Language of document : ECLI:EU:C:2003:159

Conclusions

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
JEAN MISCHO
apresentadas em 13 de Março de 2003 (1)



Processo C-9/02



Hughes de Lasteyrie du Saillant

contra

Ministère de l'Économie, des Finances et de l'Industrie


[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d'État (França)]


«Liberdade de estabelecimento – Legislação fiscal – Transferência do domicílio fiscal – Regras de tributação de mais‑valias de valores mobiliários»






1.       No quadro de um litígio relativo a disposições francesas que regem a tributação de certas mais‑valias em caso de transferência do domicílio fiscal para fora de França, o Conseil d’État (França) solicitou a intervenção do Tribunal de Justiça quanto a uma questão prejudicial relativa ao princípio da liberdade de estabelecimento que figura no artigo 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE).

I – O enquadramento jurídico

2.       O artigo 24.° da Lei de finanças francesa para 1999 (n.° 98/1266, de 30 de Dezembro de 1998) (JORF n.° 303, de 31 de Dezembro de 1998, a seguir «Lei de Finanças para 1999»), na sua redacção em vigor à data do Decreto n.° 99‑590, de 6 de Julho de 1999, que aplica o artigo 24.° da Lei de finanças para 1999, relativo às regras de tributação de certas mais‑valias de valores mobiliários em caso de transferência do domicílio fiscal para fora de França (JORF n.° 160, de 13 de Julho de 1999, a seguir «Decreto n.° 99‑590»), dispõe:

«I.
[...]

II.
É aditado ao code général des impôts [Código Geral dos Impostos] um artigo 167.° bis, com a seguinte redacção:

‘Art. 167.° bis.

I. 1.
Os contribuintes que tenham tido domicílio fiscal em França durante pelo menos seis dos últimos dez anos são tributáveis, à data da transferência do seu domicílio fiscal para fora de França, pelas mais‑valias verificadas sobre os direitos sociais previstos no artigo 160.°

2.
A mais‑valia verificada é determinada pela diferença, apurada segundo as regras previstas nos artigos 758.° e 885.° T bis, entre o valor dos direitos sociais à data da transferência do domicílio para fora de França e o seu preço de aquisição pelo contribuinte ou, em caso de aquisição a título gracioso, o seu valor considerado para a determinação dos direitos de transmissão.

As perdas verificadas não são imputáveis às mais‑valias da mesma natureza efectivamente realizadas por outra via.

3.
A mais‑valia verificada é declarada nas condições previstas no n.° 2 do artigo 167.°

II. 1.
O pagamento do imposto relativo à mais‑valia verificada pode ser diferido até ao momento em que se efectue a transmissão, o resgate, o reembolso ou a anulação dos direitos sociais em causa.

A suspensão do pagamento está sujeita à condição de o contribuinte declarar o montante da mais‑valia verificada nas condições previstas no ponto I, requerer o benefício da suspensão, designar um representante com domicílio em França autorizado a receber as comunicações relativas à matéria colectável, à cobrança e ao contencioso tributário e constituir, antes da sua partida, junto do tesoureiro encarregado da cobrança, garantias bastantes para assegurar a cobrança do crédito fiscal.

A suspensão do pagamento prevista no presente artigo tem por efeito suspender a prescrição da acção de cobrança até à data do evento que provocar a sua cessação. É equiparada à suspensão do pagamento prevista no artigo L. 277 do livre des procédures fiscales [Código de Processo Tributário] relativamente à aplicação dos artigos L. 208, L. 255 e L. 279 do mesmo diploma.

Para a imputação ou para a restituição do crédito fiscal, dos créditos de impostos e das imposições ou retenções não liberatórias, abstrai‑se do imposto em relação ao qual a suspensão de pagamento é pedida por aplicação do presente artigo.

2.
Os contribuintes que beneficiam da suspensão de pagamento por aplicação do presente artigo estão sujeitos à declaração prevista no n.° 1 do artigo 170.° O montante cumulado dos impostos em situação de suspensão de pagamento é indicado nessa declaração, à qual é junto um registo, redigido num modelo emitido pela Administração, em que figure o montante do imposto atinente aos títulos em causa, relativamente ao qual a suspensão de pagamento não cessou, bem como, tal sendo o caso, a natureza e a data do evento que provoca a cessação da suspensão.

3.
Sem prejuízo do n.° 4 e quando o contribuinte beneficiar da suspensão de pagamento, o imposto devido por aplicação do presente artigo é pago até 1 de Março do ano seguinte ao da cessação da suspensão.

Todavia, o imposto cujo pagamento tenha sido diferido apenas é exigível até ao limite do seu montante calculado com base na diferença entre, por um lado, o preço, em caso de cessão ou de resgate, ou o valor, nos restantes casos, dos títulos em causa à data do evento que provoca a cessação da suspensão e, por outro, o respectivo preço ou valor de aquisição determinado por aplicação do n.° 2 do ponto I. O excesso é objecto de desagravamento oficioso. Neste caso, o contribuinte fornecerá, em apoio da declaração mencionada no n.° 2, os elementos de cálculo considerados.

O imposto pago localmente pelo contribuinte e relativo à mais‑valia efectivamente realizada fora de França é imputável no imposto sobre o rendimento liquidado em França, se for comparável a esse imposto.

4.
A falta de apresentação da declaração e do registo referidos no n.° 2 ou a omissão total ou parcial das informações que neles devem figurar implicam a exigibilidade imediata do imposto que beneficiava da suspensão de pagamento.

III.
No termo do prazo de cinco anos seguinte à data da partida ou na data em que o contribuinte transfira novamente o seu domicílio para França, se este evento for anterior, o imposto liquidado nos termos do ponto I é oficiosamente reduzido, na medida em que se refira a mais‑valias relativas aos direitos sociais que, nessa data, continuem no património do contribuinte.

IV.
As condições de execução do presente artigo, nomeadamente as regras que permitem evitar a dupla tributação das mais‑valias verificadas, bem como as obrigações de declaração dos contribuintes e as regras de suspensão do pagamento, são fixadas por decreto do Conseil d’État.’

