Language of document : ECLI:EU:C:2013:852

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

19 de dezembro de 2013 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Recurso de anulação — Artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE — Direito de recurso — Legitimidade — Pessoas singulares ou coletivas — Ato que lhes diz individualmente respeito — Ato regulamentar que não necessita de medidas de execução — Decisão que declara um regime de auxílios de Estado incompatível com o mercado comum — Direito a uma proteção jurisdicional efetiva»

No processo C‑274/12 P,

que tem por objeto um recurso de uma decisão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 1 de junho de 2012,

Telefónica SA, com sede em Madrid (Espanha), representada por J. Ruiz Calzado, J. Domínguez Pérez, abogados, e M. Núñez Müller, Rechtsanwalt,

recorrente,

sendo a outra parte no processo:

Comissão Europeia, representada por P. Němečková e C. Urraca Caviedes, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, K. Lenaerts, vice‑presidente, A. Tizzano, R. Silva de Lapuerta, T. von Danwitz, E. Juhász e A. Borg Barthet, presidentes de secção, G. Arestis, E. Levits, A. Arabadjiev, A. Prechal, E. Jarašiūnas e C. Vajda (relator), juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 4 de fevereiro de 2013,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 21 de março de 2013,

profere o presente

Acórdão

1        Com o seu recurso, a Telefónica SA (a seguir «Telefónica») pede a anulação do despacho do Tribunal Geral da União Europeia de 21 de março de 2012, Telefónica/Comissão (T‑228/10, a seguir «despacho recorrido»), que declarou inadmissível o seu recurso de anulação do artigo 1.°, n.° 1, da Decisão 2011/5/CE da Comissão, de 28 de outubro de 2009, relativa à amortização para efeitos fiscais da diferença relativamente ao valor do património (financial goodwill), em caso de aquisição de participações em empresas estrangeiras Processo C 45/07 (ex NN 51/07, ex CP 9/07) aplicada pela Espanha (JO 2011, L 7, p. 48, a seguir «decisão controvertida»).

 Antecedentes do litígio

2        O artigo 12.°, n.° 5, da Lei 43/1995, de 27 de dezembro de 1995, relativa ao imposto sobre o rendimento das sociedades (BOE n.° 310, de 28 de dezembro de 1995, p. 37072), previa que a aquisição de uma participação numa empresa não estabelecida em território espanhol podia, em certas condições, amortizar durante um período de 20 anos o chamado valor do património (financial goodwill) resultante, reduzindo assim a carga fiscal do adquirente (a seguir «regime em causa»).

3        A Comissão Europeia considerou que o regime em causa, que não se aplicava à aquisição de participações em sociedades estabelecidas em Espanha, constituía um auxílio de Estado na aceção do artigo 87.°, n.° 1, CE e deu, assim, início a um procedimento formal de investigação nos termos do artigo 88.°, n.° 2, CE, por decisão de 10 de outubro de 2007, no qual convidava o Reino de Espanha e os beneficiários potenciais deste regime a apresentar as suas observações.

4        No final do procedimento, a Comissão adotou a decisão controvertida.

5        O artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida conclui que o regime em causa foi aplicado em violação do artigo 88.°, n.° 3, CE e declarou‑o incompatível com o mercado comum.

6        A Comissão admitiu, todavia, que, antes do início do procedimento formal de investigação e na sequência das declarações de dois comissários perante o Parlamento Europeu, ofereceu garantias específicas, incondicionais e concordantes, cujo teor podia levar os beneficiários do dito regime a alimentar expetativas justificadas quanto à legalidade deste regime, no sentido de que, devido à sua falta de seletividade, o mesmo não era abrangido pelo âmbito de aplicação das normas relativas aos auxílios de Estado. Consequentemente, considerou que os referidos beneficiários podiam legitimamente pensar que nenhum auxílio seria alvo de recuperação e, assim, decidiu que as vantagens concedidas antes de 21 de dezembro de 2007, data de publicação no Jornal Oficial da União Europeia da decisão da Comissão de dar início a um procedimento formal de investigação, podiam ser mantidas em certas condições.

