Language of document : ECLI:EU:C:2005:466

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PHILIPPE LÉGER

apresentadas em 14 de Julho de 2005 1(1)

Processo C‑9/04

Geharo BV

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]

«Directiva 91/338/CEE – Proibição de colocação no mercado de produtos que contêm um teor de cádmio superior a 0,01% de material plástico – Directiva 88/378/CEE – Proibição de colocação no mercado de brinquedos cuja biodisponibilidade diária de cádmio é superior a 0,6 micrograma – Aplicabilidade»





1.        No presente processo, o Tribunal de Justiça é chamado a esclarecer se os brinquedos, além de terem de respeitar o limite diário de 0,6 micrograma para a biodisponibilidade de cádmio (2) prescrito pela Directiva 88/378/CEE do Conselho (3), devem estar igualmente sujeitos às restrições impostas pela Directiva 91/338/CEE do Conselho (4).

2.        Esta é, no essencial, a questão colocada pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos) no âmbito de um processo‑crime instaurado contra a Geharo BV (a seguir «Geharo»).

3.        Com esta questão, o Tribunal é chamado a apreciar o alcance do artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338, bem como a aplicabilidade das normas que esta prescreve aos brinquedos abrangidos pela Directiva 88/378.

I –    Quadro jurídico

A –    Regulamentação comunitária

4.        Resulta do artigo 2.° CE que a Comunidade Europeia tem como missão alcançar um elevado nível de protecção e de melhoria da qualidade do ambiente. Para esse efeito e conforme referido no artigo 3.°, n.° 1, CE, a acção da Comunidade implica uma contribuição para a realização de um elevado nível de protecção da saúde.

5.        De acordo com estes objectivos e tendo em conta o grau crescente de exposição do homem e do ambiente ao cádmio, a Comunidade desenvolveu diferentes acções destinadas a proteger estes últimos contra esta substância. Com efeito, actualmente o cádmio é considerado particularmente perigoso, devido quer à sua alta toxicidade para o organismo humano quer aos efeitos nocivos que pode ter, a longo prazo, sobre o ecossistema.

1.      Directiva 88/378

6.        A Directiva 88/378 fixa as condições de segurança a que os brinquedos devem obedecer antes de serem colocados no mercado (5).

7.        Conforme refere nos seus primeiro e segundo considerandos, a directiva tem por objectivo, por um lado, eliminar os obstáculos ás trocas comerciais entre os Estados‑Membros, mediante o estabelecimento de normas harmonizadas relativas às condições de segurança dos brinquedos e, por outro, garantir uma protecção eficaz do consumidor, em especial das crianças, contra os riscos associados à utilização daqueles.

8.        Assim, o artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 88/378 dispõe:

«Os brinquedos só podem ser colocados no mercado se não puserem em perigo a segurança e/ou a saúde dos utilizadores ou de terceiros, quando forem utilizados para o fim a que se destinam ou quando deles for feita uma utilização previsível, atendendo ao comportamento habitual das crianças.»

9.        Para esse efeito, o artigo 3.° da referida directiva impõe aos Estados‑Membros que tomem «todas as medidas úteis para que os brinquedos só possam ser colocados no mercado se satisfizerem os requisitos essenciais de segurança que constam do anexo II».

10.      O anexo II à mesma directiva define, nomeadamente, os requisitos essenciais de segurança relativos às propriedades químicas dos brinquedos. Por um lado, o título II, ponto 3, 1, segundo parágrafo desse anexo identifica os riscos associados à utilização dos brinquedos e exige que estes últimos estejam sujeitos, em qualquer caso, às prescrições constantes das normas comunitárias relativas à utilização de substâncias e preparações perigosas. Este ponto tem a seguinte redacção:

«1.      Os brinquedos devem ser concebidos e fabricados de modo a que [...] não apresentem riscos para a saúde ou riscos de danos físicos provocados por ingestão, inalação ou contacto com a pele, as mucosas ou com os olhos.

Em todo o caso, os brinquedos devem respeitar a legislação comunitária adequada relativa a determinadas categorias de produtos ou que proíbe ou limita a utilização ou a rotulagem de determinadas substâncias e preparações perigosas.»