V.
As disposições do presente artigo são aplicáveis aos contribuintes que transferirem o seu domicílio para fora de França a partir de 9 de Setembro de 1998.»

3.       O artigo 160.°, I, do code général des impôts (a seguir «CGI»), na sua redacção em vigor à data do Decreto n.° 99‑590, está redigido como segue:

«Quando um sócio, accionista, comanditário ou titular de participações beneficiárias cede, durante a existência da sociedade, total ou parcialmente os seus direitos sociais, o excedente do preço de cessão sobre o preço de aquisição – ou o valor em 1 de Janeiro de 1949, se for superior – desses direitos é tributado exclusivamente em sede de imposto sobre o rendimento à taxa de 16%. Em caso de cessão de um ou vários títulos pertencentes a uma série de títulos da mesma natureza adquiridos por preços diferentes, o preço de aquisição a considerar é o valor médio ponderado de aquisição desses títulos. Em caso de cessão de títulos após o encerramento de um plano de poupança em acções definido no artigo 163.° quinquies D ou a remição após o oitavo ano, considera‑se que o preço de aquisição é igual ao seu valor à data em que o cedente deixou de beneficiar, em relação a esses títulos, das vantagens previstas nos pontos 5.° bis e 5.° ter do artigo 157.° e no ponto IV do artigo 163.° quinquies D.

A tributação da mais‑valia assim realizada está subordinada somente à condição de que os direitos directa ou indirectamente detidos sobre os lucros da sociedade pelo cedente ou pelo seu cônjuge, seus ascendentes e descendentes tenham ultrapassado em conjunto 25% desses lucros em qualquer momento no decurso dos cinco últimos anos. Todavia, quando a cessão for permitida em proveito de uma das pessoas visadas no presente parágrafo, a mais‑valia é isenta se a totalidade ou parte desses direitos sociais não for revendida a um terceiro num prazo de cinco anos. Se tal não acontecer, a mais‑valia é tributada em nome do primeiro cedente a título do ano da revenda de direitos ao terceiro.

[...]

As menos‑valias sofridas no decurso de um ano são imputáveis exclusivamente nas mais‑valias da mesma natureza realizadas no decurso do mesmo ano ou dos cinco anos seguintes.

[...]

As mais‑valias tributáveis em aplicação do presente artigo, bem como as menos‑valias, devem ser declaradas nas condições previstas no n.° 1 do artigo 170.°, segundo as regras especificadas por decreto.»

4.       Nos termos do artigo 3.°, primeiro parágrafo, do Decreto n.° 99‑590:

«Os contribuintes que transferiram o seu domicílio fiscal para fora de França entre 9 de Setembro e 31 de Dezembro de 1998 devem subscrever, até 30 de Setembro de 1999, a declaração rectificativa prevista no n.° 2 do artigo 167.° do Código Geral dos Impostos, a título de mais‑valias tributáveis em aplicação do n.° 1 bis do artigo 167.° e do ponto I do artigo 167.° bis do mesmo código, bem como o formulário especial previsto no artigo 91.° undecies do anexo II ao Código Geral dos Impostos.»

5.       O artigo R.*280‑1 do livre des procédures fiscales (Código de Processo Tributário, a seguir «LPF»), aditado pelo Decreto n.° 99‑590, está redigido como segue:

«Os contribuintes que pretendam beneficiar da suspensão de pagamento prevista no ponto II do artigo 167.° bis do Código Geral dos Impostos devem fazer chegar ao tesoureiro responsável pelos não residentes uma proposta de prestação de garantias numa das formas previstas no segundo parágrafo do artigo R.*277‑1, o mais tardar, oito dias antes da data da transferência do domicílio para fora de França. Disso será emitido recibo.

As disposições do terceiro parágrafo do artigo R.*277‑1, dos artigos R.*277‑2 a R.*277‑4 e do artigo R.*277‑6 são aplicáveis.»

6.       O artigo R.*277‑1 do LPF prevê:

«O tesoureiro competente convida o contribuinte que pediu para adiar o pagamento das imposições a constituir as garantias previstas no artigo L. 277. O contribuinte dispõe de um prazo de quinze dias a contar da recepção do convite formulado pelo tesoureiro para dar a conhecer as garantias que se compromete a constituir.

Essas garantias podem ser constituídas por um pagamento em numerário que será efectuado numa conta provisória na Tesouraria, por créditos sobre o Tesouro, pela apresentação de uma caução, por valores mobiliários, por mercadorias depositadas em armazéns aprovados pelo Estado e objecto de um warrant endossado à ordem do Tesouro, por afectações hipotecárias e pelo penhor de um estabelecimento comercial.

Se o tesoureiro considerar que não pode aceitar as garantias oferecidas pelo contribuinte por elas não satisfazerem as condições previstas no segundo parágrafo, notificar‑lhe‑á a sua decisão por carta registada.»

7.       Nos termos do artigo R.*277‑2 do LPF:

«Em caso de depreciação ou insuficiência posteriormente revelada das garantias constituídas, a Administração pode, em qualquer momento, nas condições previstas nos artigos L. 277 e L. 279, solicitar ao devedor, por carta registada com aviso de recepção, um complemento de garantia para assegurar a cobrança da quantia contestada. Os procedimentos são retomados se o devedor não der cumprimento, no prazo de um mês, a esse pedido.»

II – O litígio no processo principal

8.       Hughes de Lasteyrie du Saillant (a seguir «H. de Lasteyrie») deixou a França em 12 de Setembro de 1998, para se instalar na Bélgica. Detinha nessa data ou detivera num qualquer momento no decurso dos cinco anos anteriores à sua partida de França, directa ou indirectamente com os membros do seu agregado familiar, títulos que davam direito a mais de 25% dos lucros sociais de uma sociedade sujeita a imposto sobre as sociedades e que tem a sua sede em França. Sendo o valor venal desses títulos então superior ao seu preço de aquisição, H. de Lasteyrie foi tributado sobre as mais‑valias latentes em conformidade com o disposto no artigo 167.° bis do CGI e com as suas disposições de execução.