7        Essa é a razão pela qual o artigo 1.°, n.° 2, da decisão controvertida prevê que o regime em causa pode continuar a ser aplicado, com base no princípio da proteção da confiança legítima, às aquisições de participações realizadas antes da referida data.

8        Por força do artigo 4.°, n.° 1, da decisão controvertida, o Reino de Espanha deve recuperar o auxílio incompatível, previsto no artigo 1.°, n.° 1, da mesma, junto dos beneficiários cujos direitos em empresas estrangeiras, adquiridos no quadro de aquisições intracomunitárias, não preencham os requisitos descritos no artigo 1.°, n.° 2, da referida decisão.

9        O artigo 5.° da decisão controvertida prevê que a recuperação dos auxílios em questão é imediata e efetiva e que o Reino de Espanha deve assegurar o cumprimento dessa decisão no prazo de quatro meses a contar da sua notificação.

10      Por último, o artigo 6.° da decisão controvertida dispõe que o Reino de Espanha deve comunicar à Comissão uma série de informações e mantê‑la informada da evolução das medidas nacionais adotadas para dar cumprimento à referida decisão. Nomeadamente, nos termos do artigo 6.°, n.° 1, alínea a), da mesma, o Reino de Espanha deve comunicar à Comissão a lista dos beneficiários que receberam auxílio por força do regime em causa. É pacífico que a Telefónica figurava nessa lista.

11      Em 2005 e 2006, ao abrigo do regime em causa, a Telefónica adquiriu duas participações, respetivamente, numa sociedade estabelecida na República Checa e numa sociedade com sede no Reino Unido, tendo as aquisições ocorrido, em ambos os casos, antes da data prevista no artigo 1.°, n.° 2, da decisão controvertida.

 Tramitação do processo no Tribunal Geral e despacho recorrido

12      No seu recurso da decisão controvertida, interposto em 21 de março de 2010, a Telefónica pediu a anulação do artigo 1.°, n.° 1, desta decisão.

13      Por requerimento separado apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 30 de setembro de 2010, a Comissão suscitou uma exceção de inadmissibilidade nos termos do artigo 114.°, n.º 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral. A Comissão alegou que o recurso era inadmissível porquanto a Telefónica não tinha demonstrado ter interesse em agir nem que a decisão controvertida lhe dizia individualmente respeito. A Telefónica apresentou observações escritas a respeito desta exceção de inadmissibilidade.

14      Com o despacho recorrido, o Tribunal Geral declarou a inadmissibilidade do recurso da Telefónica com base no segundo dos dois fundamentos de inadmissibilidade suscitados pela Comissão. O Tribunal Geral declarou, no n.° 41 do despacho recorrido, que a decisão controvertida não dizia individualmente respeito à Telefónica na aceção do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE e, no n.° 45 do mesmo despacho, que esta decisão não podia ser qualificada de ato regulamentar que não necessita de medidas de execução na aceção do último membro de frase desta disposição. Consequentemente, o Tribunal Geral julgou inadmissível o recurso da Telefónica sem examinar o primeiro fundamento de inadmissibilidade, relativo ao interesse em agir.

 Pedidos das partes

15      A Telefónica pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

–        anular o despacho recorrido;

–        julgar admissível o recurso de anulação no processo T‑228/10 e remeter o processo ao Tribunal Geral para que se pronuncie sobre o mérito do litígio; e

–        condenar a Comissão no pagamento das despesas «dos procedimentos relativos à admissibilidade nas duas instâncias».

16      A Comissão conclui pedindo que seja negado provimento ao presente recurso e a condenação da Telefónica nas despesas.