11.      Por outro lado, tendo em conta as propriedades químicas do brinquedo, o título II, ponto 3, 2, segundo parágrafo, do mesmo anexo estabelece disposições específicas relativas à biodisponibilidade máxima de cádmio nos brinquedos. Esta norma é também designada por «norma de sucção» ou «norma de diluição» e permite calcular a quantidade diária de cádmio susceptível de se desprender do brinquedo e ser absorvida pelo organismo quando da manipulação, inalação, sucção ou mesmo ingestão do brinquedo. O referido ponto 3, 2, tem o seguinte teor:

«2.      […] a biodisponibilidade resultante da utilização dos brinquedos não deve ultrapassar por dia, para protecção da saúde das crianças, como objectivo:

[...],

0,6 µg para o cádmio,

[…]

ou outros valores que sejam estabelecidos para estas ou outras substâncias pela legislação comunitária com base em dados comprovados cientificamente.

Entende‑se por biodisponibilidade destas substâncias o extracto solúvel com uma importância toxicológica significativa.» (6)

2.      Directiva 91/338

12.      A Directiva 91/338 altera pela décima vez a Directiva 76/769/CEE do Conselho (7), que estabelece normas harmonizadas relativas à limitação da colocação do mercado e à utilização de algumas substâncias e preparações perigosas.

13.      O artigo 1.°, n.° 1, da directiva 76/769 tem a seguinte redacção:

«Sem prejuízo da aplicação de outras disposições comunitárias nesta matéria, a presente directiva diz respeito às limitações relacionadas com a colocação no mercado e a utilização, nos Estados‑Membros da Comunidade, das substâncias e preparações perigosas enumerados no anexo.»

14.      A Directiva 91/338 altera a Directiva 76/769, acrescentando o cádmio à lista de substâncias e preparações perigosas cuja colocação no mercado e utilização estão sujeitos a limitações.

15.      A Directiva 91/338 tem um duplo objectivo: por um lado, nos termos dos seus primeiro e quinto considerandos, visa o melhor funcionamento do mercado interno mediante a harmonização das regras relativas à colocação no mercado e utilização de produtos que contenham cádmio (8) e, por outro, conforme o seu segundo considerando, tem em vista a luta contra a poluição do ambiente pelo cádmio e a protecção, a prazo, da saúde da população.

16.      O artigo 1.° da Directiva 91/338 tem a seguinte redacção:

«O anexo I da Directiva 76/769/CEE é alterado em conformidade com o anexo da presente directiva. Todavia, as novas disposições não são aplicáveis aos produtos que contenham cádmio já abrangidos por outras legislações comunitárias» (9).

17.      Como o Tribunal sublinhou no seu acórdão de 18 de Junho de 2002, Países Baixos/Comissão (10), a Directiva 91/338 introduziu, no anexo I da Directiva 76/769, um novo ponto 24, que enumera, para um conjunto de produtos referidos especificadamente, três tipos de aplicação do cádmio e seus compostos – como corantes, como estabilizadores e no tratamento de superfícies (cadmiagem) (11) – cuja utilização regulamenta. Para cada uma dessas aplicações, o anexo da Directiva 91/338 define um teor máximo de cádmio que permite proteger toda a população contra as consequências da dispersão dessa substância no ambiente.

18.      A este respeito, o referido ponto 24, 1.1), dispõe que a colocação no mercado de produtos acabados, coloridos à base de cádmio, é condicionada ao respeito de um teor máximo de cádmio de 0,01% de material plástico. Por outras palavras, um produto constituído à base de plástico não pode conter mais de 100 mg/kg de cádmio para ser comercializado.

B –    Legislação nacional

1.      Legislação relativa à segurança dos brinquedos

19.      A Directiva 88/378 foi transposta, nos Países Baixos, pelo decreto de 29 de Maio de 1991, relativo aos brinquedos, aprovado em cumprimento da lei sobre as mercadorias (Warenwetbesluit Speelgoed) (12), decreto esse que fixa as regras relativas à segurança dos brinquedos e dos produtos destinados às crianças.

20.      O n.° 11 do anexo II do decreto relativo aos brinquedos estabelece as prescrições relativas à segurança dos brinquedos que contém substâncias e preparações perigosas e limita a biodisponibilidade de cádmio a 0,6 microgramas.