9.       H. de Lasteyrie pediu ao Conseil d’État que anulasse o Decreto n.° 99‑590 por excesso de poder, alegando a ilegalidade do artigo 167.° bis do CGI pelo motivo de esse artigo ser contrário ao direito comunitário.

10.     O Conseil d’État considera, em primeiro lugar, que essas disposições, contrariamente ao que sustenta H. de Lasteyrie, não têm por objecto nem por efeito sujeitar a quaisquer restrições ou condições o exercício efectivo, pelas pessoas por elas visadas, da liberdade de ir e vir. Em segundo lugar, lembrou que o artigo 52.° do Tratado se opõe à instituição por um Estado‑Membro de regras que tenham por efeito criar entraves ao estabelecimento de alguns dos seus nacionais no território de outro Estado‑Membro.

11.     Em seguida, o Conseil d’État indica que o artigo 167.° bis do CGI prevê a sujeição imediata dos contribuintes que se preparam para transferir para fora de França o seu domicílio fiscal, nas condições por ele definidas, a uma tributação calculada sobre as mais‑valias ainda não realizadas e que, por essa razão, não seriam tributadas se os referidos contribuintes mantivessem em França o seu domicílio.

12.     Todavia, refere ainda que o artigo 167.° bis do CGI contém disposições que permitem evitar, em caso de suspensão de pagamento, que esses contribuintes tenham, em definitivo, de suportar uma carga fiscal à qual não teriam estado sujeitos, ou mais pesada que aquela a que teriam estado sujeitos, se tivessem conservado o seu domicílio em França e que, além disso, lhes concedem, no termo de um prazo de cinco anos, o benefício de um desagravamento, na medida em que os direitos sociais portadores das mais‑valias continuem, então, a figurar no seu património, tendo os interessados a faculdade de solicitar a suspensão do pagamento da tributação até esse termo.

13.     O Conseil d’État sublinha, igualmente, que a obtenção dessa suspensão está subordinada à condição de os contribuintes constituírem garantias adequadas a assegurar a cobrança do imposto. Tendo em conta as sujeições que a constituição de tais garantias pode comportar, o Conseil d’État coloca a questão de saber se o direito comunitário se opõe à regulamentação em causa.

III – A questão prejudicial

14.     Considerando que, na causa de que é chamado a conhecer, o alcance das normas comunitárias é incerto e que uma decisão sobre este ponto é necessária para a solução do litígio, o Conseil d’État decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, a seguinte questão prejudicial:

«O princípio da liberdade de estabelecimento consagrado no artigo 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE) opõe‑se a que um Estado‑Membro institua, para efeitos de prevenção do risco de evasão fiscal, um mecanismo de tributação das mais‑valias em caso de transferência do domicílio fiscal, tal como o atrás descrito [?]»

IV – Análise

A – Quanto à aplicabilidade do artigo 52.° do Tratado

15.     Os Governos alemão e neerlandês alegam que o despacho de reenvio não permite determinar se H. de Lasteyrie é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 52.° do Tratado. Lembrando que essa disposição visa o acesso às actividades não assalariadas e ao seu exercício, afirmam que não se pode deduzir do despacho de reenvio que o litígio no processo principal diga respeito a tais actividades.

16.     A esse propósito, o Governo neerlandês sublinha que não se descortina se o recorrente no processo principal dispõe, numa sociedade, de um poder tal que se possa considerar que a controla, ou se exerce uma qualquer actividade, por exemplo como director de tal sociedade. Ora, segundo o Governo alemão, a simples detenção de participações de sociedades e de títulos mobiliários não equivale ao acesso a uma actividade independente no «Estado de destino» nem ao seu exercício.

17.     Segundo ambos os governos, também não se sabe se as eventuais actividades profissionais de H. de Lasteyrie se desenrolam em França ou no novo Estado de residência. O despacho de reenvio também não especifica se o requerente no processo principal fez a mudança por motivos privados ou profissionais. Ora, se ele se tiver contentado em transferir o seu domicílio, resulta do acórdão Werner  (2) que a simples transferência de domicílio não faz entrar o requerente do processo principal no âmbito de aplicação do Tratado.

18.     É, no entanto, forçoso reconhecer que, nas observações que apresentou ao Tribunal de Justiça e que não foram contrariadas na audiência, H. de Lasteyrie expõe que transferiu o seu domicílio fiscal para a Bélgica, em 12 de Setembro de 1998, a fim de aí exercer a sua actividade profissional. Deve, pois, considerar‑se resolvida de forma afirmativa a questão de saber se a deslocação que constituiu o facto gerador da tributação em causa no processo principal entra no âmbito de aplicação do Tratado.

19.     É, todavia, com razão que a Comissão observa que não resulta dos autos se a actividade de H. de Lasteyrie na Bélgica era a de um trabalhador assalariado, que é abrangida pelo artigo 39.° CE, ou não, caso em que o artigo 43.° CE seria aplicável. Dado que o órgão jurisdicional de reenvio, ao qual, segundo jurisprudência constante  (3) , incumbe apreciar a pertinência da questão submetida, se refere à liberdade de estabelecimento, é sob este ângulo que nos propomos analisar o problema.

20.     De qualquer forma, deve sublinhar‑se, com a Comissão, que o raciocínio efectuado em relação ao artigo 43.° CE é transponível para o artigo 39.° CE do Tratado.

B – Quanto à existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento

21.     O Governo francês não contesta a existência de um entrave e concentra as suas observações sobre a questão de eventuais justificações para ele. Os Governos dinamarquês e neerlandês consideram, por seu lado, não estarem em presença de uma restrição à liberdade de estabelecimento. Apoiam‑se sobre a argumentação seguinte.

22.     O primeiro sublinha, a esse propósito, que as regras francesas em causa não têm por efeito, directo ou indirecto, impedir os nacionais franceses de se estabelecerem noutro Estado‑Membro e que não há qualquer indício que permita afirmar que a tributação das mais‑valias em causa limita a possibilidade de os referidos nacionais se estabelecerem noutro Estado‑Membro.

23.     Os Governos dinamarquês e neerlandês acrescentam que, de qualquer forma, não há necessariamente cobrança de imposto no momento da transferência do domicílio. Com efeito, o contribuinte poderia escapar‑lhe constituindo uma garantia, exigência relativamente à qual não poderá considerar‑se que impede, em si, os nacionais franceses de se estabelecerem no estrangeiro.