 Quanto ao presente recurso

17      A Telefónica invoca três fundamentos de recurso. Em primeiro lugar, alega que o Tribunal Geral violou o seu direito a uma proteção jurisdicional efetiva. Em segundo lugar, alega que o Tribunal Geral interpretou erradamente o artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, por considerar que a decisão controvertida não lhe dizia individualmente respeito. Em terceiro lugar, em seu entender, o Tribunal Geral interpretou erradamente o conceito de ato que não necessita de medidas de execução na aceção do último membro de frase desta mesma disposição.

18      A questão de saber se o direito da Telefónica a uma proteção jurisdicional efetiva é posto em causa pelo despacho recorrido só se coloca se o Tribunal Geral tiver julgado o recurso da Telefónica inadmissível com base numa interpretação correta do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE. Consequentemente, só se deve examinar o primeiro fundamento invocado pela Telefónica em apoio do seu recurso após o exame dos outros dois fundamentos de recurso, relativos a erros de direito cometidos pelo Tribunal Geral na interpretação da referida disposição.

19      Além disso, importa recordar que o artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE prevê dois casos em que a qualidade para agir é reconhecida a uma pessoa singular ou coletiva de modo a que esta possa interpor recurso de um ato de que não é destinatária. Por um lado, tal recurso pode ser interposto desde que esse ato lhe diga direta e individualmente respeito. Por outro lado, essa pessoa pode interpor recurso de um ato regulamentar que não necessite de medidas de execução se o mesmo lhe disser diretamente respeito.

20      Caso a decisão controvertida deva ser considerada um ato regulamentar que não necessita de medidas de execução, como alega a Telefónica no âmbito do seu terceiro fundamento, esta última não teria de demonstrar, como alega no âmbito do seu segundo fundamento, que esta decisão lhe diz individualmente respeito. Importa, pois, examinar o terceiro fundamento em primeiro lugar.

 Quanto ao terceiro fundamento

 Argumentos das partes

21      A Telefónica alega que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao declarar que as decisões em matéria de auxílios de Estado, como a decisão controvertida, necessitam de medidas de execução na aceção do último membro de frase do quarto parágrafo do artigo 263.° TFUE.

22      A Telefónica refere que a decisão que declara um regime de auxílios incompatível com o mercado comum tem efeito direto e não necessita de medidas de execução na medida em que torna imediatamente ilegais os auxílios concedidos e, normalmente, implica a obrigação de os Estados‑Membros os recuperarem. As medidas adotadas depois dessa decisão, que podem ser necessárias com vista a pôr em prática a obrigação de recuperação dos auxílios junto de certos beneficiários, como as previstas no artigo 6.°, n.° 2, da decisão controvertida e tidas em conta pelo Tribunal Geral no n.° 43 do despacho recorrido, apenas dizem respeito a uma obrigação de caráter acessório que não pode pôr em causa o efeito direto dos artigos do dispositivo desta decisão. Segundo a Telefónica, caso se admitisse, como o Tribunal Geral, que qualquer medida que um Estado‑Membro deva adotar com vista a pôr em prática um ato da União, por mais ínfima que seja, constitui uma medida de execução, na aceção do último membro de frase do quarto parágrafo do artigo 263.° TFUE, um grande número de atos regulamentares seria automaticamente excluído do âmbito de aplicação desta disposição, e isso contrariamente ao objetivo prosseguido pelo legislador da União, que visa facilitar o acesso aos tribunais aos particulares cujos interesses são afetados por atos de caráter não legislativo adotados pelas suas instituições.

23      Segundo a Comissão, o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito ao concluir que a decisão controvertida não pode ser qualificada de ato que não necessita de medidas de execução.