2.      Legislação relativa às substâncias perigosas

21.      À data dos factos que deram origem ao processo‑crime, o artigo 2.°, n.° 1, do decreto relativo ao cádmio, de 12 de Outubro de 1990, que executa a lei das substâncias perigosas para o ambiente (Cadmiumbesluit Wet milieugevaarlijke stoffen) (13), proibia «o fabrico, importação para os Países Baixos, disponibilização a um terceiro ou detenção, em stocks comerciais, de produtos que contenham cádmio».

22.      Nos termos do artigo 1.°, alínea a) do decreto relativo ao cádmio, entende‑se por «produtos que contenham cádmio» «os produtos nos quais o cádmio é utilizado como estabilizador, pigmento ou camada de superfície e os produtos nos quais foram integrados produtos artificiais ou cores contendo mais de 50 mg/kg de cádmio».

II – Factos e processo principal

23.      A 16 de Fevereiro de 1999, a Inspectie Gezondheidsbescherming Waren en Veterinaire Zaken (inspecção sanitária de mercadorias e produtos veterinários) apreendeu, nas instalações da Geharo, um lote de brinquedos. As análises efectuadas a essas mercadorias revelaram a presença de um teor de cádmio superior a 100 mg/kg, contrário ao artigo 1.°, alínea a), do decreto relativo ao cádmio, que previa um teor máximo dessa substância de 50 mg/kg.

24.      Estes factos deram lugar à instauração de um processo‑crime contra a Geharo, com fundamento no artigo 2.° do referido decreto.

25.      A 3 de Julho de 2000, o juiz criminal competente do Arrondissementsrechtbank te Zutphen absolveu a Geharo, por entender que a norma de 50 mg/kg prevista no artigo 1.° do decreto relativo ao cádmio não era aplicável por existir regulamentação específica relativa à segurança dos brinquedos. Segundo este juiz, só a norma de 0,6 micrograma prevista no decreto relativo aos brinquedos era então aplicável ao caso sub judice. Uma vez que as análises aos brinquedos não revelaram uma biodisponibilidade de cádmio superior ao limiar fixado por este último decreto, o juiz entendeu que não havia, consequentemente, motivos para condenar a arguida.

26.      O Openbaar Ministerie (Ministério Público) apelou da sentença para o Gerechtshof te Arnhem, órgão jurisdicional de segunda instância competente, que, por acórdão de 6 de Maio de 2002, revogou a sentença do Arrondissementsrechtbank te Zutphen e condenou a Geharo, com fundamento no artigo 2.° do decreto relativo ao cádmio. Com efeito, o Gerechtshof te Arnhem decidiu que os brinquedos estão abrangidos tanto pela Directiva 91/338 como pela Directiva 88/378. O mesmo órgão jurisdicional considerou que a letra do artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338 só se refere às legislações comunitárias que prosseguem o mesmo objectivo e/ou estabelecem normas idênticas às desta directiva, não se podendo dizer que a Directiva 88/378 tenha tais atributos. Todavia, uma vez que o teor máximo de cádmio prescrito pelo artigo 1.° daquele decreto (50 mg/kg) derrogava o fixado na Directiva 91/338 (100 mg/kg), o Gerechtshof te Arnhem declarou que o artigo 1.° do referido decreto não se aplicava. Consequentemente, condenou a Geharo com fundamento no artigo 2.° do mesmo decreto e apenas quanto aos casos em que se tinha verificado um teor de cádmio superior a 100 mg/kg.

27.      A Geharo interpôs recurso de cassação no Hoge Raad der Nederlanden, invocando o disposto no artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338. Esta sociedade alega que a legislação nacional é contrária ao direito comunitário, na medida em que as regras previstas nos decretos relativos aos brinquedos e ao cádmio são aplicadas cumulativamente, ao passo que, segundo refere, só as regras estabelecidas pela Directiva 88/378 são aplicáveis, com exclusão das estabelecidas pela Directiva 91/338.

III – Questão prejudicial

28.      Para determinar a conformidade com o direito comunitário das normas com fundamento nas quais foi instaurado o processo‑crime contra a Geharo, o Hoge Raad der Nederlanden decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338/CEE (Directiva Cádmio) obsta a que as normas desta directiva relativas ao teor de cádmio em produtos (acabados) e componentes a que se refere o anexo desta directiva sejam aplicadas aos brinquedos, na acepção da Directiva 88/378/CEE (Directiva Brinquedos)?»

