Language of document : ECLI:EU:C:2001:447

CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL

CHRISTINE STIX-HACKL

apresentadas em 13 de Setembro de 2001 (1)

Processo C-60/00

Mary Carpenter

contra

Secretary of State for the Home Department

[pedido de decisão prejudicial

apresentado pelo Immigration Appeal Tribunal (Reino Unido)]

«Livre prestação de serviços - Direito de residência do cidadão de um Estado terceiro cônjuge dum cidadão da União»

I - Introdução

1.
    O Immigration Appeal Tribunal apresentou ao Tribunal de Justiça a questão de saber se um cidadão de um país terceiro, casado com um cidadão da União, pode invocar o artigo 49.° do Tratado CE ou a Directiva 73/148/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1973, relativa à supressão das restrições à deslocação e à residência de cidadãos dos Estados-Membros no interior da Comunidade em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços (a seguir «Directiva 73/148») como fonte do direito de residência no país do seu cônjuge. Trata-se do caso de uma cidadã filipina casada com um cidadão do Reino Unido.

II - Factos e processo principal

2.
    Mary Carpenter, de nacionalidade filipina, obteve, em 1994, autorização para entrar no Reino Unido como visitante («leave to enter as a visitor») por um período de seis meses. Ultrapassou a duração dessa autorização e casou, em Maio de 1996, com o Sr. Peter Carpenter, um cidadão do Reino Unido, com quem vivia desde Outubro de 1995. O Sr. Carpenter tem dois filhos de um primeiro casamento, que foi dissolvido em 1996. A Sr.a Carpenter ocupa-se agora dessas crianças.

3.
    O Sr. Carpenter explora uma empresa, da qual é o único proprietário, que vende publicidade em revistas e que oferece aos respectivos editores diversos serviços em matéria de administração e de publicação de anúncios. A empresa tem sede no Reino Unido, onde estão também estabelecidos alguns dos seus clientes. Uma parte significativa da actividade da empresa é, no entanto, realizada com clientes cuja sede se situa noutros Estados-Membros. O Sr. Carpenter participa, além disso, em conferências noutros Estados-Membros devido a necessidades profissionais. A empresa, cujo sucesso depende directamente da intervenção pessoal do Sr. Carpenter, emprega quatro trabalhadores a tempo inteiro. De 1996 a 1998, o volume de negócios da empresa mais do que duplicou, resultado este que o Sr. Carpenter atribui à sua mulher, que o auxiliou ocupando-se dos seus filhos.

4.
    Em 15 de Julho de 1996, a Sr.a Carpenter pediu ao Secretary of State autorização de residência enquanto cônjuge de um cidadão do Reino Unido («leave to remain as a spouse of a UK national»). Este pedido foi indeferido em 21 de Julho de 1997. Conjuntamente com este indeferimento o Secretary of State proferiu uma decisão de expulsão da Sr.a Carpenter, qualificada como «decision to make a deportation order».

5.
    A Sr.a Carpenter recorreu desta decisão do Secretary of State para um Adjudicator. Ao recurso foi negado provimento em 10 de Junho de 1998. Recorreu em seguida para o Immigration Appeal Tribunal, que recebeu o recurso, em 30 de Novembro de 1998, e apresentou a seguinte questão ao Tribunal de Justiça:

«Em circunstâncias em que:

a)    um nacional de um Estado-Membro, estabelecido neste mesmo Estado-Membro e que fornece serviços a pessoas noutros Estados-Membros e

b)    que tem um cônjuge que não é nacional de um Estado-Membro,

pode o cônjuge não nacional invocar

i)    o artigo 49.° CE e/ou

ii)    a Directiva 73/148/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1973, relativa à supressão das restrições à deslocação e à permanência dos nacionais dos Estados-Membros na Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços

no sentido de conferir ao cônjuge não nacional o direito de residir com o seu cônjuge no Estado-Membro de origem deste?

A resposta à questão submetida é diferente caso o cônjuge não nacional auxilie indirectamente o nacional do Estado-Membro a efectuar a prestação de serviços noutros Estados-Membros, ocupando-se dos filhos deste?»

III - Enquadramento jurídico

A - O direito comunitário

6.
    O artigo 1.° da Directiva 73/148/CEE dispõe o seguinte:

«Os Estados-Membros suprimirão, nas condições previstas na presente directiva, as restrições à deslocação e à permanência:

a)    Dos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos ou que desejem estabelecer-se em outro Estado-Membro para nele exercerem uma actividade não assalariada, ou nele desejem efectuar uma prestação de serviços;

b)    Dos nacionais dos Estados-Membros que desejem deslocar-se a outro Estado-Membro na qualidade de destinatários de uma prestação de serviços;

c)    Do cônjuge e filhos com menos de 21 anos destes nacionais independentemente da sua nacionalidade;

d)    Dos ascendentes e descendentes destes nacionais e dos respectivos cônjuges que estejam a seu cargo, independentemente da sua nacionalidade.»

7.
    O artigo 3.°, n.° 1, dispõe o seguinte:

«Os Estados-Membros admitem no seu território as pessoas referidas no artigo 1.° mediante a simples apresentação do bilhete de identidade ou passaporte válidos.»

8.
    O artigo 4.°, n.° 2, primeira e segunda alíneas, dispõe:

«Relativamente aos prestadores e aos destinatários de serviços, o direito de permanência corresponde à duração da prestação.

Se esta duração for superior a três meses, o Estado-Membro em que se efectuar a prestação emite a autorização de residência comprovativa desse direito.

Se essa duração for inferior ou igual a três meses, o bilhete de identidade ou o passaporte ao abrigo do qual o interessado entrou no território bastam para a sua estada. O Estado-Membro pode, contudo, exigir que o interessado comunique a sua presença no território.»

9.
    Em virtude do n.° 3 deste mesmo artigo:

«Quando um familiar não for nacional de um Estado-Membro, é-lhe concedido um documento de residência com a mesma validade do concedido ao nacional de que depende.»

B - O direito nacional

10.
    As disposições essenciais em matéria de imigração estão previstas no Immigration Act 1971 (alterado pelo Immigration Act 1988).

A Section 3, n.° 1, do Immigration Act 1971 dispõe que as pessoas sujeitas ao controlo em matéria de imigração só podem entrar no Reino Unido com uma autorização de entrada («leave to enter»). Uma autorização de residência («leave to remain») pode ser atribuída, com duração determinada ou indeterminada.

A Section 3, n.° 5, do Immigration Act 1971 prevê que:

«Quem não seja cidadão britânico é passível de expulsão do Reino Unido:

a)    se, dispondo apenas de autorização temporária de entrada ou de residência no território, não respeitar uma condição fixada na autorização ou permanecer para além do prazo fixado na autorização [...]»

O artigo 7.°, n.° 1, do Immigration Act 1988 dispõe o seguinte:

«As disposições [do Immigration Act 1971] sobre a autorização de entrada ou de residência no Reino Unido não se aplicam a titulares dos direitos de entrada ou de residência decorrentes do direito comunitário ou de disposição contida na Section 2(2) do European Communities Act 1972 (Lei sobre as Comunidades Europeias).»