24.     O Governo neerlandês especifica, além disso, que a tributação é reduzida oficiosamente, ou mesmo reconduzida a zero, se, e na medida em que, após cinco anos, não tiver havido alienação dos títulos mobiliários em causa. Daí conclui que uma eventual restrição é demasiado aleatória e indirecta para se poder considerar que é susceptível de entravar efectivamente a liberdade de estabelecimento  (4) .

25.     Esses diversos argumentos conexionam‑se, portanto, com duas ordens de considerações: a medida em causa não proíbe a um nacional francês exercer o seu direito à livre circulação e só o afecta de forma insignificante.

26.     É, no entanto, forçoso sublinhar que o facto de as regras controvertidas não terem por objectivo ou por efeito proibir uma pessoa de se estabelecer noutro Estado‑Membro não pode ser determinante no contexto do presente processo. Resulta, com efeito, da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a liberdade de estabelecimento pode ser entravada por uma medida nacional que não comporte qualquer proibição mas seja simplesmente de natureza a dissuadir um operador de fazer uso dessa liberdade  (5) .

27.     Esse princípio aplica‑se, bem entendido, também às disposições fiscais. Não há qualquer necessidade de recordar, com efeito, que, embora a fiscalidade directa seja abrangida pela competência dos Estados‑Membros, é de jurisprudência constante que estes devem exercê‑la no respeito do direito comunitário  (6) .

28.     Lembremos, finalmente, com o conjunto dos intervenientes, que as considerações anteriormente enunciadas são igualmente válidas quando a medida nacional em causa é da iniciativa do Estado‑Membro de origem e não do de destino do operador que deseje exercer a liberdade de estabelecimento que lhe confere o direito comunitário. Com efeito, esta opõe‑se a que um Estado‑Membro crie entraves ao estabelecimento de um dos seus nacionais noutro Estado‑Membro  (7) .

29.     Deve, portanto, averiguar‑se se as disposições fiscais referidas pelo despacho de reenvio, que, por certo, não proíbem um operador de exercer o seu direito à livre circulação, são todavia de natureza a restringir o exercício dessa liberdade, dissuadindo o referido operador de se estabelecer noutro Estado‑Membro.

30.     Ora, como expõem tanto o recorrente no processo principal como a Comissão, é forçoso reconhecer que as referidas disposições fazem suportar a um contribuinte desejoso de deixar o território francês consideráveis desvantagens em relação a uma pessoa que continue a residir em França.

31.     Assim, o contribuinte que deseje transferir o seu domicílio fiscal para fora de França, deve, em primeiro lugar, apresentar uma declaração das mais‑valias latentes que afectam os valores mobiliários que detém, enquanto um contribuinte que não exerça o seu direito à livre circulação não tem de proceder a qualquer declaração antes da realização de uma mais‑valia. A referida declaração deve ser apresentada nos 30 dias que precedem a transferência do domicílio para fora de França.

32.     Em seguida, e sobretudo, o contribuinte que deseje deixar o território será imediatamente devedor do imposto sobre as referidas mais‑valias. Terá, portanto, a obrigação, pelo simples facto da transferência do seu domicílio fiscal para fora de França, de pagar um imposto sobre um ganho ainda não realizado enquanto, se ficasse em França, as mais‑valias em causa só seriam tributáveis após a sua realização.

33.     Resulta, portanto, de forma indiscutível que tal regime penaliza os contribuintes que deixam a França em relação àqueles que aí ficam e introduz uma diferença de tratamento clara. Como observa, com razão, a Comissão, trata‑se nesse caso de uma restrição típica «à saída» do território.

34.     Essa conclusão não é afectada pelas regras aplicáveis à tributação, contrariamente ao que afirmam os Governos dinamarquês e neerlandês.

35.     Com efeito, a única possibilidade de fugir ao pagamento imediato do imposto e, portanto, de obter a igualdade de tratamento, excepto quanto à obrigação de declaração, com os contribuintes que não deixam o território francês, é a de beneficiar de uma suspensão. Ora, esta não é automática mas está, pelo contrário, sujeita a condiçᄉes que impõem diligências e despesas ao contribuinte desejoso de se estabelecer noutro Estado‑Membro

36.     Assim, este é obrigado a apresentar um pedido específico de suspensão, no momento em que faz a declaração das mais‑valias latentes. O recorrente no processo principal especifica, a esse propósito, que a inobservância desse prazo se salda pela impossibilidade de beneficiar da suspensão. O contribuinte deve, além disso, proceder à designação de um representante para efeitos tributários habilitado a representá‑lo junto da administração fiscal. E está ainda sujeito à obrigação anual de comunicar à administração um registo da evolução das mais‑valias em causa, no caso não realizadas, lembremo‑lo. Um atraso no cumprimento dessa obrigação é igualmente susceptível de implicar a perda do direito à suspensão.

37.     Finalmente, e sobretudo, o contribuinte desejoso de transferir o seu domicílio fiscal para outro Estado‑Membro está sujeito à obrigação de constituir uma garantia adequada a assegurar a cobrança do crédito do fisco. Como sublinha o recorrente no processo principal, uma vez que, no caso, as mais‑valias em causa não estão ainda realizadas, o contribuinte não disporá de um rendimento correspondente à tributação que lhe é exigida e será, por isso, obrigado a constituir as garantias exigidas pelo recurso a outras fontes de rendimento.

38.     Agindo assim, confrontar‑se‑á necessariamente com despesas, por exemplo para constituir garantias bancárias ou hipotecárias. É verdade que, como alega o Governo neerlandês, poderá escapar a esse tipo de despesas dando em garantia os títulos que estão na origem da tributação exigida. Tanto H. de Lasteyrie como a Comissão alegam, no entanto, sem terem sido contraditados, que essa possibilidade não existe para títulos não cotados na bolsa, situação que está longe de ser rara quando estão em causa participações substanciais em sociedades.