29.      Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se o artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338 deve ser interpretado no sentido de que obsta a que a proibição, prevista nesta directiva, de comercialização de produtos que contenham um teor de cádmio superior a 0,01% de material plástico se aplica produtos como os brinquedos, visto que a comercialização destes está já subordinada ao cumprimento de uma norma de biodisponibilidade, prevista na Directiva 88/378.

IV – Apreciação

30.      Tal como os Governos neerlandês, grego, finlandês e sueco, entendemos que o artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338 deve ser interpretado no sentido de que não obsta a que a proibição que esta directiva impõe, de comercialização de produtos que apresentem um teor de cádmio superior a 0,01% de material plástico, se aplique aos brinquedos abrangidos pela Directiva 88/378.

31.      Para analisar o sentido do artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338, apreciaremos, em primeiro lugar, a sua letra, em segundo lugar a sistemática geral da regulamentação comunitária relativa à limitação da colocação no mercado e da utilização de substâncias e preparações perigosas em conexão com a sistemática geral da Directiva 88/378 e, em terceiro lugar, os objectivos prosseguidos pela Directiva 91/338, por um lado, e pela Directiva 88/378, por outro.

A –    Letra do artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338

32.      Recorde‑se que o artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338 dispõe que «[…] as novas disposições [que a mesma estabelece quanto ao teor máximo de cádmio] não são aplicáveis aos produtos que contenham cádmio já abrangidos por outras legislações comunitárias» (14).

33.      Tal como está redigido, este período poderia ser interpretado no sentido de que exclui a aplicação das normas fixadas pela Directiva 91/338 aos produtos que contenham cádmio abrangidos por qualquer outra regulamentação comunitária já existente, seja qual for o seu conteúdo normativo ou o seu objectivo.

34.      Todavia, seria excessivo dar ao referido artigo 1.° um alcance tão genérico. Com efeito, em nossa opinião, tal interpretação não resiste à apreciação da sistemática geral da regulamentação comunitária relativa, por um lado, à limitação da colocação no mercado e da utilização de substâncias e preparações perigosas e, por outro, à segurança dos brinquedos e ao estudo dos objectivos prosseguidos pelas Directivas 91/338 e 88/378.

B –    Sistemática geral da regulamentação comunitária relativa à limitação da colocação no mercado e da utilização de substâncias e preparações perigosas, em conexão com a sistemática geral da Directiva 88/378

35.      Um exame atento da sistemática geral dos diplomas em causa permite‑nos verificar que, desde o início, o legislador comunitário pretendeu a aplicação cumulativa das normas prescritas para regular e reduzir a utilização de substâncias e preparações perigosas, entre as quais se inclui o cádmio.

36.      Por um lado, o artigo 1.° da Directiva 76/769 dispõe, de forma clara, que as restrições à comercialização de produtos que contenham substâncias e preparações perigosas se aplicam «[s]em prejuízo da aplicação de outras disposições comunitárias nesta matéria» (15).

37.      Por outro lado, a Directiva 88/378, relativa à segurança dos brinquedos, exige que estes produtos estejam sujeitos não só aos requisitos prescritos por essa directiva, mas também às restrições adicionais previstas nas legislações comunitárias relativas à utilização de substâncias e preparações perigosas, entre as quais encontramos a Directiva 91/338. Com efeito, recordamos que o anexo II, título II, ponto 3, 1, segundo parágrafo, da Directiva 88/378 prevê que, «[e]m todo o caso, os brinquedos devem respeitar a legislação comunitária adequada relativa a determinadas categorias de produtos ou que proíbe ou limita a utilização ou a rotulagem de determinadas substâncias e preparações perigosas» (16). Notamos que a utilização da locução adverbial «em todo o caso» leva a pensar de imediato que tal obrigação foi concebida como sendo sistemática.

38.      Em nosso entender, é manifesto que a aplicação cumulativa de normas relativas à limitação da utilização de substâncias ou preparações perigosas só é concebível se essas normas tiverem um objecto normativo distinto. Ora, isso é precisamente o que sucede no caso em apreço.

39.      Com efeito, verificamos que a norma fixada na Directiva 91/338 é definida com recurso a um valor de referência diferente do adoptado pelo legislador comunitário na Directiva 88/378.

40.      Como referimos anteriormente, a Directiva 91/338 limita a comercialização de produtos coloridos à base de cádmio à observância de uma norma relativa à quantidade máxima de cádmio que um produto pode conter (0,01% de material plástico). Esta norma é também designada por «norma de peso».