IV - Alegações das partes

A - As alegações da Sr.a Carpenter

1. Argumentos essenciais

11.
    A Sr.a Carpenter salienta que é mulher do Sr. Carpenter, um cidadão da União. O seu cônjuge exerce, segundo ela, a liberdade de prestar serviços que lhe confere o direito comunitário, deslocando-se a outros Estados-Membros para ali efectuar prestações de serviços. Facilita consideravelmente as viagens do seu marido: acompanha-o ou permanece durante esse tempo no Reino Unido, onde se ocupa dos seus filhos. A sua expulsão para as Filipinas por um período relativamente longo «prejudicaria a prestação de serviços e poderia comprometer a integração do mercado interno». Qualquer restrição substancial à liberdade de prestação de serviços é, segundo a Sr.a Carpenter, contrária aos objectivos do Tratado.

A Sr.a Carpenter tem consciência de que não dispõe por si só, ao abrigo do direito comunitário, de nenhum direito de residência em qualquer Estado-Membro. Os seus direitos a esse respeito decorrem, segundo ela, dos que o seu cônjuge usufrui e, mais precisamente, do seu direito de efectuar as prestações de serviços e de circular livremente no interior da União. Não ignora, além disso, que um Estado-Membro pode estabelecer regras para regulamentar a prestação de serviços dentro do seu território. Esta competência dos Estados-Membros foi reconhecida, segundo a Sr.a Carpenter, pelo acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no caso Alpine Investments (2).

2. Sobre o princípio da proporcionalidade

12.
    A Sr.a Carpenter entende que o princípio da proporcionalidade não foi respeitado quando a decisão da sua expulsão foi tomada unicamente por ter permanecido no Reino Unido para além do período autorizado. Nenhum motivo de ordem pública ou de saúde pública dos previstos no artigo 8.° da Directiva 73/148 foi invocado.

13.
    A Sr.a Carpenter remete, a esse respeito, para o acórdão Singh (3). Segundo ela, o Tribunal de Justiça declarou que o cidadão de um Estado-Membro que haja exercido noutro Estado-Membro os direitos de que é titular ao abrigo do direito comunitário pode regressar ao seu país de origem juntamente com o seu cônjuge nacional de país terceiro. Segundo a Sr.a Carpenter, decorre deste acórdão que os direitos dos cidadãos comunitários conferidos pelo Tratado não podem produzir plenamente os seus efeitos se o cidadão comunitário for impedido de os exercer por obstáculos levantados, no seu país de origem, à entrada e à permanência do seu cônjuge, cidadão de um país terceiro.

Decorre ainda deste acórdão que o cidadão de um país terceiro, cônjuge de um cidadão da União, deve dispor do mesmo direito de entrada e de permanência tanto no Estado de origem do cidadão da União como em qualquer outro Estado-Membro.

14.
    A Sr.a Carpenter sustenta, além disso, que o seu cônjuge deve dispor no Reino Unido dos mesmos direitos comunitários que em qualquer outro Estado-Membro. Se levar consigo a sua mulher para outro Estado-Membro, este deve autorizar a entrada dos dois cônjuges.

15.
    De resto, o acórdão Singh respeita, é certo, à livre circulação dos trabalhadores e à liberdade de estabelecimento, mas os prestadores de serviços não têm menos direitos. O paralelismo destas liberdades fundamentais resulta da jurisprudência do Tribunal.

16.
    A Sr.a Carpenter nega igualmente que a situação de facto no seu caso tenha natureza puramente interna. Como o Sr. Carpenter efectua as prestações de serviços no conjunto do mercado interno, não se pode efectivamente defender que a restrição que lhe é imposta tem alcance puramente interno.

Em apoio deste ponto de vista, invoca o acórdão Moser (4), que, segundo ela, não consente a conclusão de que a situação dela e do Sr. Carpenter possa ser puramente interna. Entende, com efeito, que a sua situação é totalmente diferente da objecto do acórdão Moser, que respeitava a um cidadão de um Estado-Membro que nunca tinha permanecido, trabalhado ou efectuado prestações de serviços noutro Estado-Membro. Neste caso, o Tribunal concluiu que o Tratado não se aplicava a tal situação.

A situação do Sr. Carpenter deve antes ser equiparada à que esteve na origem do processo Stanton (5). A Sr.a Carpenter salienta, a este respeito, que o Tribunal de Justiça concluiu neste acórdão que o Tratado se opõe a que normas nacionais desfavoreçam as pessoas que exercem uma actividade profissional noutro Estado-Membro.

3. Sobre o princípio da não discriminação

17.
    No que respeita ao princípio da não-discriminação, a Sr.a Carpenter defende que, se tivesse, por exemplo, casado com um cidadão francês que - como o Sr. Carpenter - estivesse estabelecido no Reino Unido, de onde tivesse efectuado prestações de serviços noutros Estados-Membros, o direito comunitário se oporia à sua expulsão para as Filipinas. Com efeito, o exercício da liberdade de prestação de serviços por um cidadão francês seria substancialmente afectado se o seu cônjuge, cidadão de um país terceiro, fosse expulso. Ora um cidadão britânico, como o Sr. Carpenter, não deve ficar em situação menos favorável do que um cidadão francês no Reino Unido. De acordo com o que resulta da jurisprudência do Tribunal, uma tal disposição em matéria de imigração é discriminatória e, portanto, contrária ao Tratado.

B - Alegações do Governo do Reino Unido

18.
    O Governo do Reino Unido salienta que as disposições nacionais litigiosas têm por finalidade garantir a aplicação dos procedimentos e regras nacionais em matéria de imigração. O regime jurídico da imigração distingue entre as pessoas que apenas têm direito de entrada limitado e as que têm direito de residir no Reino Unido. Convém, além disso, velar por que essas disposições não sejam contornadas. Assim, os laços matrimoniais não podem ser contraídos com a única finalidade de garantir a residência.

19.
    Em relação à aplicabilidade do artigo 49.° do Tratado CE ou da Directiva 73/148, o Governo do Reino Unido defende que o direito de entrada num Estado-Membro e de aí residir resulta desta directiva e não do direito comunitário primário. A interpretação correcta do artigo 4.°, n.os 2 e 3, da Directiva 73/148 mostra, por exemplo, que um cidadão britânico que pretenda efectuar prestações de serviços noutro Estado-Membro tem o direito de permanecer nesse Estado enquanto durar a prestação. Durante esse período, o seu cônjuge pode igualmente aí permanecer. Estas disposições não conferem, em contrapartida, aos cidadãos britânicos qualquer direito de permanência no Reino Unido (este direito decorre do direito nacional).