24      Não estando o conceito de medidas de execução definido nos Tratados, pareceria lógico interpretá‑lo literalmente, ou seja, considerar que este se refere a qualquer ato jurídico necessário à execução de outro ato jurídico. O significado literal deste conceito é equivalente ao tido em conta pelo advogado‑geral F. G. Jacobs no n.° 43 das suas conclusões no processo que deu origem ao acórdão de 25 de julho de 2002, Unión de Pequeños Agricultores/Conselho (C‑50/00 P, Colet., p. I‑6677), com vista a sinalizar uma eventual lacuna no sistema jurisdicional da União. Segundo a Comissão, resulta dos documentos relativos aos trabalhos da Convenção Europeia encarregada da elaboração do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (JO 2004, C 310, p. 1) que, no momento da elaboração da disposição que posteriormente deu origem ao último membro de frase do quarto parágrafo do artigo 263.° TFUE, a intenção do poder constituinte era colmatar essa possível lacuna no sistema jurisdicional da União Europeia. A Comissão considera que a atenuação das exigências relativas à qualidade para agir respondia assim ao desejo de fazer os particulares beneficiarem de uma via direta de recurso contra os atos de alcance geral, mas limitando‑a aos casos em que seria impossível a esses particulares contestar a validade de um ato de execução.

25      A Comissão acrescenta que, quando um ato regulamentar requer uma medida de execução, quer se trate de uma medida nacional ou de uma medida tomada ao nível da União, a proteção jurisdicional dos particulares é assegurada pela sua faculdade de contestar a legalidade da medida de execução suscitando, se for esse o caso, uma exceção de ilegalidade do ato regulamentar de base que constitui o fundamento dessa medida. Portanto, não é necessário que tenham qualidade para agir para atacar diretamente o ato de base.

26      No tocante à decisão controvertida, não há nenhuma dúvida de que uma decisão que obriga um Estado‑Membro a recuperar os auxílios declarados incompatíveis com o mercado comum requer medidas de execução. Segundo a Comissão, tal decisão tem como único destinatário o Estado‑Membro em causa e não pode originar uma obrigação de pagamento direto para os beneficiários. A Comissão recorda a este respeito que, em conformidade com o artigo 288.°, quarto parágrafo, segunda frase, TFUE, quando uma decisão designa destinatários, só é obrigatória para estes. A Comissão considera que, para uma obrigação se aplicar aos beneficiários, é necessário que o Estado‑Membro adote medidas de execução que consistam em exigir aos mesmos a restituição dos auxílios indevidamente recebidos. Além disso, além da obrigação de recuperação, a decisão controvertida impõe ao Reino de Espanha outras medidas de execução, como a obrigação de pôr fim ao regime em causa.

 Apreciação do Tribunal

27      Como salientou a advogada‑geral nos n.os 40 e 41 das suas conclusões, importa interpretar o conceito de «atos regulamentares […] que não necessitam de medidas de execução», na aceção do último membro de frase do quarto parágrafo do artigo 263.° TFUE, à luz do objetivo desta disposição que consiste, como resulta da sua origem, em evitar que um particular seja obrigado a violar as regras de direito para poder aceder ao juiz. Ora, quando um ato regulamentar produz diretamente efeitos sobre a situação jurídica de uma pessoa singular ou coletiva sem exigir medidas de execução, esta última arriscar‑se‑ia a ficar desprovida de proteção jurisdicional efetiva caso não dispusesse de uma via direta de recurso para o juiz da União para pôr em causa a legalidade desse ato regulamentar. Com efeito, perante a falta de medidas de execução, uma pessoa singular ou coletiva, ainda que diretamente afetada pelo ato em causa, só estaria em condições de obter uma proteção jurisdicional desse ato após ter violado as disposições do mesmo, valendo‑se da ilegalidade das mesmas no âmbito dos procedimentos contra si iniciados nos órgãos jurisdicionais nacionais.