41.      Quanto à Directiva 88/378, recordamos que o título II, ponto 3, 2, primeiro parágrafo, do anexo II da mesma define uma norma máxima de biodisponibilidade de cádmio (0,6 micrograma), a fim de proteger o utilizador do brinquedo contra os riscos relacionados com as propriedades químicas do produto. Como referimos, esta norma, também designada por «norma de sucção» ou de «norma de diluição», permite somente calcular a capacidade de uma substância, no caso em apreço o cádmio, de se dispersar e de ser absorvida pelo organismo e não permite de modo algum calcular o teor de cádmio de um produto.

42.      Assim, não se pode deixar de observar que as normas fixadas nas Directivas 91/338 e 88/378 são definidas com recurso a valores de referência distintos (quantidade e biodisponibilidade, respectivamente) adaptados aos objectivos prosseguidos pelo legislador comunitário.

43.      A este respeito, a Comissão das Comunidades Europeias considerou, no seu documento de orientação n.° 3 sobre a aplicação da Directiva 88/378/CEE sobre a segurança dos brinquedos, que havia lugar à aplicação cumulativa das normas supramencionadas (17). Segundo o mesmo documento, esta directiva «exige que, em todo o caso, os brinquedos cumpram a legislação química comunitária adequada (anexo II. II. 3). Por conseguinte, os brinquedos, além de observarem o limite diário de 0,6 micrograma para a biodisponibilidade de cádmio prescrito pela Directiva 88/378/CEE, devem respeitar as restrições adicionais impostas pela Directiva 91/338/CEE, sempre que os brinquedos em causa sejam fabricados com substâncias ou preparações abrangidas pela Directiva 91/338/CEE (principalmente plásticos)».

44.      Por conseguinte, entendemos que a sistemática geral da regulamentação comunitária relativa, por um lado, à limitação da colocação no mercado e da utilização de substâncias e preparações perigosas e, por outro, à segurança dos brinquedos aponta para a aplicação cumulativa das normas prescritas pela Directiva 91/338 quanto ao teor máximo de cádmio dos produtos e das estabelecidas pela Directiva 88/378 quanto à biodisponibilidade máxima de cádmio dos brinquedos.

C –    Objectivos prosseguidos pelas Directivas 91/338 e 88/378

45.      Em nosso entender, os objectivos prosseguidos pela Directiva 91/338, longe de se oporem a esta interpretação, exigem que a proibição, imposta por essa directiva, de comercialização de produtos que apresentem um teor de cádmio superior a 0,01% de material plástico se aplica aos brinquedos abrangidos pela Directiva 88/378.

46.      Com efeito, recordamos que a Directiva 91/338 tem um duplo objectivo. Por um lado, nos termos dos seus primeiro e quinto considerandos, visa harmonizar as regulamentações nacionais relativas à colocação no mercado e à utilização de produtos que contenham cádmio. Por outro, conforme o seu segundo considerando, tem em vista a preservação do ambiente contra os efeitos nocivos provocados pela dispersão do cádmio no ecossistema e a protecção, a prazo, da saúde e da qualidade de vida dos homens (18).

47.      É face a este duplo objectivo que há que determinar o alcance do artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338.

48.      Em primeiro lugar, entendemos que a simples interpretação literal da disposição controvertida levaria manifestamente a que a directiva ficasse desprovida de qualquer efeito útil ou de uma parte significativa deste, nomeadamente quanto ao seu objectivo de harmonização.

49.      Com efeito, uma vez que a Directiva 91/338 tem por objectivo a harmonização das regras relativas às limitações à colocação no mercado e à utilização de produtos que contenham cádmio, em nosso entender é manifesto que essa finalidade ficaria seriamente comprometida se as normas que aquela prescreve não se aplicassem aos produtos que contenham cádmio abrangidos por qualquer outra regulamentação comunitária já existente, seja qual for o seu conteúdo normativo ou o seu objectivo.

50.      Assim, a título ilustrativo, não se poderia afastar a aplicação das normas definidas pela Directiva 91/338 e prescritas com vista a limitar a colocação no mercado de produtos que contenham um teor elevado de cádmio devido à existência de regulamentação comunitária anterior que regule, por exemplo, a rotulagem dos produtos ou, como sucede no processo principal, que limite a biodisponibilidade de cádmio dos brinquedos. É manifesto que tal interpretação seria totalmente incorrecta e contrária ao objectivo de harmonização prosseguido pelo legislador comunitário.