20.
    Por outro lado, o Governo do Reino Unido invoca os n.os 17 e 18 do acórdão Singh (6). Deles decorre, em primeiro lugar, que os cidadãos de um Estado-Membro podem entrar noutro Estado-Membro e aí permanecer, para aí exercer uma actividade económica, e, em segundo lugar, que o respectivo cônjuge dispõe desses mesmos direitos.

21.
    Decorre, por outro lado, do n.° 23 do mesmo acórdão que o Tratado não confere «directamente» aos cidadãos de um Estado-Membro o direito de entrada no seu próprio Estado. Tal direito é normalmente inerente à cidadania desse Estado e decorre, por isso, do direito nacional.

22.
    No que respeita à aplicação destes princípios, decorrentes da jurisprudência, à situação da Sr.a Carpenter, o Governo do Reino Unido refere que o Sr. Carpenter não exerceu o seu direito à livre circulação. Acrescenta que nem ele nem a mulher se podem prevalecer do princípio firmado no acórdão Singh, nem da jurisprudência constante do acórdão Asscher (7). Segundo esta jurisprudência, os cidadãos podem invocar o direito comunitário contra o seu próprio Estado, «quando estes, pelo seu comportamento, se encontrem, relativamente ao seu Estado de origem, numa situação equiparável à de todas as outras pessoas que beneficiam dos direitos e liberdades garantidos pelo Tratado».

23.
    A jurisprudência do Tribunal citada pela Sr.a Carpenter respeita, segundo o Governo do Reino Unido, a outras situações e não pode ser transposta para o caso em apreço.

24.
    O Governo do Reino Unido assinala ainda que o direito do Sr. Carpenter a estender as suas actividades profissionais a outros Estados-Membros não lhe confere o direito de ser indirectamente apoiado por um cidadão de um país terceiro que não beneficia do direito de residência no Reino Unido.

25.
    Para concluir, o Governo do Reino Unido defende que uma pessoa na situação da Sr.a Carpenter não pode extrair do direito comunitário qualquer direito de entrada ou de residência. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (de ora em diante a «CEDH») oferece porventura uma solução para o problema.

C - Alegações da Comissão

26.
    Segundo a Comissão, há que fazer uma distinção clara entre a situação da Sr.a Carpenter e a do cidadão de um país terceiro, cônjuge de um cidadão da União que exerceu o seu direito à livre circulação e, por isso, abandonou o país de origem para se estabelecer ou trabalhar noutro Estado-Membro. A Comissão constata, a este respeito, que o Sr. Carpenter nunca procurou estabelecer-se noutro país que não o Reino Unido, onde a sua empresa sempre teve sede e onde vive com a Sr.a Carpenter e os seus filhos.

27.
    Na opinião da Comissão, o direito de entrada e de residência de qualquer cidadão de um país terceiro cônjuge de um cidadão da União, invocado no n.° 23 do acórdão Singh (8), não pode estender-se a uma situação em que o cidadão da União jamais se tenha querido estabelecer com o seu cônjuge noutro Estado-Membro, efectuando apenas prestações de serviços a partir do seu Estado de origem.

28.
    Contrariamente à Sr.a Carpenter, o casal Singh, antes de mudar a sua residência para outro Estado-Membro, vivia legalmente no Reino Unido.

A Comissão não compreende como a situação da Sr.a Carpenter pode ser considerada regida pelo direito comunitário. Inclina-se, pelo contrário, para considerar que deve ser qualificada assunto interno, no sentido do acórdão Morso e Jhanjan (9).

29.
    De resto, a conclusão do Immigration Adjudicator de que o facto de a Sr.a Carpenter se ocupar das crianças ajuda indirectamente o Sr. Carpenter a exercer os seus direitos ao abrigo do artigo 49.° do Tratado CE, isto é, a passar mais tempo ocupado com as suas actividades profissionais, nada tem a ver com saber se o Sr. Carpenter exerceu efectivamente o seu direito à livre circulação, de forma que a mulher beneficie do direito comunitário. O facto de a Sr.a Carpenter se ocupar dos seus filhos constitui simplesmente uma situação de facto possível e assenta numa decisão livremente tomada por ambos os cônjuges.

V - Apreciação

30.
    A questão prejudicial subdivide-se em duas partes: a primeira, referente à questão geral do direito de um nacional de um país terceiro casado com um cidadão comunitário que presta serviços noutros Estados-Membros residir no país de origem deste. A segunda, refere-se a um caso concreto, isto é, à situação em que o cidadão de um país terceiro apoia indirectamente o cidadão da União, com o qual está casado, na prestação de serviços noutros Estados-Membros ao ocupar-se dos filhos deste.

31.
    A questão visa então duas bases jurídicas possíveis: o artigo 49.° do Tratado CE e a Directiva 73/148.

A - Primeira parte da questão prejudicial: direito de residência dos cônjuges nacionais de países terceiros em geral

32.
    Quanto à primeira parte da questão, a análise deverá, portanto, visar os dois fundamentos jurídicos acima referidos.

1. Artigo 49.° do Tratado CE: liberdade de prestação de serviços

33.
    Há, antes de mais, que lembrar o objecto deste processo e do pedido principal: o direito de residência da Sr.a Carpenter, isto é, de uma cidadã de um país terceiro, casada com um cidadão da União.

34.
    No entanto, a Sr.a Carpenter faz várias referências aos direitos do Sr. Carpenter, com o propósito de se determinar se as medidas do Reino Unido, tomadas em relação a si e pondo fim à sua permanência, impedem o Sr. Carpenter de efectuar prestações de serviços noutros Estados-Membros, ou seja, se as mesmas constituem uma restrição à livre prestação de serviços.

35.
    Resulta, no entanto, claramente da formulação do pedido prejudicial que o mesmo visa o artigo 49.° do Tratado CE como possível fundamento jurídico de um eventual direito de residência da Sr.a Carpenter e não do Sr. Carpenter.

36.
    Não há, pois, lugar, num primeiro momento, à abordagem mais precisa, neste contexto, da questão de saber se e em que medida a regulamentação do Reino Unido em matéria de direito de residência restringe os direitos dos quais o Sr. Carpenter usufrui em virtude do direito comunitário e se essas restrições se justificam.

37.
    Há antes que verificar, no caso concreto, se a Sr.a Carpenter pode prevalecer-se do artigo 49.° do Tratado CE como fundamento do seu direito de residência.

38.
    Enquanto cidadã das Filipinas, não pode, por si, invocar as liberdades fundamentais e, logo, o artigo 49.° do Tratado CE. Não podendo a Sr.a Carpenter invocar a liberdade de prestação de serviços, também não pode daí retirar o direito de residência. As disposições pertinentes em matéria de entrada e de residência dos cidadãos de países terceiros encontram-se, pelo contrário, no direito derivado, ao qual voltaremos.

39.
    Acresce que o cidadão de um país terceiro casado com um cidadão da União não pode fundamentar o seu direito de residência no artigo 49.° do Tratado CE.

40.
    Deve, no entanto, observar-se que a livre prestação de serviços tão-pouco pode ser utilizada como norma de referência para a apreciação da conformidade com o direito comunitário da Directiva 73/148 e do direito nacional.