39.     A esse propósito, a Comissão sublinhou, sem ser contraditada, que os títulos são admitidos como garantia por 100% do seu valor, se se tratar de valores sobre os quais o Banco de França permite adiantamentos sobre os títulos, e por 60% do seu preço de mercado, se se tratar de outros títulos cotados numa bolsa francesa. Em contrapartida, os títulos não cotados numa bolsa francesa não são aceites, na ausência de uma caução bancária que garanta o pagamento integral dos impostos devidos.

40.     Partilhamos o ponto de vista da Comissão segundo o qual tal tratamento diferenciado é manifestamente discriminatório, tanto do ponto de vista dos investidores, que assim são encorajados a deter títulos de sociedades cotadas em bolsas francesas, como do ponto de vista destas sociedades, que assim se tornam mais atractivas na perspectiva de tais investidores.

41.     A Comissão nota, além disso, que é surpreendente que, por um lado, a República Francesa considere que a matéria colectável para efeitos da tributação assenta em 100% do valor dos títulos quando, por outro lado, considera que a matéria colectável para efeitos de garantia assenta em apenas 60% desse mesmo valor, ou mesmo em 0%.

42.     Sublinhemos, todavia, que o entrave aqui em causa está ligado à própria existência da obrigação de constituir uma garantia, existência essa que depende das modalidades dessa constituição.

43.     De qualquer forma, verifica‑se que, se é verdade que a suspensão deve ser considerada como uma alternativa menos penalizante que a tributação imediata do contribuinte que procura transferir o seu domicílio fiscal para outro Estado‑Membro, não é menos verdade que essa possibilidade é apenas acessível mediante constrangimentos que não se poderão qualificar de suficientemente aleatórios ou negligenciáveis para não serem considerados um entrave à liberdade de estabelecimento dos referidos contribuintes.

44.     Resulta, com efeito, do que precede que, para obter a suspensão, esses contribuintes devem suportar as despesas atinentes ao preenchimento das diferentes condições de que depende a concessão da suspensão, consistentes na designação de um representante para efeitos tributários, no estabelecimento de declarações de evolução das mais‑valias latentes, bem como, eventualmente, nas despesas de constituição de garantias bancárias ou hipotecárias. Além disso, devem, de qualquer forma, suportar o encargo que representa a imobilização em benefício do Fisco de uma parte, eventualmente não negligenciável, do seu património, a título de garantia.

45.     O facto de, após cinco anos, o contribuinte visado pelas disposições em causa estar no direito de beneficiar oficiosamente de uma redução do imposto, acompanhada do reembolso das despesas de constituição das garantias, se não se tiver desfeito, entretanto, dos títulos que deram lugar à tributação, não basta, em nossa opinião, para fazer desaparecer o efeito restritivo das disposições em causa. Com efeito, durante todo esse período, ele terá sido privado do gozo da parte do seu património dada em garantia. Tal é o caso mesmo que se trate dos títulos em causa. Nesse caso específico, o efeito restritivo da livre circulação não decorre do facto de não os poder alienar, pois que essa circunstância daria lugar a tributação mesmo que o contribuinte tivesse permanecido em França, mas do facto de os títulos estarem indisponíveis para outros usos que o proprietário lhe possa querer dar, como por exemplo utilizá‑los como garantia pessoal.

46.     Notemos, finalmente, que segundo a Comissão, que não foi contraditada quanto a este ponto, um sistema de tributação tal como o previsto no artigo 167.° bis do CGI restringe igualmente a liberdade de estabelecimento, porquanto constitui um obstáculo a operações de reestruturação, reagrupamento ou fusão da sociedade de que o contribuinte residente no estrangeiro é accionista. Com efeito, tais operações comportam necessariamente uma entrada ou uma troca de títulos, a anulação dos títulos anteriores e a emissão de novas acções. Ora, para os contribuintes que têm o seu domicílio em França, a entrada, a recompra, o reembolso ou a anulação de direitos sociais em causa podem ser objecto de um adiamento da tributação, em certas condições previstas no artigo 150.°‑OA do CGI. Mas, tal adiamento já não é possível em caso de transferência do domicílio para o estrangeiro. Com efeito, os títulos cuja tributação está adiada no momento da transferência tornam‑se imediatamente tributáveis por força do artigo 167.° bis do CGI. Essa mesma disposição parece excluir o benefício do adiamento da tributação em caso de cessão dos títulos no estrangeiro.

47.     Há, todavia, que observar, com o Governo francês, que a questão prejudicial não visa as disposições relativas à tributação das mais‑valias que beneficiam de um adiamento da tributação.

48.     De qualquer forma, deve concluir‑se que as disposições referidas pelo despacho de reenvio submetem os contribuintes detentores de participações substanciais que desejem transferir o seu domicílio fiscal para fora de França a diferenças de tratamento susceptíveis de restringir a liberdade de estabelecimento que o Tratado lhes reconhece. Há, portanto, que examinar se as referidas disposições são susceptíveis de uma justificação que as faça furtar‑se à proibição decorrente do artigo 43.° CE.

C – Quanto à justificação da restrição

49.     Não é contestado, no caso em apreço, que o artigo 46.° CE não é aplicável. Em contrapartida, no que respeita à possibilidade de justificar a restrição à liberdade de estabelecimento por uma das razões imperiosas de interesse geral já admitidas pelo Tribunal de Justiça em matéria fiscal, quatro argumentos são invocados pelos diferentes intervenientes.

50.     Em primeiro lugar, o Governo dinamarquês sublinha que o objectivo da regra nacional em causa é impedir a erosão fiscal do valor tributável do Estado‑Membro em causa, objectivo que foi reconhecido pelo Tribunal de Justiça como razão imperiosa no acórdão Safir  (8) . Trata‑se de evitar que os contribuintes franceses retirem vantagem das diferenças entre os regimes fiscais dos outros Estados‑Membros e o da República Francesa.

51.     A esse propósito, deve recordar‑se que resulta de jurisprudência constante que uma redução das receitas fiscais não pode ser considerada uma razão imperiosa de interesse geral que possa ser invocada para justificar uma desigualdade de tratamento, em princípio, incompatível com o artigo 43.° CE  (9) . Com efeito, tal objectivo é de natureza puramente económica e não pode, por isso, constituir uma razão imperiosa de interesse geral  (10) . Segue‑se, como observa o Governo francês, que o simples lucro cessante suportado pela administração fiscal devido a uma mudança de residência fiscal não pode justificar qualquer restrição à liberdade de circulação do contribuinte.

