Language of document : ECLI:EU:C:2009:651

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

22 de Outubro de 2009 (*)

«Incumprimento de Estado – Liberdade de estabelecimento – Directiva 96/96/CE – Legislação nacional – Condições de acesso restritivas à actividade de inspecção de veículos – Artigo 45.° CE – Actividades que fazem parte do exercício da autoridade pública – Segurança rodoviária – Proporcionalidade»

No processo C‑438/08,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 3 de Outubro de 2008,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por E. Traversa e M. Teles Romão, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Portuguesa, representada por L. Fernandes e A. Pereira de Miranda, na qualidade de agentes,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente da Terceira Secção, exercendo funções de presidente da Quarta Secção, E. Juhász, G. Arestis, J. Malenovský e T. von Danwitz (relator), juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: R. Grass,

vistos os autos,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        Com a sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao impor restrições à liberdade de estabelecimento de organismos de outros Estados‑Membros que pretendam exercer em Portugal a actividade de inspecção de veículos, nomeadamente através da subordinação da concessão de autorizações ao interesse público, da exigência de um capital social mínimo de 100 000 euros, da limitação do objecto social das empresas e de regras de incompatibilidade com outras actividades de sócios, gerentes e administradores, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 43.° CE.

 Quadro jurídico

 Regulamentação comunitária

2        O trigésimo terceiro considerando da Directiva 96/96/CE do Conselho, de 20 de Dezembro de 1996, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao controlo técnico dos veículos a motor e seus reboques (JO 1997, L 46, p. 1), dispõe:

«[…] as medidas comunitárias previstas na presente directiva são necessárias para a harmonização das regras relativas ao controlo técnico, para impedir a distorção da concorrência entre os transportadores e garantir que os veículos sejam correctamente controlados e mantidos; […]»

3        O artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 96/96 prevê:

«Em cada Estado‑Membro, os veículos a motor matriculados nesse Estado, bem como os seus reboques e semi‑reboques, devem ser submetidos a um controlo técnico periódico, nos termos da presente directiva […].»

4        O artigo 2.° desta directiva tem a seguinte redacção:

«O controlo técnico previsto na presente directiva […] deve ser efectuado pelo Estado ou por entidades de natureza pública por ele incumbidos dessa função, ou por organismos ou estabelecimentos por ele designados, eventualmente de carácter privado, autorizados para o efeito, e actuando sob a sua vigilância directa. Em particular, quando os estabelecimentos encarregados do controlo técnico funcionarem simultaneamente como oficinas de reparação de veículos, os Estados‑Membros assegurarão a objectividade e uma elevada qualidade do controlo.»

 Legislação nacional

5        Nos termos do artigo 3.° do Decreto‑Lei n.° 550/99, de 15 de Dezembro de 1999, relativo à actividade de inspecção técnica de veículos a motor (a seguir «decreto‑lei»):

«1.      A autorização para o exercício da actividade de inspecção de veículos é concedida por despacho do Ministro da Administração Interna, sob proposta da Direcção‑Geral de Viação, a pessoas colectivas, nacionais ou estrangeiras, desde que, neste último caso, se encontrem regularmente estabelecidas em território nacional.

2.      A Direcção‑geral de Viação só pode fazer a proposta referida no número anterior quando o interesse público na realização da inspecção justificar a concessão da referida autorização.»

6        Tendo, entretanto, a Direcção‑geral de Viação sido extinta, as suas competências em matéria de inspecção de veículos transitaram para o Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres.

7        O artigo 6.° do decreto‑lei preceitua:

«1.      Consideram‑se detentoras de capacidade técnica, económica e financeira as entidades que apresentem estudo demonstrativo de viabilidade e assegurem os recursos necessários para garantir a abertura e a boa gestão dos centros de inspecção.

2.      Por portaria do Ministro da Administração Interna são definidos o âmbito e a estrutura do estudo bem como os indicadores de capacidade financeira a que se refere o número anterior.»

