida por um direito sui generis

49.      A resposta à segunda das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio levou as partes a optarem por uma das teorias clássicas em matéria de comunicação: por um lado, a denominada «teoria da emissão», nos termos da qual o ato de reutilização se realiza no lugar onde está situado o servidor da Sportradar a partir do qual foi «enviada» a informação solicitada pelos clientes das sociedades de apostas que prestam serviços no mercado britânico. Por outro lado, a denominada «teoria da transmissão ou da receção», nos termos da qual a reutilização teve lugar no Reino Unido, onde os clientes britânicos das sociedades de apostas ligadas à Sportradar receberam, mediante pedido prévio, nos seus computadores, a informação transmitida pela Sportradar de fora do Reino Unido.

50.      Esta abordagem do problema revela que, no contexto da Internet, o uso de construções conceptuais idealizadas no contexto da radiodifusão é de utilidade muito duvidosa. Um contexto em que a legislação da União invocada pelas partes ou não adota com clareza uma de duas alternativas possíveis (12) ou, quando o faz, é pelo facto de a sua finalidade consistir, precisamente, na garantia de uma atividade identificada com alguma delas (13).

51.      No presente caso adequa‑se mais, como vem fazendo o Tribunal de Justiça, uma construção própria, adaptada à especificidade da comunicação através da Internet e, em particular, à da legislação da União aplicável ao caso e por cuja interpretação autêntica se interessou o órgão jurisdicional de reenvio.

52.      A primeira exigência coloca‑nos no terreno da comunicação na Internet, fenómeno sobre cujas peculiaridades no contexto da difusão da informação tive ocasião de me pronunciar no âmbito de outro reenvio prejudicial (14).

53.      A segunda exigência leva‑nos a uma norma, a Diretiva 96/9, cuja própria razão de existir responde à constatação da insuficiente proteção dos direitos sobre as bases de dados nos Estados‑Membros, como se afirma expressamente no seu primeiro considerando, de forma que o propósito do legislador da União é apenas fornecer essa proteção mediante o reconhecimento e a garantia dos denominados direitos sui generis do autor de uma base de dados face a condutas tipificadas na própria diretiva como casos de «extração» e de «reutilização», precisamente os que aqui interessam.

54.      Como já referi, a mesma Diretiva 96/9, utiliza o conceito da «reutilização» como uma categoria própria e definida em termos que, no meu entender, se adequam perfeitamente às necessidades da construção teórica exigida pela especificidade da comunicação de dados pela Internet.

55.      No contexto da Internet os conceitos de «emissão» e de «receção» adquirem uma importância muito relativa como critério para determinar a «localização» dos pontos entre os quais se estabelece um ato de comunicação. A configuração reticular de um meio de comunicação de dimensões globais, em permanente processo de renovação do seu conteúdo e caracterizado ainda hoje por um grau muito notável de resistência à disciplina de um quadro normativo que, para ser eficaz e capaz, só pode emanar da vontade do conjunto da comunidade internacional de Estados, torna inúteis as categorias baseadas em conceitos que, como o tempo e o espaço, adquirem um sentido muito equívoco no mundo da realidade virtual.

56.      O Tribunal de Justiça encontrou um critério adequado na ideia de destino da informação que circula pela Internet. Usou‑o tanto no processo L’Oréal (15) como no Pammer e Hotel Alpenhof (16).

57.      No meu entender, em conformidade com esse critério está também o previsto no próprio artigo 7.°, n.° 2, alínea b), da Diretiva 96/9, que define a «reutilização» como «qualquer forma de pôr à disposição do público» o conteúdo de uma base de dados protegida.

58.      Na minha opinião esta expressão, «colocação à disposição do público», deve constituir a chave conceptual imprescindível para dar uma resposta à questão submetida pelo tribunal britânico. Nesse entendimento, o conceito de «reutilização» incluiria o conjunto dos atos que neste caso, se iniciam com o «envio» a partir do servidor da Sportradar para os das sociedades de apostas e termina com o acesso dos clientes dessas sociedades aos dados enviados.

59.      Finalmente, na medida em que no contexto da Internet a «reutilização» não costuma ser um ato singular, mas sim a sucessão ordenada de um conjunto de atos que, tendo por objetivo a «colocação à disposição» de determinados dados através de um meio de comunicação de estrutura reticular e multipolar, se verificam nesse âmbito como resultado das condutas de indivíduos localizados em diferentes territórios, há que reconhecer que o «lugar» da «reutilização» é o de cada um dos atos necessários para produzir o resultado em que consiste a reutilização, ou seja, a «colocação à disposição» dos dados protegidos.

60.      Por conseguinte, como segunda conclusão, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão no sentido de que o ato de reutilização examinado se produziu, devido a uma sequência de condutas verificadas em vários Estados‑Membros, devendo considerar‑se que a reutilização ocorreu em todos e em cada um deles.

VII ― Conclusão

61.      Por consequência, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas nos seguintes termos:

«1)      Quando uma pessoa transfere dados a partir de uma base de dados protegida por um direito sui generis ao abrigo da Diretiva 96/9/CE para o seu servidor web situado num Estado‑Membro A e, em resposta a um pedido de um utilizador situado num Estado‑Membro B, o servidor envia esses dados para o computador do utilizador a fim de serem guardados na memória desse computador e exibidos no respetivo ecrã, o ato de envio da informação constitui um ato de ‘reutilização’ por essa pessoa.

2)      O ato de reutilização realizado por essa pessoa tem lugar tanto no Estado‑Membro A como no Estado‑Membro B.»


1 ―      Língua original: espanhol.


2 ―      JO L 77, p. 20.


3 ―      Acórdão de 12 julho de 2011 (C‑324/09, Colet., p. I‑6011).


4 ―      Acórdão de 7 de dezembro de 2010 (C‑585/08 e C‑144/09, Colet., p. I‑12527).


5 ―      Acórdão de 25 de outubro de 2011 (C‑509/09 e C‑161/10, Colet., p. I‑10269).


6 ―      Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO L 167, p. 10).


7 ―      A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) adotou em Genebra, em 20 de dezembro de 1996, o Tratado da OMPI sobre direito de autor.


8 ―      Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas (Ato de Paris de 24 de julho 1971).


9 ―      Diretiva 89/552/CEE do Conselho, de 3 de outubro de 1989, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas ao exercício de atividades de radiodifusão televisiva (JO L 298, p. 23).


10 ―      Diretiva 93/83/CEE do Conselho, de 27 de setembro de 1993, relativa à coordenação de determinadas disposições em matéria de direito de autor e direitos conexos aplicáveis à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo (JO L 248, p. 15).


11―      Acórdãos de 9 de novembro de 2004, The British Horseracing Board Ltd e o. (C‑203/02, Colet., p. I‑10415); de 9 de outubro de 2008, Directmedia Publishing GmbH (C‑304/07, Colet., p. I‑7565); e de 5 de março de 2009, Apis‑Hristovich EOOD (C‑545/07, Colet., p. I‑1627).


12―      É o caso da Diretiva 2001/29, já referida, em que tanto a Football Dataco e o., como a Sportradar creem encontrar fundamento para a defesa das suas respetivas posições.


13―      Tal como na Diretiva 89/552, também já referida, que só assume a teoria da emissão porque o seu objetivo é estabelecer «as disposições mínimas necessárias para garantir a livre difusão das mesmas emissões» (décimo terceiro considerando).


14―      eDate Advertising e o., já referido na nota 5, e conclusões apresentadas em 29 de março de 2011, n.os 42 a 48.


15―      N.os 61 e 62.


16―      N.os 75 e 93.