51.      Em segundo lugar, parece‑nos que a exclusão da aplicação da Directiva 91/338, por a Directiva 88/378 já ser aplicável, seria contrária aos objectivos próprios de protecção do ambiente prosseguidos pela primeira destas directivas.

52.      Com efeito, a Directiva 91/338 prossegue objectivos que só parcialmente coincidem com os da Directiva 88/378. Enquanto esta última se destina a proteger a saúde e segurança dos utilizadores de brinquedos, a Directiva 91/338 insere‑se, sobretudo, no programa da acção comunitária de luta contra a poluição ambiental pelo cádmio. Esta directiva apenas tem em vista a preservação a prazo da saúde humana.

53.      Por conseguinte, a exclusão da aplicação da Directiva 91/338 aos brinquedos susceptíveis de constituir, a prazo, resíduos perigosos para o ambiente seria contrária aos objectivos prosseguidos pelo legislador comunitário.

54.      Com efeito, os brinquedos em causa no processo principal, ainda que cumpram os requisitos de segurança prescritos pela Directiva 88/378, contêm, não obstante, uma quantidade de cádmio superior ao limiar fixado pela Directiva 91/338. Assim, se não se aplicar esta última directiva, corre‑se o risco de chegar uma situação em que se torna lícita a comercialização de um brinquedo que tem um teor de cádmio elevado, se desse brinquedo se desprender uma quantidade de cádmio que não ultrapasse o limite fixado pela Directiva 88/378. Tal produto, ainda que cumpra as regras de segurança dos brinquedos, não seria compatível com os objectivos da Directiva 91/338 e com as exigências de protecção e melhoramento da qualidade do ambiente referidas nos artigos 2.° CE e 174.°, n.° 1, CE (19).

55.      A Directiva 91/338 é, pois, um complemento indispensável à aplicação da Directiva 88/378. Para o comprovar, recorde‑se que o legislador comunitário exigiu, na Directiva 88/378, além da aplicação das normas relativas à biodisponibilidade de cádmio prescritas pela mesma directiva a aplicação das restrições adicionais fixadas pelas legislações comunitárias relativas às limitações à utilização de substâncias e preparações perigosas, entre as quais se inclui a Directiva 91/338.

56.      Nestes termos, entendemos que os brinquedos devem estar sujeitos não só aos requisitos da Directiva 88/378, relativa à segurança dos brinquedos, mas também às restrições adicionais estabelecidas pela Directiva 91/338, relativa às limitações à colocação no mercado e à utilização de substâncias e preparações perigosas. Em nosso entender, só a aplicação cumulativa destas directivas permite responder às exigências relacionadas com a protecção da saúde pública e do ambiente referidas no preâmbulo dessas duas directivas e formuladas no Tratado.

57.      Consequentemente, entendemos que os objectivos prosseguidos pela Directiva 91/338 impõem a aplicação, aos brinquedos abrangidos pela Directiva 88/378, da proibição de comercializar produtos que apresentem um teor de cádmio superior a 0,01% de material plástico.

58.      Face ao que antecede, entendemos, portanto, que o artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338 deve ser interpretado no sentido de que as disposições da mesma directiva não são aplicáveis aos produtos que contenham cádmio já abrangidos por outras legislações comunitárias que tenham um objecto normativo semelhante, isto é, que condicionem a colocação no mercado do produto em causa à observância de uma norma relativa ao teor máximo de cádmio (20).

59.      Pelo exposto, propomos ao Tribunal que responda à questão prejudicial submetida pelo Hoge Raad der Nederlanden que o artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338 não obsta a que a proibição, prevista na referida directiva, de comercialização de produtos que apresentem um teor de cádmio superior a 0,01% de material plástico, se aplique a produtos como os brinquedos abrangidos pela Directiva 88/378.

V –    Conclusão

60.      Pelo exposto, propomos ao Tribunal que responda à questão submetida pelo Hoge Raad der Nederlanden da seguinte forma:

«O artigo 1.°, segundo período, da Directiva 91/338/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1991, que altera pela décima vez a Directiva 76/769/CEE relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros respeitantes à limitação da colocação do mercado e da utilização de algumas substâncias e preparações perigosas, deve ser interpretado no sentido de que não obsta a que a proibição, prevista na mesma directiva, de comercialização de produtos que apresentem um teor de cádmio superior a 0,01% de material plástico, se aplique aos brinquedos abrangidos pela Directiva 88/378 do Conselho, de 3 de Maio de 1988, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à segurança dos brinquedos.»