41.
    Com efeito, em virtude do princípio da interpretação conforme ao direito comunitário, são, antes de mais, as disposições do direito derivado que devem ser interpretadas à luz do direito primário; noutras palavras, uma interpretação à luz da livre prestação de serviços, proveniente do direito primário impõe-se no presente processo [ver, a este respeito, o que abaixo é referido sob 2.b)]. Em segundo lugar, o princípio da interpretação em conformidade comporta igualmente a obrigação de interpretar o direito nacional à luz das disposições correspondentes do direito comunitário, primário e derivado. Isto significa, para os fins do presente processo, que o Reino Unido deve interpretar a legislação relativa aos estrangeiros, em particular o Immigration Act, à luz da liberdade de prestação de serviços e da Directiva 73/148.

2. Directiva 73/148

42.
    Em virtude do direito comunitário actualmente em vigor, ou seja, em conformidade com a Directiva 73/148, aqui relevante, o estatuto do cidadão de um país terceiro casado com um cidadão da União, no que respeita ao direito de residência, é função da situação jurídica do cidadão da União.

43.
    De acordo com o seu artigo 1.°, n.° 1, alínea c), a Directiva aplica-se igualmente aos cônjuges de cidadãos comunitários independentemente da sua nacionalidade e, logo, aos cidadãos filipinos casados com cidadãos britânicos. Nos termos do artigo 4.°, n.° 3, da mesma directiva, ao membro duma família que não tenha a nacionalidade de um Estado-Membro é conferido um título de residência com a validade do do cidadão do qual deriva o direito desse membro da família cidadão de um país terceiro.

44.
    Os nacionais de um país terceiro, casados com cidadãos da União, apenas dispõem, por isso, de direitos que resultam dos do seu cônjuge. Destes faz também parte o de residência, controvertido no presente caso.

45.
    Deve antes de mais, como condição fundamental para que o cidadão de um país terceiro se possa valer de direitos do seu cônjuge, examinar se este exerce os direitos que lhe são conferidos pelo direito comunitário, isto é, se a dimensão comunitária se verifica. Não pode, assim, tratar-se de uma situação puramente interna, caso em que falharia o ponto de partida dos direitos do cidadão de país terceiro.

46.
    Em ligação com isto, há que expor mais em pormenor o quadro de referência da interpretação da Directiva 73/148 e do direito nacional de transposição da mesma. Tal compreende, ao lado da liberdade de prestação de serviços ora em apreço, os princípios gerais do direito, que, segundo a jurisprudência do Tribunal, englobam igualmente os direitos fundamentais (10).

47.
    A livre prestação de serviços e os direitos fundamentais desenham igualmente os limites da margem de apreciação dos Estados-Membros em matéria de transposição. Num caso como o ora em apreço, podem assim vir a restringir substancialmente a margem de manobra do Reino Unido no domínio do direito dos estrangeiros, tanto no plano legislativo, como no plano executivo.

a)    A dimensão comunitária como condição geral de aplicabilidade da Directiva 73/148

aa)    Princípio - a dimensão comunitária no contexto das liberdades fundamentais

48.
    Os cidadãos de um país terceiro, cônjuges de cidadãos da União, só beneficiam de direito de residência ao abrigo da Directiva 73/148 quando o cidadão da União fizer igualmente uso dos direitos conferidos pelo direito comunitário. Assim, o direito de residência do cidadão de um país terceiro exige igualmente uma dimensão comunitária. No caso concreto, há que considerar as liberdades fundamentais como ponto de partida.

49.
    Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as liberdades fundamentais não abrangem situações de facto que se restringem totalmente ao interior de um único Estado-Membro (11).

50.
    Este princípio vale, por um lado, para o direito primário, ou seja, no caso em apreço, para as disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços. Mas visa também os actos de aplicação das disposições do direito comunitário primário (12). O diploma de direito derivado relevante no pedido principal é a Directiva 73/148.

51.
    Há então que verificar sempre se a situação factual em causa apresenta algum ponto de contacto com uma situação factual abrangida pelo direito comunitário.

52.
    Se a necessária dimensão comunitária não existir, ou seja, se o cidadão da União não fizer uso dos direitos conferidos pelo Tratado, a sua sujeição será apenas ao direito nacional, o mesmo acontecendo com o seu cônjuge cidadão de um país terceiro (13). Este princípio vale designadamente para o direito de residência (14).

53.
    Os cidadãos de um país terceiro casados com cidadãos da União no Estado de origem destes últimos encontram-se, pois, quando estes cidadãos não fazem uso dos seus direitos comunitários, em situação menos favorável do que os cidadãos de um país terceiro casados com cidadãos da União que exercem os seus direitos comunitários.

54.
    Neste sentido, cidadãos de um país terceiro casados com cidadãos britânicos e residentes no Reino Unido podem ver-se substancialmente desfavorecidos face a cidadãos de um país terceiro cujos cônjuges sejam originários de outro Estado-Membro e façam uso dos seus direitos. Assim será se o cônjuge trabalhar, por exemplo, como trabalhador migrante noutro Estado-Membro ou aí efectuar prestações de serviços: os cidadãos de um país terceiro casados, por exemplo, com cidadãos franceses e com eles residentes no Reino Unido ou, sempre a título de exemplo, vivendo com os respectivos cônjuges britânicos em França beneficiariam do direito comunitário.

55.
    Os cônjuges cidadãos de países terceiros estarão, pois, sempre em situação menos favorável se o seu cônjuge cidadão da União não exercer os seus direitos comunitários.

56.
    Os cidadãos de um país terceiro cujo cônjuge, cidadão da União, «nunca haja exercido» (15) o seu direito à livre prestação de serviços também não podem, em virtude do direito comunitário, fazer derivar qualquer direito do seu cônjuge.

57.
    O facto de a aplicação do direito comunitário - designadamente a cidadãos de países terceiros - não ser possível, por serem internas estas situações factuais, acarreta assim uma discriminação em sentido inverso (16).

58.
    Esta discriminação pode vir a ser eliminada, quer pelo legislador comunitário, porventura por meio de regras relativas ao agregado familiar, quer pelos próprios Estados-Membros, mesmo que tal não seja prescrito pelo direito comunitário (17), mediante a equiparação, nos Estados-Membros em que o problema se coloca, do estatuto de cidadãos de um país terceiro casados com cidadãos nacionais ao estatuto dos cidadãos de países terceiros casados com cidadãos de outro Estado-Membro que tenha exercido os seus direitos comunitários. Vários Estados-Membros já recorreram, efectivamente, a esta possibilidade de criar uma espécie de «assimilação» (18).

bb)    A dimensão comunitária como requisito concreto da presente situação factual

59.
    Para definir o estatuto da Sr.a Carpenter em relação ao direito de permanência, deve então, antes de mais, determinar-se o estatuto do Sr. Carpenter. Resulta dos autos que o direito comunitário exercido pelo Sr. Carpenter ora em causa é a liberdade de prestação de serviços.