28      Importa precisar a este respeito, em primeiro lugar, que, quando um ato regulamentar necessita de medidas de execução, a fiscalização jurisdicional da observância do ordenamento jurídico da União está assegurada independentemente da questão de saber se as referidas medidas emanam da União ou dos Estados‑Membros. As pessoas singulares ou coletivas que não possam, em razão das condições de admissibilidade previstas pelo artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, impugnar diretamente, perante o juiz da União, um ato regulamentar da União, estão protegidas da aplicação de tal ato no que lhes diz respeito pela faculdade de impugnar as medidas de execução de que o referido ato necessita.

29      Quando a execução desses atos compete às instituições, aos órgãos ou aos organismos da União, as pessoas singulares ou coletivas podem interpor recurso direto, perante os órgãos jurisdicionais da União, dos atos de aplicação nas condições referidas no artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE e invocar, por força do artigo 277.° TFUE, em apoio desse recurso, a ilegalidade do ato de base em causa. Quando a execução incumbe aos Estados‑Membros, essas pessoas podem alegar a invalidade do ato de base em causa nos órgãos jurisdicionais nacionais e levá‑los, por força do artigo 267.° TFUE, a interrogar o Tribunal de Justiça pela via de questões prejudiciais (acórdão de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, C‑582/11 P, n.° 93).

30      Em segundo lugar, como salientou a advogada‑geral no n.° 48 das suas conclusões, para apreciar se um ato regulamentar necessita de medidas de execução, há que considerar a posição da pessoa que invoca o direito de recurso nos termos do último membro de frase do quarto parágrafo do artigo 263.° TFUE. Não é, portanto, pertinente saber se o ato em causa necessita de medidas de execução em relação a terceiros.

31      Em terceiro lugar, para verificar se o ato recorrido necessita de medidas de execução, importa fazer referência exclusivamente ao objeto do recurso, sendo certo que, caso um recorrente peça apenas a anulação parcial de um ato, só as medidas de execução de que essa parte do ato eventualmente necessita devem, se for o caso, ser tidas em consideração.

32      É à luz destes princípios que há que analisar o terceiro fundamento invocado pela Telefónica em apoio do seu recurso.

33      Como salientou a advogada‑geral no n.° 33 das suas conclusões, o recurso da Telefónica tinha como objeto único contestar a incompatibilidade parcial do regime em causa com o mercado comum nos termos do artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida, e não criticava a recuperação dos auxílios, ordenada no artigo 4.°, n.° 1, da mesma decisão, nem as outras injunções dirigidas ao Reino de Espanha no artigo 6.°, n.° 2, desta decisão.

34      Em primeiro lugar, como salientou a advogada‑geral no n.° 48 das suas conclusões, a declaração de incompatibilidade parcial do regime em causa com o mercado comum, enunciada no artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida, dirige‑se apenas ao Estado‑Membro destinatário da decisão, no caso em apreço, o Reino de Espanha, dado que esta decisão não é obrigatória relativamente a terceiros, em conformidade com o artigo 288.°, quarto parágrafo TFUE.

35      Em segundo lugar, o artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida tem exclusivamente por objeto a declaração de incompatibilidade do regime em causa com o mercado comum. Não define as consequências específicas que esta declaração tem para cada um dos contribuintes, consequências estas que se materializarão em atos administrativos como um aviso de cobrança, o qual constitui, enquanto tal, uma medida de execução que o artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida «necessita» na aceção do último membro de frase do quarto parágrafo do artigo 263.° TFUE.

36      Consequentemente, o Tribunal Geral declarou acertadamente, no n.° 44 do despacho recorrido, que as medidas que visam pôr em prática a decisão de incompatibilidade, entre as quais a que consiste designadamente em indeferir um pedido de benefício da vantagem fiscal em causa, indeferimento que a recorrente também pode impugnar perante o juiz nacional, são medidas de execução da decisão controvertida.

37      Tal constatação é, por si só, suscetível de fundamentar a rejeição da argumentação da Telefónica no Tribunal Geral segundo a qual a decisão controvertida não necessita de medidas de execução.