52.     Em segundo lugar, são invocadas a luta contra a evasão fiscal e a eficácia dos controlos fiscais. Tanto uma como outra são consideradas razões imperiosas de interesse geral, de natureza a justificar a restrição em causa, por todos os governos intervenientes, com excepção do Governo português.

53.     O Governo francês, que desenvolveu quanto a este ponto a argumentação mais detalhada, esclarece que o dispositivo legal controvertido visa impedir o que convirá chamar de abuso de direito, isto é, a utilização fraudulenta por um contribuinte das liberdades para ele decorrentes do direito comunitário. Lembra, a esse propósito, que um Estado‑Membro é livre de definir as regras de tributação das mais‑valias como entender, nomeadamente em matéria de taxas de tributação. É, portanto, perfeitamente legítimo que cada Estado‑Membro tome as medidas apropriadas a evitar que a tributação das mais‑valias seja privada da sua substância por comportamentos abusivos.

54.     No caso em apreço, constituiria tal comportamento o facto de um contribuinte transferir temporariamente o seu domicílio fiscal para fora de França antes de ceder títulos mobiliários, com o único objectivo de evitar o pagamento do imposto sobre as mais‑valias devido em França. Tratar‑se‑ia nesse caso não de um exercício normal da liberdade de estabelecimento mas de um uso abusivo dessa liberdade com o fim de contornar a lei fiscal.

55.     É a duplo título que o dispositivo legal criticado se justifica pela necessidade de garantir a eficácia dos controlos fiscais. Com efeito, ele visa, por um lado, opor‑se aos comportamentos fraudulentos atrás descritos e, por outro, garantir a eficácia da cobrança do imposto. Esta cobrança torna‑se, com efeito, muito mais onerosa e aleatória pelo facto de o devedor residir fora de França.

56.     Que deve pensar‑se destes argumentos?

57.     É indiscutível que a jurisprudência reconheceu o carácter de exigência imperiosa, de natureza a justificar uma restrição, à necessidade de assegurar a eficácia dos controlos fiscais  (11) . Tal é igualmente o caso da luta contra a evasão fiscal  (12) . Quanto a este segundo ponto, deve, no entanto, sublinhar‑se, como recorda o próprio Governo francês, que resulta da mesma jurisprudência que só é susceptível de ser justificada uma legislação que tenha por objecto específico excluir de uma vantagem fiscal as montagens puramente artificiais cuja finalidade seja contornar a lei fiscal.

58.     Ora, não é contestável que o dispositivo legal controvertido vai muito para lá desse limite. Com efeito, como observa, com razão, a Comissão, que neste contexto cita ainda os acórdãos Leur‑Bloem  (13) e Centros  (14) , a regra nacional em causa visa, de maneira geral, qualquer situação em que um contribuinte que detém participações substanciais numa sociedade sujeita ao imposto francês sobre as sociedades, transfira, por uma razão qualquer, o seu domicílio fiscal para fora de França.

59.     Criou‑se, assim, como expõe o recorrente no processo principal, uma «presunção irrefragável de fraude fiscal» na esfera de tal contribuinte. Ora, o estabelecimento de um contribuinte no estrangeiro não implica, em si, a fraude fiscal  (15) , cabendo à administração fiscal do Estado‑Membro em causa provar, caso a caso, que existe um risco de evasão fiscal.

60.     Segue‑se que, para ser conforme ao princípio de proporcionalidade, uma medida nacional não deveria, como no caso em apreço, presumir o carácter fraudulento do exercício da liberdade de estabelecimento decorrente do direito comunitário, mas poderia, em contrapartida, prever a possibilidade de a administração fiscal provar caso a caso a existência efectiva de uma fraude ou de uma evasão fiscal.

61.     O carácter desproporcionado da regra nacional transparece igualmente através do exame da diferença de tratamento entre um contribuinte que fica no estrangeiro mais de cinco anos após a sua partida de França sem vender os seus títulos e o que, ficando embora no estrangeiro pelo mesmo período, vende os seus títulos antes do esgotamento dos cinco anos. Com efeito, embora ambos deixem a França por um período igualmente longo, tendente a demonstrar que o seu comportamento não é forçosamente motivado por uma vontade de fugir ao imposto, o primeiro não pagará qualquer imposto, contrariamente ao segundo. Ora, como observa a Comissão, não se vê qualquer diferença, à luz do objectivo de prevenção das deslocalizações artificiais, e portanto temporárias, entre uma pessoa que vende os seus títulos após cinco anos e a que os cede após quatro anos ou, mesmo, um ano.

62.     O Governo francês alega, todavia, que a cessão dos títulos pouco depois da partida de França constitui um indício certo da vontade de fugir ao imposto. Não partilhamos deste ponto de vista. Com efeito, a partida para outro Estado‑Membro com a finalidade de iniciar uma nova actividade profissional é susceptível de acarretar despesas consideráveis, ligadas eventualmente a essa nova actividade ou decorrentes da necessidade de adquirir um alojamento, por exemplo. Não poderá, portanto, considerar‑se que o simples facto de ceder as participações pouco depois da transferência do domicílio basta para revelar a intenção fraudulenta. Em contrapartida, um critério constituído pela rapidez do regresso a França está, a priori, mais em relação com o objectivo de impedir o contribuinte de se furtar ao imposto pelo simples expediente de uma breve estadia noutro Estado‑Membro, durante a qual os títulos fossem cedidos.

63.     Essa consideração ilustra a segunda razão que nos conduz a concluir pelo carácter desproporcionado das regras em causa, isto é, a existência de medidas menos restritivas da liberdade de estabelecimento, susceptíveis de realizar o alegado objectivo de luta contra as deslocalizações temporárias.