1 – Língua original: francês.


2 – O cádmio é um metal cujas propriedades físico-químicas são próximas das do zinco. É utilizado principalmente para o fabrico de acumuladores eléctricos e de pigmentos de cores e serve de estabilizador para os materiais plásticos. Também pode entrar na composição de numerosas ligas e de revestimentos anti‑corrosão. Podem ocorrer descargas de cádmio em numerosas fases dos processos de produção, fabrico e utilização dos produtos, bem como durante a eliminação de resíduos.


3 – Directiva de 3 de Maio de 1988, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à segurança dos brinquedos (JO L 187, p. 1).


4 – Directiva de 18 de Junho de 1991, que altera pela décima vez a Directiva 76/769/CEE relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros respeitantes à limitação da colocação do mercado e da utilização de algumas substâncias e preparações perigosas (JO L 186, p. 59).


5 – Nos termos do seu artigo 1.º, n.º 1, por «brinquedo» deve entender‑se «qualquer produto concebido ou manifestamente destinado a ser utilizado em jogos, por crianças de idade inferior a 14 anos». O anexo I desta directiva enumera os produtos que não são considerados brinquedos na acepção da mesma.


De acordo com o seu artigo 2.º, n.º 3, a «colocação no mercado» abrange «tanto a venda como a distribuição a título gratuito».


6 –      Sublinhado nosso.


7 – Directiva de 27 de Julho de 1976 (JO L 262, p. 201; EE 13 F5 p. 208).


8 – A lista destes produtos consta do anexo à referida directiva.


9 –      Sublinhado nosso.


10 – C‑314/99, Colect., p. I‑5521, n.º 7.


11 – V. o mesmo ponto 24, 1.1) e 1.2), 2.1) e 3), respectivamente.


12 – Stb. 1991, n.° 269, a seguir «decreto relativo aos brinquedos».


13 – Stb. 1990, a seguir «decreto relativo ao cádmio».


14 – Sublinhado nosso.


15 – Como o Parlamento Europeu observou na sua resolução de 21 de Fevereiro de 1975 relativa ao seu parecer sobre a proposta de directiva relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros respeitantes à limitação da colocação no mercado e da utilização de algumas substâncias e preparações perigosas apresentada pela Comissão das Comunidades Europeias ao Conselho (JO 1975, C 60, p. 49), esta proposta constitui um «complemento indispensável às directivas [...] já aplicáveis às substâncias e preparações perigosas».


16 – Sublinhado nosso.


17 – V., na Internet, o sítio http://www.europa.eu.int/comm/enterprise/toys/documents/gd003_fr.pdf.


18 – Recorde‑se, a este respeito, que nos termos dos seus primeiro, segundo terceiro considerandos, a Directiva 76/769 foi adoptada com a finalidade de garantir «a protecção da população», de «contribuir para a protecção do ambiente contra todas as substâncias e preparações que apresentem caracteres de ecotoxicidade ou que possam poluir o ambiente» e, por último, tendo em vista «a restauração, a preservação e a melhoria da qualidade de vida dos homens».


19 – O artigo 174.º, n.º 1, CE, precisa que a política da Comunidade no domínio do ambiente deve contribuir não só para «a preservação, a protecção e a melhoria da qualidade do ambiente» mas também para a protecção da saúde humana.


20 – V., a título ilustrativo, o anexo I, ponto 1, da Directiva 91/157/CEE do Conselho, de 18 de Março de 1991, relativa às pilhas e acumuladores contendo determinadas matérias perigosas (JO L 78, p. 38), que proíbe a colocação no mercado de pilhas e de acumuladores que contenham mais de 0,025%, em peso, de cádmio e o artigo 4.º, alínea a), segundo travessão, da Directiva 88/388/CEE do Conselho, de 22 de Junho de 1988, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros no domínio dos aromas destinados a serem utilizados nos géneros alimentícios e dos materiais de base para a respectiva produção (JO L 184, p. 61), que proíbe a comercialização e utilização de aromas que contenham mais de 1 mg/kg de cádmio.