38      Consequentemente, o Tribunal Geral declarou acertadamente no n.° 45 do despacho recorrido que, independentemente da questão de saber se a decisão controvertida é um ato regulamentar, os requisitos de admissibilidade previstos no último membro de frase do quarto parágrafo do artigo 263.° TFUE não estavam preenchidos no caso em apreço.

39      À luz do conjunto destas considerações, importa julgar improcedente o terceiro fundamento de recurso invocado pela Telefónica.

 Quanto ao segundo fundamento

 Argumentos das partes

40      Segundo a Telefónica, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao proceder a uma interpretação demasiado restritiva do conceito de beneficiário efetivo de um regime de auxílios objeto de uma decisão da Comissão, como resulta, designadamente, do acórdão de 9 de junho de 2011, Comitato «Venezia vuole vivere» e o./Comissão (C‑71/09 P, C‑73/09 P e C‑76/09 P, Colet., p. I‑4727). A Telefónica alega que, contrariamente ao que decidiu o Tribunal Geral nos n.os 24 e 25 do despacho recorrido, o ponto importante não é que uma parte que tenha efetivamente beneficiado do auxílio em causa esteja entre aqueles que devem com certeza reembolsar o mesmo, bastando que exista um risco de os seus interesses serem gravemente afetados, como seria o caso se fosse levada a reembolsar o referido auxílio.

41      Ora, a Telefónica considera estar duplamente exposta ao risco de obrigação de reembolso dos auxílios recebidos, não obstante o reconhecimento, por parte da Comissão, da confiança legítima a seu respeito. Por um lado, a exceção à obrigação de recuperação prevista no artigo 1.°, n.os 2 e 3, da decisão controvertida é atualmente objeto de um recurso de anulação no Tribunal Geral no processo Deutsche Telekom/Comissão (T‑207/10), pendente naquele Tribunal. Caso seja dado provimento a este recurso, a Telefónica pode ser obrigada a reembolsar os auxílios que recebeu. Por outro lado, a constatação, na mesma decisão, de que as regras respeitantes à amortização da diferença relativamente ao valor do património (financial goodwill) constituíam um auxílio ilegal, permitiria a terceiros, concorrentes dos beneficiários desse auxílio, intentar ações de indemnização dos prejuízos sofridos a nível nacional.

42      A Comissão considera, em contrapartida, que a jurisprudência impõe que estejam preenchidos dois requisitos para que circunstâncias como as que estão em apreço digam diretamente respeito a um recorrente. Em primeiro lugar, o recorrente deve ter a qualidade de beneficiário efetivo de um auxílio individual concedido a título de um regime de auxílios. Em segundo lugar, deve estar obrigado a restituir o auxílio em causa ou, pelo menos, estar exposto ao risco de o dever restituir. Em contrapartida, contrariamente às afirmações da Telefónica, não é suficiente que o recorrente corra o risco de os seus interesses serem, de forma geral, gravemente lesados. O Tribunal Geral afastou a tese segundo a qual um recorrente é individualmente afetado pelo simples facto de ser beneficiário de um regime de auxílios, nos acórdãos de 2 de fevereiro de 1988, Kwekerij van der Kooy e o./Comissão (67/85, 68/85 e 70/85, Colet., p. 219, n.° 15), e de 7 de dezembro de 1993, Federmineraria e o./Comissão (C‑6/92, Colet., p. I‑6357, n.os 11 a 16).

43      No caso em apreço, não existe, em todo o caso, nenhum risco de a Telefónica ter de restituir os auxílios de que beneficiou, nem mesmo que veja os seus interesses gravemente lesados, uma vez que era evidente, a partir da adoção da decisão controvertida, que beneficiava do princípio da proteção da confiança legítima.

 Apreciação do Tribunal

44      Importa recordar que a Telefónica não é a destinatária da decisão controvertida e que esta necessita, conforme decorre dos n.os 34 a 36 do presente acórdão, de medidas de execução.