8        Com base no n.° 2 deste artigo, foi aprovada a Portaria n.° 1165/2000, de 9 de Dezembro de 2000, que regulamentou o concurso público para instalação de centros de inspecção de veículos (a seguir «portaria»), cujo ponto 1 dispõe:

«A concessão da autorização para o exercício da actividade de inspecção de veículos depende da comprovação da capacidade técnica, económica e financeira prevista nos artigos 4.° e 6.° do Decreto‑Lei n.° 550/99, de 15 de Dezembro, através da apresentação, pelo interessado, dos seguintes elementos:

[…]

e) Documento comprovativo de que dispõe do capital social mínimo de 100 000 euros, ou o seu equivalente em escudos […]»

9        O artigo 7.° do decreto‑lei prevê:

«Não podem ser autorizadas a exercer a actividade de inspecção de veículos as entidades em relação às quais se verifique qualquer das seguintes situações:

a) Cujo objecto social não se limite ao exercício da actividade de inspecção de veículos;

b) Cujos sócios, gerentes ou administradores se dediquem ao fabrico, reparação, aluguer, importação ou comercialização de veículos, seus componentes e acessórios ou ao exercício da actividade de transportes.»

 Procedimento pré‑contencioso

10      Considerando que a legislação nacional relativa às condições de obtenção da autorização para exercer a actividade de inspecção de veículos suscita problemas de compatibilidade com o princípio da liberdade de estabelecimento consagrado no artigo 43.° CE, a Comissão deu início ao procedimento previsto no artigo 226.° CE e enviou uma notificação para cumprir à República Portuguesa, em 18 de Outubro de 2005.

11      Depois de ter obtido uma prorrogação do prazo de resposta, até 18 de Fevereiro de 2006, a República Portuguesa respondeu por carta de 25 de Abril de 2006. A Comissão, por continuar a entender, na sequência desta resposta, que a legislação em causa não é conforme com o artigo 43.° CE, enviou, em 15 de Dezembro de 2006, um parecer fundamentado a este Estado‑Membro, convidando‑o a tomar as medidas necessárias para dar cumprimento ao parecer fundamentado no prazo de dois meses a contar da sua recepção.

12      A República Portuguesa respondeu a este parecer fundamentado, primeiro, por carta de 29 de Janeiro de 2007, indicando que tinha sido elaborado um projecto legislativo de alteração do decreto‑lei, para suprimir as disposições criticadas. Por carta de 11 de Janeiro de 2008, afirmou que o referido processo de revisão deveria estar concluído até ao final de Janeiro de 2008 e, em seguida, por carta de 19 de Maio de 2008, que o processo se encontrava em fase de conclusão. Não tendo podido concluir que tinham sido adoptadas todas as medidas necessárias para tornar a legislação nacional conforme com o artigo 43.° CE, a Comissão decidiu intentar a presente acção.

 Quanto à acção

 Argumentos das partes

13      A Comissão considera, antes de mais, que a cláusula de excepção prevista no artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE, invocada pela República Portuguesa para demonstrar a compatibilidade da sua legislação com o artigo 43.° CE, não é aplicável ao presente caso.

14      Por um lado, a excepção relativa ao exercício da autoridade pública só pode ser invocada em relação a medidas discriminatórias, quando o regime de autorização em causa se aplica explicitamente tanto às entidades nacionais como às entidades estrangeiras. Por outro, esta excepção deve ser objecto de uma interpretação estrita e a sua aplicação limitada às actividades que, por si só consideradas, constituem uma participação directa e específica no exercício da autoridade pública.

15      Ora, a República Portuguesa, na sua resposta à notificação para cumprir, confirmou que a inspecção de veículos é uma actividade económica e que cabe ao direito privado regular a responsabilidade dos estabelecimentos de inspecção por danos causados durante ou no seguimento de uma inspecção. A emissão de uma ficha de inspecção ou de uma vinheta não constitui prova do exercício da autoridade pública. O facto de poderem ser impostas sanções por inobservância das regras relativas à inspecção de veículos também não é pertinente. Com efeito, a imposição de tais sanções é da competência exclusiva das autoridades policiais ou judiciais, não dispondo as empresas de inspecção de poder coercivo.

16      Por conseguinte, a Comissão sustenta que as condições de obtenção da autorização para exercer a actividade de inspecção de veículos constituem uma restrição à liberdade de estabelecimento, incompatível com o artigo 43.° CE. Em primeiro lugar, a subordinação, prevista no artigo 3.°, n.° 2, do decreto‑lei, da concessão de novas autorizações ao interesse público sujeita as pessoas colectivas de outros Estados‑Membros, que pretendam exercer esta actividade em Portugal, ao poder discricionário das autoridades nacionais competentes. Nestas condições, esta legislação não preenche as condições decorrentes da jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual, para ser justificado, um regime de autorizações administrativas prévias deve basear‑se em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente, de forma a enquadrar o exercício do poder de apreciação das autoridades nacionais.