60.
    É verdade que, neste processo, o Sr. Carpenter fixou a sua residência e a sede da sua empresa no Reino Unido, mas a sua actividade profissional não está limitada ao mercado nacional (19), dado que, pelo contrário, desenvolve as suas actividades económicas igualmente fora do Reino Unido.

61.
    Sempre de acordo com os elementos do processo, o Sr. Carpenter realiza uma parte considerável do seu volume de negócios através de contratos celebrados com empresas de outros Estados-Membros. Algumas das prestações de serviços devem ser qualificadas como prestações transfronteiriças na medida em que o prestador se desloca a outro Estado-Membro (20).

62.
    Segundo a jurisprudência do Tribunal, uma situação de facto é, por exemplo, dotada de dimensão comunitária, quando «um elemento de estraneidade pode nomeadamente resultar da circunstância de um atleta participar numa competição num Estado-Membro que não aquele onde se encontra estabelecido» (21).

O Sr. Carpenter pode, pelo menos, ser comparado a um profissional desportivo na medida em que também ele se desloca a outros Estados-Membros para aí efectuar prestações de serviços.

63.
    Para além desta liberdade «activa» de prestação de serviços, há igualmente que considerar, atendendo à natureza da actividade do Sr. Carpenter, as prestações de serviços ditas «por correspondência», de que fazem parte as que não implicam deslocações do prestador e do destinatário, mas ultrapassam, ainda assim, as fronteiras. A dimensão comunitária destas prestações de serviços foi também reconhecida pelo Tribunal de Justiça (22).

64.
    O acórdão Singh constitui igualmente um argumento importante para concluir que a situação factual respeitante ao Sr. Carpenter não é puramente interna, sendo abrangida pelo direito comunitário. Os factos na origem deste acórdão diferem, efectivamente, em dois pontos, da situação factual do presente processo, mas estas diferenças não são seguramente relevantes.

65.
    Uma primeira diferença reside no facto de os cônjuges Singh serem trabalhadores noutro Estado-Membro e não prestadores de serviços, como o Sr. Carpenter. O facto de este ter feito uso de outra liberdade fundamental, a de prestação de serviços, não é suficiente para consubstanciar uma diferença significativa relativamente à determinação da dimensão comunitária.

66.
    A segunda diferença em relação ao primeiro caso resulta de os cônjuges Singh, após um período de permanência de três anos na Alemanha, terem regressado ao Reino Unido, país de origem da Sr.a Singh. Os cônjuges Carpenter, por seu lado, não regressaram ao Reino Unido; estavam lá e lá pretendiam permanecer. O facto de esta circunstância não constituir uma diferença significativa resulta, a nosso ver, de o Tribunal, no caso Singh, não ter considerado que o exercício dos direitos comunitários correspondia ao regresso ao país de origem a partir de outro Estado-Membro, mas ao facto de a Sr.a Singh se ter deslocado a outro Estado-Membro para aí fazer uso dos seus direitos comunitários, mais precisamente da liberdade de circulação de trabalhadores.

67.
    O facto de os cônjuges Singh se terem estabelecido noutro Estado-Membro não constitui, assim, uma particularidade pertinente neste processo. Esta circunstância respeita antes ao facto de terem exercido uma liberdade fundamental diferente da do Sr. Carpenter, mais precisamente a liberdade de circulação dos trabalhadores.

68.
    Se o Sr. Carpenter se estabelecesse noutro Estado-Membro para aí trabalhar, a título independente ou não, a sua situação corresponderia exactamente à dos cônjuges Singh.

69.
    Entendemos, assim, que os princípios assentes pelo Tribunal no acórdão Singh podem ser transpostos para o presente caso de um prestador de serviços.

70.
    De acordo com as afirmações do Tribunal no n.° 23 do referido acórdão, importa que «o cônjuge de um cidadão comunitário [...], quando regressa ao seu país de origem» disponha «pelo menos dos mesmos direitos de entrada e permanência que os que lhe seriam reconhecidos pelo direito comunitário se o seu cônjuge escolhesse entrar e permanecer noutro Estado-Membro».

71.
    O Sr. Carpenter faz, portanto, uso dos seus direitos comunitários a dois títulos: em primeiro lugar, por se deslocar a outro Estado-Membro por razões profissionais, a fim de aí exercer uma actividade independente; em segundo lugar, por efectuar igualmente prestações transfronteiriças de serviços sem se deslocar pessoalmente a outro Estado-Membro.

72.
    Todas estas circunstâncias mostram que os factos essenciais que estão na origem do presente processo, respeitantes ao Sr. e à Sr.a Carpenter, não têm natureza puramente interna, revestindo, pelo contrário, dimensão comunitária, o que implica que o direito comunitário se aplique a uma situação de facto como a que se apresenta nos autos.

73.
    Impõe-se, por isso, a conclusão de que a Sr.a Carpenter, enquanto cônjuge de um cidadão comunitário, pode, no estado actual do direito comunitário, prevalecer-se, em qualquer caso, de um direito de residência do cônjuge, desde que o seu cônjuge exerça os direitos que lhe são conferidos pelo direito comunitário - e unicamente enquanto esse requisito se verificar (23).

74.
    Para terminar, há ainda que abordar a questão do risco de abuso, em particular o eventual perigo de as regras nacionais em matéria de residência que regem o estatuto jurídico dos cidadãos de países terceiros cônjuges de cidadãos nacionais poderem ser contornadas mediante o «fabrico», pelo cônjuge cidadão comunitário, duma dimensão comunitária. Pode assim argumentar-se que os cidadãos de um Estado-Membro podem aceitar, por exemplo, um emprego - mesmo por pouco tempo - em outro Estado-Membro, precisamente com o fim de «se colocarem», juntamente com o seu cônjuge, cidadão de um país terceiro, no campo de aplicação do direito comunitário. Pode ainda argumentar-se que os cônjuges cidadãos de país terceiro escapariam assim à aplicação exclusiva do direito nacional e beneficiariam de uma situação jurídica eventualmente mais vantajosa do que a resultante do direito nacional, visto que o direito de permanência fundado no direito comunitário lhes seria então acessível.

75.
    Deve observar-se, quanto a este ponto, que a eventual intenção de contornar a lei nacional não está demonstrada na acção principal, dado que o Sr. Carpenter já explorava a sua empresa e oferecia prestações transfronteiriças de serviços antes do casamento. Não oferece também qualquer dúvida, para as autoridades em causa, que o casamento do Sr. e da Sr.a Carpenter nada tem a ver com uma união fictícia.

b)    Interpretação da Directiva 73/148 e do direito nacional à luz do direito primário

76.
    As disposições ora relevantes da Directiva 73/148, no tocante ao direito de residência, bem como as regras nacionais sobre a matéria, devem ser interpretadas, com base nas considerações que antecedem, à luz da liberdade de prestação de serviços.