64.     De que medidas poderia tratar‑se? Em nossa opinião, bastaria às autoridades nacionais prever a tributação das mais‑valias realizadas pelo contribuinte que, após uma estadia relativamente breve noutro Estado‑Membro, voltasse para França após ter cedido os seus títulos. Este regresso rápido demonstraria o carácter temporário da referida estadia e permitiria precisamente pôr em cheque o comportamento denunciado pelas autoridades francesas sem afectar a situação dos contribuintes que não têm outro objectivo que não seja o de exercer em plena boa fé a sua liberdade de estabelecimento noutro Estado‑Membro. Ao cobrar o imposto no momento do regresso, ocorrido, por hipótese, pouco depois da alienação dos títulos no decurso de uma breve estadia noutro Estado‑Membro, o Estado‑Membro interessado tiraria, de qualquer forma, a consequência do carácter fictício da localização noutro Estado‑Membro da realização da mais‑valia, tratando‑a como se ela tivesse efectivamente ocorrido em França. Proceder assim deveria permitir‑lhe, além disso, excluir qualquer dificuldade na cobrança do imposto.

65.     Os Governos francês e neerlandês sustentaram, porém, na audiência, que, no n.° 59 do acórdão X e Y, já referido, o Tribunal de Justiça declarou que um regime de prestação de caução ou de constituição de outras garantias necessárias seria conforme ao direito comunitário. É, no entanto, forçoso recordar que, nesse processo, o Tribunal de Justiça contemplou tal regime num contexto diferente, no qual não estava em causa a necessidade de prever uma medida proporcionada à hipótese de uma breve estadia de um contribuinte noutro Estado‑Membro e do seu regresso.

66.     Segue‑se que existem medidas menos restritivas das liberdades fundamentais do direito comunitário que permitiriam não só lutar contra a evasão fiscal como preservar a eficácia dos controlos fiscais.

67.     No que respeita mais especificamente a este segundo objectivo, há, para sermos exaustivos, que acrescentar o seguinte. Como atrás vimos, as modalidades de depósito de garantias operam uma discriminação em detrimento dos títulos não cotados numa bolsa francesa, cuja justificação não se descortina à luz do objectivo da eficácia dos controlos fiscais. Além disso, a regra nacional em causa não tem nada em conta a existência de diversos instrumentos susceptíveis de facilitar a cobrança do imposto devido por um contribuinte que tenha transferido o seu domicílio fiscal para outro Estado‑Membro.

68.     Assim, o requerente no processo principal sublinha que a República Francesa concluiu com um grande número de Estados‑Membros convenções destinadas a evitar a dupla tributação, as quais comportam em regra uma cláusula dita de «assistência à cobrança», pela qual os Estados‑Membros se comprometem a prestar um apoio recíproco para a cobrança dos impostos referidos pela convenção.

69.     Além disso, como o Tribunal de Justiça tem entendido em numerosas ocasiões e como recorda a Comissão, «a Directiva 77/799/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1977, relativa à assistência mútua das autoridades competentes dos Estados‑Membros no domínio dos impostos directos (JO L 336, p. 15), oferece a possibilidade de obtenção das informações necessárias, comparáveis às existentes entre os serviços fiscais no plano interno»  (16) .

70.     Decorre de tudo o que precede que a regra nacional em causa não poderá ser justificada pela luta contra a evasão fiscal ou pela necessidade de preservar a eficácia dos controlos fiscais.

71.     Em terceiro lugar, o Governo neerlandês alega que a disposição controvertida é justificada pelas exigências da coerência do sistema fiscal francês.

72.     Com efeito, na opinião deste governo, as circunstâncias do caso em apreço não diferem fundamentalmente da problemática do processo Bachmann  (17) . Em seu entender, este dizia respeito a uma «isenção» sob a forma de possibilidade de dedução de prémios, em contrapartida da qual as prestações posteriores eram tributadas. Quando a tributação posterior das prestações não estivesse garantida, a «isenção» sob a forma de dedução dos prémios sobre o rendimento não deveria ser concedida. De forma similar, o caso em apreço implica, na realidade, uma isenção temporária da tributação do aumento do património que as mais‑valias constituem, sendo este aumento tributado apenas no momento da sua realização. Esta tributação posterior compensa, portanto, a isenção temporária. Esta não deve, por conseguinte, ser concedida quando, devido à transferência para o estrangeiro do domicílio fiscal do contribuinte, a tributação posterior deixar de estar garantida.

73.     Não partilhamos desta tese, por várias razões.

74.     Em primeiro lugar, ela abstrai do facto de, como acabámos de ver, a transferência para outro Estado‑Membro do domicílio fiscal do contribuinte não significar necessariamente que a cobrança do imposto esteja comprometida.

75.     Verifica‑se, além disso, que a diferença de tratamento entre os residentes e os (futuros) não residentes não se limita a uma simples antecipação do momento em que deve ser pago um imposto que seria devido de qualquer forma. Com efeito, já não sendo o contribuinte que deixa o território por um período superior a cinco anos de qualquer forma tributável, não poderá considerar‑se que ele foi objecto de uma simples antecipação da tributação.

76.     Além disso, a aplicabilidade de regras menos favoráveis respeitantes à possibilidade de dedução das eventuais perdas, previstas no artigo 167.° bis I, 2, segundo parágrafo, do CGI, já referido, indica igualmente que não estamos em presença de uma simples antecipação do pagamento do imposto.

77.     Deve, aliás, assinalar‑se que, mesmo que tal fosse o caso, não se seguiria ainda que esta antecipação do pagamento se justificasse por uma exigência de salvaguarda da coerência do sistema fiscal. Assim, no acórdão Metallgesellschaft, já referido, o Tribunal de Justiça julgou contrárias ao Tratado disposições que impunham somente às sociedades não residentes o pagamento antecipado do imposto.

78.     Além disso, a Comissão alegou na audiência, sem ser contraditada quanto a este ponto, que as disposições em causa, ao preverem a tributação de mais‑valias na esfera dos contribuintes que já não são residentes, estão em contradição com a exigência de coerência do sistema fiscal, pois que este reconhece como princípio, nomeadamente aplicado na convenção franco‑belga de prevenção da dupla tributação, a tributação das mais‑valias pelo Estado de residência do contribuinte.