17      O critério do interesse público não é, por outro lado, justificado por motivos de protecção da segurança rodoviária, precisando a Comissão, a este respeito, que a condição da proporcionalidade não está preenchida. Com efeito, ao não tomar em consideração o funcionamento dos centros de inspecção de veículos, o regime nacional em causa não é adequado para garantir a realização desse objectivo. Além disso, ao fazer depender a concessão da autorização do critério incerto do interesse público, vai além do necessário para atingir o objectivo da segurança rodoviária.

18      Em segundo lugar, a Comissão alega que a exigência prevista no artigo 6.°, n.° 1, do decreto‑lei, em conjugação com o ponto 1, alínea e), da portaria, de um capital social mínimo de 100 000 euros, impede, segundo o acórdão de 29 de Abril de 2004, Comissão/Portugal (C‑171/02, Colect., p. I‑5645, n.° 54), um operador comunitário que disponha de um capital social inferior de se estabelecer no território português. Alega, por outro lado, que a argumentação da República Portuguesa segundo a qual esta exigência visa assegurar a solvabilidade financeira das entidades autorizadas não é válida. Com efeito, existem meios menos restritivos para proteger os credores, como a constituição de uma garantia ou a subscrição de um contrato de seguro (acórdão Comissão/Portugal, já referido, n.° 55).

19      Em terceiro lugar, segundo a Comissão, o artigo 7.°, alínea a), do decreto‑lei, que limita o objecto social das empresas de inspecção de veículos apenas ao exercício desta actividade, também não é compatível com o artigo 43.° CE. Com efeito, os operadores que legalmente prestam outros serviços no Estado‑Membro em que estão estabelecidos seriam forçados, para poderem exercer a sua actividade em Portugal, a modificar o objecto da empresa e, possivelmente, mesmo a própria estrutura interna. O objectivo da segurança rodoviária não é invocável porquanto a disposição em causa não é adequada para atingir este objectivo e porque a qualidade da inspecção de veículos pode ser garantida através de outros processos de controlo de qualidade. Por último, no que respeita ao objectivo de minimizar as inspecções fraudulentas, a Comissão observa que não se pode presumir à partida a natureza fraudulenta das inspecções no caso de exercício de actividades associadas e que o risco de tais inspecções não existe no caso de actividades não associadas com a inspecção de veículos. Além disso, são concebíveis medidas menos restritivas.

20      A Comissão sustenta, em quarto lugar, que as regras de incompatibilidade impostas a sócios, gerentes e administradores de estabelecimentos de inspecção de veículos, por força do artigo 7.°, alínea b), do decreto‑lei, são susceptíveis de ter efeitos restritivos comparáveis na medida em que forçariam os operadores já legalmente estabelecidos noutro Estado‑Membro, e que aí se dedicam a outras actividades, a alterarem a sua estrutura interna, a separarem‑se desses sócios ou a abandonarem as actividades incompatíveis. Além disso, segundo a Comissão, essas regras não são proporcionadas aos objectivos invocados de segurança rodoviária, de objectividade das inspecções e de prevenção da fraude. Existem alternativas menos restritivas, como a obrigação de a inspecção dos veículos ligados a actividades conexas dos sócios, gerentes e administradores da empresa ser feita por outra empresa, e, inversamente, no caso um veículo ser reprovado na inspecção, a obrigação de as reparações serem efectuadas por uma empresa independente, a proibição de inspeccionar os veículos dos seus dirigentes, do seu pessoal e dos seus parentes próximos, a sujeição destes estabelecimentos a controlos sistemáticos e a implementação de um regime de sanções cíveis e penais.