77.
    Efectivamente, se se aplicasse a regulamentação britânica relativa ao direito de residência dos cidadãos de países terceiros casados com cidadãos britânicos num caso, como o da acção principal, em que o cidadão britânico faz uso dos seus direitos comunitários tal teria como efeito a restrição desses direitos.

78.
    Segundo a jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça, direito de residência e liberdades fundamentais estão entre si ligados. Em virtude do acórdão Singh, os direitos resultantes da livre circulação de trabalhadores e da liberdade de estabelecimento «não poderão produzir a plenitude dos seus efeitos se esse cidadão [o cidadão comunitário] for dissuadido de os exercer em virtude de obstáculos colocados pelo seu país de origem à entrada e à permanência do seu cônjuge» (24).

79.
    Se se considerar que este princípio vale para todas as liberdades fundamentais, tal significa que, no caso em apreço, que respeita à livre prestação de serviços, o facto de a mulher não beneficiar de nenhum direito de residência, ou apenas de um direito de residência limitado, pode implicar, para o Sr. Carpenter, uma restrição da sua liberdade de efectuar prestações de serviços noutros Estados-Membros.

c)    Interpretação da Directiva 73/148 e do direito nacional à luz dos direitos fundamentais

80.
    As disposições ora relevantes da Directiva 73/148 sobre a questão do direito de residência bem como as regras nacionais na matéria devem também ser interpretadas à luz dos direitos fundamentais.

81.
    Deve, antes de mais, observar-se, a este respeito, que incumbe ao Tribunal assegurar o respeito dos direitos fundamentais (25). «Nesta matéria, o Tribunal inspira-se nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, bem como nas indicações fornecidas pelos instrumentos internacionais relativos à protecção dos direitos do Homem, em que os Estados-Membros colaboraram ou a que aderiram. Neste quadro, a CEDH reveste um significado particular» (26). «Estes princípios foram aliás retomados no artigo 6.°, n.° 2, UE.» (27)

82.
    O Tribunal de Justiça não é, no entanto, competente para examinar se certa norma nacional de um Estado-Membro que não resulte do campo de aplicação do direito comunitário é compatível com os direitos fundamentais (28).

83.
    Deve-se, por outro lado, relativamente às regras do direito nacional, resultantes do campo de aplicação do direito comunitário, fornecer à jurisdição de reenvio todos os elementos de interpretação de que necessita para estar preparada para apreciar a conformidade das suas regras nacionais com o direito comunitário.

84.
    O presente processo tem por objecto o direito ao respeito pela vida familiar, consagrado no artigo 8.° da CEDH. No âmbito desta disposição (29) figura a protecção das relações matrimoniais (30). A esta acrescem ainda, no caso concreto, as relações da Sr.a Carpenter com os seus enteados (31).

85.
    No presente processo, está, desde logo, em causa a obrigação negativa das partes na Convenção ou dos Estados-Membros resultante do artigo 8.° da CEDH de não prejudicar o direito dos cônjuges à vida em comum (32). Em segundo lugar, está em causa a obrigação positiva dos Estados (33) de permitir a determinados membros da família o acesso ao seu território (34).

86.
    Não levanta quaisquer dúvidas que a recusa de uma autorização de residência, bem como uma decisão de expulsão, violam profundamente esses direitos.

87.
    Inversamente, o direito ao respeito pela vida familiar não goza de protecção absoluta. A ingerência neste direito só é possível, de acordo com o disposto no artigo 8.°, n.° 2, da CEDH, «quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros».

88.
    Os Estados-Membros dispõem evidentemente de uma certa margem de apreciação no que respeita a essa ingerência no direito ao respeito pela vida familiar (35). No entanto, esta margem de apreciação não é também, em si mesma, ilimitada. As condições que permitem restringir o direito ao respeito pela vida familiar são, portanto, de interpretação restrita.

89.
    A apreciação da licitude de uma ingerência nos direitos fundamentais depende, assim, da avaliação das circunstâncias de cada caso concreto. Se ao Tribunal de Justiça compete dar ao juiz nacional os elementos de interpretação necessários à resolução do litígio individual concreto (36), incumbe ao juiz nacional decidir sobre os factos em litígio com recurso aos critérios definidos pelo Tribunal. Isto vale, em especial, tendo em conta a natureza da análise a efectuar (37). Com efeito, a aplicação das disposições comunitárias, bem como das disposições respeitantes à sua realização nos casos concretos, é da competência do juiz nacional (38).

90.
    Tratando-se de critérios que devem ser tidos em conta pelo juiz nacional na sua apreciação, deve, antes de mais, observar-se que está em causa a necessidade da ingerência no direito ao respeito pela vida familiar e, logo, em primeiro lugar, a questão da proporcionalidade dessa ingerência.

91.
    No exame da proporcionalidade, há, antes de mais, que verificar se está de acordo com o princípio da proporcionalidade a Sr.a Carpenter apenas poder solicitar a partir do estrangeiro a concessão da autorização necessária (39). Há também que examinar, neste contexto, se tal diligência poderá razoavelmente ser exigida à Sr.a Carpenter e, em particular, se o tempo de espera para a obtenção desta autorização é razoável. Deve ainda examinar-se se, na hipótese de a Sr.a Carpenter ficar nas Filipinas, seria possível ao Sr. Carpenter - eventualmente com os seus filhos - viver nas Filipinas e aí exercer a sua actividade profissional (40).

92.
    O exame da proporcionalidade, isto é, da necessidade da ingerência, deve consistir, no essencial, na ponderação relativa da sua gravidade, ou seja, da afectação dos interesses privados e da finalidade da regulamentação relativa aos estrangeiros, isto é, dos interesses do Estado.

93.
    A gravidade da afectação, ou a violação dos interesses privados, deve ser apreciada em relação a um conjunto de factores. Trata-se, antes de mais, das circunstâncias familiares da Sr.a Carpenter, ou seja, das suas relações familiares no Reino Unido (41) e nas Filipinas. Por outro lado, devem também examinar-se as circunstâncias pessoais da Sr.a Carpenter, ou seja, a sua integração na sociedade e na cultura do Reino Unido (42).

94.
    No caso em apreço, aos interesses da Sr.a Carpenter, enquanto esposa, juntam-se ainda os dos seus enteados, que são igualmente protegidos, em princípio, pela CEDH (43). A intensidade das relações da Sr.a Carpenter com os seus enteados, bem como a idade destes últimos, são relevantes para este efeito (44).

95.
    Deve, além disso, no caso concreto, considerar-se o afastamento geográfico das Filipinas e do Reino Unido e a possibilidade ou não de visitas.

96.
    Finalmente, deve igualmente examinar-se se o casamento se realizou antes ou depois da violação das regras aplicáveis aos estrangeiros. De acordo com os elementos constantes do processo, a Sr.a Carpenter casou depois de ter expirado o prazo da sua autorização de duração limitada.