79.     Finalmente, e sobretudo, deve sublinhar‑se que as regras francesas relativas à tributação das mais‑valias não visam tributar, cedo ou tarde, o acréscimo patrimonial. Existem, com efeito, regras específicas respeitantes à tributação da fortuna. Como sublinha o recorrente no processo principal, a regra de base que rege a tributação das mais‑valias no sistema fiscal francês é a tributação das mais‑valias realizadas, isto é, de um rendimento, e não a tributação periódica do eventual acréscimo do valor do património. Por isso, ao prever, no caso dos (futuros) não residentes, um imposto cobrado por mais‑valias latentes e não realizadas, a regra controvertida é uma excepção à coerência do sistema fiscal em causa e não poderá, portanto, ser considerada a ela necessária.

80.     Em quarto lugar, deve analisar‑se a argumentação exposta pelo Governo alemão, segundo o qual é necessário ter em conta o facto de o regime fiscal em causa constituir ao mesmo tempo um regime de repartição do poder fiscal entre o Estado de partida e o de destino. A disposição em causa tem por finalidade garantir o pagamento do imposto sobre mais‑valias constituídas até ao momento de partida do contribuinte. O direito de o Estado de partida tributar essas mais‑valias resulta do facto de elas terem regularmente nascido da actividade da sociedade no Estado de partida.

81.     É, todavia, de jurisprudência que, se bem que os Estados‑Membros sejam livres de definir os critérios de repartição da competência fiscal, eles não podem, no exercício do poder de tributação assim repartido, exonerar‑se do respeito das regras comunitárias  (18) .

82.     É, além disso, forçoso observar que, no caso em apreço, a repartição do poder fiscal entre os Estados‑Membros não está em causa. Com efeito, o objecto do litígio não incide sobre o direito de as autoridades francesas protegerem a tributação das mais‑valias lutando contra as deslocalizações empreendidas com a finalidade exclusiva de iludir o imposto, mas sobre a questão de saber se as medidas adoptadas com essa finalidade são conformes às exigências da liberdade de estabelecimento.

83.     A situação difere, portanto, da que estava em causa no acórdão Gilly  (19) , citado pelo Governo alemão. Com efeito, nesse processo estava em causa um critério de repartição da competência fiscal que podia, aliás, jogar a favor ou a desfavor dos contribuintes em causa, consoante as características da sua situação. Em contrapartida, o presente processo diz respeito a regras nacionais que não decorrem necessariamente da repartição entre Estados‑Membros do poder de tributação e que são, aliás, sistematicamente desfavoráveis aos contribuintes que desejem exercer os direitos que para eles decorrem da ordem jurídica comunitária.

84.     Decorre das considerações atrás expostas que o dispositivo legal controvertido é constitutivo de uma restrição incompatível com o artigo 43.° CE e não é susceptível de ser justificado por uma razão imperiosa de interesse geral.

V – Conclusão

85.     Pelas razões que precedem, propõe‑se que se dê a seguinte resposta ao Conseil d’État:

«O artigo 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE) opõe‑se a uma legislação nacional, tal como a que está em causa no processo principal, que prevê, a cargo de todos os contribuintes que transferem o seu domicílio fiscal para outro Estado‑Membro, um mecanismo de tributação imediata das mais‑valias ainda não realizadas.»


1
Língua original: francês.


2
Acórdão de 26 de Janeiro de 1993 (C‑112/91, Colect., p. I‑429).


3
V., a título de exemplo, acórdão de 16 de Outubro de 1997, Hera (C‑304/96, Colect., p. I‑5685).


4
V. acórdão de 18 de Junho de 1998, Corsica Ferries France (C‑266/96, Colect., p. I‑3949, n.° 31).


5
V., a título de exemplo de uma jurisprudência constante, acórdão de 13 de Abril de 2000, Baars (C‑251/98, Colect., p. I‑2787).


6
V., a título de exemplo de uma jurisprudência constante, acórdão de 15 de Janeiro de 2002, Gottardo (C‑55/00, Colect., p. I‑413).


7
V. acórdão de 27 de Setembro de 1988, Daily Mail and General Trust (C‑81/87, Colect., p. 5483).


8
Acórdão de 28 de Abril de 1998 (C‑118/96, Colect., p. I‑1897).


9
V. acórdãos de 16 de Julho de 1998, ICI (C‑264/96, Colect., p. I‑4695, n.° 28); de 21 de Setembro de 1999, Saint‑Gobain ZN (C‑307/97, Colect., p. I‑6161, n.° 51); e de 8 de Março de 2001, Metallgesellschaft e o. (C‑397/98 e C‑410/98, Colect., p. I‑1727, n.° 59).


10
V., nomeadamente, acórdão de 6 de Junho de 2000, Verkooijen (C‑35/98, Colect., p. I‑4071, n.° 48).


11
V., nomeadamente, acórdão de 15 de Maio de 1997, Futura Participations e Singer (C‑250/95, Colect., p. I‑2471, n.° 31).


12
V. acórdãos ICI e Metallgesellschaft, já referidos, e, no mesmo sentido, acórdãos de 21 de Novembro de 2002, X e Y (C‑436/00, Colect., p. I‑10829, n.° 61), e de 12 de Dezembro de 2002, Lankhorst‑Hohorst (C‑324/00, Colect., p. I‑11779, n.° 37).


13
Acórdão de 17 de Julho de 1997 (C‑28/95, Colect., p. I‑4161).


14
Acórdão de 9 de Março de 1999 (C‑212/97, Colect., p. I‑1459).


15
V. acórdãos Lankhorst‑Hohorst, já referido, n.° 37; ICI, já referido, n.° 26; e Metallgesellschaft, já referido, n.° 57.


16
V., por exemplo, acórdão de 14 de Fevereiro de 1995, Schumacker (C‑279/93, Colect., p. I‑225, n.° 45).


17
Acórdão de 28 de Fevereiro de 1992 (C‑204/90, Colect., p. I‑249).


18
V. acórdão Saint Gobain ZN, já referido, n.os 57 e 58.


19
Acórdão de 12 de Maio de 1998 (C‑336/96, Colect., p. I‑2793).