21      A República Portuguesa afirma que parece indiscutível que a actividade de realização de inspecções técnicas de veículos serve o interesse público da segurança rodoviária. Alega, por um lado, que esta actividade constitui uma atribuição originária do Estado, em cujo desempenho este se pode servir da colaboração de entidades privadas, o que é corroborado pelo artigo 2.° da Directiva 96/96. A transferência para esses organismos não configura, de modo algum, uma privatização material dessa tarefa originária do Estado. É a necessidade de ter um controlo específico do Estado sobre os operadores privados autorizados a exercer essa actividade por meio de representação que justifica a adopção dos critérios controvertidos.

22      Por outro lado, estas entidades privadas que actuam em representação do Estado praticam actos de exercício de poder público. Em tese, há duas possibilidades de implementar a actividade em causa. O acto preparatório da inspecção é realizado por entidades privadas, a que se segue uma certificação pela autoridade pública, ou a inspecção e a certificação são cometidas à entidade privada, sob controlo da autoridade pública. No sistema português, o procedimento de inspecção, que tem uma função meramente preparatória, culmina com uma decisão de aprovar ou reprovar os veículos, em conformidade com as normas aplicáveis, sem nenhuma intervenção da autoridade pública administrativa. Estas decisões consubstanciam, pela sua repercussão na esfera jurídica do proprietário do veículo, actos associados ao exercício de poderes públicos.

23      Por conseguinte, a República Portuguesa considera que a actividade de inspecção de veículos está directamente relacionada com o exercício da autoridade pública. Deste modo, ainda que, por mera hipótese, fosse encarada a possibilidade da incompatibilidade das regras em causa com o artigo 43.° CE, estas encontrariam justificação no artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE.

24      Em todo o caso, a República Portuguesa alega que deu início a um processo de revisão do decreto‑lei, que se destina essencialmente a substituir o regime de autorização prévia por um sistema de concessões atribuídas por concurso. Com a adopção e a promulgação desse novo texto, inicialmente previstas para o final do primeiro trimestre de 2009 e, em seguida, para Julho de 2009, de acordo com a tréplica, as condições de autorização impostas pelo decreto‑lei e as eventuais restrições à liberdade de estabelecimento deixarão de existir.

 Apreciação do Tribunal

 Quanto à existência de uma restrição

25      A Comissão acusa, em substância, a República Portuguesa de impor, aos operadores privados que pretendam exercer no seu território a actividade de inspecção de veículos, regras de acesso incompatíveis com o artigo 43.° CE.

26      A título preliminar, há que salientar que a Directiva 96/96 tem por objectivo, nos termos do seu trigésimo terceiro considerando, harmonizar as regras relativas ao controlo técnico dos veículos, determinando, nomeadamente, como indicado no seu artigo 1.°, n.° 2, as categorias de veículos a controlar, a periodicidade desses controlos e os pontos a controlar obrigatoriamente. No entanto, esta directiva não contém nenhuma disposição relativa às regras de acesso às actividades de inspecção de veículos.

27      Embora seja verdade que, num sector que não foi objecto de harmonização completa a nível comunitário, os Estados‑Membros continuam, em princípio, a ser competentes para definir as condições de exercício das actividades desse sector, não é menos certo que devem exercer as suas competências no respeito das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado CE (v. acórdãos de 29 de Novembro de 2007, Comissão/Áustria, C‑393/05, Colect., p. I‑10195, n.° 29, e Comissão/Alemanha, C‑404/05, Colect., p. I‑10239, n.° 31 e jurisprudência citada).

28      No presente caso, coloca‑se a questão da conformidade, com o artigo 43.° CE, de uma legislação nacional que impõe determinadas condições para a obtenção da autorização para exercer a actividade de inspecção de veículos, nomeadamente a subordinação da concessão das autorizações administrativas ao critério do interesse público, a exigência de que as empresas que se pretendam estabelecer nesse mercado tenham um capital social mínimo de 100 000 euros, a limitação do objecto social dessas empresas e a imposição de regras de incompatibilidade aos seus sócios, gerentes e administradores.

29      É jurisprudência assente que devem ser consideradas restrições à liberdade de estabelecimento todas as medidas que proíbam, perturbem ou tornem menos atractivo o exercício dessa liberdade (v., nomeadamente, acórdãos de 17 de Outubro de 2002, Payroll e o., C‑79/01, Colect., p. I‑8923, n.° 26; de 5 de Outubro de 2004, CaixaBank France, C‑442/02, Colect., p. I‑8961, n.° 11; e de 23 de Outubro de 2008, Krankenheim Ruhesitz am Wannsee‑Seniorenheimstatt, C‑157/07, Colect., p. I‑8061, n.° 30).