97.
    Tratando-se dos interesses do Estado, deve ter-se em conta os objectivos prosseguidos pelo Reino Unido na legislação relativa aos estrangeiros e, em especial, no que respeita, ao direito de residência. De entre os objectivos mencionados no artigo 8.°, n.° 2, da CEDH, é invocada, regra geral, a defesa da ordem pública (45). Deve, finalmente, examinar-se, à luz da legislação dos estrangeiros, a gravidade da infracção cometida pela Sr.a Carpenter, a saber, o prolongamento da sua residência no Reino Unido para além do termo do prazo da autorização.

d)    As possibilidades de sanções permitidas aos Estados-Membros em caso de violação das regras nacionais em matéria de residência

98.
    É necessário, finalmente, assinalar as possibilidades abertas aos Estados-Membros, em virtude do direito comunitário, de reprimir as infracções à legislação dos estrangeiros. Os limites que o direito comunitário, incluindo os direitos fundamentais, impõem a esse respeito aos Estados-Membros só são contudo válidos, aqui também, quando têm dimensão comunitária.

99.
    Assim, os Estados-Membros podem sancionar o facto de cônjuges cidadãos de países terceiros continuarem no seu território, após o termo do prazo de uma autorização de residência de duração limitada. Estas sanções devem, no entanto, respeitar o princípio da proporcionalidade, tal como o Tribunal de Justiça o tem desenvolvido na sua jurisprudência. Segundo jurisprudência constante, sanções como multas e penas de prisão são admissíveis se forem proporcionais (46) ou constituírem, para expor as coisas doutra forma, «medidas de coacção adequadas» (47).

100.
    Tratando-se do afastamento do território de um Estado-Membro, observa-se que a jurisprudência enquadra este tipo de medida em limites estreitos. Segundo o acórdão Royer, o afastamento do território não é admissível quando a medida é «baseada exclusivamente no facto de o interessado não ter cumprido as formalidades relativas ao controlo dos estrangeiros ou não possuir um título de residência» (48). No acórdão Watson e Belmann, o Tribunal afirma claramente que o afastamento do território em virtude do desrespeito pelas formalidades de declaração e de registo é inadmissível (49).

101.
    Há, assim, como resposta à primeira parte da questão apresentada, que declarar que o cidadão de um país terceiro cônjuge de um cidadão comunitário com residência no respectivo Estado não pode invocar o artigo 49.° do Tratado CE mas a Directiva 73/148 para adquirir o direito de permanecer com o seu cônjuge no Estado-Membro de origem deste último, quando o seu cônjuge efectua prestações de serviços noutros Estados-Membros. Deve ter-se em conta, a este respeito, que a Directiva 73/148 deve ser interpretada à luz do direito comunitário primário e dos direitos fundamentais, em particular do direito ao respeito pela vida familiar.

B - Segunda parte da questão prejudicial: o cônjuge cidadão de um país terceiro ocupa-se dos filhos do cidadão da União

102.
    A segunda parte da questão diz respeito ao caso de o cônjuge não cidadão de um país terceiro apoiar indirectamente o outro cônjuge, cidadão de um Estado-Membro, na prestação de serviços noutros Estados-Membros, ao ocupar-se dos seus filhos.

103.
    Como acertadamente refere a Comissão, a circunstância de a Sr.a Carpenter se ocupar dos filhos do Sr. Carpenter e de assim o ajudar, indirectamente, a fazer uso dos direitos que decorrem da livre prestação de serviços não tem relação com a de saber se o Sr. Carpenter exerceu os seus direitos de modo a que a esposa beneficie do direito comunitário.

104.
    Também as disposições do direito comunitário derivado relevantes vão no sentido de que a circunstância de o cônjuge se ocupar dos filhos do cidadão da União não é pertinente quanto ao seu direito de residência. Assim, a Directiva 73/148, aplicável no caso concreto, prevê, quanto ao seu âmbito, no artigo 1.°, n.° 1, uma série de circunstâncias, tais como o laço de parentesco, a idade, o estatuto de pessoa dependente, a vida em comum. O facto de se ocupar dos filhos não figura nesta enumeração, que é taxativa, pelo que pode concluir-se que, aos olhos do legislador comunitário, não tem visivelmente importância neste contexto.

105.
    Finalmente, a jurisprudência do Tribunal relativa aos direitos do cidadão de um país terceiro casado com um cidadão da União não faz tão-pouco referência expressa à contribuição dada pelo cidadão do país terceiro à actividade profissional do cidadão da União. Assim, no processo Singh, como já referimos, o Tribunal baseou-se, efectivamente, no facto de os direitos de livre circulação dos trabalhadores e de livre estabelecimento decorrentes do Tratado «não poderem produzir a plenitude dos seus efeitos se esse cidadão [o cidadão comunitário] for dissuadido de os exercer em virtude de obstáculos colocados pelo seu país de origem à entrada e permanência do cônjuge» (50). Afirmámos já que se deverá considerar que este princípio deve ser aplicado a todas as liberdades fundamentais.

106.
    A solução alternativa, invocada na segunda parte da questão deferida, não tem, portanto, qualquer interesse jurídico para a resposta à presente questão, razão pela qual não prosseguiremos na sua análise.

VI - Conclusão

107.
    À luz das considerações que antecedem, propomos ao Tribunal que responda da seguinte forma à questão apresentada:

«Numa situação em que um cidadão de um Estado-Membro, estabelecido nesse Estado-Membro, efectua prestações de serviços a pessoas de outros Estados-Membros e é casado com um não cidadão de um Estado-Membro, o cônjuge cidadão do país terceiro não pode invocar o artigo 49.° do Tratado CE, mas a Directiva 73/148/CEE do Conselho, de 21 de Maio de 1973, relativa à supressão das restrições à deslocação e à residência de cidadãos de Estados-Membros no interior da Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços, como fonte do direito de residência com o seu cônjuge no Estado de origem deste último. Deve ter-se em conta, a este respeito, que a Directiva 73/148 deve ser interpretada à luz da liberdade de prestação de serviços e dos direitos fundamentais, em particular do direito ao respeito pela vida familiar.

A resposta à questão objecto de reenvio não difere se o cônjuge não cidadão de um Estado-Membro ajudar indirectamente o outro cônjuge cidadão de um Estado-Membro a efectuar prestações de serviços noutros Estados-Membros, assumindo a guarda dos filhos deste último.»


1: -     Língua original: alemão.


2: -     Acórdão de 10 de Maio de 1995 (C-384/93, Colect., p. I-1141).


3: -     Acórdão de 7 de Julho de 1992 (C-370/90, Colect., p. I-4265).


4: -     Acórdão de 28 de Junho de 1984 (180/83, Recueil, p. 2539, n.° 20).


5: -     Acórdão de 7 de Julho de 1988 (143/87, Colect., p. 3877, n.° 14). Este processo respeitava a uma regra que isentava as pessoas que exercessem uma actividade assalariada num Estado-Membro do pagamento das contribuições para a segurança social dos trabalhadores independentes nesse Estado-Membro, mas recusava essa isenção às pessoas que exercessem uma actividade assalariada noutro Estado-Membro.