45      Ao abrigo do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, uma pessoa singular ou coletiva só pode interpor recurso de um ato de que não é destinatária e que necessita de medidas de execução se esse ato lhe disser direta e individualmente respeito.

46      Quanto ao segundo destes requisitos, ou seja, o facto de ser afetado individualmente pelo ato em causa, resulta de jurisprudência constante que os sujeitos, que não sejam os destinatários de uma decisão, só preenchem o requisito relativo à afetação individual se o ato impugnado os afetar devido a certas qualidades que lhes são próprias ou a uma situação de facto que os caracteriza em relação a qualquer outra pessoa e, assim, os individualiza de maneira análoga à do destinatário (acórdãos de 15 de julho de 1963, Plaumann/Comissão, 25/62, Colet. 1962‑1964, pp. 279, 284, Comitato «Venezia vuole vivere» e o./Comissão, já referido, n.° 52; e Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, já referido, n.° 72).

47      Como salientou o Tribunal Geral no n.° 28 do despacho recorrido, decorre igualmente de jurisprudência constante que a possibilidade de determinar, com maior ou menor precisão, o número ou mesmo a identidade dos sujeitos de direito a quem se aplica numa medida não implica de modo nenhum que se deva considerar que essa medida lhes diz individualmente respeito, desde que se verifique que essa aplicação se faz devido a uma situação objetiva de direito ou de facto definida pelo ato em causa (v., neste sentido, acórdão de 22 de novembro de 2001, Antillean Rice Mills/Conselho, C‑451/98, Colet., p. I‑8949, n.° 52).

48      Importa constatar que é esse o caso no que respeita ao artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida, cuja anulação a Telefónica requer e à luz do qual há que, consequentemente, examinar a qualidade para agir desta última. Este artigo 1.°, n.° 1, aplica‑se a situações determinadas objetivamente e produz efeitos jurídicos em relação a categorias de pessoas consideradas de modo geral e abstrato. Consequentemente, a Telefónica não pode pretender ser individualizada por esta disposição.

49      O único efeito do artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida é impedir que, no futuro, qualquer pessoa beneficie do regime em causa. Ora, segundo jurisprudência constante, uma empresa não pode, em princípio, impugnar uma decisão da Comissão que proíbe um regime de auxílios se apenas é afetada por essa decisão em virtude de pertencer ao setor em questão e da sua qualidade de potencial beneficiário do referido regime (v. acórdão de 19 de outubro de 2000, Itália e Sardegna Lines/Comissão, C‑15/98 e C‑105/99, Colet., p. I‑8855, n.° 33 e jurisprudência referida).

50      Daqui resulta que o Tribunal Geral declarou acertadamente, no n.° 41 do despacho recorrido, que a Telefónica não é individualmente afetada pelo artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida na aceção do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

51      Resulta do exposto que o segundo fundamento de recurso invocado pela Telefónica deve igualmente ser julgado improcedente.

 Quanto ao primeiro fundamento

 Argumentos das partes

52      A Telefónica alega que, ao julgar o seu recurso inadmissível, o Tribunal Geral violou o seu direito a uma proteção jurisdicional efetiva decorrente dos artigos 6.° e 13.° da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950, bem como do artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

53      A Telefónica alega nomeadamente que lhe é impossível obter uma fiscalização jurisdicional, por via de exceção, do artigo 1.°, n.° 1, da decisão controvertida, provocando um litígio com a Administração Fiscal e invocando o regime em causa, não obstante o seu desaparecimento do quadro jurídico espanhol em vigor, de modo a conseguir que o órgão jurisdicional nacional competente submeta ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial para apreciação da validade ao abrigo do artigo 267.°, primeiro parágrafo, alínea b), TFUE. Com efeito, tal implicaria que a Telefónica decidisse cometer uma violação do direito, ou seja, que agisse deliberadamente de uma maneira contrária à legislação em vigor. Ora, ao violar voluntariamente o direito, iria não apenas contra os códigos de conduta que assinou mas expor‑se‑ia a um risco certo de a Administração Fiscal espanhola decidir exercer o seu poder sancionatório com base numa série de disposições da legislação fiscal aplicável.