30      Ora, ainda que as exigências previstas na legislação portuguesa se apliquem de forma idêntica aos operadores estabelecidos em Portugal e aos provenientes de outros Estados‑Membros, podem impedir os operadores que não satisfaçam os critérios nela definidos de se instalarem em Portugal para aí exercerem a actividade de inspecção de veículos. Em especial, como sublinha a Comissão, o critério do interesse público, de que está dependente a concessão da autorização administrativa em causa, pode abrir caminho a uma utilização arbitrária do poder de apreciação das autoridades competentes, ao permitir‑lhes recusar essa autorização a determinados operadores interessados, ainda que estes preencham as restantes condições impostas pela legislação.

31      Por conseguinte, as condições controvertidas de acesso à actividade de inspecção técnica de veículos, impostas pela legislação portuguesa, constituem um obstáculo à liberdade de estabelecimento.

 Quanto à aplicabilidade do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE

32      A República Portuguesa, que não contesta de forma circunstanciada o carácter restritivo da legislação em causa, alega que a actividade de inspecção de veículos é uma actividade «[que está ligada] ao exercício da autoridade pública», na acepção do artigo 45.° CE, e que, portanto, não está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 43.° CE. A Comissão alega, a este respeito, que se trata de uma actividade económica que não tem uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública e que o artigo 45.° CE só se aplica a medidas de natureza discriminatória.

33      Relativamente a este último argumento, há no entanto que constatar, como foi recordado no n.° 29 do presente acórdão, que, segundo jurisprudência assente, o artigo 43.° CE comporta não apenas uma proibição de discriminação mas também uma proibição de qualquer restrição que torne menos atractivo o exercício da liberdade de estabelecimento. Contendo o artigo 45.° CE uma cláusula de excepção geral ao princípio da liberdade de estabelecimento consagrado no artigo 43.° CE, a sua aplicação não pode assim restringir‑se apenas às medidas discriminatórias. Por conseguinte, não procede este argumento da Comissão.

34      Em contrapartida, há que recordar que, enquanto derrogação à regra fundamental da liberdade de estabelecimento, há que interpretar o artigo 45.° CE de forma a limitar o seu alcance ao estritamente necessário para salvaguardar os interesses que esta disposição permite aos Estados‑Membros proteger (v., nomeadamente, acórdãos de 15 de Março de 1988, Comissão/Grécia, 147/86, Colect., p. 1637, n.° 7; de 29 de Outubro de 1998, Comissão/Espanha, C‑114/97, Colect., p. I‑6717, n.° 34; e de 30 de Março de 2006, Servizi Ausiliari Dottori Commercialisti, C‑451/03, Colect., p. I‑2941, n.° 45).

35      De igual modo, é facto assente que a análise das excepções à liberdade de estabelecimento previstas no artigo 45.° CE deve tomar em consideração o carácter comunitário dos limites impostos por este artigo às excepções à referida liberdade (v., neste sentido, acórdão de 21 de Junho de 1974, Reyners, 2/74, Colect., p.  325, n.° 50, e acórdão Comissão/Grécia, já referido, n.° 8).

36      Assim, segundo jurisprudência assente, a derrogação prevista nesse artigo deve restringir‑se às actividades que, consideradas em si mesmas, apresentem uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública (v. acórdãos Reyners, já referido, n.° 45; de 13 de Julho de 1993, Thijssen, C‑42/92, Colect., p. I‑4047, n.° 8; e de 31 de Maio de 2001, Comissão/Itália, C‑283/99, Colect., p. I‑4363, n.° 20), o que exclui que sejam consideradas como apresentando uma «ligação ao exercício da autoridade pública», na acepção da referida derrogação, as funções simplesmente auxiliares e preparatórias face a uma entidade que exerce efectivamente a autoridade pública ao tomar a decisão final (acórdãos, já referidos, Thijssen, n.° 22; Comissão/Áustria, n.° 36; e Comissão/Alemanha, n.° 38).