6: -     Já referido na nota 3.


7: -     Acórdão de 27 de Junho de 1996 (C-107/94, Colect., p. I-3089).


8: -     Já referido, nota 3.


9: -     Acórdão de 27 de Outubro de 1982 (35/82 e 36/82, Recueil, p. 3723). Este processo respeitava ao direito de residência de mães nacionais de países terceiros cujos filhos trabalhavam no país de que eram nacionais.


10: -     Sobre a interpretação de um regulamento à luz do artigo 8.° da CEDH, v. o acórdão de 18 de Maio de 1989, Comissão/Alemanha (249/86, Colect., p. 1263, n.° 10); v., igualmente, o acórdão de 15 de Maio de 1986, Johnston (222/84, Colect., p. 1651, n.° 18), respeitante à interpretação de uma directiva à luz da CEDH.


11: -     Acórdãos de 21 de Outubro de 1999, Jägerskiöld (C-97/98, Colect., p. I-7319, n.° 42), e de 16 de Janeiro de 1997, USSL n.° 47 di Biella (C-134/95, Colect., p. I-195, n.° 19).


12: -     V. a este respeito o Acórdão de 16 de Dezembro de 1992, Koua Poirrez (C-206/91, Colect., p. I-6685, n.° 11), bem como a jurisprudência citada.


13: -     Martin, «Lei de 15 de Dezembro de 1980», Revue du droit des étrangers, 1996, p. 722 (p. 725).


14: -     «Wer zu wenig wandert, den bestraft das Leben»: Gutmann, «Europäisches Aufenthaltsrecht für Drittstaatsangehörige», Anwaltsblatt 2000, p. 482 (p. 484).


15: -     Acórdão Koua Poirrez, já referido na nota 12, n.° 13, respeitante aos membros da família de um trabalhador.


16: -     V. Dollat, Libre circulation des personnes et citoyenneté européenne: enjeux et perspectives, 1998, pp. 104 e segs.; Martin (já referido na nota 13), p. 725.


17: -     Sobre a eliminação das situações desfavoráveis criadas pelo direito nacional, ver o acórdão de 5 de Junho de 1997, Uecker e Jacquet (C-64/96 e C-65/96, Colect., p. I-3171, n.° 23).


18: -     Martin (já referido na nota 13), p. 725.


19: -     V. o acórdão de 9 de Setembro de 1999, RI.SAN. (C-180/98, Colect., p. I-5219, n.° 21), que respeitava a uma empresa que exercia a sua actividade no mercado do país onde se situava a sua sede.


20: -     Acórdão de 20 de Maio de 1992, Ramrath (C-106/91, Colect., p. I-3351).


21: -     Acórdão de 11 de Abril de 2000, Deliège (C-51/96 e C-191/97, Colect., p. I-2549, n.° 58).


22: -     Acórdãos de 9 de Julho de 1997, De Agostini e TV-Shop (C-34/95, C-35/95 e C-36/95, Colect., p. I-3843); Alpine Investments, já referido na nota 2; e de 30 de Abril de 1974, Sacchi (155/73, Colect., p. 223).


23: -     Watson, «Free Movement of Workers: a one way ticket?», Industrial Law Journal, 1993, p. 68 (p. 75), chama a atenção, por referência ao acórdão Singh, para a relação entre a actividade económica do cônjuge e o direito de residência do seu cônjuge cidadão de um país terceiro.


24: -     Acórdão Singh, já referido na nota 3, n.° 23.


25: -     Acórdãos de 11 de Julho de 1985, Cinéthèque e o. (60/84 e 61/84, Recueil, p. 2605, n.° 26), e de 30 de Setembro de 1987, Demirel (12/86, Colect., p. 3719, n.° 28).


26: -     Acórdão de 6 de Março de 2001, Connolly/Comissão (C-274/99 P, Colect., p. I-1611, n.° 37).


27: -     Ibidem, n.° 38.


28: -     Acórdão de 29 de Maio de 1997, Kremzow (C-299/95, Colect., p. I-2629, n.° 15).


29: -     O artigo 7.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, adoptada em Nice a 7 de Dezembro de 2000, é-lhe equivalente (JO C 364, p. 1).


30: -     V. TEDH, acórdão Abdulaziz, Cabales e Balkandali c. Reino Unido, série A, n.° 94, § 62.


31: -     Sobre o reconhecimento destas relações, v. a decisão não publicada da Comissão Europeia dos Direitos do Homem de 7 de Dezembro de 1982, B 9867/82, Moodey/Reino Unido.


32: -     Sobre esta matéria, v., em geral, De Schutter, «Le droit au regroupement familial au croisement des ordres juridiques européens», Revue du droit des étrangers, 1996, p. 531 (p. 546). Sobre a obrigação negativa, v. TEDH, acórdão Ciliz c. Países Baixos de 11 de Julho de 2000, § 62.


33: -     V. TEDH, acórdão Marchx c. Bélgica, série A, n.° 31, § 63.


34: -     De Schutter, já referido na nota 32, p. 546.


35: -     V. TEDH, acórdão Ahmut c. Países Baixos de 28 de Novembro de 1996, Colectânea dos acórdãos e decisões 1996-VI, p. 2031, § 63.


36: -     Acórdão de 3 de Maio de 2001, Verdonck e o. (C-28/99, Colect., 9. I-3399, n.° 28).


37: -     Acórdão de 14 de Dezembro de 2000, Fazenda Pública (C-446/98, Colect., p. I-11435, n.° 23), e a jurisprudência citada.


38: -     Ibidem, n.° 23.


39: -     V., a este respeito, o requerimento 12122/86 Lukka/Reino Unido, DR 50, p. 268.


40: -     V. TEDH, acórdão Beljoudi c. França, série A, n.° 234-A, §§ 78 e segs.


41: -     Ibidem, § 78.


42: -     V. TEDH, acórdão Moustaquim c. Bélgica, série A, n.° 193, § 45.


43: -     V., a este respeito, a decisão não publicada da Comissão Europeia dos Direitos do Homem Moodey/Reino Unido, já referida na nota 31.


44: -     Acrescentaríamos, quanto a este ponto, que o bem-estar das crianças pode mesmo ter um papel decisivo no quadro da avaliação dos interesses (v. TEDH, acórdão Elsholz c. Alemanha de 13 de Julho de 2000, § 48).


45: -     Lukka/Reino Unido, já referido na nota 39.


46: -     Acórdão de 7 de Julho de 1976, Watson e Belmann (118/75, Colect., p. 465, n.os 21 e 22).


47: -     Acórdão de 14 de Julho de 1977, Sagulo e o. (8/77, Colect., p. 517, n.° 6).


48: -     Acórdão de 8 de Abril de 1976 (48/75, Colect., p. 221, n.os 38 a 40).


49: -     Já referido na nota 46, n.° 20.


50: -     Acórdão já referido na nota 3, n.° 23.