54      A Comissão recorda que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o Tratado FUE, através dos seus artigos 263.° TFUE e 277.° TFUE, por um lado, e através do seu artigo 267.° TFUE, por outro, estabeleceu um sistema completo de vias de recurso e de procedimentos destinado a garantir a fiscalização da legalidade dos atos das instituições, confiando‑o ao juiz da União.

55      A tese da Telefónica segundo a qual o Tribunal Geral devia ter examinado as condições nas quais teria efetivamente sido possível recorrer à via jurisdicional nacional deve além disso ser afastada. Não é admissível uma interpretação do regime de vias de recurso segundo a qual um recurso direto de anulação perante o juiz da União seria possível se se pudesse demonstrar, após exame concreto das regras processuais nacionais por este último, que as mesmas não autorizam o particular a interpor um recurso que lhe permita pôr em causa a validade do ato da União impugnado. Com efeito, esse regime exigiria em cada caso concreto que o juiz da União analisasse e interpretasse o direito processual nacional, o que ultrapassaria a sua competência no âmbito da fiscalização da legalidade dos atos das instituições da União. Em todo o caso, seria impossível para um particular interpor um recurso de anulação perante o juiz da União nos casos em que as regras processuais nacionais só o autorizassem a pôr em causa a validade do ato da União impugnado depois de o ter violado.

 Apreciação do Tribunal

56      A título preliminar, há que recordar que a União é uma União de Direito cujas instituições estão sujeitas à fiscalização da conformidade dos seus atos, nomeadamente, com os Tratados, com os princípios gerais do direito e com os direitos fundamentais (acórdão Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, já referido, n.° 91).

57      A fiscalização jurisdicional do respeito pela ordem jurídica da União está assegurada, como resulta do artigo 19.°, n.° 1, TUE, pelo Tribunal de Justiça e pelos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros. Para este efeito, o Tratado FUE, através dos seus artigos 263.° TFUE e 277.° TFUE, por um lado, e através do seu artigo 267.° TFUE, por outro, estabeleceu um sistema completo de vias de recurso e de procedimentos destinado a garantir a fiscalização da legalidade dos atos da União, confiando‑a ao juiz da União (acórdão Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, já referido, n.os 90 e 92).

58      Conforme resulta dos n.os 34 a 36 do presente acórdão, relativamente à Telefónica, a decisão controvertida necessita de medidas de execução, no Estado‑Membro em causa.

59      Consequentemente, mesmo que a Telefónica não possa, em razão das condições de admissibilidade referidas no artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, impugnar diretamente a decisão controvertida perante o juiz da União, pode invocar a invalidade dessa decisão perante os órgãos jurisdicionais nacionais e levá‑los a submeter, nos termos do artigo 267.° TFUE, questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça, nomeadamente impugnando perante os referidos órgãos jurisdicionais o ato administrativo que lhe recusa o benefício de uma amortização resultante do regime em causa.

60      Daqui resulta que o primeiro fundamento de recurso invocado pela Telefónica deve ser julgado improcedente.

61      Uma vez que nenhum dos três fundamentos invocados pela Telefónica em apoio do seu recurso pode ser acolhido, deve ser negado provimento ao recurso na sua totalidade.

 Quanto às despesas

62      Por força do disposto no artigo 184.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, se o recurso da decisão do Tribunal Geral for julgado improcedente, o Tribunal de Justiça decide sobre as despesas. Nos termos do artigo 138.°, n.° 1, do mesmo regulamento, aplicável aos recursos de decisões do Tribunal Geral por força do artigo 184.°, n.º 1, desse regulamento, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

63      Tendo a Comissão pedido a condenação da Telefónica e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Telefónica SA é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: espanhol.