37      O Tribunal de Justiça precisou melhor a distinção entre actividades de organismos privados, que constituem simples funções preparatórias, e as que apresentam uma ligação directa e específica ao exercício da autoridade pública, ao declarar que, mesmo nas situações em que os organismos privados exercem prerrogativas de autoridade pública, extraindo as consequências dos controlos que efectuam, está excluída a invocabilidade do artigo 45.° CE quando a legislação aplicável preveja o enquadramento desses organismos privados pela autoridade pública competente (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Comissão/Áustria, n.° 41, e Comissão/Alemanha, n.° 43). Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que não se pode considerar que organismos privados que exercem a sua actividade sob a supervisão activa da autoridade pública competente, responsável, em última instância, pelos controlos e pelas decisões dos referidos organismos, «estejam ligados directa e especificamente ao exercício da autoridade pública», na acepção do artigo 45.° CE (acórdãos, já referidos, Comissão/Áustria, n.° 42, e Comissão/Alemanha, n.° 44).

38      Segundo as indicações constantes da petição inicial e da contestação, a realização dos controlos técnicos de veículos em Portugal é uma atribuição de um estabelecimento público, o Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, que, no entanto, pode recorrer a organismos privados para executar esses controlos. A decisão de certificar ou não a conformidade técnica dos veículos é tomada pelo organismo privado de inspecção de veículos, sem nenhuma intervenção da autoridade pública administrativa.

39      Como resulta, além disso, da contestação, a actividade dos estabelecimentos de inspecção de veículos está organizada em duas fases. Numa primeira fase, esta actividade consiste em efectuar uma inspecção técnica, ou seja, verificar a conformidade dos veículos inspeccionados com as normas técnicas aplicáveis e preencher uma ficha da inspecção que descreve em pormenor os testes efectuados e os resultados obtidos. Numa segunda fase, esta actividade consiste na certificação do controlo efectuado, pela aposição de uma vinheta no veículo, ou, pelo contrário, na recusa dessa certificação.

40      As tarefas abrangidas pela primeira fase são exclusivamente de natureza técnica, portanto, estranhas ao exercício da autoridade pública (v., neste sentido, acórdão de 5 de Dezembro de 1989, Comissão/Itália, C‑3/88, Colect., p. 4035, n.° 13). Pelo contrário, a segunda fase, que consiste na certificação do controlo técnico, envolve o exercício de prerrogativas de autoridade pública, na medida em que são extraídas as consequências jurídicas da inspecção técnica.

41      A este respeito, há no entanto que salientar que, visto a decisão de certificar ou não o controlo técnico, em substância, ser apenas a constatação dos resultados da inspecção técnica, esta decisão, por um lado, é desprovida da autonomia decisória específica do exercício de prerrogativas de autoridade pública e, por outro, é adoptada no âmbito de uma vigilância estatal directa.

42      Com efeito, resulta do artigo 2.° da Directiva 96/96 que quando o Estado‑Membro atribui a gestão dos estabelecimentos de controlo técnico a organismos privados, continua, no entanto, a exercer sobre estes uma vigilância directa.

43      Com efeito, incumbe ao Estado‑Membro, por força da primeira frase deste artigo, designar os estabelecimentos competentes, implementar um procedimento de habilitação e mantê‑los sob vigilância directa. Nos termos da segunda frase do referido artigo, que menciona as precauções a tomar em caso de conflito de interesses entre a actividade de inspecção e a de reparação de veículos, os Estados‑Membros devem assegurar, em particular, a objectividade e uma elevada qualidade do controlo. Decorre da utilização da expressão «em particular» que a Directiva 96/96 visa uma realização estrita, por parte do Estado, destes dois objectivos qualitativos concretos, a saber, a objectividade e uma elevada qualidade do controlo técnico de veículos, no caso de conflitos de interesses, mas, a fortiori, também na execução da sua missão de enquadramento dos estabelecimentos privados de inspecção de veículos, descrita na primeira frase do artigo 2.° da Directiva 96/96.

44      Por outro lado, como observa a Comissão, sem ser contrariada pela República Portuguesa, os organismos privados de inspecção de veículos não dispõem, no âmbito das suas actividades, de poder coercivo, cabendo às autoridades policiais e judiciais a aplicação de sanções nas situações de desrespeito das regras relativas à inspecção de veículos.

45      Por conseguinte, as actividades dos organismos privados de controlo técnico de veículos em causa não são abrangidas pela derrogação prevista no artigo 45.° CE. Há assim que examinar se o regime de acesso à actividade de inspecção de veículos implementado pela República Portuguesa pode ser justificado.

 Quanto à existência de uma justificação

46      Resulta de jurisprudência assente que uma restrição à liberdade de estabelecimento só pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral. No entanto, neste caso, a restrição tem de ser adequada para garantir a realização do objectivo prosseguido e não pode ultrapassar o necessário para o alcançar (v., neste sentido, acórdãos de 27 de Outubro de 2005, Comissão/Espanha, C‑158/03, n.° 35; de 28 de Abril de 2009, Comissão/Itália, C‑518/06, ainda não publicado na Colectânea, n.° 72; e de 19 de Maio de 2009, Comissão/Itália, C‑531/06, ainda não publicado na Colectânea, n.° 49).

47      A este respeito, cabe às autoridades nacionais competentes demonstrar, por um lado, que a sua legislação é necessária para realizar o objectivo prosseguido e, por outro, que a referida legislação está em conformidade com o princípio da proporcionalidade (v., neste sentido, acórdãos de 15 de Março de 2007, Comissão/Finlândia, C‑54/05, Colect., p. I‑2473, n.° 39, e de 20 de Setembro de 2007, Comissão/Países Baixos, C‑297/05, Colect., p. I‑7467, n.° 76).

48      No presente caso, a justificação invocada pela República Portuguesa no procedimento pré‑contencioso diz respeito à necessidade de garantir a segurança rodoviária, que constitui, segundo jurisprudência assente, uma razão imperiosa de interesse geral (v., nomeadamente, acórdãos Comissão/Países Baixos, já referido, n.° 77, e de 10 de Fevereiro de 2009, Comissão/Itália, C‑110/05, ainda não publicado na Colectânea, n.° 60).

49      Observe‑se, contudo, que a República Portuguesa não se defendeu das alegações da Comissão sobre esta questão, durante o procedimento pré‑contencioso, e não demonstrou o carácter necessário nem o carácter proporcionado, relativamente ao objectivo prosseguido, das medidas em causa. Por conseguinte, as disposições controvertidas não podem ser consideradas justificadas por razões de protecção da segurança rodoviária.

50      Para mais, a República Portuguesa indica que deu início a um processo de revisão do decreto‑lei, que devia terminar em Julho de 2009, para redefinir o enquadramento técnico e jurídico da actividade de inspecção de veículos e eliminar as restrições à liberdade de estabelecimento decorrentes do sistema em vigor.

51      No entanto, há que recordar que, segundo jurisprudência assente, as alterações introduzidas na legislação nacional não são relevantes para que o Tribunal de Justiça se pronuncie numa acção por incumprimento, caso não tenham sido implementadas antes de expirado o prazo fixado no parecer fundamentado (v., nomeadamente, acórdãos de 2 de Julho de 1996, Comissão/Bélgica, C‑173/94, Colect., p. I‑3265, n.° 16, e de 20 de Novembro de 2008, Comissão/Irlanda, C‑66/06, ainda não publicado na Colectânea, n.° 91). A República Portuguesa não pode, por isso, invocar em seu favor alterações legislativas ocorridas depois daquela data.

52      Por conseguinte, a acção intentada pela Comissão deve ser julgada procedente.

53      Face ao exposto, há que considerar que, ao impor restrições à liberdade de estabelecimento de organismos de outros Estados‑Membros que pretendam exercer em Portugal a actividade de inspecção de veículos, nomeadamente através da subordinação da concessão de autorizações ao interesse público, da exigência de um capital social mínimo de 100 000 euros, da limitação do objecto social das empresas e de regras de incompatibilidade aos seus sócios, gerentes e administradores, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 43.° CE.

 Quanto às despesas

54      Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Portuguesa e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) decide:

1)      Ao impor restrições à liberdade de estabelecimento de organismos de outros Estados‑Membros que pretendam exercer em Portugal a actividade de inspecção de veículos, nomeadamente através da subordinação da concessão de autorizações ao interesse público, da exigência de um capital social mínimo de 100 000 euros, da limitação do objecto social das empresas e de regras de incompatibilidade aos seus sócios, gerentes e administradores, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 43.° CE.

2)      A República Portuguesa é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: português.